A democratização do ensino (*)

 

 

 

Jofre Amaral Nogueira

 

 

 

A análise das situações concretas ou dos factos, relativamente aos quais se formulam opções políticas, que depois hajam de adoptar-se, quer como critérios básicos de avaliação do procedimento governamental, quer como normas de um procedimento alternativo, exige, antes de mais, uma objectividade rigorosa. Com efeito, correm o risco de serem frustres as construções teóricas e programáticas erguidas sobre alicerces pouco sólidos ou sobre previsões que a evolução real das circunstâncias não venha a confirmar. E tais alicerces, por consequência, não podem derivar das concessões que se façam às ideias feitas, às simples vantagens polémicas de ocasião ou às modas ideológicas que se traduzem nos «slogans» de maior fortuna momentânea.

 

Será esse, em grau considerável, o caso da afamada «Democratização do Ensino» de que o Governo encarregou o seu ministro, Veiga Simão, não só pelo que se refere a ela própria como construção desse tipo, mas ainda pelo que se refere a bastantes das reacções que tem provocado entre nós. Por exemplo, alguns dos seus críticos acusam-na pura e simplesmente de constituir um acto de demagogia. A verdade porém, é que tal projecto não só representa uma significativa correcção da política de educação do regime, mas corresponde ainda a prementes necessidades internas e a toda uma conjuntura internacional da problemática educativa. Seria um erro, não obstante os aspectos trágicos que assumiu, considerá-la demasiadamente sob esse prisma, não considerando o conjunto das razões da sua existência.

 

Política de ensino na 1.ª república

 

Podemos recordar os traços mais salientes da evolução da nossa política de ensino, para situarmos mais claramente a questão nos nossos dias. E lembremos, para já, quanto a este assunto, a posição assumida pelos teóricos e governantes da nossa Primeira República. O problema colocava-se então sobretudo a partir do peso que tinha a taxa de analfabetismo. Apenas uma minoria sabia ler e escrever. E daí resultava, ao que se supunha, grande parte do atraso social, político e cívico do País. A densa ignorância das populações, colocava-as nas mãos das forças retrógradas e acentuava o imobilismo. Só uma política de educação e alfabetização rigorosas, poderia servir de arranque, ao que se pensava, para uma profunda, embora lenta, transformação das condições de existência colectiva.

 

Foi neste contexto que os próceres repubIicanos quiseram converter a instrução pública numa tarefa prioritária e fundamental do novo regime. Acreditou-se que «abrir uma escola era fechar uma prisão» e procurou-se robustecer e expandir, em consequência, o aparelho escolar. Nas circunstâncias de então, contudo, dados o modesto nível de desenvolvimento económico-social, a debilidade de recursos financeiros, o carácter pouco premente ainda das necesisidades internas de trabalho especializado a nível superior ou médio, a força dos hábitos criados, a relativa morosidade do processo evolutivo, todo o surto da escolaridade se parecia situar mais num plano de intenções generosas ou políticas a longo prazo, do que no plano de imediatas e críticas carências do país.

 

Política do ensino do Estado Novo

 

Isso contribuiu em importante medida para o carácter negativo da fase posterior da nossa política da educação, a do chamado «Estado Novo». Em nome duma premente necessidade de compressão de despesas e porque se desejava pôr «termo a entorpecedoras utopias e a aspirações ilegítimas» entendeu-se que para a grande maioria dos portugueses bastava saber ler, escrever e contar. Extinguiram-se as escolas primárias superiores em 1926. Em 1936 foram encerradas as escolas do magistério primário, tendo sido criados os postos escolares. Em 1937 o ensino obrigatório é reduzido de quatro para três anos, ao mesmo tempo que se extinguem as escolas infantis oficiais. A Faculdade de Letras do Porto foi encerrada em 1927.

