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O problema da necessidade estética
João José Cochofel (*)
A produção de objectos belos, aquilo a que chamamos arte, envolve problemas que constituem, verdadeiramente, o escopo deste trabalho.
Será a arte uma imitação do que na natureza ou na vida se nos apresenta como belo? Para que imitar então a natureza, sempre presente, e a vida que todos os dias vivemos? E como se explica que a beleza se alcance a partir do que na natureza ou na vida se nos deparara como esteticamente indiferente? O certo é que um rosto inexpressivo, desagradável, feio, pode dar origem a um belo retrato; uma intriga daquelas que no dia-a-dia não deixaríamos de classificar de banal, ou mesmo desgostante, pode estruturar um admirável romance, do mesmo modo que uma admirável poesia pode ter como ponto de partida um fugaz momento de desânimo ou de esperança. Mas como se explica também que, em certas modalidades artísticas, a imitação se afaste do modelo a ponto de as referências possíveis acabarem por totalmente se desvanecer? A que canto de aves ou murmúrio de águas corresponde o fio melódico de uma canção, em que formas de penedias, árvores ou sólidos minerais encontram paralelo as formas arquitectónicas? Que movimento de folhas ao vento, de saltos de animais, de ondinas na praia, guia os passos da dança?
Tais elementos referenciais interferem sem dúvida na génese da arte, como tudo o que é fonte de experiência. Da penedia ao dólmen, do trinar das aves aos sons da flauta do pastor, a distância não é grande. O que se torna difícil é estabelecer a passagem das manifestações rudimentares que estão na base da arte, mas que ainda não são arte, para a mais ou menos vasta elaboração estética que uma canção ou uma sinfonia, uma voluta ou uma catedral, pressupõem. Ceder a tentações ilativas entre modelo e cópia, entre realidade e imitação; é cair assim no puro devaneio lírico.
Outros motivos de perplexidade se nos deparam porém se atentarmos em que o objecto artístico aparece, em muitos casos, sob o impulso expresso, inequívoco, de intuitos pragmáticos e programáticos de ordem vária: social, ideológica, religiosa, moral ou política. Tomemos exemplos conhecidos de toda a gente. Rernbrandt pintou a Ronda Nocturna (que afinal é diurna...) para satisfazer uma encomenda da burguesia de Amsterdão, da mesma maneira que Bach compôs as suas Suites para recrear a corte de Coethen. A Guerra e a Paz, de Tolstoi, é, em última análise, um grandioso libelo pacifista. A Catedral de Santiago de Compostela, como todas as catedrais, belas ou insignificantes, foi erguida, o Juízo Final, de Miguel Ângelo, foi pintado, as Cantatas de Bach foram compostas, Las Moradas, de Teresa de Ávila, foram escritas, para servir ou enaltecer a religião, como para servir ou enaltecer as mitologias na antiguidade se levantaram templos e esculpiram estátuas. O Primo Basílio e Os Maias, de Eça de Queirós, propõem, através dos conflitos sentimentais, temas morais. Balzac escreveu La Comédie Humaine no intento de estigmatizar a burguesia recém-chegada ao poder. Beethoven principiou a Eroica pensando em Bonaparte, que David glorificaria na grande tela da coroação.
Terá pois a arte uma finalidade social, ideológica, religiosa, moral ou política, conforme tantos teorizadores têm querido, optando por uma ou por outra segundo as conveniências, internas ou externas, da sua teorização? Mas então porque será a arte susceptível de impressionar indivíduos que não pertençam à mesma sociedade, que não participem da mesma ideologia, que não professem a mesma religião ou até religião nenhurna, que não tenham as mesmas preocupações morais, que não sigam a mesma política? E porque não bastam às sociedades, às ideologias, às religiões, às éticas e às políticas, simplesmente a prática e o proselitismo sociais, ideológicos, religiosos, morais e políticos? Que vem a arte acrescentar-lhes? A que necessidade responde?
E não é verdade que, para nos deleitarmos com a Ronda Nocturna ou as Suites de Bach, com A Guerra e a Paz ou a Eroica, com Os Maias ou Las Moradas, escusamos de nos importar com a burguesia de Amsterdão ou a aristocracia de Coethen, os malefícios da guerra ou os feitos de Napoleão, os desígnios moralizadores de Eça ou as virtudes teologais da Santa Madre Igreja?
