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Hegel e Marx A dialéctica e o problema da inversão (*)
João Esteves da Silva
Devo precisar que não se trata apenas de um tema, mas de um verdadeiro problema que permanece ainda em aberto e que eu gostaria, não tanto de encerrar ou resolver, mas mais simplesmente, de colocar em termos teoricamente rigorosos. Começarei por afirmar, o que tem todo o ar de um truísmo: 1) que o problema existe e não está ainda resolvido; 2) que ainda não terá sido colocado em termos que permitam a sua resolução efectiva. A primeira afirmação equivale, hoje, a forçar uma porta aberta. Quando praticamente toda a gente reconhece que o problema da relação Hegel-Marx constitui uma questão em aberto que está colocada no centro das controvérsias mais significativas do pensamento contemporâneo, a reafirmação deste facto é pouco susceptível de levantar objecções. Mas nem sempre foi assim; para toda uma primeira geração de pensadores marxistas, onde podemos incluir Kautsky, Plekhanov, Cunow, Labriola e muitos outros, não se tratava, na verdade de um verdadeiro problema, mas, quando muito de um tema, uma tema de dissertação pode dizer-se; conquistados pelo marxismo principalmente através da leitura das obras de Engels, as mais das vezes consideradas como a interpretação mais autêntica do pensamento de Marx, o problema de relação Hegel Marx era considerado como uma questão definitivamente encerrada porque resolvida, com meridiana clareza, por referência a alguma passagens do Anti-Düring, da Dialéctica da Natureza ou do ensaio sobre Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. Nos termos da construção engelsiana, a filosofia hegeliana seria atravessada por uma profunda contradição: contradição entre o carácter revolucionário do seu método e a natureza conservador do sistema. Daqui resultaria que Hegel seria já metade idealista, metade materialista; como se lê no Feuerbach…, o sistema de Hegel não representa, pelo seu método e pelo seu conteúdo, senão “um materialismo invertido de uma maneira idealista”. Marx ter-se-ia, portanto, limitado a apropriar-se de método dialéctico de Hegel, que encara toda a realidade como um processo, todo o objecto estático como perecível, toda a verdade como relativa e destinada a ser integrada no movimento absoluto do devir, desvinculando-o do sistema conservador que representaria, em relação ao método revolucionário, como que um simples invólucro exterior, segregado por uma concepção do Mundo, que bastaria inverter para que a dialéctica, deixada por Hegel em posição incómoda, voltasse a assentar os pés na terra firme do materialismo, transformando-se no compêndio das leis gerais do movimento, “tanto do mundo exterior como do pensamento humano: duas séries de leis idênticas no fundo, embora diferentes na sua expressão”. Assim se interpretariam as lacónicas referências de Marx no posfácio à 2ª edição do Capital: trocado o sistema idealista hegeliano pela concepção do mundo materialista, o núcleo racional do hegelianismo, só por isso posto de pé, residiria da dialéctica da matéria, tal como vem exposta na Ciência da Lógica e repetida quase textualmente no Anti-Duhring. A proposição hegeliana de que “o finito é ideal”, na qual Hegel vê a base de toda a filosofia, na medida em que toda filosofia é idealismo, transforma-se assim no cerne do que viria a ser designado como o materialismo dialéctico. O princípio hegeliano, correspondente ao ponto de vista segundo o qual o mundo finito não possui verdadeira realidade, aparece transformado na base do método revolucionário segundo o qual tudo o que existe merece perecer. A dialéctica, concebida tal como em Hegel, como a potência irresistível, perante a qual nada pode manter-se, por mais sólido e seguro que pareça (1), é simplesmente naturalizada e contraposta ao pensar metafísico, concebido, por seu turno, como o vício do intelecto que se obstina em ver no mundo material finito alguma coisa de sólido subsistente por si, ou seja, o ponto de vista de toda a ciência natural moderna. Como demonstrou Lucio Colletti no seu ensaio Il marxismo e Hegel (2), o materialismo dialéctico, que se limitou a transcrever nos seus textos as proposições fundamentais da dialéctica da matéria originalmente formuladas por Hegel, repousa sobre um erro de base que viciou cerca de um século de marxismo teórico. Este erro de base envolve, por um lado, uma incorrecta leitura de Hegel, por outro, um insuficiente aprofundamento das consequências teóricas da obra de Marx. No seio de um congresso que reúne os maiores estudiosos