Carta ao Sr. António Sérgio

 

 

Jofre Amaral Nogueira

Jofre Amaral Nogueira (*)

 

 

Meu velho Amigo:

 

Permita-me, em primeiro lugar, que o trate com a amigável consideração que nos costumam merecer as pessoas que embalaram a nossa meninice intelectual e a quem muito julgamos dever. Eu, de resto, me coloco entre aqueles «aprendizes de filósofo» a que, com particular insistência, se vem dirigindo ultimamente.

 

Queira ver nas pequenas considerações que lhe submeto uma audácia dessa juventude que pelo muito que preza certa disciplina do espírito (em que o meu caro Sérgio lhe ensinou a ver mais do que um método - a própria dignidade do pensamento) dá margem a que lhe desculpem as arremetidas de cavaleiro andante. Demais, a nossa pouca experiéncia no trato de problemas complexos, a ingénua concepção de valores que nos habilita, justificam bem que vejamos o fácil onde se encontra o complicado, e cheguemos, no desvairo dos neófitos, a ver o astro-rei na extremidade luminosa dum pirilampo.

 

O assunto das minhas dúvidas é, numa palavra, a parte final do artigo que o António Sérgio acaba de publicar, na «Revista de Portugal», acerca de Antero.

 

Para melhor elucidação transcrevamos uma passagem de entre as diversas que suscitam os nossos reparos.

 

«...quem suponha que as ideias são «reflexos das coisas no nosso cérebro» não pode admitir ao mesmo tempo que as ideias reajam sobre as coisas, não pode conceber uma acção recíproca entre a consciência e o ambiente físico, entre o ser inteligente e o corpo social. Aceitar essa acção recíproca - como o faz o chamado «materialismo dialéctico» - é reconhecer a eficácia das ideias e reconhecer a eficácia das ideias é afirmar que elas não são reflexos, e negar a doutrina do materialismo...».

 

Ora, ainda recentemente afirmava o meu caro «filósofo»: «Todos os argumentos são por mim conhecidos..., e para todos os argumentos tenho eu as respostas...». Seria portanto supérfluo e impertinente pretender agora discutir consigo este assunto; o que me ocupa a atenção é a estrutura lógica das suas afirmações, naquelas consequências que acarreta para o espírito crítico e para a mestria metodológica que tanto Ihe admiro. Mas, mesmo assim, parece rematada loucura a gente expor as suas dúvidas quando um Moloch, feito de todos os argumentos possíveis, nos ameaça triturar com as «fichas» omnipotentes dum arquivo mental...

 

Entretanto, que os deuses benéficos nos protejam no restante da caminhada. Porque dizer que a eficácia das ideias é contraditória da sua definição como reflexos e que, por isso, certos bandidos do pensamento, os tais «dialécticos», caíram no absurdo ao afirrnar «uma acção recíproca entre a consciência e o ambiente físico, entre o ser inteligente e o corpo social»? Se bem interpreto o pensamento do meu caro Sérgio, as ideias não poderiam ser reflexos das coisas, uma vez que as considerássemos eficazes, porque seria inconcebível que, modificando-se as coisas sob a acção das ideias, estas fossem um reflexo - uma consequência - da própria modificação das coisas, de que são um agente, uma causa. Por outras palavras, se a acção de a modifica b, como dizer que a modificação de b foi a causa da anterior acção de a sobre b?

 

Se bem interpreto o seu pensamento, como disse, era esta a resposta que daria à natural pergunta que surge após a sua afirmação. Partindo agora, por comodidade de exposição, da hipótese de que não interpreto convenientemente o desenrolar do seu raciocínio, deixe-me perguntar-lhe:

 

- Acaso esses filósofos malfadados, a que se refere, não teriam concebido a eficácia das ideias como determinada e limitada pelo próprio desenrolar dialéctico das coisas, como uma das condições desse movimento dialéctico?

 

«O materialismo dialéctico - diz o psicólogo Kornilov - afirma que o ser não se reflecte na consciência como as coisas nos espelhos: que os citados reflexos têm um caracter subjectivo, determinado pela estrutura do mecanismo perceptivo». «O materialismo - afirma E. - não procura reduzir todos os fenómenos psíquicos ao movimento da matéria. Para o materialista, a sensação e o pensamento, a consciência, constituem um estado interno da matéria em movimento». Mas vejamos ainda estas palavras do citado psicólogo: «O m. d. considera o processo universal como um todo único, no qual a natureza inorgânica e superorgânica, o que quer dizer, a sociedade humana, representam cada uma diferentes formas qualitativas de expressão dum processo único. Neste processo, a conduta de cada individualidade, ainda que se encontre, naturalmente, determinada por condições sociais e económicas, tem importância na vida social, porquanto cada pessoa é um elo necessário na cadeia dos acontecimentos históricos».