Obras há que, ao contrário, se nos afiguram inteiramente gratuitas - uma paisagem de Constable, um trecho de Debussy, um conto de Boccacio, um soneto de Verlaine -, sem que no entanto ofereça grandes dificuldades distinguir-lhes um mínimo de correspondências com os períodos histórico-sociais de que provêm.
Óbvio é de facto que toda a arte se mostra, com maior ou menor evidência, ligada à complexa teia do momento histórico-social em que se gerou. Contudo, ainda que atravesse períodos de esquecimento ou mesmo de repúdio, sobrevive a esse momento, conserva para os vindouros um interesse vital, bem diferente do mero interesse de documento histórico, de achado arqueológico. Mas como se explica, também, que tantos testemunhos incontroversos dêem conta de obras negadas e combatidas por parte de um sector ou mesmo da totalidade das sociedades em que surgiram, pouco importando os reduzidos círculos de compreensão ou de aplauso, para só mais tarde virem a ser plenamente aceites?
Árduos problemas estes, postos por uma verificação todavia incontestável: a arte não é revelação mediúnica e transcendente, mas um produto humano e social, que neste ponto se não distingue de qualquer outro produto humano e social, como toda a história o demonstra. Aristóteles, Diderot, Hegel, Taine, Marx ou Plekhanoff assim a consideraram, e Taine procurou mesmo estabelecer as condições em que tal produção se processaria. «A nossa (estética) é moderna, e difere da antiga na medida em que é histórica e não dogmática, quer dizer, em que não impõe preceitos, mas verifica leis.» Eis a ambição de Taine (1) anulada pela mecânica causalista que passivamente faz derivar a arte dos seus supostos factores (personalidade, escola, época, meio e raça), unitariamente concebidos, quando, na verdade, a realidade é múltipla e dinâmica e se apresenta contraditoriamente à consciência, e cada época e cada sociedade preparam outras no seu seio.
Estrutura económica, orgânica social, formação ideológica, apetrechamento técnico, não se distribuem por igual nem no espaço nem no tempo. Na sua luta para dominar a natureza, o homem inventa instrumentos desiguais de sociedade para sociedade, e no entanto destinados aos mesmos fins. Assim se criam e desenvolvem as diversas tradições. As respostas do homem ao ambiente não são pois mecânicas, passivas, mas sim dinâmicas, activas. O homem, dividido, realiza-se através dos conflitos e das contingências dessa mesma divisão, numa vasta e pluriforme actividade em que à conquista do mundo alia a conquista de si próprio, a conquista da sua própria estatura humana.
Como ser natural, o homem apresenta determinadas características biopsíquicas que o incluem no género animal e que o distinguem como espécie. Tem fome, tem sede, sente frio ou calor, obedece aos instintos de conservação e de reprodução, embora sabendo que tem fome e tem sede, que sente frio ou calor, que é movido por reacções instintivas, tal como é da sua natureza estar triste ou alegre, amar ou odiar, gozar ou sofrer, ser feliz ou infeliz. Cada acção sua, aduz Christopher Caudwell, «envolve um desejo, uma volição, intenção, medo, desgosto ou esperança» (2), não obstante ter frisado anteriormente que «na medida em que estes sentimentos surgem, exprimem uma relação do homem com as suas relações ambientes» (3). Há portanto uma interacção entre o homem ser natural e o homem ser social: é o homem natural que se organizou em homem social, mas que responde aos estímulos da sociedade como ser natural, porquanto se «a situação é sensorial, é externa, a resposta é somática, é interior» (4). No entanto, nada sabemos deste homem natural, «eterno», não de qualquer transcendente eternidade terrena ou extraterrena, mas na permanência biopsíquica das respostas, a não ser pelo que dele mostram as suas reacções aos estímulos particulares e temporais que em sociedade se lhe propõem. O mesmo é dizer que o homem natural isoladamente considerado é um mito e que só na prática social se revela, o que Henri Lefèbvre resume deste modo: «Como existência (o) indivíduo não é senão um ser da natureza; mas, quanto ao essencial do seu ser humano, participa da riqueza adquirida pelo desenvolvimento da Cultura e da civilização.» (5) Essa riqueza é porém contrariada pelos antagonismos em que o homem se digladia, tornando-o alheio a si próprio, o que Diderot entreviu nos seguintes termos: «o interesse, as paixões, a ignorância, os preconceitos, os usos, os costumes, os climas, o