do pensamento hegeliano, julgo poder dispensar-me, sob pena de estultícia da minha parte, de procurar fazer a cabal demonstração do absurdo da tese que encontra em Hegel uma contradição entre o método e o sistema. No discurso hegeliano, onde entre o ser e o saber não existe qualquer distância, onde se rejeita toda a particularidade subjectiva da argumentação e a forma se torna perfeitamente consubstancial ao conteúdo que nela se espelha e reconhece, não há qualquer possibilidade de isolar um método. “A verdade é o movimento de si em si mesmo, enquanto o método é o conhecimento que é exterior à matéria” (3). Em Hegel, o método, a dialéctica, é o movimento da realidade que só é conhecida, ou, preferentemente, reconhecida, no sistema mostrativo do seu progressivo desdobramento e realização, e este sistema é necessariamente circular (um círculo de círculos), na medida em que, a cada momento do seu percurso, a verdade constitui um regresso a si, através da negação da sua imediatidade. E se, no sistema, o método é tudo, alma e substância como diz Hegel, separado do sistema, ele é rigorosamente nada. E é este nada que, durante mais de cinquenta anos de esclerose do pensamento marxista, passou por constituir o conteúdo do materialismo dialéctico. Não admira, por isso, que a ortodoxia que veio a solidificar-se à sombra dessa nova “filosofia”, tenha acabado por caracterizar-se, no seu uso prático, no seio das lutas ideológicas e políticas, pela circunstância de se apresentar como um dogma cujo conteúdo é inapreensível; denunciando inapelavelmente o mais pequeno desvio em ambos os sentido de toda e qualquer direcção, o objectivismo como o subjectivismo, o chauvinismo como o cosmopolitismo, o teoricismo como o practicismo, o burocratismo como o autonomismo, e outros pares de “ismos” que seria fastidioso enumerar, o dogma “marxista” acabou por ser reconduzido à pureza e um não ser, a uma nova espécie de teologia negativa, cujo conteúdo consistisse no lugar geométrico inapreensível sem dimensões, equidistante de todos os desvios ideológicos da “linha justa”. Para que a relação Hegel-Marx voltasse a fazer problema era necessário, em primeiro lugar, que, por contraposição a este “marxismo”, se produzisse um regresso a Marx. É certo que, entretanto, no seio daquilo que, tão só descritivamente e sem nenhuma preocupação de rigor, poderemos designar por “marxismo ocidental” tinha sido possível assistir não a um mas a vários regressos a Marx. Principalmente após a publicação dos textos de juventude, que são justamente indigeríveis por toda a tradição do materialismo dialéctico e não guardam a mínima relação com ela, pudemos assistir, ao longo de todo o século XX, ao sabor das diferentes conjunturas ideológicas, ao surgimento se diversos Marxs todos diferentes mas com uma característica comum: todos filosóficos. Foi-nos servido um Marx feurbachiano, um Marx humanista, um Marx existencialista e fenomenólogo, um Marx historicista e, mais recentemente, um Marx teilhardiano e quase cristão. Durante toda esta época, ou o sistema hegeliano era pura e simplesmente relegado para o museu das curiosidades históricas, ou se procedia a uma leitura de Hegel num sentido pseudo-marxisante, desarticulando todo o rigor do seu pensamento e reduzindo-o à narrativa conceptual do processo de auto produção do Homem na história. Também aqui o problema teórico da relação Hegel-Marx nem chegava a pôr-se ou era considerado definitivamente resolvido pela operação relativamente simples de colocar o homem no preciso lugar da Ideia hegeliana. Há que sublinhar que, tanto no caso da versão materialista dialéctica, como no da versão humanista-historicista, a chamada inversão do hegelianismo corresponde a uma rigorosa conservação do quadro teleológico da compreensão hegeliana da História. Quer a inversão tenha lugar pela colocação da Matéria na posição da Ideia, quer pela troca de lugares, tipicamente feurbachiana, entre o sujeito e o atributo, são sempre as categorias da lógica hegeliana que presidem ao desenrolar do processo; além, assumindo a forma descarnada e dogmática das leis mais gerais do desenvolvimento da Natureza da Vida e da História, que, com uma necessidade férrea, regulariam o curso do mundo; aqui, atribuindo ao movimento universal da Ideia hegeliana um carácter concreto-natural, a título de alienação do Ser Genérico. Para me exprimir de uma forma metafórica, poderia dizer-se que se o sistema hegeliano constitui efectivamente um círculo, poderemos virá-lo e revirá-lo por várias formas, poderemos inclusivamente, desde que a sua