 

Como o meu velho Amigo deve verificar, o problema é aqui posto de maneira diferente daquela com que o colocou. As ideias aparecem aqui, não como o trabalho fantasia de certos princípios lógicos no trapézio da especulação, não como o «clou» de cartaz na exibição deste fim duma cultura - mas como funções dos processos fisiológicos dum ser que vive, que adquire experiência e razão, que toma conhecimento cada vez mais lato do mundo e da vida; e funções cujo conhecimento se lhe apresenta sob o ângulo particularíssimo do subjectivo e do objectivo conjugados. A eficácia das ideias será assim determinada por peculiares processos de recepção, pelas condições de evolução do corpo social, pelas leis dialécticas do ambiente físico - numa palavra: as propriedades das ideias são determinadas pelas propriedades do ser, entre as quais avulta o movimento dialéctico do todo.

 

Já vê o meu velho Amigo como aquela acção de a sobre b, sendo eficaz, era contudo determinada pelas condições que definiam a existência e o movimento de b e era, de resto, uma das propriedades, embora singular, do ser. O engano deve portanto encontrar-se no facto de o António Sérgio apresentar, como dados do problema, as concepções do materialismo mecanicista, para atribuir a solução ao dialéctico; em não distinguir um do outro, o que, ao contrário do que afirma, de alguma coisa «serviria distinguir».

 

Repito-lhe que não venho antepor à sua tese esta outra: o que pretendia recordar-lhe é que se tratava dum assunto demasiadamente complexo e fundamental, para que se caia nas simplificações brutais em que cai, segundo o António Sergio, a grande parte dos divulgadores... Ah! Que belas palavras o meu velho Amigo nos disse sobre a divulgação!!

 

...Mas continuemos a transcrição das suas expressões:

 

«... a noção de dialéctica e incompatível com a de materialismo. O «materialismo dialéctico» não afirma que a dialéctica é material, mas que a materialidade é dialéctica: ora, dizer que o desenvolvimento da realidade se leva a efeito dialècticamente é dizer que a marcha da realidade se pauta pela marcha das ideias, que a cadeia dos fenómenos reproduz a cadeia dos pensamentos - e sustentar, por consequência, uma doutrina idealista».

 

Por um lado, parece-me que aquele «reproduz» só confirma que o meu velho Amigo sobrepõe a uma concepção dinâmica, que pretende interpretar, a sua concepção estática; por outro lado..., porque não afirmar, pelo contrário, que a «cadeia dos fenómenos» determina a «cadeia dos pensamentos»? As premissas do problema que nos propõe tanto servem para esta como para aquela conclusão..., é conforme o gosto crítico. Simplesmente me parece que o meu caro Sérgio, segundo as suas palavras «todo crítica, da cabeça até aos pés», nesta particular questão coloca a cabeça onde deveria colocar os pés. É possível que tudo isto seja a consequência de o cegar a perfeita clareza do seu raciocínio, de o seu lúcido espírito crítico se ter dogmatizado demasiadamente, ou que tudo consista afinal em não nos ter dado as suas verdadeiras razões.

 

Já agora, para terminar, deixe-me perguntar-lhe, para melhor compreensão do texto que nos cita de Antero, se não serão aquelas «ideias imanentes» pelas quais exclusivamente se governa o universo, «análogo no fundo ao espírito», o contraste vivo da reprodução da «cadeia dos pensamentos» na «cadeia dos fenómenos»? Ou, então, diga o meu velho Amigo como concebe que a evolução e a razão, segundo Antero com raízes comuns, possam reproduzir-se uma na outra?

 

Meu velho Amigo: - não tente cortar as raízes da razão, porque ela - coitada! - tão isoladinha como ficaria lá «na plenitude do ser e ideal perfeição», era bem capaz de se dedicar a vícios da adolescência...