vestuário, os governos, os cultos, os acontecimentos, impedem ou tornam capazes os seres que nos rodejam de despertar ou não despertar em nós várias ideias, aniquilam neles relações muito naturais, substituindo-as por outras caprichosas e acidentais.» (6) Isto é: a sociedade que inibe o homem de integralmente se realizar oferece-lhe também, mediante o trabalho físico e intelectual, as condições de realização, que resumiremos recorrendo a nova citação de Caudwell: «No processo social, toda a natureza intervém. O homem mede-se contra o espaço infinito e regula o seu tempo pelo Sol. Sente o bafo escaldante do deserto nas suas cidades e vai só ou em grupos estabelecer-se na selva. Navega no vasto mar em barcos que ele próprio constrói. O fio do processo social penetra, pelas mãos de Einstein e Amnundsen, Freud e Rutherford, Kepler e Magalhães, cada vez mais fundo na realidade. As massas laboriosas da sociedade revolvem profundamente a face do mundo. O agricultor que semeia os campos férteis, o caçador solitário nas florestas virgens, o marinheiro no «mar tenebroso», todos fazem parte do processo social. Assim, em toda a parte o processo social gera a beleza, não como manifestação universal, mas como produto social especifico, tal como gera a ciência, a política ou a religião.» (7)
Labor imenso que se traduz em experiência e conhecimento; experiência e conhecimento que se fixam e estruturam em arte e ciência, cuja raiz comum transparece até no facto de só a partir do século XVI se começar a distinguir entre uma e outra. É pois em sociedade que o indivíduo, que nela se forma e a ela se opõe, humanamente se enriquece e supera os seus contrários. É em sociedade que a sensibilidade humana se afina e desenvolve porque é em sociedade que o indivíduo encontra estímulos às suas emoções. É em sociedade, pelo trabalho e pela convivência, que, filogeneticamente e ontogeneticamente, os sentidos do homem - o Homo faber inseparável do Homo sapiens --se tornam humanos na medida em que apreendem o sentido, a significação dos objectos, em que transformam os objectos em si em objectos para nós. É em sociedade que esses sentidos se cultivam, criam necessidades e as saciam em objectos ricos de significação: as obras de arte.
Cabe o mérito a Henri Lefèbvre de ter luminosamente aplicado à interpretação estética a teoria dos «sentidos cultos». Aplicado e desenvolvido. Nada melhor do que dar-lhe a palavra: «Quando o órgão sensível se enriquece, tornando-se por assim dizer o suporte natural, a manifestação e o órgão da cultura atingida num dado momento, quando se torna «órgão culto» (pela vida e a prática sociais, e não apenas pela cultura na acepção estritamente intelectual da palavra), então nasce a arte.
«Assim do ouvido e do som nasce a música. Para o ouvido não musical, não formado, a mais bela música não tem qualquer sentido. [.. .] A significação ou o sentido humano funde-se com o sentido sensível, conferindo-lhe assim o sentido ou significação estética. Há portanto inicialmente tantas artes como actividades sensíveis capazes de suportar uma grande riqueza de significação: pintura, música, escultura (elementos visuais e tácteis), dança, etc. » (8).
Entre a apreensão do belo na natureza e na vida e a obtenção do belo em objectos artísticos existe uma medida comum, a do enriquecimento da sensibilidade humana, descobridora de relações que a experiência social proporciona, as relações que Diderot com notável agudeza caracterizava deste modo: «Quando digo, pois, que um ser é belo pelas relações que nele observamos, não me refiro às relações intelectuais ou fictícias que a nossa imaginação lhe confere, mas às relações reais que nele existem, e que o entendimento nele nota socorrendo-se dos sentidos.» (9)
O mecanismo psicológico da associação de ideias, ou, melhor, da associação de imagens carregadas de experiência afectiva, descobre em maior ou menor grau, nos objectos, analogias correspondentes ao enriquecimento da sensibilidade. Onde um indivíduo de sensibilidade embotada, ainda que transitoriamente, por duras condições materiais ou por preocupações de qualquer outra ordem, não é capaz de notar senão que a noite está clara, que no vale corre um riacho, que o mar está encapelado ou o céu cheio de estrelas, outro é capaz de sentir, servindo-nos do exemplo de Hegel, «o silêncio duma noite de luar, a calma dum vale onde um riacho abre caminho, o aspecto sublime do imenso mar em cólera, a calma majestade do céu estrelado» (10).