periferia não seja completamente rígida, torcê-lo e retorcê-lo à discrição, mas o que não podemos, por forma alguma, é, por virtude se uma simples inversão, libertarmos do fechamento que constitui a sua característica topológica fundamental. Se não há inversão que nos faça sair de um círculo, os dois mecanismos de inversão que, ao longo de todo o nosso século, nos têm sido propostos como paradigmas de resolução do problema da relação Hegel-Marx são, por sua própria natureza, incapazes de nos situar fora da órbita do sistema hegeliano, reduzindo o marxismo, por vias opostas mas complementares, à condição humilhante do hegelianismo do pobre. Efectivamente, tanto por uma como por outra via, o sistema hegeliano não resulta ultrapassado mas rigorosamente empobrecido. É certo que há uma diferença entre as duas vias; pode sustentar-se, com boas razões, que o discurso da Diamat nem sequer é marxista, ao passo que o discurso humanista corresponde, de facto, ao discurso do Marx jovem nos Manuscritos de 1844. Mas o empobrecimento da dialéctica hegeliana é evidente tanto num caso como no outro. O discurso materialista dialéctico corresponde, na maior parte das vezes a uma nova versão do mais chato materialismo oitocentista, posto em movimento por um impulso dialéctico exterior. Mas o discurso do jovem Marx, ao pretender operar uma rigorosa inversão do hegelianismo, a partir troca feuerbachiana do sujeito e do atributo, longe de se saldar pela libertação do domínio do sistema, traduz, pelo contrário um completo esvaziamento da dialéctica de Hegel; este, embora faça da coisa da lógica, a lógica da coisa, e coloque as determinações do real sob dependência das determinações do conceito, é, ainda assim, capaz de proceder à reconstituição do concreto como síntese de múltiplas determinações, o que constitui, como Marx haveria mais tarde de afirmar expressamente, o cerne da apropriação cognitiva do real pelo pensamento. O jovem Marx, pelo contrário, ao fazer sua a crítica feuerbachiana da abstracção (4) e ao pretender aprender directa e globalmente o concreto, como totalidade viva oferecida à intuição com toda a riqueza das suas determinações, é forçado a retirar ao desenvolvimento toda a sua força determinante, reduzindo-o a uma caricatura da Tese (sociabilidade primitiva), Antítese (sociedade civil alienada) e Síntese (o comunismo futuro) numa descarnada triplicidade, concebida nos moldes daquela contrafacção que, não muito mais tarde já seria capaz de aperceber em Proudhon. Em Hegel, as diferentes fases do desenvolvimento de Espírito Absoluto conservam, enquanto formas de alienação da Ideia, uma certa espessura objectiva, a título de diferentes modalidades de concretização do espírito histórico, com as suas descontinuidades, a que só não é possível chamar estruturais porque o todo hegeliano é, em todos os casos uma totalidade destruturada cuja essência interior se presentifica integralmente em cada uma das sua partes; no discurso anti especulativo do jovem Marx, todas as formas de organização social encontram indistintamente o seu fundamento na forma simples do trabalho, concebido segundo o modelo artesanal, de sorte que, a partir desse fundamento unitário é sempre possível compreender criticamente qualquer configuração histórica sem qualquer descontinuidade; como observa J.A. Gianotti, desde o Egipto a Wall Street, a mesma oposição, cada vez mais aguda está aí a explicar todas as formas intermediárias (5); e porque as duas formas extremas são puramente mitológicas, a sociabilidade primitiva como essência genérica do homem e o comunismo futuro, como pura negação que aboliria de um só golpe toda a alienação, independentemente das formas objectivas de organização social, resulta que toda a história se reduz, como em Feuerbach, a um processo contínuo através do qual os homens vão penosamente tomando consciência daquilo que foram, são e sempre serão. No momento em que escreve estas páginas, Marx está simultaneamente o mais perto e o mais longe que é possível de Hegel; o mais próximo, na medida em que, limitando-se a transpor a alienação do domínio etéreo da vida religiosa para o reino profano da vida terrestre, Marx mantém integralmente o quadro da compreensão hegeliana da história: a projecção do resultado na origem, a recondução de toda a novidade a algo que já existia sob forma velada deturpada ou traída, a redução de toda a transformação a um devir para si do que já era em si. É este fundamento íntimo da construção teleológica hegeliana que Marx condensa num dos ses escritos da época numa fórmula magnífica que