Neo-realismo e neo-romantismo

 

 

 

Joaquim Namorado

Joaquim Namorado (*)

 

 

O Diabo

Do neo-realismo. Amando Fontes

O DIABO, 31 de dezembro de 1938

 

O acontecimento mais saliente da última temporada literária foi, sem dúvida, a descoberta do Brasil realizada através dos seus jovens romancistas. Até então o Brasil era um país distante onde se falava um português de vogais abertas e para onde iam pessoas conhecidas, arrastadas pelo sonho da árvore das patacas: era julgado e visto nos portugueses, quase sempre meio-analfabetos, que de lá voltavam podres de dinheiro e ridículo. Isto exceptuando meia dúzia de pessoas conscientes e bem intencionadas que sempre trabalharam por uma íntima compreensão luso-brasileira e alguns deliciosos académicos que nos falavam do Brasil através das reformas ortográficas.

 

Mas hoje os portugueses descobriram o Brasil: Jorge Amado, Erico Veríssimo, Graciliano Ramos, Amando Fontes, José Lins do Rego, e tantos outros, trouxeram até nós a gente, as ruas, as aldeias e as cida­des do Brasil; a inquietação, o desespero e a ansiedade, as esperanças, a vida dos brasileiros.

 

Os romancistas do Brasil saltaram as fronteiras do seu país: o interesse profundamente humano das suas obras arranca os personagens ao ambiente regionalista em que a acção decorre.

 

Estivadores, marinheiros e pescadores do cais da Baía, trabalhadores dos engenhos; seringueiros do Amazonas; mulheres que trabalham nas fábricas de fumo ou engolem algodão nas fábricas de tecidos; toleradas da rua do Siriry, meninos abandonados que roubam para comer: reflexos na paisagem brasileira dos estivadores, dos marinheiros e dos pescadores de todos os cais; dos trabalhadores de todas as latitudes; das mulheres que trabalham em todas as fábricas, das toleradas de todas as ruas; dos meninos que roubam para comer em todas as cidades.

 

A compreensão havida do novo romance brasileiro em Portugal, e, particularmente, da parte das camadas mais jovens constitui uma das atitudes mais significativas quanto à sua posição perante a vida e a arte.

 

Quando esta geração, dos vinte anos, chegou à idade das primeiras leituras enchia toda a literatura europeia o subjectivismo, levado ao extremo em Proust, James Joyce, André Gide, Thomas Mann, etc., e profundamente enraizado em Dostoiewski. Literatura intimista, por vezes psicopatológica, profundamente individualista, não correspondia, de modo algum, às necessiciades positivas da juventude que nascia no pós-guerra cheia de vitalidade, marcada com o desejo de viver plenamente a vida, sequiosa de claridade, de compreensão e comunhão humanas, buscando ansiosamente a verdade e a realidade.

 

Encontrou-se a presente geração, não só no nosso país como em toda a parte, num período de crise, em plena confusão de valores e de termos, frente a uma problemática complexa de cuja solução ou sentido de solução depende inclusivamente o seu direito a viver. É porque o seu destino se joga que a sua atitude perante a vida é essencialmente intervencionista, e, portanto, de conquista - conquista de condições que lhe permitam solucionar os seus problemas vitais.

 

A esta oposição perante a vida corresponde em literatura a necessidade duma arte realista e social.

 

Só as forças ascendentes amam a realidade e a verdade, exactamente porque são de conquista; os que defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as consequências do seu conhecimento, refugiam-se nas mentiras nefelibatas, ou no intelectualismo puro e estéril: são os de «La trahison de clercs» e de certos ismos da arte contemporânea.

 

Porém aqueles que, como os de depois de 1914, nasceram para a conquista dum mundo, reivindicam com Aragon «a volta à realidade»: «Eu digo: quem então se opõe a não ser os que têm um interesse a cobrir, a mascarar a nossa vieta?»