As coisas, os seres, o mundo, a vida, ganham assim um vivo significado, o que é mais um aspecto do domínio do homem sobre a natureza e do reconhecimento, pelo homem, da sua natureza humana. Tinha Aristóteles porventura razão quando postulava: «Como a tendência para a imitação nos é natural, bem como o gosto da harmonia e do ritmo, [...] de início os homens mais aptos pela sua natureza a estes exercícios deram pouco a pouco, pelas suas improvisações, origem à poesia.» (11) Substitua-se imitação por expressão, generalize-se dos sons às cores, da poesia à arte, e tudo baterá certo. Os homens mais aptos pela sua natureza são os de sensibilidade mais rica. Um enriquecimento que chega a ter olhos para as miúdas coisas da vida, um enriquecimento que Afonso Duarte, por exemplo, desvenda com tão comovedora simplicidade no 2.º soneto de A Morte da Rola:
Mas sem aves, sem rosas de toucar, A vida era tão pobre, era tão nua!
Se a riqueza de sensibilidade sobe de ponto, são os sentidos que exigem agora a criação de objectos largamente e complexamente elaborados, de molde a sugerirem as mais diversas relações, e com vasta capacidade de significação sensorial e emotiva. No entanto, apesar de na apreensão do belo entrar toda a experiência sensorial do ser humano, e toda a experiência emotiva e intelectual que ela suporta, acontece, como é natural, que a elaboração estética se opera sobretudo pela via dos seus principais órgãos sensoriais - a vista e o ouvido. E porque «as cores não são sons» e «os ouvidos não são olhos», como Lessing acentuou (12), os aspectos naturais da beleza ou as formas da arte consciencializam-se segundo as características diferentes que cada um desses órgãos pode comportar, estabelecendo-se entre o sujeito e o seu objecto uma comunicabilidade imediata, sem conceito, não em virtude de o juízo estético se fundar numa «pura finalidade formal», como queria Kant (13), mas devido a meras reacções psíquicas de estímulo e resposta, conforme Diderot suspeitava, ainda que imprecisamente, ao observar que, se a um homem «falta a noção de alguma das ideias simples de que (uma) substância é composta, e se é privado do sentido necessário para as aperceber, ou se esse sentido se acha embotado sem remédio, não há nenhuma definição que possa excitar nele a ideia de que não houvesse tido antes uma percepção sensível» (14). Tanto a criação como a fruição artística se processam, assim, a partir de um vínculo imediato, anterior ou subjacente à reflexão. Mau grado a complexa elaboração técnica e racional a que na obra de arte são submetidos os sons, as cores e os volumes, o sentimento recriado transborda a formulação ou a análise racional, é directamente expresso ou experimentado na sua representação sensível por meio de sons, cores ou volumes.
Mas passar-se-á o mesmo com as artes da palavra, instrumento fixador de conceitos, racional por excelência?
Antes de mais, repare-se bem que o homem possui outros sentidos que não apenas a vista, o ouvido e o tacto, ou sequer os cinco sentidos classicamente admitidos, mas uma vasta e intrincada rede de órgãos de sensações internas, externas e motrizes (às quais está ligada a dança, de mistura com elementos visuais, tácteis e auditivos). A lei da especificidade dos sentidos, segundo a qual a qualidade da sensação depende do órgão impressionado e não da qualidade do excitante, esclarece cientificamente como é possível fazer reverter a música, a pintura, a escultura, a dança, a decoração, à actividade dos órgãos sensoriais mais importantes na prática social e correlativamente na estruturação mental do homem, cujo psiquismo global põe todavia em causa o conjunto dos órgãos sensoriais. Na sua inteireza, a vida mental envolve uma infinidade de correspondências, equivalências e analogias, que a palavra é capaz de circunscrever desde que atinja um grau de generalização e abstracção conveniente, desde que suba da mera linguagem particular e utilitária à expressão da totalidade da vida, isto é: desde que ela própria se enriqueça e cultive, se torne rica de experiência humana e culta de utilização social.
