A linguagem e o pensamento (*)

 

 

Jofre Amaral Nogueira2

Jofre Amaral Nogueira

 

 

 

Se a Linguística, na época contemporânea, ganhou foros de nova ciência exacta pelas características dos seus métodos e da sua problemática, também alargou o espaço epistemológico que alcançara, quer pela relativa valorização dos seus temas, quer pelas relações que estabeleceu com outras disciplinas, sobremodo a Psicologia e a Etnografia. Não é de estranhar, por consequência, que tudo isso se reflectisse no pensamento filosófico do nosso tempo, passando os problemas da linguagem a ocupar dentro deste um lugar de grande destaque. Com efeito, desde Cassirer a Merleau Ponty, os sistemas de comunicação verbal vieram a tornar-se indispensáveis para a comprensão da vida do espírito e mormente para a do fenómeno do conhecimento. Nem sempre o facto tem alegrado os linguistas profissionais, ciosos da pureza científica das suas investigações, que muitas vezes acusam os filósofos de deturpar-lhes o teor rigoroso, criando problemas descabidos ou traduzindo-as em termos de fantasia inaceitável.

 

Tal é, por exemplo, a opinião de Georges Mounin, para quem a «semântica de Adam Schaff é uma semântica de filósofos», para quem Merleau Ponty leu Sausurre tarde e mal, se apropriou «do seu vocabulário e podemos dizer que há que riscar tudo quanto ele disse sobre a linguagem». O próprio Lévi-Strauss «conseguiu dizer coisas extraordinárias em etnografia e antropologia, fazendo raciocínios falsos sobre conceitos inexactos de linguística» (1). Martinet, por sua vez, observa que «o grande público começou a interessar-se pela linguística a partir do momento em que ela já não é linguística», acrescentando que «o drama, para nós, são os idealistas: os filósofos e os literatos» (2). Mas a verdade é que, estabelecidos que foram os estreitos liames entre a linguagem e o pensamento, tornou-se de todo impossível deixar de considerar os problemas desta natureza em qualquer concepção actualizada, quer do conhecimento, quer da nossa vida psíquica.

 

Embora o problema tenha atingido grande voga nestes últimos tempos, não podemos dizer que ele seja muito recente. Pelo lado dos linguistas, fora já entrevisto por um Herder (1803) e por um Humboldt (1835). O primeiro observava que a linguagem «limita e rodeia todo o conhecimento humano», não sendo apenas um instrumento das nossas ideias mas também um elemento caracterizador e constituinte da ciência. Escreveu o segundo: «O património intelectual e a forma linguística dum povo encontram-se tão intimamente entrelaçados que, dado um deles, o outro se poderia deduzir completamente deste» (3). E pensava ainda que uma «força nacional determinada só pode corresponder a uma língua nacional determinada [...], só pode desenvolver-se intimamente nela e expressar-se através dela». Com o que se lançavam as bases duma união substancial entre a cultura dum povo e a respectiva língua, tese que ainda há pouco foi afirmada entre nós por António José Saraiva.

 

Também pelo lado dos filósofos, já um Marx (1883) escrevera: «Sobre a «alma» cai desde o começo uma maldição: estar «gravada» na matéria, que se manifesta, neste caso, na forma de camadas de ar em movimento, sons, numa palavra, em forma de idioma. A língua é tão antiga como a consciência; a língua é a consciência real, prática, existente para outras pessoas e só com isso para si mesma; como a consciência, a linguagem surge só da necessidade, da imperiosa precisão de relacionar-se com outras pessoas». E o seu companheiro, Frederico Engels, observou: «No princípio, o trabalho, e logo, com ele, a linguagem articulada, foram os dois estímulos capitais sob cuja influência o cérebro do macaco se transformou gradualmente em cérebro humano» (4); Ernest Cassirer, por sua vez, vê no simbolismo da linguagem e nas leis que lhe são próprias a força modeladora das criações do nosso espírito, imputando-lhes as matrizes a priori de todo o nosso conhecimento (5).

 

Na sua forma mais simples a tese dos que hoje defendem essa função da língua relativamente ao nosso saber e, dum modo geral, à nossa cultura, toma ou pode tomar duas formas, muitas vezes conjugadas. Num caso, salienta-se que todas as nossas ideias ou raciocínios só tomam existência objectiva (só existem para os outros) quando se traduzem em palavras ou novos símbolos (Lógica e Matemática). Na medida em que o pensamento se verbaliza - se vaza por conseguinte nos moldes duma determinada sintaxe e dum determinado vocabulário - tem de se adaptar como se fosse a matrizes, a esses moldes em que é vazado, adquirindo as características da própria língua em que se exprime. Dirá assim Lucien Sebag que «a língua, sob este ponto de vista, apresenta uma generalidade extrema, porque permite a refracção de toda a realidade através do seu código» (6). E Noël Moulod escreverá que «a própria linguagem é uma estrutura, de que se podem inventariar as leis: mas é ao mesmo tempo a condição estrutural de todo o saber, que tem de se inscrever no campo simbólico» (7). Deste modo se aceita ou pode aceitar uma distinção entre o pensamento e a linguagem como duas realidades diversas, admitindo-se embora que o pensamento não possa deixar de adquirir as características básicas da linguagem quando se torna pensamento expresso e necessita, para isso, de traduzir-se em palavras.

 

Vai-se um pouco mais longe, no segundo caso, e afirma-se que o próprio pensamento já nos aparece verbalizado por sua mesma natureza. Não existirá sequer um pensamento conceptual que não esteja já configurado, pelas características essenciais da linguagem, ao formular-se, para nós próprios, no nosso foro íntimo, como simples pensamento. Se quisermos distinguir, por outras palavras, o acto de pensar, dos pensamentos já pensados, como resultados daquele acto, não só estes mas também aquele estarão moldados pela realidade linguística. Assim, para Benveniste, «a possibilidade do pensamento está ligada à faculdade de linguagem, visto que a língua é uma estrutura informada de significação e pensar é manejar os signos da língua» (8). Levada até às suas últimas consequências, esta opinião pode fazer-nos chegar, como é óbvio, à conclusão de que pensar é já falar, desfazendo mesmo toda a hipótese da determinação do pensamento pela linguagem com a simples redução daquele a esta. Como poderia, na verdade, pôr-se o problema da determinação dum pelo outro se ambos fossem a mesma realidade?