é como que uma consagração:”A razão existiu sempre, mas nem sempre sob forma racional”. Mas, ao mesmo tempo, Marx está o mais longe possível de Hegel, na medida em que, à sombra de Feuerbach, se coloca em frontal oposição àquilo que mais tarde haveria de reconhecer como o núcleo racional da dialéctica hegeliana: a natureza das abstracções determinantes, a concepção do universal concreto, a compreensão do desenvolvimento categorial como a única forma de apropriação cognitiva do todo concreto, vivo e já constituído, como totalidade em evolução. Mas o que deve acentuar-se, desde já, pondo em destaque a complexidade da relação de Marx a Hegel é que, ao longo de toda a sua obra, esta relação de simultânea proximidade e afastamento se mantém em rigoroso paralelismo com a que detectamos ao nível dos escritos de juventude; é na medida em que, ao elaborar a sua obra de maturidade, Marx se vai aproximando do “elemento racional que Hegel descobriu e, ao mesmo tempo, mistificou” (6) e procede à reapropriação da dialéctica hegeliana, “que constitui a forma fundamental de qualquer dialéctica, mas apenas depois de despojada da sua forma mística” (7), que ele se liberta efectivamente do hegelianismo e se coloca fora da órbita do sistema. Para me manter ao nível metafórico em que a questão tem sido as mais das vezes abordada, a começar pelo próprio Marx, eu poderia arriscar que esta dupla relação topológica de proximidade e de afastamento só é explicável desde que subentenda uma mudança de plano; só esta mudança de plano pode explicar que Marx esteja mais próximo daquilo que constitui a grande descoberta de Hegel precisamente no momento em que se situa noutro lugar, que já não conserva qualquer relação de continuidade nem de contiguidade com o lugar a partir do qual Hegel profere o seu discurso. Qual é este lugar? Julgo-o perfeitamente definido pelo projecto filosófico clássico que domina a tradição metafísica ocidental. Hegel representa simultaneamente a realização integral e a liquidação da filosofia, tal como vem sendo entendida no pensamento ocidental desde Platão. O sistema hegeliano constitui, é o entendimento de um Kojève, de um Heidegger ou de um Châtelet, e que me parece dificilmente questionável, a completa realização da possibilidade sonhada pelos Gregos de um discurso teórico integral, de uma total reabsorção do real pelo pensamento. Como observa Châtelet, Hegel é o único pensador que resolveu todos os problemas que se lhe colocaram: o seu sistema, como círculo de círculos, atinge o mais perfeito estado de completude. É esta circunstância que tem dado lugar ao entendimento erróneo de que Hegel postule o termo da história como condição do fechamento do seu sistema; ora Hegel não supõe que a História acabe em si e no seu reino de Prússia; simplesmente, aconteça o que vier a acontecer em toda a história futura, tudo o que haverá a pensar estará já pensado no seu sistema. E hoje, decorrido século e meio sobre a publicação da Ciência da Lógica (cujo conteúdo é “o reino da Verdade tal como existe em si e para si…a apresentação de Deus, tal como é na sua essência eterna”) temos que reconhecer que, de determinado ponto de vista, Hegel tinha razão: todas a tentativas de constituição de uma qualquer filosofia de pretensões fundacionais acabam necessariamente por cai no interior do seu sistema, como momentos rigorosamente situados, compreendidos e ultrapassados no seio do movimento da Ideia Absoluta. Desde que o discurso teórico postule, como exigência teórica de base, o projecto de fundar no conhecimento daquilo que é a racionalidade de todos projectos humanos, Hegel pensou efectivamente tudo o que haverá a pensar. Esta grande celebração, verdadeira apoteose da filosofia; constitui rigorosamente o seu acabamento. É todo um mundo que se fecha, o que traduzido no processo real da história, só pode significar que é outro mundo que se abre: o sistema hegeliano assinala ao mesmo tempo uma morte e um parto, e o fulcro da sua enorme mistificação, onde após o delírio báquico em que tudo entra em vertiginoso movimento, tudo fica exactamente como é, reside na identificação, postulada por Hegel, entre a nova forma de racionalidade que acaba de nascer com a velha razão filosófica que acaba de exalar o último suspiro. Para que o discurso hegeliano possa oferecer-se como aquilo que efectivamente é; o discurso do Mundo, para que entre o ser o saber seja eliminada qualquer distância, já que a razão não tem outro lugar onde exista senão o real que a realiza e em que se produz, Hegel tem que eliminar do Absoluto toda a