Os trabalhos de Pavlov vieram demonstrar que, dada embora a coexistência no homem de dois sistemas de sinalização (15), é afastando-se, pela generalização e a abstracção, do primeiro sistema - as sensações - que o segundo sistema - a linguagem - melhor se acha apto a traduzir as relações complexas dos fenómenos, que a palavra designa. Conta Gordon Childe, no seu livro O Homem faz-se o si próprio, que em certas «línguas muito primitivas, por exemplo a dos aborígenes australianos, o que quer que seja de tão abstracto ou geral como ‘urso’ ou ‘canguru’ careceria de nome. Haveria palavras diferentes e sem relação entre si para ‘canguru macho’, ‘canguru fêmea’, ‘jovem canguru’, ‘canguru a saltar’, etc.» (16). Era uma linguagem analítica, ainda próxima do primeiro sistema de sinalização, incapaz de abranger numa síntese conceptual as relações complexas dos fenómenos. O progressivo alargamento do conceito, englobando maior número de relações, domina melhor essa complexidade, penetrando-a e conhecendo-a, mas nessa mesma complexidade, que é a da própria vida, o conceito esvai-se, desdobra-se, pulveriza-se na sugestão imediata da pluralidade de notas que compreende. A palavra adquire desta maneira uma plasticidade susceptível de exprimir as subtis correspondências da sensibilidade e da afectividade, as correspondências vislumbradas no famoso verso de Baudelaire:
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.
Os perfumes, as cores e os sons correspondem-se como se correspondem as sensações e os sentimentos, e as palavras são capazes de apreender essa correspondência. As artes da palavra nutrem-se não de conceitos (embora na sua elaboração entrem conceitos e ideias, como aliás em todas as artes), mas da experiência vivida que os conceitos postulam e encerram, e a que a palavra directamente remete. Nada destrói mais a emoção romanesca do que as exaustivas descrições, as longas demonstrações teóricas, as frias definições. Diz Charles Morgan, no romance Portrait in a mirror pela boca de uma das suas personagens: «As palavras e as frases que carrilhonam e se entrechocam, o seu fluxo e o seu refluxo, a calma grave, o riso e os cantos, todos os ritmos da língua - eis no que consistem os instrumentos de sedução e de domínio» (17). No que respeita à poesia, Mário Dionísio abordou com rara sagacidade o problema: «Com efeito, quando tentamos explicar logicamente a mais simples poesia, que nos resta dela? Paradoxalmente, as palavras transformam-se nas maiores inimigas da arte, desvirtuam-na, esfumam-na, mesmo quando se trata de uma criação artística, como a poesia, em que as palavras são a sua própria matéria. Porque as palavras na poesia transfiguram-se, libertam-se dos compromissos, são outras. As palavras da poesia, mesmo as mais banais, mesmo as grosseiras, deixaram de ser as palavras do dicionário, como a madeira da estátua deixou de ser a madeira da árvore. Para compreender as palavras não poeticamente usadas é quase sempre suficiente consultar o dicionário. Para compreender essas mesmas palavras na poesia é forçoso ser capaz de entender espontaneamente, de admitir sem explicação, de receber de epiderme a epiderme, a infinidade de insinuações, de vivas e ocultas referências, de inflexões, de cores, de sons, de cheiros, de passado transfigurado e transfigurável que cada uma delas arrasta consigo e de que permanentemente se rodeia, de que faz a sua misteriosa atmosfera própria e inviolável.» (18)
As palavras «libertam-se dos compromissos» lógicos para falarem «de epiderme a epiderme», para comunicarem sem conceito, devolvidas à sensibilidade directa comum ao belo e à sua produção na arte, que Caudwell verifica deste modo: «A beleza diz-nos alguma coisa, não como uma asserção nos diz alguma coisa, mas como um relance de olhos nos diz alguma coisa. É a apreensão de uma qualidade genuína. Uma coisa bela possui um conteúdo significativo, tal como o possui uma asserção verdadeira. O significado é que não é o mesmo.» (19)
Sensibilidade que se fixa por meio de um processo específico de trabalho e cujo resultado é a criação de objectos sensíveis, que directamente se dirigem à sensibilidade e à afectividade, eis ao que pode resumir-se o belo artístico. Todavia, é na vida, que o homem ama, sofre, goza, se alegra ou se comove, na vida povoada de seres e de coisas e regida por ideias. Por isso a arte nasce ligada à totalidade da vida, é uma recriação da própria vida. Sociedade, ideologia, religião, moral, política, tudo faz parte da experiência humana e tudo a arte exprime, de tudo a arte se nutre: do bem como do mal, do belo, como do feio, do justo como do injusto, do verdadeiro como do falso, do real como do ilusório, do concreto como do ideal, da acção como do pensamento em que se debatem as ideias de bem, de mal, de belo, de feio, de justiça, de injustiça, de verdade, de erro, de realidade, de ilusão, de tudo o que é vida vivida no sofrimento e na alegria, a vida vária que estua no Hymne à la Beauté, de Baudelaire:
Tu contiens dans ton oeil le couchant et l'aurore; Tu répands des parfums comme um soir orageux; ................................................................................. Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des astres? .............................................................................. Tu sèmes au hasard la joie et les désastres ........................................................................ De tes bijoux l'Horreur n'est pas le moins charmant, Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques, Sur ton ventre orgueilleux dance amoureusement.