 

A mentalidade reaccionária dos mentores da nossa política educacional torna-se bem patente quando lemos no preâmbulo do decreto 38.968, que programou a campanha de alfabetização dos adultos, que o analfabetismo se devia ao facto de o nosso povo «pela riqueza intuitiva, pelas condições da sua existência e da sua actividade, não sentir necessidade de saber ler», recordando-se a frase de Ramalho Ortigão, segundo a qual, a «instrução fecunda para um povo não é a que os governos lhe abonam, mas sim a que ele por si mesmo solicita» e sustentando-se que «esta afirmação, passados cerca de setenta anos, encerra ainda uma verdade que os factos dia a dia vêm evidenciando».

 

Em contrapartida, tudo se faz entretanto para converter a escola portuguesa num baluarte do ultramontanismo político e religioso mais retrógrado, expulsando do ensino inúmeros professores, deformando os programas no sentido da ideologia dominante, fiscalizando o teor dos livros escolares e integrando obrigatoriamente os alunos em organizações de tipo fascista, como a Mocidade Portuguesa. O resultado parece não ter sido brilhante, embora seja uma política desse género a que hoje é advogada por certos círculos políticos em face do que se chama «a crise da juventude».

 

A «explosão escolar»

 

O próprio desenvolvimento da sociedade portuguesa - não obstante o ritmo lento a que se operou quando o comparamos com o dos países estrangeiros -forçou os sucessivos governos da época de Salazar a um ajustamento constante, embora extraordinariamente retardado, com as necessidades que se foram avolumando. O desenvolvimento do ensino técnico exemplifica esse processo. Embora a reforma respectiva, operada nos anos 40, fosse bastante modesta nas suas ambições, chegou-se a discutir se havia ou não necessidade de constarem do currículo da preparação dos futuros «operários especializados» algumas disciplinas de carácter cultural e se os professores desse ramo deveriam ou não possuir o mesmo nível de habilitações e receber os mesmos vencimentos que os profsesores do ensino liceal. Exemplo frisante do comportamento contraditório dum «estado» que se declarava «neutral» perante a existência das classes!...

 

No entanto, opera-se a partir de certo momneto, o que se chamou uma «explosão escolar». Entre os anos lectivos de 1940/41 e 66/67, a frequência do ensino primário passou de 606 698 para 947.651 alunos, com um acréscimo de pouco mais de 50%; no ensino secundário passa-se de 79.920 para 334.432 alunos, ou seja, mais 400%; no ensino superior vai-se de 9.666 para 35.933 alunos. Este surto da população discente, que os governos de modo nenhum fomentaram, bastou para fazer entrar em crise todo o nosso aparelho escolar. Os edifícios ficaram superlotados e passaram a funcionar em condições de perfeita anomalia pedagógica. O recrutamento de professores passou a ser feito ao acaso das circunstâncias. Acentuou-se o proceso de degradação do ensino.

 

Por força dos acontecimentos impôs-se a necessidade de passar de um ensino elitista, de tipo selectivo, para um ensino de aproveitamento e abertura às massas. A juventude do país reivindica com a sua própria e efectiva presença nas escolas aquele direito à educação que se tornou, nos nossos dias, como o direito à habitação e o direito à saúde, uma incontível exigência dos povos. Toda a política educacional do «Estado Novo» ruiu perante os factos, deixando bem à mostra a miopia dos seus mentores e os prejuízos resultantes duma actuação sem quaisquer perspectivas de futuro. E isto acontece precisamente na altura em que também as exigências duma vida económica dominada por novas condições da tecnologia, à escala internacional, acentuavam cada vez mais a carência duma preparação cultural e especializada de vastas camadas de trabalhadores, a crescente importância dos quadros, etc..

 

Foi, pois, por força das próprias circunstâncias, quer as que são características do período histórico a que chegámos, quer as resultantes da evolução interna, que o regime se sentiu obrigado a corrigir substancialmente a sua política de ensino. À necessidade inadiável dessa alteração, como à necessidade de responder a acumuladas exigências da colectividade, pretende corresponder a projectada reforma Veiga Simão. E os dois problemas fundamentais a que ela ou outra equivalente terá de responder ressaltam com iniludível clareza: um aparelho escolar que satisfaça o crescimento galopante da população discente; um sistema de ensino que possa fornecer à colectividade os quadros indispensáveis e efectivamente capazes de que ela carecerá.