 

Mas poderemos ainda abordar o mesmo problema num sentido inverso. Escreveu Adam Schaff que «a linguagem sempre é pensamento no sentido da percepção do significado das palavras tanto na forma de conceitos como na forma das representações que os acompanham; a linguagem como abstracção do pensamento é ex definitione um pensamento in potentia, porque a linguagem possui ex definitione um significado; por consequência, a linguagem é uma linguagem que ao mesmo tempo é pensamento» (9). Também Noam Chomsky nos fala da linguagem instituída, como um «produto cultural submetido a leis e a princípios que lhe são em parte próprios e que reflectem em parte as propriedades gerais do pensamento» (10). Caberia determinar, nestas circunstâncias, se aqueIas propriedades comuns à linguagem e ao pensamento, longe de serem estruturas características da primeira, não seriam antes características do segundo ou, então, apenas estruturas próprias do espírito humano, e que deste passaram para ambos. Como haveria ainda lugar para se querer saber se a linguagem e o pensamento não concorrem ambos, por relações mútuas, para a caracterização dum e do outro, por adequação de ambos à praxis?

 

O problema complica-se ainda mais se o encararmos sob outros ângulos. Com efeito, se aceitarmos que a cultura dum povo é modelada pela sua língua, como explicaremos as alterações profundas da cultura, conservando-se a língua mais ou menos a mesma? Como explicaremos ainda que povos que possuem inicialmente a mesma linguagem, formem culturas diferentes e, com o tempo, até linguagens bastante diversificadas? Como explicaremos, por outro lado, a própria evolução duma língua, ao longo dos séculos, se não encontrarmos nela própria (nas suas estruturas) as razões das mudanças verificadas? Aceitaremos, para isso, alterações culturais não resultantes da determinação da cultura pela língua e que, pelo contrário, sejam elas as determinantes das modificações desta última? O nosso problema, como se vê, não está isento de sérias dificuldades. Será de bom conselho, por tudo isso, evitar as generalizações apressadas, bem como os dogmatismos, e procurar ver toda a questão em pormenor.

 

 

A Linguística moderna, dando primacial importância ao estudo da língua no seu aspecto sincrónico e à investigação do carácter de sistema organizado que ela possui, teve um notabilíssimo surto de desenvolvimento, capaz de gerar ilimitadas esperanças e grandes entusiasmos. Ao lado dela, a Psicologia continuava a marcar passo no lamaçal das incertezas, das controvérsias, da multiplicidade de explicações discutíveis, sem que se vislumbrasse um processo eficaz de fazê-la progredir em escala apreciável, desenredando-a das sarças pré-científicas que a imobilizavam. Isso tornou bastante fácil e cómodo pensar-se que, estabelecida a hipótese dum pensamento moldado pela linguagem, a descoberta e fixação das estruturas desta última corresponderiam ipso facto a obter-se um conhecimento rigoroso e sólido das leis do pensamento. Desse modo, não era só a importância da Linguística que se avolumava (tornando-a a base de outras disciplinas), mas eram também a Psicologia, a Etnografia, a Culturologia, que passavam a estar assentes num método rigoroso de investigação, alcançando o nível de verdadeiras ciências.

 

Todo o problema consistia, por consequência, em descobrir a organização da língua, aquela organização que fazia dela um sistema de que dependiam ao mesmo tempo, na interdependência necessária dos seus elementos, as funções relativas de cada um, a sua diferenciação, a variabilidade de usos e significações compatíveis com um mesmo código de regras fundamentais. «É explicitando os problemas da gramática, escreveu Noël Moulod - que é a lógica implícita da língua, que a linguística se encontrou em condições de deduzir a existência duma dupla legalidade: duma cooperação entre as regras tectónicas da articulação do discurso e as regras dinâmicas da transformação das expressões» (11). Desde logo, porém, os critérios de análise se diversificaram, surgindo diversas escoIas. Deixou de considerar-se as palavras como as unidades mais simples do discurso, a favor dos sintagmas ou dos segmentos de sentido. Com Chomsky, as estruturas primárias foram decompostas em estruturas secundárias, em que se pretendem encontrar os sentidos subjacentes à composição das primeiras. De tudo isto resultou um facto bem notório: apesar de todos os seus progressos e das inúmeras análises a que as linguagens foram sujeitas, estamos ainda muito longe duma determinação global das estruturas linguísticas que vá muito além das gramáticas tradicionais. Como Óscar Lopes pôde escrever, os «únicos universais linguísticos que talvez se tenham definido até hoje (se é que Roman Jacobson o fez) são os traços distintivos da articulação fonológica, mero material insignificativo que se estrutura diferentemente de língua para língua» (12).

 

Também ainda se não demonstrou, por outro lado, que qualquer língua histórica forme um sistema perfeitamente coerente em todos os níveis do seu uso, desde a linguagem vulgar à linguagem culta, à científica, à artística. Disse Bertil Malmberg: «O que estuda sincrónicamente o sistema duma língua deve pois recordar que vários sistemas podem lutar pela hegemonia e existir lado a lado. Muitos erros foram cometidos por investigadores que não tiveram em conta esta possibilidade» (13). E isso é de grande importância, ao que nos parece, naquelas línguas que se formaram sobre a pressão simultânea de diversas linguagens e sofreram, no decurso da história, influências divergentes de outras linguagens paralelas. É o caso do Português, formado a partir do Latim popular, com pressões de linguagens germânicas, recebendo ao longo dos tempos as influências do Francês, do Espanhol, do Latim culto.

 

Todos estes factos parecem indicar que o problema da estruturação das línguas é bem mais complexo do que à primeira vista se poderia supor e, por conseguinte, menos fácil de determinar do que muitos esperavam. Ele pode, até certo ponto, ser simplificado com a distinção feita por Saussure entre a língua e a fala ou, se o preferirmos, entre a língua e a linguagem. Consistia a primeira no carácter genérico e permanente que uma língua possui, independentemente das variantes que são usadas pelas diversas classes, pelas diversas profissões, mesmo pelas diversas épocas ou diferentes indivíduos. As suas estruturas viriam a ser as invariantes das várias modalidades que na prática se lhes dá conforme a cultura de cada um ou de cada grupo social ou profissional. Mas caberá perguntar nesse caso, por um lado, se de língua para língua similar haverá diferenças bastantes que expliquem as variações culturais e correspondentes diversificações de pensamento; por outro lado, como explicar também a diversidade de culturas e sistemas de pensamento que, em épocas diversas, correspondem a uma mesma língua?