ligação transcendente, inserir o Espírito no tempo e assumir-se como pensador histórico situado num momento determinado do processo de mundialização de Razão. Hegel é, com efeito, o primeiro pensador da história da filosofia a apresentar-se conscientemente como pensador do seu tempo. Não porque, à maneira dos Iluministas, conceba a sua época como aquela em que, destruídas finalmente todas as instituições arbitrárias, sob cujo jugo os homens haviam vivido até então, a Razão pudesse enfim reconciliar-se com a sua essência eterna, desfazer toda a ignorância e todo o obscurantismo e apontar ao Homem a sua natureza humana desenterrada da noite de história. É porque os Iluministas concebem o seu tempo como o tempo da revelação que a sua filosofia não se pensa como um produto mas como uma origem; para eles, tudo iria começar; no momento em que a razão se reencontrou a si mesma, o conhecimento racional, liberto finalmente de todos os entraves e preconceitos da superstição e da ignorância vai progredir indefinidamente num processo aditivo sem termo assinalável mas de estrutura sempre idêntica, em que um conjunto de princípios muito simples e sempre iguais a si próprios se irão submetendo progressivamente a infinidade do ser dado. Hegel não atribui à história este papel revelador, mas justamente um papel constitutivo. Por isso a sua filosofia não se pensa como uma origem mas precisamente como um resultado. Quando ele afirma que “o seu tempo é propício à elevação de Filosofia à Ciência” não é porque suponha, como os filósofos do século XVIII, que o seu pensamento represente um ponto de partida, mas, pelo contrário, porque se pensa como um termo, um produto ou um resultado de todo o desenvolvimento histórico anterior. Esta atribuição de um papel constitutivo à dimensão histórica constitui o cerne da sua descoberta fundamental, o princípio revolucionário que contém em si a subversão de todo o pensamento filosófico anterior. Com efeito, tal descoberta conduz directamente: a) à inserção da racionalidade no processo de formação dos seus próprios conteúdos; b) à recondução do discurso teórico às condições de exercício da sua prática discursiva; c) à subordinação de autonomia de todo e qualquer tipo de discurso à definição do estatuto de objectividade das realidades sobre que fala. Mas este assassino da Filosofia é, como observa ainda Châtelet, um “assassino respeitoso” e, ao postular a possibilidade de um Discurso Total, a inserção da razão na história transmuta-se em reconciliação do Espírito e do Tempo, no âmbito de um discurso que recobre toda a realidade e se oferece como a integral realização do projecto filosófico clássico. Para tanto, Hegel é conduzido a identificar, mais uma vez, o resultado com a origem, pelo que todo o movimento, como desdobramento do em si no para si, se torna pura e simplesmente aparente; ao fim e ao cabo nada realmente se produz, porque o que, no termo do processo de apresenta como produto, já se encontrava contido na origem, como começo, germe e motor de todo o devir. Quando Hegel afirma, “o tornar compreensível um nascer ou um aparecer por meio do gradualismo da variação contém em si o fastidioso da tautologia, contém já pronto previamente tudo que nasce ou aparece, converte a transformação em simples variação de uma diferença exterior, e, por isso, é só tautologia”, ele exibe claramente o fundamento racional da sua afirmação de que o seu tempo é propício à elevação da Filosofia à Ciência. Mas ao pensar o seu discurso como a realização integral do projecto filosófico clássico, Hegel é levado, de novo, a projectar o resultado na origem, o fim no princípio, e a transformar todo o desenvolvimento num movimento circular tão intenso como o que se revela na quietude de um pião adormecido (8).
Ao admitir que há uma eficácia real da potência, supondo que há sempre qualquer coisa a objectivar, Hegel torna-se incapaz de pensar o conceito de produção como uma transformação efectiva, reduzindo-o à concepção tipicamente aristotélica de um tornar manifesto aquilo que está latente (10), um despertar de potencialidades adormecidas, um exteriorizar-se regressando a si, um negar-se para se afirmar a nível superior (11). Então tudo resulta já dado nas condições iniciais, o mais exterior coincide com o mais interior, o mais objectivo com o mais objectivo e a inserção da razão no mundo transforma-se em integração do Mundo na Razão: “A Ideia Universal mantém-se como a base e como aquilo que tudo abarca e é imutável” (12). Por esta via, Hegel efectivamente mistifica a sua concepção revolucionária do