 

À crescente afluência de estudantes aos estabelecimentos escolares não basta acorrer com a abertura de cada vez maior número de escolas. A saturação das que já existem dificulta o conveniente funcionamento destas. Turmas numerosas, horários de modo algum recomendáveis, ultrapassagens do rendimento aceitável dos diferentes serviços escolares, pioram gravemente a natureza do ensino ministrado. A funcionalidade dos edifícios calculados para uma população escolar muito inferior à que agora têm de albergar é por completo ultrapassada. Os quadros docentes, mesmo recrutados para além de todas as cautelas indispensáveis, não suportam em qualidade e quantidade o ritmo duma crescente improvisação, e diminuem assustadoramente de eficiência.

 

Surgem, por tudo isso, as medidas «heróicas». Escolas pré-fabricadas ou dispondo de pavilhões pré-fabricados, frios no Inverno e quentes no Verão, para os quais se caminha sob chuva muitas vezes, profesosres apenas habilitados com o 7.º ano dos liceus, etc.. Nestas condições, o anunciado prolongamento da obrigatoriedade do ensino, que perspectivas nos oferece? Virão a ser criados, na verdade, em devido tempo, os suportes materiais indispensáveis à sua execução? Ainda hoje, embora bastante acrescidos relativamente a um passado próximo, os recursos financeiros afectados ao sector educacional neste país, são proporcionalmente muito inferiores aos dos países mais progressivos da Europa. E não parece que eles comportem o que seria necessário fazer neste campo.

 

Mas o que se anuncia é nem mais nem menos do que «uma democratização do ensino que corresponda afinal à consciência cada vez mais clara entre as grandes massas populacionais de que o direito à educação é efectivamente um direito de todos, sem prejuízo da classe social a que a criança e o jovem pertençam». Torna-se difícil conceber que a sociedade moderna, dispondo da poderosa tecnologia de que dispõe ou pode dispor, capaz de produzir riquezas em quantidades ainda há pouco inimagináveis, se possa furtar a distribuir por cada um dos seus membros os benefícios duma educação substancial e duma habilitação para a vida que à coloque acima duma existência meramente negativa ou duma situação de miserável sobrevivência.

 

O projeto de reforma e as suas condições

 

Nesse caso, porém, não bastará, mesmo que isso venha a ser realizado, conseguir lugar para todos nas salas de aulas. Será também indispensável conseguir que os jovens em idade escolar estejam em condições económicas que lhes permitam frequentar com êxito os estudos, isentando-os de necessidades que, em muitos casos, ou prejudicam decisivamente o seu aproveitamento escolar ou mesmo lhes impedem a frequência das aulas, obrigando-os a exercer qualquer profissão onde obtenham os rendimentos de que carecem para viver. A elevada percentagem de alunos dos cursos nocturnos do ensino técnico demonstra, para já, que nas actuais circunstâncias, uma grande parte da população discente não dispõe ainda de condições económicas que lhe permita a frequência das escolas em regime normal. Facto que se avolumará com o prolongamento de escolaridade obrigatória.

 

É, por outro lado, uma lição constante da prática pedagógica, a verificação de que uma grande parte dos estudantes não dispõe de recursos financeiros bastantes para a compra de material escolar que lhe é necessário. As próprias condições de vida das classes menos favorecidas colocam os alunos delas oriundos em situação de clara inferioridade relativamente aos que provêm das classes mais favorecidas. Nestas circunstâncias, um ensino para todos ou um ensino «democratizado» implicaria indispensavelmente a eliminação das desigualdades sociais que são características das nossas sociedades e tornam ilusória qualquer tentativa de facultar a todos o direito à educação sem prévia resolução dos problemas sociais.