 

Um problema idêntico surgirá com as concepções de Chomsky. Já vimos como ele supõe, para lá das estruturas superficiais da língua, umas outras estruturas profundas, Entende que «a estrutura superficial é muitas vezes enganadora, que ela nos concede pouca informação, e que o nosso conhecimento da língua implica propriedades dum carácter muito mais abstracto que não são directamente indicadas pela estrutura superficial» (14). Mas como compreendermos, então, que este código da língua, que assim nos parece bastante complexo, seja ao mesmo tempo suficientemente simples para que a criança possa apoderar-se dele desde tenra idade, tornando-se capaz de decifrá-lo? E conclui que «o problema empírico com que nos defrontamos hoje é que ninguém foi capaz de imaginar uma hipótese inicial bastante rica para dar conta da aquisição pela criança da gramática que nós somos aparentemente levados a atribuir-lhe quando procuramos explicar a sua capacidade de utilizar a língua de maneira normal» (15).

 

De qualquer maneira, todavia, admitindo que tal hipótese inicial pudesse servir de estrutura a todos os níveis de linguagem e, por conseguinte, a todos os níveis de pensamento, seria ela ao mesmo tempo suficientemente rica para dar conta de todas as diversificações desse mesmo pensamento e das diversas culturas? Se ela servisse para tudo explicar, seria, ao mesmo tempo, explicação bastante de cada uma das partes componentes desse «tudo»? Todas estas dificuldades nos parecem conduzir a um dilema: ou temos em conta uma estrutura muito genérica da língua, aplicável a todas as linguagens que pode revestir a sua realidade ideal, e não haverá então razões para que ela possa explicar as diferentes formas de pensamento e de cultura; ou procuramos dentro de cada linguagem estruturas específicas, correspondentes a cada forma de pensamento e de cultura, correndo o risco de não as encontrarmos, ou as acharmos muito menos estruturas do que seria de desejar.

 

Todo o problema, contudo, gira excessivamente no campo das hipóteses ou das possibilidades previsíveis. Não é possível encarar com um mínimo de rigor, ou mesmo de utilidade, o problema das relações entre as estruturas linguísticas e as formas de pensamento sem que primeiro se estabeleçam concretamente aquelas estruturas e estas formas. E, ao contrário do que se quis supor, com prematuro entusiasmo, ainda hoje estamos mais distantes de poder fazer um ideia concreta da estruturação das línguas do que das formas ou espécies de pensamento.

 

 

Desde há muito que vêm sendo apontados factos que parecem estabelecer uma estreita ligação entre a mundividência de cada povo e a respectiva língua. Essa tese, já pressentida por Herder e Humboldt foi assim formulada por B. L. Whorf: «Articulamos a natureza seguindo linhas que nos são dadas pela nossa língua materna. As categorias e tipos que tiramos do mundo dos fenómenos não os encontramos simplesmente nele porque, por exemplo, sejam óbvios para qualquer observador; pelo contrário, o mundo apresenta-se-nos como uma corrente caleidoscópica de impressões que deve ser organizada pelo nosso espírito, ou seja, em sentido amplo, pelo sistema linguístico do nosso espírito» (16). Indo mais longe, escreveu E. Benveniste: «Longe de a língua se dissolver na sociedade, é a sociedade que começa a reconhecer-se como língua. Analistas da sociedade perguntam-se se certas estruturas sociais ou, num outro plano, esses discursos complexos que são os mitos não se deveriam considerar como significantes de que se terá de procurar os significados. Estas investigações inovadoras levam a pensar que o carácter básico da língua, de ser composta de signos, possa ser comum ao conjunto de fenómenos sociais que constituem a cultura» (17). Chega-se, deste modo, a pensar que em cada linguagem se encontra implícita e esboçada uma concepção peculiar do mundo.

 

Profundo conhecedor das línguas nativas da América, Whorf opunha a nossa sintaxe à dos povos ameríndios. Na primeira, a relação primordial sujeito-verbo-objecto marcaria a dominância da actividade dos homens, a formar o esqueleto da narração. Pelo contrário, as sintaxes ameríndias dissociariam a natureza externa das intervenções humanas. O que nós exprimiríamos dizendo que «X» convidou Z e Y para jantar esta tarde», seria dito por eles da seguinte forma: «Há um jantar esta tarde para o qual X visitou Z e Y» (18). Ainda o mesmo autor verificou que a língua SAE manifesta a tendência para apreender o mundo como uma colecção de coisas e para concentrar a atenção nos produtos da actividade dos homens, enquanto que a linguagem dos HOPI considera o mundo como um conglomerado de acontecimentos. Entre os NOOTKA a frase carece de sujeito e predicado, utilizando-se uma espécie de termo predicativo que significa «frase»; neles não existem partes da oração, sendo a frase a expressão mais simples e sendo as frases longas ou completas formadas de frases curtas, em vez de palavras (19). Todas estas diferenças, como é óbvio, teriam repercussões caracterizadoras nas respectivas culturas.

 

Também Bronislaw Malinowski, ao estudar as línguas dos habitantes das ilhas Trobriand, verificou a impossibilidade de traduzi-Ias para qualquer das línguas europeias e a necesidade de interpretá-las dentro do todo cultural característico desses povos para poder compreendê-las. Lévi-Strauss, por sua vez, estabelece um paralelo entre as estruturas sintácticas e as estruturas familiares: as línguas ocidentais facultam a combinação dum vocabulário abundante, segundo um número restrito de regras, ao mesmo tempo que as trocas matrimoniais dos que as falam permitem uma larga margem de escolha; as línguas mongólicas submetem um número pequeno de vocábulos a regras combinatórias complexas ao mesmo tempo que esses povos restringem os matrimónios a um complicado sistema de proibições ligadas às relações entre as famílias, os subclãs e os clãs.

 

Nem todos os autores, todavia, manifestam acordo com a doutrina da modelação das culturas pelas linguagens. O próprio Sapir, mestre e inspirador de Whorf, escreveu o seguinte: «Os costumes como a nação não seguem forçosamente a língua. [...] Os idiomas de Athabaska constituem um grupo tão nitidamente unificado, tão definitivamente estruturado como nenhum outro que eu conheça. Os que falam estas línguas pertencem a quatro zonas diferentes da civilização: os costumes dos caçadores do Canadá do oeste e do interior do Alasca (Loucheses, Chipeyau), os costumes dos criadores de búfalos das planícies (Sarcee), o ritualismo acentuado dos Navajos do sudoeste e os costumes muito peculiares dos Californianos do noroeste (Hupe)». E acrescentará que a «língua, a raça e os costumes não estão, portanto, necessàriamente em correlação», embora possam às vezes encontrar-se nessas circunstâncias, como acontece com os Polinésios e os Melanésios, onde «encontramos uma separação bem definida entre os idiomas, a raça e a civilização» (20).

