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A voz que me dita os versos
Joaquim Namorado
Sento-me à mesa e escrevo… A voz que me dita os versos tudo diz e cala e é minha e das coisas que me cercam, de quem encontrei na rua e não conheço e dos amigos fiéis, de quanto ouvi disperso na rua, nos cafés, onde estive, dos livros que leio e dos jornais, de quanto vejo e vivo como meu; é tua, meu amor, de quanto é nosso, só porque sentindo-o o partilhamos, destas horas que se alongam tristes e doutras que foram e hão-de ser da luta, do tormento, da alegria e da glória de vivê-las plenamente.
Sento-me à mesa e escrevo… A voz que me dita os versos tudo diz e cala: é a tua, amigo a quem não vejo há tanto e cuja presença me não esquece, cuja lembrança em toda a parte aquece as esperanças comuns pra que vivemos; é a tua, a quem nunca conheci, apodrecendo não sei onde em que distantes exílios e cemitérios secretos, e de quem nos longos dias te chora e nas longas noites te espera Enganando-se que ainda vens e de quem ouve os teus passos na rua sabendo que isso é mentira e fica à noite à janela olhando as esquinas desertas; é dos teus companheiros resolutos que as tuas armas empunham com a mesma decisão, com aquela mão que se estende para outra mão e a aperta como se fosse o seu par…
Sento-me à mesa e escrevo… Voz que tudo dizes e calas, de onde vens? de que infância perdida me falas, que soluçar de mães em ti acode sob o doce ninar da minha mãe? é da menina esfarrapada que na rua brinca nas poças da rua com o sol e esquece a vida triste lá de casa? é dos meninos que só a loucura embala mortos na guerra, mortos de fome e frio, mortos queimados, de baionetas cravados, nos fornos crematórios, nos ghettos de Varsóvia, de Viena, de Belgrado, de qualquer cidade? é dos meninos de escola da sua idade aprendendo a ler? é dos meninos operários da sua idade aprendendo a trabalhar e a sofrer? Fel que no sangue da vida se mistura, amargo destino que se tece da nossa vida futura. Voz que tudo dizes e calas, onde foi, onde? Em Madrid, em Paris, em Praga? Em Roma, em Londres, Buenos Aires? De que pontos cardeais correndo livre vens? Através de que mordaças me falas? Em que prisões surdamente gemes e te calas? É a tua voz clara, Gabriel? A tua voz dentre dentes quebrados, Fucik? O teu adeus de esperança, Zoia? Ou é, Alexandre, o teu incitamento que nos vem? Em que língua humana me dizes quanto é do mundo o sofrimento e a glória? Em que estrofes os poetas te cantam? Maja de Granada, inviolada e pura, Federico ao nosso amor te deu; de que amargo silêncio te fizeste no exílio onde Machado morreu? És a arma invicta e discreta, voz que pelos homens clama, és o aço puro e a chama que para a luta os corações tempera.
Sento-me à mesa e escrevo… Voz que me dita os versos segredada, é do povo o canto e o choro que vem do fundo desespero em que se move, é de quanto espera o apagado canto, epopeia que só a sua luta forja; é a certeza em cada peito com um facho de vida em vida transmitido de que a noite imunda e mais comprida tem segura madrugada que há-de vir. Voz que me dita os versos lentamente da vida dos dias se insinua: é a voz das coisas e das gentes, uma dor e um desespero suspenso, e é a paixão e o grito que levanta, é a praga que a nossa raiva activa, o desafio que se lança, o sofrimento que protesta, a humildade que se não arrasta, o orgulho que não fere, a saudação fraterna, aberta e franca – é o estalar do chicote com o ódio que levanta.
É a tua voz, coração do mundo, é a tua voz ansiosa, a tua voz vibrante, a tua voz desesperada, a tua voz confiante. Sejam meus versos a vogal precisa, bata no meu pulso o coração do mundo.
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