De Satan ou de Dieu, qu'importe? Ange ou Sirène, Qu'importe, si tu rends, - fée aux yeux de velours, Rhythme, parfum, lueur, ô mon unique reine! - L'univers moins hideux, et les instants moins lourds?
Não será lícito portanto atribuir à arte uma finalidade social, ideológica, religiosa, moral ou política, apesar de as sociedades, as ideologias, as morais, as religiões e as políticas desempenharem um papel decisivo na sua motivação, havendo que substituir a noção ideal de finalismo pela noção prática de função. Uma coisa são as intenções do artista, a finalidade que eventualmente se proponha (religião, política, moral, etc.), outra coisa é a expressão que medeia entre o artista e essa finalidade, ou seja a arte. Ora é na medida em que a arte constitui para o artista um veículo expressivo que se pode dizer que ela exerce uma função. A função da arte é exprimir, e o artista ao exprimir-se exprime o mundo em que se inscreve e nele interfere, nele intervém. Esse mundo, como vimos, não é porém unitário: o artista exprime a natureza humana enredado nos conflitos a que esta se encontra sujeita, conflitos que na obra de arte reaparecem entre o que a obra reflecte das condições ambientes em que nasce e as virtualidades profundas do homem, atingidas através das circunstâncias que paradoxalmente o suscitam e contrariam. Por isso certas obras nos aparecem, à primeira vista, como que desrelacionadas, contraditórias mesmo da orgânica social em cujo âmago germinaram. Leia-se, por exemplo, a seguinte poesia chinesa do século XVIII:
O meu marido sua pelos campos, em casa peno eu.
Os esposos trabalham muito, ajudam-se um ao outro.
Os esposos da aldeia cuidam do amor. Os esposos da cidade cuidam dos vestidos.
Pode trocar-se um vestido velho por outro novo. Não se pode trocar o amor de toda uma vida.
Eu cozo o arroz, preparo o chá. Tu mondas, semeias, cavas e ceifas.
Quando como um ovo, deixo-te a gema. Envelheceremos juntos (20).
Como conciliar esta poesia de um amor digno, igualitário, cimentado num destino comum, com a situação degradada da mulher na sociedade chinesa do tempo? Apenas tendo em conta, por um lado, como factor social, que o despojamento económico nivela os seres condenados à mesma dura existência, e, como factor cultural, que a poesia chinesa está toda ela impregnada de ideais filosófico-religiosos, podendo ver-se neste caso um típico espécime de uma sabedoria budista ou confucionista, desprendida dos bens materiais e das canseiras terrenas; por outro lado, que a arte, correspondendo a uma necessidade de expressão sensível e afectiva, mergulhando profundamente na sensibilidade e na afectividade, transfigura o real e é uma das formas de agir pelas quais o homem se cumpre e vence as forças económicas, sociais e ideológicas que o alienam de si próprio, pelas quais o homem conhece e prepara o futuro. Por isso não raro a obra de arte é incompreendida da sua época e do meio social a que se destinava, por isso muitas vezes transcende as intenções do próprio artista, por isso sobrevive com frequência ao momento histórico que a viu surgir. Ainda quando o artista seja movido, por formação, convicção ou paixão ideológica, religiosa, moral ou política, ou seja chamado a servir as sociedades, as ideologias, as religiões, as morais ou as políticas, ultrapassa esse finalismo, porque estará simultaneamente exprimindo o que há de mais fundo e subtil no ser humano e as mais ténues e insuspeitadas relações que o prendem ao seu meio – as relações vitais diariamente experimentadas e emocionalmente conhecidas.