 

«Como se explica - pergunta Adam Schaff - que os povos que falam a mesma língua possuam com frequência culturas distintas e que, pelo contrário, povos que habitam os mesmos territórios e revelam uma relação cultural, falam línguas distintas? (21). A resposta não será fácil para quem pretenda considerar a língua como matriz da cultura, motivo por que um Marcel Cohen, em vez de relacionar as características da linguagem com a cultura dum povo - no sentido de cultura nacional, ligada às instituições sociais, económicas e jurídicas - preferia ligá-las àquelas «concepções gerais que podem ser mais ou menos definidas em função das grandes etapas gerais da civilização humana» (22). Também Franz Boas repudiava a teoria segundo a qual a linguagem modelava a cultura, aceitando, pelo contrário, a tese inversa da modelação daquela por esta.

 

 

Existe, porém, toda uma outra faceta do problema que não cabe geralmente no âmbito da Etnologia. Como se comportam, nas suas relações mútuas, a língua e a cultura ao longo da marcha da história? Serão as variações da língua capazes de acarretar variações da cultura? Serão, ao invés, as variações da cultura capazes de acarretar variações da linguagem? Verificar-se-ão ambos os casos? Não parece que a tese linguística seja a mais favorecida pelo critério histórico. Entendemos mesmo que seria difícil explicar a evolução das línguas se nos mantivéssemos dentro dum ângulo puramente linguístico, no sentido restrito da palavra. Como explicaríamos, por exemplo, dentro de tal âmbito, a diferenciação nascente entre o Inglês e o Americano, ou entre o Português e o Brasileiro? Como explicaríamos as diferenças entre o Grego clássico e o Grego actual?

 

Não sofre dúvida que muitos aspectos da cultura, na sua evolução histórica, se traduzem em fenómenos linguísticos. Por isso mesmo não foi possível, no plano dos próprios estudos especializados, atermo-nos à pura sincronia. Noël Moulod exemplifica esse facto com as palavras alemãs Kunst e List que, nos fins do século XII se opunham para designar respectivamente os conhecimentos necessários à vida duma sociedade cortês e duma sociedade artesanal, sendo ambas elementos do conceito de Wisheit que significava a sabedoria tomada em geral. No fim do século XIII, o termo Wissen tende a substituir List, para designar mais especificamente as condições de saber ligadas às técnicas e os termos Kunst e Wisheit evoluem, o primeiro, no sentido de actividade artística, e o segundo, no de sabedoria filosófica e religiosa (23). Poderíamos encontrar em Português muitos casos semelhantes como, por exemplo, o que se passou com a palavra homenagem, cujo sentido, inicialmente restrito a uma determinada cerimónia feudal, alcançou depois uma significação genérica.

 

Limitar-se-ão porém, tais alterações, apenas à semântica? Elas podem ser, na realidade, mais profundas, atingindo mesmo o predomínio duma ou outra estruturação que, em certo momento, ocupava um lugar secundário. «Uma língua como o Latim - escreve Martinet -, considerada nela própria e na sua evolução tal como é representada nas línguas românicas modernas, oferece um bom exemplo como dois tipos de indicadores de função, correspondendo a dois períodos sucessivos, na evolução da língua, se combinaram durante um certo tempo. A eliminação final do tipo mais antigo foi provocada pela extensão do tipo mais recente. Existia, com efeito, em Latim, por um lado, um sistema tradicional de desinências de casos, formalmente rígidas e estritamente limitadas, que não era capaz de exprimir todas as relações necessárias na sociedade romana. Havia por outro lado uma série de antigos advérbios pouco a pouco promovidos ao papel de preposições indicadoras de função, constituindo um instrumento muito cómodo e muito útil. Estas preposições sobrepuseram-se durante um certo tempo ao sistema dos casos, mas eliminaram finalmente estes últimos tornados um fardo supérfluo» (24). Seria preciso conceber duma maneira muito restrita as estruturas da língua para que, neste caso, não pudéssemos falar duma verdadeira transformação estrutural cuja razão de ser não lograríamos encontrar dentro da própria língua.

 

Como sistema de comunicação, a linguagem tende a manter uma certa estabilidade sem a qual a própria comunicação se tornaria impossível. Mas, como sistema de representação da realidade - na medida em que é uma forma de pensamento que tem de dar-nos conta das diferentes concepções que organizam na nossa mente a imagem do mundo, a língua está sujeita a alterações dependentes da história da nossa cultura. Há bastantes razões para aceitarmos que o nosso entendimento do universo que nos rodeia tem de ser elaborado e comunicado nas condições preestabelecidas pela linguagem que usamos, recebendo desta algumas das suas características, mas, longe de receber dela uma determinação integral, reage sobre ela, amoldando os seus próprios moldes às necessidades de representação que lhe são próprias. O erro que nos parece ter-se cometido - e continuar-se nalguns casos a cometer - é o de supor que aquela primeira determinação é total e exclusiva, unívoca e sem apelo.

 

Dentro da própria língua não são poucas as tensões alterantes que se fazem sentir, motivadas pelos modos especiais ou funções específicas com que a usamos. Os signos linguísticos servem-nos para uma grande diversidade de utilizações: para designar e descrever os fenómenos, para dirigir apelos e advertências, para comunicar sentimentos e atitudes, para expressar claramente ou apenas para sugerir. Por seu lado, a morfologia desses signos distribui-se por categorias de matizes variados, sendo uma delas - os verbos - por si só uma extraordinária colecção de modalidades de representação ou comunicação. Bem pôde dizer Noël Moulaud que «Falar do poder significante das estruturas linguísticas é pois entrar num domínio essencialmente pluralizado de condições formais, apropriadas a destinos variados» (25). Apesar disso, em dois sentidos dominantes se fazem sentir as tensões sobre a linguagem vulgar, marcando dois caminhos bastante diversos de modificação desta.