 

Cordialmente

Jofre Amaral Nogueira

 

 

Carta Ao Sr. Sérgio

 

 

Comentário

 

 

Comentário para compreender

 

 

O Sr. António Sérgio acaba de submeter-me na «Seara Nova» cinco «temas para meditação» nos quais me propõe buscar «desinteressadamente, sem parti pris, as suas razões e consequéncias.»

 

Confesso que espero do Sr. António Sérgio um pouco mais de atenção ao que eu lhe escrevo, um pouco mais de higiénica compreensão e um pouco menos de bondade catedrática. Nascemos, todos os da minha idade, um pouco tarde para escutar as vozes que nos falam de entre relâmpagos e trovões...

 

Se confiadamente lhe escrevi a minha carta, foi porque verificara que o Sr. António Sérgio não resolvia (nem atentava nelas) as dificuldades que qualquer pessoa, por pouco que soubesse de materialismo dialéctico, encontraria em face. Se confiadamente lhe escrevi a minha carta, foi porque fiz aos seus méritos a justiça de não considerar o que o Sr. Sérgio escrevia como... legislação filosófica.

 

Permita-me que trate agora dos temas que constituem o artigo da Seara. E desculpe o arrojo insolente de propor-lhe que admita por momentos, por fantasticamente absurda que seja a hipótese, a possibilidade de um rapazinho de vinte anos, por uma aberração da Natureza, por urn fenómeno patológico misterioso, - ser capaz de pensar e de ter razão. O esforco que lhe peço deve ser-lhe sobre-humano, mas é também o primeiro estádio duma atitude compreensiva e, se o caso se der, terá o Sr. António Sérgio o ensejo de meditar num fenómeno para si inédito.

 

Primeiro tema. Para o materialismo dialéctico a consciência e o ser são duas coisas diferentes, duas coisas que não coincidem. Perante o problema das relações entre consciência e ser, entre espírito e matéria, o homem tomava duas atitudes clássicas: ou reduzia o ser à consciência, a matéria ao espírito, e via no ser um «epifenómeno» da consciêrncia; ou reduzia a consciência ao ser, o espírito à matéria, e via na consciência um epifenómeno da matéria. Para o materialismo dialéctico não se trata da solução do problema pela destruição do que tem de particular e de irredutível ao outro cada um destes dois elementos: o materialismo dialéctico resolve o dilema clássico estabelecendo entre os dois termos uma relacão, uma unidade, que é feita pela acção do homem.

 

Era acerca disto que se disse nas «Teses sobre Feuerbach»: «O principal defeito de todo o materialismo passado é que o objecto, a realidade, o mundo sensível, são por ele compreendidos sob o aspecto de objecto ou de intuição, mas não sob o aspecto de actividade concreta humana, como prática, não de maneira subjectiva. Assim se explica por que o aspecto activo foi desenvolvido pelo idealismo em oposição ao materialismo, mas só abstractamente, porque o idealismo não conhecia naturalmente a actividade real, concreta, como tal».

 

É ainda das Teses o seguinte pequeno trecho que podemos considerar a chave de todo este sistema filosófico: «A doutrina materialista em que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, em que, por consequência, homens modificados são produtos de outras circunstâncias e duma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que modificam as circunstâncias e que o próprio educador precisa de ser educado».

 

É exactamente porque se compreende a realidade, mundo sensível, sob o aspecto de actividade concreta humana, como prática, que se diz que a acção dos homens, modificando as coisas, modifica os próprios homens: que a consciência dos homens é modificada pelo mundo sensível, em modificação sob a acção da actividade humana.

 

É óbvio que a acção dos homens se exerce, que a consciência é determinada pelo ser, dentro de certas condições, em que as propriedades da matéria, o mecanismo perceptivo do homem, a experiência e a razão adquiridas, as circunstâncias da acção humana, - se exercem e se coordenam. E é óbvio, tambérn, que essas certas condições, sendo funções de variáveis variam também, embora a variação não seja arbitrária mas sujeita a certas leis de desenvolvimento. Por outro lado, é também verdade que essas condições definem a maneira e são a razão por que se diz que a matéria determina a consciência.

 

Exemplificando: foi da acção do homem que veio o conhecimento de que o hidrogénio e o oxigénio, juntos em certas condições, formam a água. Não se pode evidentemente formar água pela junção de carbono e de zinco: a razão e a sua eficácia são determinadas, neste caso, pelas propriedades da matéria, por uma certa organização da matéria. É certo que, muitas vezes, se tiram de certas leis da matéria consequências acertadas, verdadeiras; mas só a prática humana dá a essas consequências a realidade pragmática que as torna verdadeiras, e a sua dedução só foi possível graças a uma experiência anterior.