 

Esta necessidade de realidade gerou um vasto movimento neo-realista que cresce em todos os continentes e se pode julgar iniciado em Gorki e na linha de certo realismo e naturalismo francês, embora se devam afirmar diferenças profundas.

 

O novo romance brasileiro enquadra-se, na sua melhor parte, dentro deste movimento, respondendo por isso às necessidades orgânicas (espirituais, também) da mais jovem geração portuguesa. Eis o ponto de encontro nesta relação simpática que se estabelece entre os dois países, - o, pela primeira vez realizado, intercâmbio luso-brasileiro.

 

Amando Fontes não pode ser esquecido quando se fala do neo-realismo: dos escritores que escrevem em língua portuguesa é ele o que mais se identifica com este sentido do romance moderno. Os seus livros (conheço «Os Corumbas» e a «Rua do Siriry») são de facto a vida contada simplesmente, com as suas lutas mesquinhas, as vitórias e as derrotas, as alegrias, as tristezas, os heroísmos que enchem os dias sempre iguais e diferentes. Ao lê-lo, tantas vezes me lembrou o apelo de Romain Rolland, no seu «Jean Christophe»: «aos homens de todos os dias mostra a vida de todos os dias: ela é mais profunda e mais vasta do que o mar. O menor de entre nós traz em si o infinito». «Escreve a vida simples destes homens simples, escreve a tranquila epopeia dos dias sempre iguais e diversos...» Os seus livros são isto.

 

É frequente encontrar, nos livros que se reclamam de tendência, a parangona e o ditirambo como processos. Em Amando Fontes, não há, pelo contrário, uma simples exposição da acção, uma exposição - em que o autor não toma partido -, das contradições existentes. Aqui creio estar a verdadeira estrutura do romance social, neste apresentar de contradições onde se encontra implícita uma solução necessária: já o afirmava um extraordinário pensador do século XIX, «a tendência sai da situação e da acção sem que seja explicitamente formulada», e, ainda, «um romance de tendência social cumpre perfeitamente a sua quando, por uma pintura fiel das relações reais, destrói as ilusões convencionais sobre a natureza destas relações» - («Textos sobre arte e literatura», vol. I. «O realismo afirma-se mesmo fora das opiniões do autor»); daí que Balzac, o monárquico e católico Balzac, seja considerado um dos precursores do neo-realismo.

 

No romance de Amando Fontes pode dizer-se que não existem heróis (pelo menos no sentido clássico do termo): os seus personagens são o «toda a gente» e os nomes nada mais do que simples referências ao correr da vida - Drama dos Corumbas igual ao das outras famílias do bairro: Mariana, Almerinda, Nenen, significam apenas que o tempo não parou na rua do Siriry.

 

A vida, esta é a verdadeira figura central, quem impõe o ritmo do romance jogando os personagens e criando as situações.

 

 

Em «Os Corumbas» e em a «Rua do Siriry» passa a vida dos pobres dos engenhos e das fábricas.

 

Em «Os Corumbas» é a família que vem, arruinada pelas secas e na esperança de arrumar as filhas, procurar na cidade o pão de cada dia. Instala-se no bairro pobre, perto das grandes fábricas de tecidos, onde vivem, em casas miseráveis, os operários. Trabalha-se muito e ganha-se pouco, e, ainda por cima, aparecem de vez em quando as doenças impossibilitadoras. O trabalho nas fábricas é pesado («cuspiu sangue, ela diz que é mode de algodão que enguliu durante vinte anos de trabalho nos tecidos, toma todos os dias um vomitório, em vomitando tudo, volta»). Há ainda o capataz...

 

Entre protestos das raparigas que nem têm para uns sapatos ou uma blusa de cetim, a vida vai correndo; mas um dia, Pedro, «que subia de ordenado todas as semanas e já ganhava 180 mil réis por mês», é preso. Foi o sinal, então a adversidade encarniçou-se sobre o lar dos Corumbas, e até Caculinha que andava no 2.º ano da Normal e queria ser professora foi cair na «desgraça», levada por um noivo bom mas cabotino. As outras duas já Iá estavam.