 

Temos, em primeiro lugar, a linguagem científica em que a função simbólica dos signos se acentua até ao limite dos símbolos matemáticos ou lógicos e todo um sistema relacionante ou operatório substitui a sintaxe usual. Representa, tal tipo de linguagem, uma transformação linguística muito profunda, cujo motor se situa no campo da adequação, quer morfológica quer operacional, a determinadas visões da realidade. Neste caso, por consequência, é o sentido, a possibilidade de fazer corresponder a linguagem aos factos resultantes de determinada prática, verbalizando dum modo adequado o pensamento, que condiciona as estruturas respectivas. Sendo embora um caso limite, sem capacidade apreciável de generalização à linguagem comum ou de actuar na configuração estrutural desta, nem por isso deixa de ser um exemplo do que em grau muito menor pode ser provocado pela linguagem culta ou pela variação das formas de cultura.

 

Temos, em segundo lugar, o que se chama a linguagem artística, cujos processos peculiares de expressão são múltiplos, desde a simples linguagem retórica, com as suas redundâncias, os seus esforços de domínio sobre o interlocutor, o uso das palavras concretas e figurativas, a aproximação viva dos factos pelo uso do presente histórico, a simulação do diálogo dramatizado, etc.. Mas é na linguagem poética que os processos utilizados se revestem da maior importância e se tornam mais significativos, podendo dizer-se que, com ela, se dá quase sempre uma redescoberta da língua que será, ao mesmo tempo, uma transformação. Noël Moulod diz que «a linguagem estática restituirá a materialidade do significante e ao significado, que voltarão a ser valores essenciais. Por outro lado, a morfolologia e a dinâmica dos fonemas passarão ao primeiro plano [...]. Mas, ao mesmo tempo que o significante reencontrará assim a «carne» da sua forma, o próprio significado retomará carne: já não se tratará dum ser simbolizado por nomes de classes, mas dum mundo natural e humano apreendido como uma totalidade individual de momentos ou de situações, condensada e concentrada numa imagem». Por isso afirmará, o mesmo autor, que a linguagem expressiva «comporta sempre de.vios relativamente às regras duma semântica e duma sintaxe restritas: forma-se uma semântica e uma sintaxe mais apropriadas aos seus fins de expressão e de sugestão. Mas à medida que se afastam do domínio das trocas intelectuais para se aproximarem do da invocação ou evocação estéticas, estes desvios tornam-se uma verdadeira mutação; ou seja, a sintaxe e a semântica já não bastam para definir a estrutura da linguagem: esta volta a ser forma, no sentido mais concreto e primitivo do termo» (26).

 

Não é bem essa a opinião de Georges Mounin, para quem «é errado pensar que os artistas violam as regras da língua - se violassem as regras da língua deixavam de ser compreendidos, seriam herméticos, esotéricos e deixavam de ter qualquer aceitação. O que eles conseguem é fazer dizer à língua, no interior das suas próprias estruturas, coisas que nunca tinham sido ditas. [...] Mas conseguem através dum uso inesperado de estruturas, que são todavia as estruturas da língua, fazer-nos entrever a nossa própria experiência individual e reconhecê-la» (27). Mas, por um lado, é evidente que Moulod e Mounin não concebem do mesmo modo as «estruturas da língua»; por outro lado, não restará dúvida, se tivermos em conta certas espécies de poesia moderna, que o caso dos poetas que a praticam não cabe de modo nenhum dentro da explicação de Georges Mounin, verificando-se mesmo a sua hipótese de se tornarem incompreendidos para quem os achará herméticos e esotéricos por não compreender a linguagem que usam.

 

Todas essas variações históricas da língua, como todas essas diversificações dos diferentes níveis da sua utilização nos colocam perante um facto: a importância decisiva da significação ou do sentido na sua estruturação funcional. É o que Henri Lefèbvre notará ao observar que há «uma ordem do discurso (falado ou escrito) que não se reduz à ordem gramatical, nem à ordem lógica, como se diz geralmente. O discurso organiza-se. As frases encadeiam-se [...]. O discurso tem várias partes, uma composição que obedece a regras [...]. Há, pois, em nossa opinião, estruturas do sentido. E isso embora (ou porque) o sentido domine as estruturas, as utilize como instrumento, compreendendo, bem entendido, a significação e os níveis de articulação» (28).

 

Muitos dos autores da linguística estrutural (senão mesmo todos) entendem que a moderna ciência da língua pôde demonstrar que a realidade da linguagem não se reduz à realidade do pensamento; que esta tem, por outras palavras, uma realidade própria, inassimilável às regras ou princípios da Lógica. É o que autores como Michel Foucault designam como espessura da língua, contrapondo-a à transparência que anteriormente lhe era atribuída. As palavras não são, pois, meros instrumentos do nosso pensamento, utilizadas segundo as necessidades e leis deste. Pelo contrário, associam-se de acordo com regras peculiares da própria língua, numa articulação dependente do sistema de articulações que é característica desta, recebendo muito da sua realidade individual, como palavras, desse sistema de articulações relativamente ao qual existem e funcionam.

 

Desfeita, porém, a tese de que língua deixava apenas de transparecer o pensamento que a organizava, logo lhe sucedeu a tese oposta, segundo a qual seriam o pensamento e a cultura que deixariam transparecer a língua em que se forjavam ou comunicavam. Benveniste exprime esta última ideia ao escrever: «De facto, procura-se atingir os quadros próprios do pensamento, não se encontrarão mais do que as categorias da língua» (29). E Saussure dirá que «a relação que se estabelece entre as coisas preexiste, neste domínio, às próprias coisas e serve para as determinar». Mas a simples combinatória das palavras ou dos signos, segundo uma sintaxe determinada ou determinável não se mostrou suficiente para explicar a articulação dos morfemas. Até mesmo para se poder estabelecer o código dessa articulação foi necessário recorrer constantemente aos problemas do sentido - à dimensão de pensamento da linguagem -, sem o qual nenhum resultado efectivo se conseguiria. Além disso, a própria semântica é já toda ela uma questão de significações. Seria, de resto, uma viciação evidente do raciocínio, para admitir que as leis do pensamento traduziriam fundamentalmente as regras de articulação da língua, ter começado por entender já a língua como pensamento ao procurar fixar-lhe tais regras de articulação.