 

A experiência da Europa demonstra claramente que, mesmo nos países socialmente mais evoluídos (com os quais não poderemos sequer comparar-nos), as reformas da educação não podem ignorar os problemas de natureza económico-social. Por isso, no seu relatório de 1972, escreveu a Comissão Mundial para o Desenvolvimento da Educação, da UNESCO, que «será de não esperar uma educação racional, humana, numa sociedade injusta»; que «a correlação entre as contradições dos sistemas sociais e a relativa impotência dos sistemas educativos é um facto evidente» e que «hoje, ainda mais que ontem, toda a reforma educativa deve ser baseada sobre os objectivos do desenvolvimento tanto social como económico» (Apprendre à être, UNESCO-Fayard, 1972, págs. 69-70).

 

A «Reforma Veiga Simão», apesar de o seu autor a proclamar como algo que se destina a garantir a própria «sobrevivência nacional», parece ignorar por completo este problema. Nada nela nos garante (nem no comportamento do regime que virá a aplicá-la) que os objectivos do desenvolvimento tanto social como económico que haveriam de atingir-se para que essa reforma pudesse realizar-se plenamente, estejam ao nosso alcance. A simples compensação das desigualdades sociais por um sistema de bolsas de estudo, que é tudo quanto nela se prevê, tem um carácter meramente aleatório, mesmo que viesse a assumir vastas proporções, de todo incompatíveis com os recursos financeiros de que se disporá. Por isso, uma tal reforma, na melhor hipótese, estará para a satisfação do direito à educação nos mesmos termos em que se encontra a medicina das caixas de previdência para a satisfação do direito à saúde.

 

A democratização fundamental e global

 

Quando se acentua a urgente necessidade de alterarmos substancialmente a nossa mentalidade colectiva para fazermos face às condições de vida características das sociedades modernas, às exigências da tecnologia, fugindo enquanto é tempo dos abismos do subdesenvolvimento, a reforma do nosso sistema educativo assume uma importância histórica decisiva.

 

Com efeito, nada disso poderá realizar-se ou acontecer sem que a educação das grandes massas populacionais (a escolar e a permanente) acompanhe com eficiência todo o conjunto de tarefas que tal objectivo nos impõe. Ninguém poderá duvidar, nesse aspecto, da importância de tal reforma.

 

Mas poderemos pensar, na verdade, que venha a ser a educação o motor dessa transformação da sociedade portuguesa que se deseja? O primeiro problema que se coloca é o de saber se de facto se deseja operar uma transformação da sociedade portuguesa e se, no caso afirmativo, a transformação que na realidade se pretende efectuar está em consonância com a reforma da educação que se projecta. Seria de qualquer modo por completo ilusório pretender que, através da educação, se pudesse operar uma transformação da sociedade portuguesa que não coincidisse com as grandes linhas de evolução desta nos aspectos económicos, sociais e políticos. E muito mais ilusório o seria ainda se viesse a verificar-se uma contradição entre o desenvolvimento da sociedade portuguesa nesses aspectos e o desenvolvimento do sector educativo.

 

Ao centrar-se o problema da reforma no da sobrevivência do país, nas condições criadas pelas formas modernas de desenvolvimento económico, implicitamente se coloca em primeiro lugar de prioridade o da preparação de quadros técnicos que possam assegurar esse desenvolvimento, o da expansão considerável do seu campo de recrutamento, o da generalização de mais elevados níveis de cultura geral pública, o da criação de mais vasto e poderoso espírito de iniciativa individual e de espírito inovador. Mas concebe-se tal processo como inteiramente interior à evolução do próprio sistema capitalista, ignorando-se a grande opção socialismo-capitalismo que se nos depara como o problema fundamental dos nossos dias, aquele que nos divide e suscita as lutas decisivas do nosso tempo.

 

Não só a nível nacional, mas também a nível internacional, a ignorância desse problema ou a convicção aparente de que as questões educativas podem alhear-se da luta de classes e do confrontamento entre os dois sistemas económico-sociais, gera por si só graves inconvenientes, que a adopção dum critério tecnocrático-pedagógico, fingidamente neutral, não chega para mascarar. Em que medida a sobrevivência nacional está sendo concebida como uma simples sobrevivência da nação sob a forma capitalista? Em que medida a política educacional, pretensamente colocada acima de interesses particulares ou de formas específicas de orgânica das sociedades, não representa, antes de mais, uma luta pela sobrevivência deste ou daquele regime? E que confrontações, por isso mesmo, se virão a fazer sentir no plano do sistema educativo?