 

Então os velhos Corumbas resolvem voltar ao engenho a enterrar as suas vidas com a tristeza de ver as filhas desgraçadas na rua do Siriry.

 

A «Rua do Siriry», mandou o dr. delegado, seria a única onde se poderia exercer o meretrício. Numa noite, as mulheres de todas as bandas, como combinadas, resolvem fazer as mudanças. A rua encheu-se de gritos, de pragas, de cantigas e de risos: «um movimento assim nem nas noites de S. João!»

 

Depois a vida tombou no ramerrão de sempre, com os mesmos fregueses, os mesmos períodos de fartura pelas altas do cacau, as mesmas dificuldades, esperando os navios que iam e vinham em viagens.

 

Mariana, Almerinda, Nenen,…, simples nomes, marcas do correr da vida. Hoje vai-se uma, para o hospital, para o cemitério, para o Rio, ou como Lévia, a apaixonada, seguindo um homem; mas logo o seu lugar se preenche.

 

Romance dos pobres das fábricas, luta permanente por um bem que se não alcança: para uns é o vestido de cetins ou a chinela de verniz; para outros, como Pedro Corumba e Zé Afonso, é a claridade duma vida mais ampla - luta feita de derrotas... Mas, a esperança não morreu no coração dos homens.

 

 

 

Sol Nascente

Do neo-romantismo. O sentido heróico da vida na obra de Jorge Amado

Sol Nascente, N.os 43-44, fevereiro-março de 1940

 

 

«O heroísmo da realidade exige o romantismo».

Máximo Gorki

 

«O heroísmo individual só ganha um sentido fecundo quando se integra num destino colectivo e tende a transformá-lo.»

André Malraux

 

As duas grandes tendências do romance moderno são o neo-realismo e o neo-romantismo. Quando num artigo, há tempos publicado em «O Diabo», falamos da primeira destas correntes foi o escritor brasileiro Amando Fontes, autor de «Os Corumbas» quem nos serviu de motivo. Ao focarmos agora a segunda, é Jorge Amado, ainda um brasileiro, quem, dos seis escritores de língua portuguesa, nos parece merecer maior interesse. No pobre movimento literário portugues não existia, antes da saída de «Gaibéus» (1940), o belo romance de Alves Redol, qualquer tentativa séria de romance com esta tendência. Ainda se não ultrapassou por cá o naturalismo (Ferreira de Castro, etc.) ou o romance subjectivista, introspectivo ou autobiográfico (Gaspar Simões, Régio, Miguel Torga). O desinteresse pelos problemas da nossa época, uma mistificação consciente ou inconsciente desses problemas, uma perspectiva aliteratada da vida, mantém os nossos romancistas no estado de fósseis, ligados a modas literárias do seu tempo de jovens.

 

Evidentemente que não existe da nossa parte desprezo ou renúncia pelas maravilhosas experiências humanas que o naturalismo e o romance introspectivo nos deram. Ninguém pode hoje esquecer, sem cometer um atentado grosseiro, toda uma gloriosa época do romance que vai de Dostoiewski a Gide, como não pode esquecer-se a obra dum Zola ou dum Flaubert, onde se há bastante de inaceitável existe muito de precioso. Simplesmente, uma nova mentalidade surge neste meado de século, uma nova consciência se forja neste longo debater de crises duma civilização que finda, e à inquietação dos espíritos não corresponde no momento actual, a arte dos Proust, dos Lawrence, dos Mann. O nosso tempo tem outros romancistas, que um preconceito literário qualquer não pode diminuir. Não falando de Gorki, são um John dos Passos, um Nizan, Malraux, Ostrovski, Jorge Amado, Aragon e tantos outros.

 

Não é preconceito político, como tantos querem fazer crer, o que nos leva a preferir esta Literatura àquela. É algo de mais concreto, real e inegável; a existência duma nova concepção do mundo, duma nova maneira de viver, duma outra consciência.