 

«Acreditamos de preferência - escreveu Sapir - que os processos do pensamento surgiram quase no início da expressão linguística; melhor, que o conceito, uma vez definido, reagiu fortemente sobre a vida do seu símbolo encorajando o seu desenvolvimento ulterior. Vemos efectivar-se diante dos nossos olhos este processo complexo de reacções recíprocas da linguagem e do pensamento: o instrumento torna possível o produto, mas o produto aperfeiçoa o instrumento». Daí a conclusão de que «a linguagem e o pensamento não são estritamente coexistentes, quando muito a linguagem pode ser a faceta exterior do pensamento no plano mais elevado, o mais geral da expressão simbólica» (30). Deste modo nos surge, ao lado das duas teses opostas que referimos, uma terceira tese que poderíamos designar como uma concepção dialéctica das relações entre o pensamento e a linguagem.

 

Aceite, porém, uma estreita correlação ou mesmo um paralelismo entre a organização das palavras e a organização das ideias, poderemos supor-lhe duas hipóteses explicativas. Ou admitir que essa correlação se forjou pela praxis, durante a formação inicial e a evolução conjugada da fala e do pensar, ou admitir então, que ela corresponde a determinadas características do nosso espírito, revelando ambas, nas suas propriedades, certas disposições que neste existem como condições a priori quer da linguagem, quer do pensamento. «Torna-se por consequência necessário - escreveu Chomsky - invocar um princípio inteiramente novo, em termos cartesianos de postular uma segunda substância de que a essência é o pensamento, ligada ao corpo, com as suas propriedades essenciais de extensão e de movimento. Este princípio novo tem um «aspecto criador da utilização da linguagem», a faculdade especificamente humana de exprimir pensamentos novos no quadro duma «linguagem» instituída, produto cultural submetido a leis e a princípios que lhe são em parte próprios e que reflectem em parte as propriedades gerais do pensamento» (31).

 

Esta hipótese apriorística, em que linguagem e pensamento se fundem na natureza estruturante do espírito humano, não é outra, afinal, do que aquela a que chegam também, não só Cassirer, com o seu transcendentalismo lógico-linguístico; como ainda Foucault, com o seu cogito; como Lévi-Strauss, com a sua arquitectura do espírito.

 

Nem a Linguística nem a Etnografia foram capazes, como vimos, de dilucidar dum modo cabal as ligações entre a linguagem e o pensamento. Sem dúvida que ambas carrearam muitos e valiosos elementos para esse desiderato. Mas faltou-lhes, antes de tudo mais, uma caracterização positiva e bastante das estruturas de cada língua, que possibilitassem equacionar o problema dum modo concreto e decisivo. Em segundo lugar, as estruturas linguísticas, tais como vêm sendo esboçadas, ultrapassam já um âmbito exclusivamente linguístico (se podemos considerar como possível este «exclusivamente») para se caracterizarem por uma certa ambiguidade linguagem-pensamento, o que desde logo falseia o problema nos termos em que está posto... Vejamos, por isso, o que nos dizem sobre tal tema os psicólogos, embora o assunto não tenha ainda sido objecto, ao que saibamos, de investigações específicas e sistemáticas, se exceptuarmos as do russo Vygotsky.

 

O primeiro facto fundamental que se nos depara resultou das experiências a que procederam Boutan, os esposos Kellog e N. Kothts. A educação paralela de macacos e crianças mostrou que até ao momento em que a criança começa a falar, o desenvolvimento do macaco revela nele um certo avanço. Como diz Paul Chauchard, «pôde dizer-se que nos três primeiros meses do primeiro ano, a criança está no estádio do chimpanzé. Vem depois um momento em que tudo muda, em que a criança se põe a fazer progressos gigantescos, resolvendo problemas que escaparão sempre ao macaco. Verifica-se que isto se produz quando a criança, na idade da linguagem, começa a falar ou vai começar a falar: o modo de funcionamento cerebral que vai produzir a linguagem torna-a apta a novos raciocínios». E o mesmo autor esclarece ainda que, recentemente, Oléron, «comparando crianças surdas e normais, chegou à conclusão de que, para um certo número de testes, o que importa para a superioridade sobre o macaco, não é a própria linguagem, mas o desenvolvimento cerebral que a permite. A linguagem dá uma habilidade intelectual e sobretudo torna possível as aquisições sociais» (32).

 

Outro caso é o de alguns raros meninos-lobos (isto é, criados por lobos) ou de crianças criadas em completo regime de segregação relativamente aos seus semelhantes. Parece verificar-se (e apenas «parece» por não haverem sido directamente estudados, os seus casos por cientistas habilitados) que não tendo aprendido a linguagem na fase infantil própria, não só ficam incapazes de aprendê-la mais tarde, mas também nunca são capazes de atingir um desenvolvimento mental satisfatório, o que demonstraria que o desenvolvimento cerebral correspondente ao uso da língua carece do exercício desta, na altura apropriada, para consumar-se, e que esse uso da linguagem é factor, portanto, do desenvolvimento intelectual que consideramos normal.

 

Verificou-se também, no caso dos surdos-mudos, cegos ou videntes, «que eles atingem sem linguagem, um estado rudimentar de vida social inteligente; com a linguagem mímica mais ou menos espontânea e limitada, um estado sensivelmente superior; com a linguagem, seja dáctil (formação de letras com as mãos), seja táctil (diferentes figurações de letras para contactos, para cegos), seja mesmo verbal, sem audição, em suma, transposições ou variações da linguagem falada das pessoas sãs, todos eles atingem os funcionamentos normais da inteligência (33). Pode ainda verificar-se, quer nos sonhos, quer em indivíduos que estão pensando, sem emissão de voz, que os músculos motores da linguagem falada se mantêm em acção como se de articulação verbal se tratasse.

 

Todos esses factos correlacionam dum modo indiscutível a fala com o desenvolvimento intelectual e o pensamento humanos. Segundo as concepções de Piaget, a primeira forma de inteligência ou pensamento do infante é uma inteligência sensorial-motriz, primeira representação do mundo que a cerca e por onde guia as suas acções. Nessa fase, «as coisas estão centradas em redor dum eu que acredita dirigi-Ias ignorando-se a si próprio como sujeito». Durante o segundo ano de idade, «graças à interiorização progressiva das condutas, poder-se-á esperar que o conjunto das operações sensoriais-motrizes passem sem mais do plano da acção para o da linguagem e do pensamento e que a organização dos esquemas sensoriais-motrizes se prolongue assim directamente num sistema de conceitos racionais». Enquanto a inteligência sensorial motriz não realiza contudo uma socialização do intelecto, o pensamento conceptual, fundado na linguagem, «será já um pensamento colectivo, obedecendo a regras comuns». Notam-se ainda, durante a aquisição da linguagem certos atrasos ou crises na actividade da criança, porque esta «é obrigada, para se adaptar ao plano colectivo e conceptual em que se move agora o seu pensamento, a refazer o seu trabalho de coordenação entre a acomodação e a assimilação já realizada na sua adaptação sensorial-motriz anterior ao universo físico e prático» (34).