 

A questão está longe de ser uma mera hipótese especulativa, pois os acontecimentos são já bastante notórios, dentro e fora do país.

 

As lutas estudantis, cuja gravidade ninguém poderá iludir, marcam uma decisão da juventude em não aceitar o papel de futuro reservatório de mão-de-obra qualificada ao serviço do capitalismo que se lhe pretende reservar. E a generalização do ensino a novas camadas populacionais só poderá vir a consolidar tal facto, sobretudo quando se verifique um desfasamento entre a «produção» escolar de especialistas e o poder de absorção ou de «consumo» das sociedades em causa. O que, de qualquer modo, não poderá nunca vir a consistir num mero problema de repressão policial.

 

No nosso caso, porém, há sobretudo que ter em conta o próprio desenvolvimento da economia nacional. Corresponderá ele, dentro das características típicas actuais e do que poderemos prever a partir delas, nos prazos necessários, às necessidades que resultarão do aparecimento de novas vagas de técnicos ou especialistas que o novo sistema educativo lhe facultará e ao espírito novo com que eles venham a ser dotados? Nem os mais optimistas parecem encarar o futuro com confiança, não obstante o problema estar de momento escondido pelos efeitos da mobilização militar e da emigração. Se repararmos, por exemplo, no caso das carreiras médicas, logo veremos que tudo indica, pelo contrário, que se caminha para uma grave conjuntura.

 

Se partirmos, por consequência, da hipótese de que a reforma escolar venha a produzir em grau especial os efeitos que dela se esperam, esse desencontro entre ela e as condições económicas-sociais do país (que em princípio com tal reforma se deveriam fazer evoluir num sentido de desafogo) revelar-se-á crítico e capaz de gerar dificuldades insolúveis. Nesta perspectiva, as contradições entre a satisfação dos direitos humanos e as exigências próprias de sobrevivência do sistema económico-social ainda mais se avolumarão entre nós, numa demonstração viva daquilo que se encontra errado e carece de profunda reforma. Permitirá a consciência que as populações tenham alcançado dos seus direitos, um regresso à política de malthusianismo escolar?

 

Aspecto político da democratização

 

Este desfasamento entre as anunciadas características e objectivos da reforma educacional e as condições sócio-económicas que ela parece ignorar como seus condicionantes, ainda mais se acentua quando considerarmos também as circunstâncias políticas em que ela deverá situar-se. Como se poderá, com efeito, anunciar uma «democratização do ensino» numa sociedade que procura manter-se radicalmente anti-democrática? No entanto, sem que se haja pretendido de modo algum alterar o carácter não representativo ou falsamente representativo das instituições, sem que se vislumbre o menor desejo de fazer desaparecer o teor repressivo das leis, ao mesmo tempo que se faz intervir a polícia de choque nas escolas e se cria o famoso corpo de «vigilantes», proclama-se com arruído solene uma «democratização» do ensino! «O aparecimento no universo da educação duma... democracia viva, criadora, evolutiva, não é um projecto ilusório» declarou a já referida Comissão Internacional para o Desenvolvimento, da UNESCO. «Mas a sua realização tem por condição primeira uma transformação das estruturas sociais capaz de reduzir os privilégios da herança cultural. Ela supõe, por outro lado: uma reforma das estruturas educativas, que permita um alargamento das escolhas; uma reestruturação da educação no sentido da educação permanente; a individualização dos conteúdos; a tomada de consciência, pelos que aprendem, da sua situação, dos seus direitos e das suas vontades próprias; o desaparecimento das formas autoritárias de ensino, em proveito das ideias de autonomia, de responsabilidade e de diálogo; uma formação pedagógica dos professores centrada sobre o conhecimento e o respeito dos múltiplos aspectos da personalidade humana; a subestimação da selecção pela orientação; a participação dos utilizadores na elaboração das políticas e na gestão das instituições educativas; a descentralização e a desburocratização da acção educativa» (obra cit. pág. 92).