 

 

São notáveis algumas críticas feitas ao romantismo mesmo durante o seculo XIX. Entre elas avulta a de Paul Lafargue, temperamento crítico de extraordinária energia e agudeza, que é quem pela primeira vez utiliza o diamat na crítica literária. E vai tão fundo essa crítica, que hoje, ao falar-se dum novo romantismo, cumpre analisar em que medida esta crítica se aplica a este neo-romantismo.

 

«A literatura, dizia M.me de Staël, é a expressão da sociedade.» Acrescente-se, ou melhor, precise-se que a arte é a expressio da luta na sociedade - que não existe arte sem tendência. Para Lafargue o romantismo é a literatura da burguesia triunfante de 89. Analisando «de lápis na mão» todo o movimento romântico, consegue estabelecer a relação entre a expressão literária e a estrutura social, e denunciar o carácter do romantismo que «traduz as paixões, as ambições e as esperanças, as ideias e os sentimentos de todos esses Renés enriquecidos na pilhagem dos bens nacionais, dos víveres, dos fornecimentos, que temiam perder o adquirido». A necessidade de manter uma estabilidade encontrada, uma situação dominante, de iludir as contradições que impeliam à ruptura desse equilíbrio, obriga os vencedores de ontem a repudiarem as grandes armas da sua vitória: o amor da verdade, do real, a ânsia de progresso, que animou toda a parte ascendente da sua trajectória e se lê nos seus mais lídimos teóricos do século XVIII. Por esta razão, assiste-se, a par da deformação dos valores que criara para o seu triunfo, a um retorno à metafisica, ao subjectivismo, aos ideais cavalheirescos da Idade Média, à simpatia pelo feudalismo, ao amor do exótico, aos diálogos com Deus e os anjos, a um desprezo total pelo conhecimento científico. A arte aparece como separada das contingências da vida, submetida apenas às leis do belo e do bem. É,como diz Aragon, em Retour a la réalité, numa expressão sangrenta, «a época do histrionismo das grandes paixões, das grandes dores, da histeria, dos sentimentos não compartilhados, - «tudo isto não é mais do que o somatório das ilusões, das ambições, das desilusões, das esperanças, dos jovens que sacudiam os tronos, crendo levar ao poder a liberdade para entronizar, afinal, o banqueiro Laffite». Assim se reflecte no romantismo o individualismo da Revolução francesa e, simultaneamente, uma desilusão acabrunhante, donde «a necessidade de tudo atribuir ao Acaso, à Fatalidade, lançando os espíritos na superstição», «atrás das frases grandiloquentes e das afirmações generosas nada mais do que os interesses sórdidos».

 

A esta crítica de Paul Lafargue anota Jean Tréville, na introdução às «Critiques littéraires» daquele escritor, e parece-me que com profunda razão: «Na realidade, três grupos se exprimem no romantismo: a nobreza desapossada, que recorda a Idade Média, chora os tempos do seu domínio, se exalta à sombra das catedrais (esta nobreza trouxe ao romantismo os seus temas retrógrados), a segunda é a burguesia que toma da nobreza alguns dos seus costumes e usos (aos temas daquela, junta certos motivos que idealizam os seus apetites coloniais e os tráficos - exotismo, atracção do Oriente e das Américas), a pequena burguesia faz ouvir no romantismo as suas impaciências e as suas revoltas, pois fora esmagada pela concorrência e afastada da gestação da política e dos negócios». Em Portugal, por exemplo, o romantismo parece-me ser a expressão do liberalismo, do triunfo da pequena nobreza e da burguesia sobre os grandes senhores. Eis como se define o romantismo do seculo XIX como a expressão duma sociedade. O neo-romantismo é a projecção no futuro, a perspectiva larga no tempo, das condições do presente. Não é utopia arquitectar nas relações concretas do actual, o futuro. O neo-romantismo tem como o neo-realismo uma base materialista. Eis como um crítico refere as relações entre estas duas correntes da literatura contemporânea:

 

«Habitualmente opunha-se o romantismo ao realismo. Era porque o romantismo se ligava quase sempre ao idealismo, planando nas esferas metafísicas e "noutros mundos" e os sentidos emocionados do grande e do maravilhoso conduziam para fora dos limites do mundo real. Em segundo lugar porque o realismo exprimia um chamado "objectivismo" limitado. O romantismo, nas nossas condições, está ligado antes de mais nada à vida heróica. Não é orientado para um céu metafísico, mas para a terra, em todo o sentido da palavra: para a vitória e para a conquista da natureza. Por outro lado, o neo-realismo não é uma simples constatação da realidade, antes, tomando o fio da vida actual o conduz para o futuro dum modo activo. É por isto que a oposição entre neo-romantismo e realismo é destituída de sentido.»

 

O neo-romantismo é pois a expressão dum imenso heroísmo, perspectiva que se «sonha», se constrói sobre os alicerces do real e se talha na conquista do futuro.

 

«Pseudónimo do neo-realismo» ou seu prolongamento natural é totalmente afastado desse outro romantismo que o génio crítico de Paul Lafargue escalpelizou. Gorki distingue-os desta maneira lapidar: «É indispensável considerar no romantismo duas tendências nitidamente diferentes: o romantismo passivo, que se esforça por conciliar o indivíduo com a realidade, embelezando-a, seja por voltar a realidade para um aprofundamento estéril do mundo íntimo, para os pensamentos sobre os enigmas fatais da vida, sobre o amor, sobre a morte; o romantismo activo reforça no homem a vontade de viver, provocando-lhe a reacção contra toda a opressão da realidade.»

 

Neo-romantismo é pois a expressão duma nova mentalidade que encontra na luta a sua razão de ser, cheia de dinamismo, de vontade - expressão ardente, alegre, real, dum novo espírito conquistador.

 

 

«Romance da Baía»: romance dos alugados de «Cacau», escravos da «Fazenda Fraternidade» dos coronéis; romance dos negros do Morro, presos ainda ao seu mundo primitivo, ingénuo - ainda uma raça escrava, romance dos pescadores dos cais de «Mar Morto», «Suor», romance das vidas miseráveis que se roçam através dos tabiques do prédio 68 duma rua pobre da Baía, arquitectura duma angústia quotidiana em que se amassam os destinos daqueles que consomem as suas vidas na conquista diária dum pão parco, duro e amargo; história dos pequenos mendigos e ladrões, meninos abandonados das ruas da cidade, «Capitães da areia». «Romance da Baía», romance cíclico duma cidade, exaltação do heroísmo anónimo, da coragem com que a maioria dum povo luta por uma vida precária.

 

O sentido heróico da obra de Jorge Amado encontra-se na reacção individual perante o ambiente. Reacção de carácter puramente biológico, instintiva, manifestada num inconformismo extremo ante as imposições da realidade, tocando por vezes o anti-social, que encontra depois a sua finalidade e a sua justa expressão no combate colectivo por uma vida mais justa, por uma dignificação do homem. Os heróis dos romances de Jorge Amado escolhidos nos meios pobres, ignorantes ou analfabetos, vivem dum espontâneo sentido da luta social, demarcado pelas circunstâncias em que decorrem as suas existências. São as contradições que se desenham aos seus olhos simples, as contradições de que tomam um conhecimento corpóreo, físico, entre dois mundos e dois modos de viver, que os levam a tomar as suas atitudes. São os factos que forjam as suas consciências.

 

A personalidade destes heróis caracteriza-se por uma rebeldia inata, pela generosidade, pela valentia, muitas vezes por uma certa crueldade - justo ressentimento - e sobretudo por um amor imenso da vida. Viver corajosamente, passar sem vertigens pelos abismos, lutar sem desfalecimento, arrastados por um obscuro instinto de luta, eis a legenda destes heróis modernos.