Assentemos pois em que o artista exprime o infinito humano através do finito, do particular, do relativo, do circunstancial, num objecto finito e concreto, exigido pela sensibilidade, condicionado por individuais e colectivas maneiras de pensar e de agir, produto altamente elaborado pela inteligência coordenadora e pela técnica dominadora dos materiais, tanto mais belo quanto mais prenhe de significação, quanto mais rico da riqueza humana que o solicita.
Em suma: a necessidade da arte inscreve-se na geral necessidade inerente ao homem de conhecer agindo e, agindo, exprimir o seu conhecimento e a sua acção. É pela acção que o homem se apodera do mundo e ganha consciência de si próprio, e é na acção, produzindo objectos artísticos, que vividamente exprime o processo prático em que essa consciência se desenvolve e actua. A arte é assim um aspecto da vida humana colectiva e individual. «Ao falar-nos do homem, é de nós que ela nos fala», diz Élie Faure (21). De nós, no que mais nos distingue a meio das contingências da vida, e a despeito delas. Pelo que desperta em nós a alegria especial, «já não digo todos os prazeres, mas essa alegria pelo ouvido e pela vista», a que se refere Platão (22).
(*) João José Cochofel (1919-1982) nasceu em Coimbra, cidade a que ficaria ligado para toda a vida. Licencioiu-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e ligou-se desde muito cedo ao grupo neo-realista coimbrão, de que foi uma das figuras centrais e um dos mais incansáveis animadores. Muitas das reuniões e tertúlias de inteletuais e artistas ligados a este grupo realizaram-se no palacete da sua família, à Rua do Loureiro. Aí se compuseram as ‘Canções Heróicas’ de Fernando Lopes-Graça. Começou por colaborar na revista ‘Sol Nascente’, ajudando depois a fundar, dirigindo e colaborando ativamente nas revistas ‘Altitude’, ‘Vértice’, e ‘Gazeta Musical e de todas as Artes’. A sua presença é ainda detetável em ‘Cadernos da Juventude’, ‘O Diabo’ e ‘Seara Nova’. Foi um dos organizadores do ‘Novo Cancioneiro’, uma importante coleção da poesia ao estilo neo-realista. Começou a publicar livros de poesia desde muito cedo: ‘Instantes’ (1937), ‘Búzio’ (1940), ‘Descoberta’, 1945 (colectânea dos três livros anteriores e alguns inéditos); ‘Os Dias Íntimos’ (1950); ‘Quatro Andamentos’ (1966); ’46.º Aniversário’ (1966) (contendo os livros anteriores e o ‘Emigrante Clandestino’); ‘Uma Rosa no Tempo’ (1970), ‘O Bispo de Pedra’ (1975). É sua uma das vozes poéticas mais profundas, depuradas e subtis do neo-realismo português. Iniciou também nas revistas neo-realistas uma carreira de crítico literário e musical que se prolongaria por muitos anos. Foi ainda cronista e ensaísta sobre temas estéticos. Nesse âmbito, ficou célebre a polémica que manteve com António José Saraiva nas páginas da revista ‘Vértice’, em 1952, sobre forma e conteúdo na obra de arte. Aí defendeu que a criação artística possui uma técnica específica, que a distingue de outras formas de expressão, a qual deve ser conhecida e respeitada na sua autonomia própria. Em socorro desta posição alinharam então Mário Dionísio e Fernando Lopes-Graça, enquanto Álvaro Cunhal apoiou Saraiva nos seus ataques ao “formalismo decadente”. Para uma mais completa exposição das suas conceções, publicaria em 1958 o ensaio ‘Iniciação Estética’, na coleção Saber das Publicações Europa-América, onde foi sucessivamente reeditada. Dirigiu, por fim, a publicação do Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e da Teoria Literária, que se quedou inconcluído à altura da sua morte. As suas “Obras Completas” foram publicadas em três volumes pela Editorial Caminho, na viragem da década de 1980 para 1990: Obra poética, Lisboa, Editorial Caminho, 1988; Opiniões com data, Lisboa, Editorial Caminho, 1990; Iniciação estética seguida de críticas e crónicas, Lisboa, Editorial Caminho, 1992.