 

Uma democratização sem democracia

 

Esta parece ser, dum modo geral, a orientação adoptada teoricamente pela nossa reforma. Mas a evidência dos factos mais notórios deixa-nos perplexos com as inúmeras contradições que surgem entre tais princípios e toda a realidade da nossa política institucional. Como poderá falar-se num sistema educativo que crie nos educandos o senso da sua situação, dos seus direitos e das suas vontades próprias, quando, ao mesmo tempo, se lhes interdita a existência de associações livres de estudantes, encerrando-se as que existiam ou eles pretendem fazer existir? Como poderá falar-se, perante a actuação dos nossos conselhos escolares, de ideias de autonomia, de responsabilidade e de diálogo? Onde se vislumbra, uma intenção efectiva de fazer participar os estudantes na elaboração da política educacional ou na gestão das instituições educativas?

 

Tudo parece indicar que os reformadores quiseram, por um lado, guardar os traços mais marcantes da orientação que lá fora prevalece no campo das refromas do ensino, aparentando-se assim com o que poderia chamar-se a realidade europeia, mas ignoraram propositadamente as características mais salientes e contraditórias da realidade portuguesa. Contudo, por outro lado, como esta última se opõe frontalmente àquelas tendências, fica por resolver todo o problema da adaptação da reforma às condições locais, ou o da sua inserção nos condicionalismos políticos que, por cá, se procura manter. É tão gritante o contraste (que, de resto, existe também em menor grau a nível internacional) que não podemos sequer supor que haja sido ignorado. Como explicá-lo neste caso?

 

Duas hipóteses podem formular-se: 1) Ao adoptar tais princípios orientadores, supõe-se que a vida política portuguesa está prestes a sofrer transformações radicais no sentido da sua democratização, e a reforma, em tal caso, apenas se antecipa, pelo seu lado, ao que virá a ser uma mudança geral; 2) Apregoam-se tais princípios como mero chamariz político, procurando assim satisfazer os anseios de parte importante da população e de fracção dos quadros, na certeza de que, adiada a sua execução pelo longo caminho que há a percorrer na realização dos projectos, entretanto se mantenham adormecidas as energias que correspondem a esses anseios.

 

Uma vez que a primeira hipótese se nos afigura totalmente improvável, resta-nos a segunda. Mas também esta não parece disputar de um destino prometedor. Com efeito, os contrastes são de imediata verificação. Nada justifica a esperança de que eles venham a manifestar-se daqui a algum tempo, no decurso da realização da reforma. Eles estão já à mostra, desde a própria formulação e esboço do projecto. Nem se deixaram iludir os que labutam por uma verdadeira democratização da vida portuguesa, nem se calaram os que se opõem dum modo mais declaralo a essa democratização. Os factos conhecidos evidenciam perfeitamente que da reforma só tomará corpo aquilo que se ajustar aos condicionalismos políticos vigentes.

 

Uma pedagogia progressiva numa sociedade retrógrada

 

Aliás, o problema não se confina apenas à contradição entre uma pretendida política de ensino democratizante e um regime político de tradição vincadarnente fascista. Os contrastes surgem no próprio plano dos procedimentos pedagógicos e da índole, portanto, do processo educativo. Consistem na contradição marcada entre a educação moderna, como técnica formativa de pessoas, e as exigências da sociedade portuguesa como expressão do regime político que a estrutura. E tudo gira em volta da liberdade da pessoa humana que a educação moderna procura fomentar e o regime procura asfixiar.

 

Na verdade, toda a evolução da pedagogia se tem feito no sentido de favorecer o desenvolvimento das potencialidades psíquicas dos alunos. Toda a educação se centrou durante muito tempo na transmissão dos conhecimentos adquiridos e na formação de profissionais adequados ao exercício de funções bem definidas e estáveis que inteiramente se poderiam caracterizar com dezenas de anos de antecedência. Tudo isso se tornou hoje impossível. O veloz progresso das ciências e das tecnologias não nos permite prever hoje com grande antecipação qual será o estado dos conhecimentos teóricos ou das técnicas na altura em que os alunos de agora venham a entrar no exercício das suas funções profissionais. Será preciso, antes de qualquer coisa, que eles estejam preparados para enfrentar situações novas e criar eles próprios não apenas as soluções respectivas mas para passarem a outras situações ainda mais novas.