 

Outro dos mais notáveis psicólogos do nosso tempo, Henri Wallon, encarara deste modo o assunto em questão: «Pela linguagem, o objecto do pensamento deixa de ser exclusivamente o que, pela sua presença, se impõe à percepção. Dá à representação das coisas que já não existem, ou poderiam existir, a possibilidade de serem evocadas, confrontadas entre si e com o que no momento se sente. Ao mesmo tempo que reintegra o ausente no presente, permite exprimir, fixar e analisar este último [...]. Individualizando o que se encontra confundido, eternizando o que era transitório, a representação que o sinal ajuda a dilimitar-se estritamente, levanta a oposição entre o mesmo e o outro, o semelhante e o diferente, entre o uno e o múltiplo, o constante e o efémero, o idêntico e o que se modifica, a posição e o movimento, o ser e o devir» (35). Mas o mesmo Henri Wallon pensa que as palavras têm na linguagem «uma existência de certo modo contingente, em que o essencial é a função que permite substituir o conteúdo real pelas intenções ou pensamentos, e as imagens que os exprimem, pelos sons, gestos ou mesmo objectos, que não têm como as imagens outra relação que não seja o acto pelo qual se realiza a «ligação» (36).

 

Com Piaget e Wallon, também Vygotsky aceita a existência na criança duma representação sensorial-motriz do mundo que antecede a representação verbalizada, embora não coincidam as concepções dos três psicólogos quanto aos «mecanismos» e processos de aquisição da primeira. Para o psicólogo soviético (cujas investigações não tiveram imediata sequência pela oposição que lhe fez o regime estalinista). «A linguagem do meio ambiente, com os seus significados estáveis e permanentes, assinala a direcção que seguirá a generalização da criança. Mas, constrangido como está, o seu pensamento avança ao longo de um caminho preordenado de um modo peculiar que corresponde ao seu nível de desenvolvimento intelectual. O adulto não pode ministrar à criança o seu modo de pensar, só pode ministrar-lhe o significado já feito de uma palavra em volta da qual este forma um complexo, com todas as pecularidades estruturais, funcionais e genéticas do pensamento desse tipo, ainda que o seu produto, de facto idêntico no seu resultado a uma generalização, pudesse ter sido formado pelo pensamento conceptual» (37).

 

Na opinião de Vigostsky a criança toma conhecimento dos seus conceitos «espontâneos» bastante tarde e a aptidão para defini-los com palavras, para operar com eles, surge muito tempo depois de haver adquirido os conceitos (38). Durante a aprendizagem da língua o pensamento eleva-se das primeiras generalizações a outras generalizações mais vastas e adequadas, e durante este processo não «se muda apenas o conteúdo das palavras, mas também o modo como se generaliza a realidade e se reflecte através das palavras». Pensa o autor, por isso, que a Linguística não compreendeu que na evolução histórica da linguagem também se mudam a «estrutura do significado e a sua natureza psicológica» (39). Pôde assim concluir que as «formas superiores do intercâmbio humano são possíveis só porque o pensamento do homem reflecte, uma realidade conceptualizada, e esta é a razão pela qual certos pensamentos não podem ser comunicados às crianças, ainda que estejam familiarizadas com as palavras necessárias porque pode faltar o conceito adequadamente generalizado que assegure a compreensão total» (40).

 

De tudo quanto expusemos poder-se-á talvez concluir que a função de adequação do homem ao meio em que vive (aos objectos ou seres que o cercam, às situações entre eles e do homem relativamente a todos) implica uma transformação dos factos em representações, que em parte são herdadas da colectividade a que pertence. Estas representações fazem-se por intermédio de símbolos e traduzem-se ou vazam-se na realidade própria - a linguística - desses símbolos. Mas os actos de representação e adequação de tais símbolos às realidades circundantes, a sua correspondência às lições da praxis, transcendem a realidade dos símbolos linguísticos e das relações sintácticas que os organizam. Essa prática que chamamos pensamento - capaz de substituir as relações entre as coisas e a acção do homem sobre elas por relações entre conceitos e uma operatória do sujeito com esses conceitos - é uma tensão entre os dados dos sentidos, os símbolos e operações linguísticas e a transposição mental de modelos interpretativos da realidade. Embora esses modelos se traduzam ainda em conceitos-palavras e nas ligações destas entre si, toda a tensão se converte na realidade lógica semântica pela adequação constante da linguagem à sua função expressiva. No entanto, tal adequação não rompe geralmente determinada contextura gramatical da língua (afeiçoada por séculos de experiência) e tem de caber por regra dentro das possibilidades desta. Isso é possível graças à polivalência das estruturas gramaticais.

 

Conjugam-se no fenómeno linguístico três vectores fundamentais: a representação, a comunicação e a operatória (transformações). Se já como comunicação a língua é pensamento, muito mais o é como representação e operatória. Não se nega que ela tenha, para usar uma expressão de Foucault, uma espessura própria, uma estruturação peculiar que a caracteriza como língua, mas precisamente porque também é pensamento, essa estruturação própria tem sido muito mais difícil de estabelecer do que se julgava a princípio. As tentativas sucedem-se, utilizam-se critérios diferentes (que definem as diversas escolas estruturalistas), mas os resultados continuam a ser parcos. Por isso Chomsky, indo das «estruturas superficiais» para as «estruturas profundas» acaba por sobrepor o aspecto semântico das frases e as implicações dos significados destas ao seu aspecto morfológico-gramatical clássico, introduzindo o conceito de «competência linguística» em que a estruturação da linguagem já se considera, afinal, como um acto do pensamento.

 

Sendo a linguagem um acto de adequação à natureza circundante e à sociedade, e produto social dela, não reflecte apenas as virtualidades psíquicas da espécie humana, mas também a correspondência entre essa psique e a realidade do mundo exterior tal como vai sendo elaborada, visto que é uma função de adaptação. As estruturas linguísticas não são, como é mais que óbvio, as estruturas do mundo físico, mas são estruturas de tal jaez que podem traduzir, à sua moda, os resultados da praxis humana, a adaptação do pensamento à realidade exterior, possibilitando que este a traduza. Toda a ideia, por consequência, de que os moldes linguísticos, privativos da realidade linguística, seriam os organizadores dum caos primitivo formado pelas nossas representações do mundo, não passa duma hipótese metafísica. A língua só nos pode servir para exprimirmos a realidade porque na sua própria organização tem a virtude de servir para esse fim, embora a língua vulgar já não chegue, como o prova a ciência moderna, para tal desiderato, e tenha havido necesidade de formar uma nova linguagem, de sintaxe completamente diversa, para conseguir fazê-lo. E este é um facto primordial que ainda não foi examinado com toda a importância que possui.