 

A inteligibilidade do mundo não é uma condição a priori, um dever ser, ela é o resultado da experiência humana. A própria razão é um processo que se desenvolve, que se organiza, pela «totalização da experiência». Os chamados princípios da razão são consequências do exercício da razão, consequências da experiência racional, determinadas portanto pelo conhecimento da matéria, pelas propriedades da matéria. No caso do navio que o Sr. António Sérgio cita, as «máquinas propulsoras», embora propulsoras, são determinadas pela função do navio, pelo meio em que ela se exerce, pelas lições adquiridas na experiência, na acção, das máquinas propulsoras. O Sr. António Sérgio não se lembraria, certamente, de pretender propulsionar um navio por meio duma máquina de bater gemadas, pelas rodas dum automóvel, ou pela hélice e pelas asas dum avião.

 

Quando o Sr. António Sérgio fala na eficácia das ideias, considera-a um facto inadmissível dentro duma concepção materialista, coerente consigo própria. E é evidente que ao considerá-la assim, não o faz por essa eficácia em si, desligada de suas consequências. Se bem me parece, o Sr. António Sérgio considera as consequências duma certa concepção de eficácia, dentro duma certa concepção de vida: é dentro dessas consequências, assim tiradas, que considera irredutíveis a eficácia das ideias e o materialismo. Ora, não podemos considerar a eficácia das ideias em abstracto, como uma qualidade das ideias, da qual logicamente, dedutivamente, se tiram consequências abstractas: - temos de considerar uma eficácia real, produzindo-se em circunstâncias várias e em certas condições. O Sr. Sérgio não repara que entre as ideias e a sua acção eficaz estão o mundo psicológico e social do homem, as leis de organização e desenvolvimento da matéria?

 

Ora é exactamente porque o materialismo dialéctico considera essa eficácia concretamente, corno acção do homem total, que afirma que as ideias e a sua eficácia são determinadas pelas propriedades da matéria sobre que agem ede que recebem, nessa acção, as influências determinantes, modificadoras, orientadoras, inspiradoras.

 

O tom da crítica do Sr. António Sérgio é, neste ponto, um tom tal que nos dá a nítida impressão de que desconhece, ao tratar da exclusão entre eficácia das ideias e materialismo - estar criticando um sistema em que é da própria eficácia das ideias que resulta a concepção materialista. Se o Sr. António Sérgio tivesse reparado neste pequenino ponto é indiscutível que raciocinaria dum modo bem diferente.

 

O Sr. António Sérgio poderá dizer-me que não admite, que julga falsas, esta concepção da eficácia das ideias e aquela outra, atrás dada, de matéria e mundo sensível. Demos de barato que tem razão, que as duas concepções são falsas; não esqueça, porém, o Sr. Sérgio que o que desejava mostrar era uma contradição entre os conceitos A e B dentro do sistema C e não nos podia falar, portanto, dos conceitos A e B dentro do sistema D. O contrário seria uma habilidade demasiado visível para que a inteligência do Sr. António Sérgio a usasse.

 

Segundo tema. O segundo tema é, em resumo, o seguinte: «Mal eu afirmo que a oposição e composição das forças materiais reproduz uma oposição e composição de ideias (por outras palavras: mal eu afirmo que aquela oposição é dialética) eu saio do campo do materialismo».

 

 

As conclusões que tirei da leitura destas palavras envolviam, na sua exposição pela minha pessoa, uma tal gravidade, que meditei cuidadosamente na atitude a tomar. Eu sabia que tínhamos a considerar três momentos ou três concepções de dialéctica. Na primeira, a dialéctica seria a técnica lógica das definições; na segunda, seria «uma oposição e composição de ideias»; na terceira, o problema punha-se, segundo as palavras de Henri Lefebvre, assim: «Toda a realidade é uma totalidade, una e de momentos que se envolvem em profundidade e dos quais cada um contém outros momentos, outros aspectos, outros elementos saídos da sua história. A realidade transporta assim o pensamento, e o ser é anterior à consciência; a realidade é natureza, matéria, mas é contudo captável na sua infinita riqueza de determinações, pelo pensamento humano que progride, apoiado na «praxis», e se torna cada vez mais penetrante, flexível, «poliscópico», e tende, como para um limite, para o conhecimento absoluto».