 

«Todo o homem valente tem no coração uma estrela». Valente é António Balduíno, o negro que fez da sua vida um ABC como esses que cantava. António Balduíno, o que amou a vida e a aventura, o lutador de mil combates que soube com um só sentido no dia em que lado a lado pelejava com os outros homens por um bem comum; valente é Guma, é Zumbi dos Palmares, é Virgolino Lampeão, que viraram estrela, como Lívia que vai ao mar ganhar o pão do filho, ou Dora que viveu a vida dum capitão da areia e amou corajosamente a Pedro Bala. Mas se a obra de Jorge Amado é a exaltação deste heroísmo de que falamos, não é menos certo nunca serem esquecidas nos seus livros as condições ambientes em que a acção se desenrola. Sendo um escritor romântico, Jorge Amado é também um escritor materialista. «O heroísmo individual - como disse André Malraux - ganha um sentido fecundo ao integrar-se num destino colectivo e tende a transformá-lo».

 

 

 

 

 

(*) Joaquim Namorado (1914-1986) nasceu em Alter do Chão, no seio de uma família de proprietários alentejanos. Aos quinze anos já estava em Coimbra, para prosseguir os seus estudos. Ligou-se desde muito cedo aos meios da oposição à ditadura, passou pelo Centro Republicano Académico, pela loja maçónica ‘A Revolta’, pelo Bloco Académico Antifascista e, com naturalidade, adere ao Partido Comunista Português por volta de 1935. Ainda enquanto estudante foi detido e encarcerado por diversas vezes. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra e foi professor no ensino secundário privado. Após o derrube do regime fascista, foi admitido no departamento de Matemáticas da Faculdade de Ciências Técnicas da Universidade de Coimbra (FCTUC). A sua vida, porém, foi o ativismo cultural, a militância antifascista, a doutrinação estética revolucionária e o agit-prop constante. Não tendo deixado uma obra extensa, a sua presença é de uma grande influência como dinamizador e “máquina de gerar entusiasmo”, conforme a sua própria definição de poesia. Militou no MUNAF e no MUD. Após a grande vaga repressiva de 1949 mergulhou na clandestinidade por diversos meses, refugiando-se em casas de amigos. Durante a década seguinte praticamente nada publicou. Colaborou nos Cadernos da Juventude, nas revistas Altitude e Seara Nova, bem como nos jornais O Diabo e Sol Nascente. Na revista Vértice seria uma presença constante durante décadas, assumindo a sua direção efetiva por largos períodos e formal após a revolução de abril.Editou a coletânea de poesia Novo Cancioneiro, onde publicou a sua primeira obra poética, Aviso à Navegação (1941). Seguir-se-lhe-iam Incomodidade (Atlântida, 1945) e A Poesia Necessária (Vértice, 1966). Organizou e comissariou numerosas exposições (Rafael Bordalo Pinheiro, Picasso, cartaz político, gravura portuguesa, “margens do neo-realismo”, etc.). Publicou Vida e obra de Federico Garcia Lorca, Editorial Saber, Coimbra, 1943 e um extenso prefácio à 12ª edição do romance Fogo na Noite Escura de Fernando Namora (1979). Uma parte significativa da sua obra em prosa está reunida em Joaquim Namorado, Obras, Ensaios e Críticas. Uma poética da cultura, com organização, prefácio e notas de António Pedro Pita, Caminho, Lisboa, 1994.

A expressão neo-realismo, que viria a crismar toda a geração de intelectuais marxistas que atingiu a maturidade por volta de 1936, foi uma criação sua, tendo surgido no artigo do semanário O Diabo que reproduzimos acima. Todavia, para Joaquim Namorado, não bastava a expressão realista em arte, havia que dar-lhe também um suplemento de heroicidade, de intervenção humana voluntarista na sua circunstância, que ele denominou de neo-romantismo.