O texto que aqui apresentamos constitui o segundo capítulo de ‘Iniciação Estética’. O plano da obra é: 1. Introdução; 2. O problema da necessidade; 3. O problema da validade; 4. O problema da irredutibilidade; 5. Conclusão, seguida de um extenso apêndice documental. Apoia-se, entre outros autores marxistas (Henri Lefèbvre, Plekhanov), em Christopher Caudwell, o comunista britânico ceifado em plena juventude nas Brigadas Internacionais ao serviço da república espanhola.
_____________ NOTAS:
(1) Philosophie de l'Art, Hachette, Paris, 1948, vol. I, pág. 11 (1.ª parte, Cap. I, 1.)
(2) Christopher Caudwell - «Beauty», in Further studies in a dying Culture, The Bodley Head, Londres, 1950. Pág. 99.
(3) Idem, pág. 85.
(4) Idem, pág. 91.
(5) Henri Lefèbvre - Contribution à l'Esthétique, Editions Sociales, Paris, 1953. Pág. 44.
(6) Diderot, Traité du Beau, in Oeuvres, Bibliothèque de la Pléiade, N.R.F., Paris, 1951 (texto estabelecido e anotado por André Billy), pág. 1137.
(7) «Beauty», in ob. e ed. cit., pág. 87.
(8) Contribution à I'Esthétique, ed. cit., págs. 46-47.
(9) Traité du Beau, ed. cit., pág. 1132. Sublinhados nossos.
(10) G. W. F. Hegel – Esthétique (tradução francesa de S. Jankélévitch), Éditions Montaigne, Paris, 1944, Vol. I, pág. 166 (Fil. da Arte, Parte Geral, I, 1.ª parte, Cap. I, V.).
(11) Aristote – Art Rhétorique et Art Poétique, Classiques Garnier, Paris, 1944 (tradução, introdução e notas de J. Voilquin e J. Capelle), págs. 433 a 435 (IV, 7). Sublinhados nossos.
(12) Lessing - Laocoonte (trad. esp. de Javier Merino), ed. «El Ateneo», Buenos Aires, 1946. Pág. 119. (Cap. XV.)
(13) Emmanuel Kant - Critique du Jugement (trad. franc. de J. Gibelin), Vrin, Paris, 1951. Pág. 59 (§ 15).
(14) Traité du Beau, ed. cit., pág. 1138.
(15) Para Pavlov e os seus continuadores, o homem, como espécie e como indivíduo, começa por ter, à semelhança do que se dá com os animais providos de sistema nervoso central, uma actividade psíquica meramente baseada nas sensações, as quais, repetindo-se, variando, coincidindo, correspondendo-se e permutando-se no decurso da experiência prática e do desenvolvimento biológico, habilitam o animal ou o homem a distinguir e interpretar os sinais sensoriais recebidos do exterior pela acção dos agentes físico-químicos sobre o organismo, constituindo um primeiro sistema de sinalização, condicionante do comportamento e referenciador da realidade circundante. Contudo, no homem, mercê da sua evolução natural e social, vem acrescentar-se, ao primeiro, um segundo sistema de sinalização, constituído pela linguagem, que lhe permite as operações mentais capazes de sobreporem à referenciação sensorial a referenciação racional, passando o seu comportamento a ser condicionado pela conjunção de ambos os sistemas.
(16) Gordon Childe - O Homem faz-se a si próprio (trad. port. de Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo), Edições Cosmos, Lisboa, 1947. Pág. 33. (1.ª parte, Cap. II.).
(17) Charles Morgan - Portrait in a mirror, Macmillan, Londres, 1949. Pág. 183. (Cap. IV.)
(18) Mário Dionísio - A Paleta e o Mundo, Publicações Europa-América, Lisboa. Vol. I, pág. 127.
(19) «Beauty», in ob. e ed. cit., pág. 90.
(20) Tradução da versão francesa in La Chine dans un miroir, de Claude Roy, Guilde du Livre, Lausana, 1953, pág. 29.
(21) Élie Faure, Histoire de l’Art, Plon, Paris, 1947. L’Art Antique (Introd.), pág. 17.
(22) Platon, Le Grand Hippias, in Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la Pléiade, N. R. F., Paris, 1940 (tradução e notas de Léon Robin), Vol. I, pág. 45.
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