 

Há, no entanto, todo um vasto caminho a percorrer antes que as relações entre o pensamento e a língua se possam definir com aceitável precisão. Do lado da língua, ainda se não indicaram as estruturas desta em medida bastante para que o problema da determinação do pensamento por estas estruturas se possa colocar dum modo concreto. E serão apenas tais estruturas os únicos fenómenos da linguagem que teremos de considerar para solução do problema? Do outro lado do pensamento, necessitamos de encarar os diversos níveis deste, desde a quase imediata representação das coisas (que já pressupõe uma organização do seu conhecimento), até ao nível da representação da sua realidade profunda (ou científica), sem esquecer aquilo em que ele é uma operatória conceptual, capaz de construir modelos teóricos de que se podem inferir aspectos posteriormente verificáveis e nomináveis do mundo externo. Ora, tudo isso está ainda por estudar com o indispensável pormenor. Daí que, na maior parte dos casos, toda a teorização se limite, afinal, ao campo das hipóteses (embora altamente sugestivas algumas delas), sem que possamos ainda vislumbrar um tratamento verdadeiramente científico de toda esta questão. Para já, todavia, como escreveu Óscar Lopes, «o facto social e fisiològicamente inlocalizável de falarmos não tem menos importância para a vida psíquica humana que o seu condicionamento orgânico: o psiquismo não cabe nas manchas tipográficas de textos literários ou científicos, é um processo complexo e não uma coisa mensurável em centímetros quadrados ou cúbicos» (41).

 

 

 

 

(*) Segundo o testemunho de Óscar Lopes (Jofre Amaral Nogueira et alii ‘Educação: luta de ontem, luta de hoje’, Edições O Professor, Porto, 1976, p. 10), “A partir de 1969 (...) um dos seus [de JAN] principais cavalos de batalha foi a crítica dos pressupostos ontológicos e gnoseológicos do estruturalismo de Lévi-Strauss e Michel Foucault, criticando a entificação absoluta da linguagem como estrutura (...) de modo a erguê-la até ao postulado de uma razão anterior à razão”. Este ensaio, que veio a público em 1971 incluído no volume ‘Um humanismo à nossa medida’, é justamente uma das manifestações mais acabadas dessa sua luta. Para um não especialista, é impressionante o domínio das matérias aqui revelado e a profundidade da reflexão. Salvo erro, é aqui que pela primeira vez que é citado e comentado em Portugal o pensamento de Lev Vygotsky.

 

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NOTAS:

 

(1) Entrevista concedida ao «Diário de Lisboa» de 12-12-1969.

 

(2) Em «L'Express», n.° 924, de 30-3-1969.

 

(3) Die Sprache als Bildenerim der Völker, Jena, 1932, pp. 102, cit. p. A. Schaff.

 

(4) Cit. em Pensamiento y Lenguage, Academia de Ciências da U. R. S. S., México, 1966, pp. 106 e 69.

 

(5) Le Langage et Ia Construction du Monde des Objects, Paris, 1933.

 

(6) Histoire et Structures, em «Temps Modernes», n.° 193, 1962.

 

(7) Langage et Structures, Paris, 1969, pp. 6.

 

(8) Cit. p. E. Prado Coelho, Estruturalismo, Lisboa, 1968, pp. XI.

 

(9) Lenguage y Conocimiento, México, 1967, pp. 244.

 

(10) Le Langage et Ia Pensée, Paris 1969, pp. 19.

 

(11) Langage et Structures, pp. 101.

 

(12) Em «O Comércio do Porto», de 9-9-1969.

 

(13) Les Nouvelles Tendances de Ia Linguistique, Paris, 1968, pp. 58.

 

(14) Le Langage et Ia Pensée, Paris, 1969, pp. 60. I

 

(15) Idem, pp. 125.

 

(16) Language, Thought and Reality, pp. 213, cit., p. A. Schaff.

 

(17) Problèmes de la Linguistique Générale, Paris, 1966, pp. 43-44.

 

(18) Cit. p. Noël Moulod, Lenguage et Structures, pp. 80.

 

(19) Cit. p. A. Schaff, Lenguage y Conocimiento, pp. 116, 117, 118.

 

(20) E. Sapir, Le Langage, Paris, 1967, pp. 209 e 211.

 

(21) Lenguage y Conocimiento, pp. 122.

 

(22) Pour une Sociologie du Langage, Paris, 1956, pp. 361.

 

(23) Langage et Structures, pp. 79.

 

(24) André Martinet, Langage et Fonction, Paris, 1962, pp. 162.

 

(25) Langage et Structures, pp. 60.

 

(26) Idem, pp. 72 e 71.

 

(27) Entrevista ao «Diário de Lisboa» de 26-12-1969.

 

(28) A Linguagem e a Sociedade, Lisboa, 1968, pp. 212.

 

(29) E. Benveniste, Problèmes de Linguistique Générale, Paris, 1966, pp. 73.

 

(30) Le Langage, pp. 20 e 18.

 

(31) Noam Chomsky, Le Langage et la Pensée, pp. 18-19.

 

(32) Paul Chauchard, Le Langage et la Pensée, Paris, 1962, pp. 44.

 

(33) Pour une Sociologie du Langage, pp. .51.

 

(34) Jean Piaget, Le Lan gage et Ia Pen.sóe chez l'Enfant, Genebra, 1930; La Con.tructioi du Réel chez l'Enfant, Genebra, 1950, pp. 305, 313, 315, 317.

 

(35) Henri Wallon, A Evolução Psicológica da Criança, ed. bras., s/d, pp. 174-175.

 

(36) Do Acto ao Pensamento, Lisboa, 1966, pp. 84.

 

(37) Lev. S. Vygotsky, Pensamiento y Lenguage, Buenos Aires, 1964, pp. 84.

 

(38) Idem, pp. 122.

 

(39) Idem, pp. 135.

 

(40) Idem, pp. 22.

 

(41) Óscar Lopes, Ler e depois, Porto, 1966, pp. 39.