 

Sabendo que quando se fala em materialismo dialéctico, e isto pertence à instrução primária desta corrente filosófica, se compreende por «dialéctica» o movimento contraditório e sintético da matéria, eu tinha perante a crítica do Sr. Anténio Sergio a possibilidade de duas posições:

 

a) Opondo a dialéctica idealista (desenvolvimento de ideias) ao materialismo, para provar o absurdo da frase «materialismo dialéctico», o Sr. Sérgio esquecia propositadamente a existência da dialéctica materialista (certo desenvolvimento da matéria). E procurava assim, num truque infantil, iludir o leitor confiante. Mas não posso acreditar que houvesse ilusões sobre o papel duma habilidade tão frágil;

 

b) O Sr. Sérgio ignorava a existência da dialéctica materialista e era esta uma hipótese que se confirmava por o Sr. Sérgio parecer desconhecer no primeiro tema um outro ponto essencial de corrente filosófica que criticava.

 

Mas havia eu, um jovenzinho muito ignorante ainda, de acusar de ignorância uma pessoa de tanto saber, de tanta capacidade mental, com tanta fama de esperteza, com uma obra tão marcante, como o Sr. António Sérgio?... Confesso que é humildemente, mais envergonhado do que decidido, que me coloco na ingrata posição de admitir o desconhecimento destas coisas essenciais por parte do Sr.Sérgio. Creia que é sem «pesporrência» que lhe peço, quase de joelhos, para meditar, com assento e desinteressadamente, nestas coisinhas importantes; mas não tenha pressa, ponha de parte interesses polémicos, e medite só depois de as conhecer e comprender.

 

Terceiro tema. O Sr. António Sérgio refere-se aqui ao emprego das palavras «superior», «justo», «injusto», mas como raciocina para o materialismo mecanicista parece-me que não vale a pena tocar este assunto.

 

Por outro lado, se o sr. António Sérgio sentia a necessidade de falar nisto, era lógico que falasse em resposta a quem usou daquela expressão (embora do ponto de vista dialéctico); o que é estranho é que se refira ao que alguém escreveu após ter tido para esse alguém uma atitude assaz descomposta.

 

Quarto tema. Diz o Sr. António Sérgio: «Eu não discuti naquele meu artigo nenhuma das teses humanas (por que assim digamos) da doutrina chamada «materialismo dialéctico»; só discuti a justeza da sua afirmação metafísica, a saber: aquela designação de «materialismo», dada a uma doutrina que - em meu juízo - não é materialista». É evidente que tudo isto não passa de puro formalismo: se o Sr. Sérgio, para provar que certa doutrina não é materialista, ataca as duas bases essenciais dessa doutrina, afirmando-as como absurdos - implicitamente discute uma das teses humanas.

 

Acusa-me ainda o Sr. António Sérgio de ter dado «um sentido geral, universal, indeterminado» a uma passagem por ele escrita em referência às «vulgaríssimas e conhecidíssimas argumentações dos jornalistas-apologistas católicos». Com o fim de avivar a memória do Sr. Sérgio, transcrevo o período que no número 515 da Seara Nova precede imediatamente a frase por mim transcrita. Devo prevenir que os sublinhados são meus.

 

«Há-de acreditar o irmão católico que NISSO de argumentações não sou eu nehum peco, e que já vi, examinei, compreendi, pesei, quanto de melhor apareceu até hoje EM MATÉRIA de argumentações».

 

Como vê, era num «sentido geral, universal, indeterminado» que a frase estava expressa. O Sr. António Sérgio declara referir-se a certas «vulgaríssimas e conhecidíssimas argumentações» e eu não quero duvidar da sua palavra. Lembro, contudo, que teria sido conveniente que o Sr. Sérgio admitisse ao menos a possibilidade duma interpretação, embora errada. Quanto aos conselhos sobre a «beleza interior» e o «ser nobre, puro, cavalheiresco, leal», permita-me o Sr. António Sérgio que lhe proponha como coisa excelente, como coisa mesmo muito excelente, que encerremos esta questão.