 

Toda a educação, nestas circunstâncias, tende a desenvolver no indivíduo a capacidade inovadora, a possibilidade de responder dum modo activo e transformador aos problemas que defronte, a criatividade teórica e prática, o sentido crítico, o desprendimento perante a rotina estabelecida, o carácter não repetitivo das suas actuações. As mais modernas técnicas pedagógicas estão postas ao serviço desse desiderato. Mas como poderá realizar-se tal forma de educação num país social e politicamente preso aos valores tradicionais, à manutenção imobilista das ideias e das instituições, onde todo o progresso parece consistir na mudança dos nomes das coisas ao mesmo tempo que se lhes aumenta o carácter repressivo?

 

O homem novo que a nova educação pretende criar não parece na realidade, ter um grande futuro prometido em Portugal! Corno hão-de os educadores fomentar a personalização dos alunos, criar-lhes hábitos de iniciativa crítica, desenvolver-lhes o gosto da opinião pessoal, se todos os esforços do regime, quanto aos cidadãos, se realizam no sentido contrário? A educação moderna, pela natureza do seu procedimento pedagógico, aplica-se na formação de homens livres em países livres. E não será esse, em qualquer caso, o objectivo do governo português. O choque entre as duas coisas (no caso de virmos a adoptar substancialmente os novos processos educativos) acabará por se dar. E acabará então, na melhor hipótese, esta espécie de lua-de-mel, que a reforma quis proclamar, entre a educação de tipo moderno e o estado social que sucedeu ao estado novo.

 

Conclusão geral

 

A reforma «Veiga Simão», como vimos, nos princípios que a dominam e proclama, entra em contradição com os condicionalismos económico, sociais e políticos que caracterizam a actual sociedade portuguesa e que ela, teoricamente, parece ignorar. Tudo indica que, ao traduzir-se em realidades concretas, essa reforma mais não fará que negar os seus próprios pressupostos, ajustando-se a esses condicionalismos que a contradizem. Todas as ambições realmente reformadoras serão sacrificadas nas asas da evolução na continuidade com que pitorescamente alguém de humor-negro designou a política geral do regime.

 

Parece, de resto, que a famosa «reforma» incidirá mais sobre a segunda fase do ensino básico, o ensino secundário e os institutos politécnicos, do que sobre os dois extremos da hierarquia escolar: o ensino primário e o ensino superior. O ensino primário, carecendo substancialmente de uma mais longa e eficiente preparação do professorado primário (e consequenteniente dum aumento substancial dos respectivos vencimentos) está para além dos próprios atrevimentos oníricos do M. E. N.. A reforma de facto do ensino superior careceria, antes de mais, de força bastante para vencer a resistênçia das velhas universidades politicamente poderosas, o que não se afigura possível nos quadros do regime estabelecido.

 

Mas a contradição que aqui se nos depara, entre o desenvolvimento das técnicas educativas e dos processos pedagógicos, o surto da frequência escolar e a concretização do direito à educação, por um lado, e as características do regime capitalista numa das suas formas concretas, por outro lado, é como que o reflexo, no campo da educação, da contradição mais geral entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção vigentes. Também aqui o sentido da luta será o de nos apoiarmos no primeiro para transformar as segundas. O espírito e as potencialidades da moderna educação - afirmada como um direito de todos e um processo democratizante - levam-nos ao combate contra as barreiras sociais, e políticas que se lhe opõem.

 

 

 

 

(*) Comunicação ao III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro de 4 a 8 de Abril de 1973. Foi das últimas intervenções públicas de Jofre Amaral Nogueira, publicada já postumamente em Educação: luta de ontem, luta de hoje, Cadernos O Professor, Porto, 1976, com um prefácio de Óscar Lopes bastante informativo sobre o autor.

 

Educação, luta