 

 

 

 

 

 

 

(*) Jofre Amaral Nogueira (1917-1973) nasceu em Trancoso e frequentou o liceu na cidade de Coimbra, licenciando-se depois em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras da sua Universidade. Aos 16 anos já teria sido contactado por Firminiano Cansado Gonçalves. Enquanto estudante foi colaborador regular no semanário O Diabo, na revista Síntese e no quinzenário Sol Nascente, órgãos do movimento neo-realista, tendo mesmo participado na direção desta última publicação, quando transferida de facto para Coimbra. Foi correspondente e tradutor de Henri Lefebvre. É dele também a autoria de um dos mais significativos manifestos da jovem guarda marxista, o artigo ‘O papel duma nova geração’ (Sol Nascente, N.º 28 15.4.1938). Por essa altura desempenhava já funções de responsabilidade no Partido Comunista Português (onde militava desde muitíssimo jovem), tendo por isso conhecido a prisão, nesse mesmo ano de 1938. Depois disso passou a usar o pseudónimo de Albertino Gouveia. Licenciado em 1947, estava-lhe barrado o ensino oficial e teve de rumar para Angola, onde foi professor em colégios particulares em Lobito, Nova Lisboa e Benguela. Dedicou ao estudo de temas históricos e geográficos locais, tendo publicado sobre eles, nos anos 1950, diversos livros e artigos. Merecem destaque ‘A colonização do Huambo’ (Nova Lisboa, 1953), ‘Perspectiva histórica e problemas actuais do povoamento europeu de Angola’ (Lisboa, 1955), ‘A miscigenação étnica na província de Angola’ (Sá da Bandeira, 1958) e ‘Angola na época pombalina: o governo Sousa Coutinho’ (Pub. Europa-América, Lisboa, 1960). Regressado a Portugal (à então “metrópole”) em 1959, lecionou no ensino técnico oficial em Espinho, Viseu e no Porto, sendo um elemento sempre muito ativo em reuniões de debate e reflexão sobre a reforma do ensino e problemas do professorado. Colaborou regularmente nas revistas Vértice, Seara Nova e Colóquio-Letras, além dos periódicos A Capital (crítica literária), O Comércio do Porto (página de educação) e Diário de Lisboa. Criticou os fundamentos ontológicos e gnosiológicos do estruturalismo em Lévi-Strauss e Foucault. Althusser e Marcuse passaram pelo crivo da sua análise. Fez o balanço da ação de António Sérgio, criticou a deriva anti-marxista de António José Saraiva. Participou na campanha eleitoral da CDE em 1969 e na comissão executiva do 3º Congresso da Oposição Democrática (Aveiro, 1973). Tem cerca de trinta artigos no ‘Dicionário de História de Portugal’ organizado por Joel Serrão (Figueirinhas, Porto, 1963-1971). Organizou e prefaciou, também para a Editorial Inova, ‘O pensamento de Abel Salazar’ (1972). ‘A república de ontem nos livros de hoje’ foi publicado em separata da revista Vértice de 1972. Por altura da sua morte prematura (por insuficiência vascular), tinha em mãos um importante estudo sobre a ideologia nacionalista portuguesa. Já postumamente, foi ainda publicado ‘Educação: luta de ontem, luta de hoje’, pelos cadernos ‘O Professor’, Porto, 1976. Uma parte significativa (mas de forma alguma exaustiva) da sua obra dos períodos não-angolano está reunida no volume ‘Um humanismo à nossa medida’, Editorial Inova, Porto, 1971. É um dos mais completos e penetrantes pensadores marxistas portugueses e, possivelmente, o melhor escritor de entre eles.

Ficou célebre e foi um momento definidor para a sua geração a polémica que travou com António Sérgio em 1937, aos vinte anos apenas, nas páginas da revista Sol Nascente. No n.º 19 publicou-se a sua ‘Carta ao Sr. António Sérgio’, a que este respondeu, de forma um tanto displicente, na revista Seara Nova, n.º 537 de 27.11.1937, com o artigo ‘Cinco temas para meditação’. No Sol Nascente n.º 21 de 15.12.1937, Jofre Amaral Nogueira voltou à liça com ‘Comentário para compreender’, a que Sérgio já não respondeu. O tom geral é respeitoso para com o mestre dos Ensaios, mas com uma argumentação tersa e sem contemplações para com a sua auto-suficiência e os seus desleixos intelectuais. De uma certa forma este incidente valeu como uma carta de alforria intelectual do marxismo português.