papel constitutivo da dimensão histórica e, longe de romper com toda a tradição metafísica ocidental, antes realiza, de facto, o projecto de uma integral transparência do discurso teórico, que correndo paralelamente ao curso histórico, recupera, integra e ultrapassa todas as anteriores figuras do Espírito. Entre o discurso teórico e curso histórico não subsiste qualquer diferença, na medida em que o discurso não é senão o curso da razão que de diz. No universo hegeliano tudo é real ao mesmo título: desde o boi Ápis à consciência infeliz tudo é legitimado pelo mero facto de existir, pois tudo quanto foi e tudo quanto se disse reflecte parcialmente a verdade do Todo, ao fim recuperada no movimento do Sistema Absoluto, onde a Ideia se reconhece a si mesma na infinidade das suas manifestações, verdadeiras enquanto tais, falsas na sua particularidade unilateral. Daí a natureza conservadora da sua dialéctica, que acaba por recobrir todo o mundo da empiria, consagrando-a e justificando-a na sua reduplicação mostrativa. É esta mistificação que, desde muito jovem, Marx é capaz de aperceber em Hegel. Já nos seu primeiros escritos o que Marx reprova a Hegel é seu mecanismo de justificação de empiria, o seu positivismo acrítico que o conduz a aceita como real, e como racional, a totalidade do mundo da aparência, por onde a contingência não resulta reduzida mas integrada, mediante a atribuição de um significado que a transcende; como Hegel teoriza o processo empírico como um processo de realização das essencialidades lógicas, cujo progressivo desdobramento constitui o curso e o discurso da razão, ele não logra reconstituir a necessidade pela recuperação do sentido objectivo da contingência mesma, antes empresta a esta contingência uma racionalidade que lhe advêm de um movimento abstracto que lhe é exterior e misteriosamente a confirma. Hegel elimina a transcendência do espírito em relação à totalidade do sistema do Mundo, para a reintroduzir a cada momento do seu percurso. Daí a ambiguidade maior da sua filosofia: ao mesmo tempo que afirma que a razão se realiza no mundo, Hegel traduz de imediato esta afirmação em “o Mundo é a realização da razão”; quando afirma que a razão é histórica é para traduzir, lodo a seguir, a razão governa a história; e quando avança que a necessidade se revela do processo do contingente, ele traduz “aquilo que é contingente é necessário”.
Esta crítica do hegelianismo como um super empirismo logicizante será mantida por Marx até o fim dos seus dias e representa o “lado mistificador”a que se refere o posfácio da segunda edição de O Capital: a mistificação reside na consagração e justificação da existência empírica, aceite tal qual é, e declarada racional na medida em que se lhe empresta um significado diferente do que lhe é próprio, pelo que a identificação do real e do racional acaba por desembocar, par empregar a expressão de Della Volpe, numa tautologia substancial; Hegel não nos oferece a racionalidade da existência empírica, mas uma descrição rigorosa da empiria apresentada como a face visível de uma racionalidade que lhe é exterior, e não tem outro conteúdo senão o dessa mesma empiria, assim recuperada, redimida, consagrada ou justificada. É sobejamente conhecido que, nestes seus primeiros escritos, tanto na Kritik a que acima me referi, como nos Manuscritos redigidos em Paris no ano seguinte e publicados em 1932, a crítica do misticismo hegeliano aparece fundida e, até certo ponto, identificada com uma perspectiva feuerbachiana que, com sua preocupação de regresso às “ coisas mesmas”, se coloca em oposição frontal à dialéctica de Hegel, recusa todo o mecanismo de constituição categorial, e no lugar da negatividade hegeliana coloca o ser determinado a descansar sobre si mesmo, como totalidade concreta, oferecida de um só golpe à intuição. Nesta perspectiva feurbachiana, todas as formas de realidade são projectadas num só plano, pelo que o mecanismo de posição é destituído de qualquer papel constitutivo, e o enriquecimento e a paulatina objectivação das categorias da lógica hegeliana são completamente afastados e denunciados, à maneira aristotélica, como uma substantivação dos predicados, arbitrariamente separados dos sujeitos reais cuja objectivação representam. É por isso que nos textos de Marx desta época, textos que nunca são nem rigorosamente feuerbachianos, nem rigorosamente hegelianos, aparecem como que entrosados no mesmo discurso dois tipos de críticas, não só dissimilares como totalmente incompatíveis. È assim que na Kritik…, Marx procura conciliar a perspectiva que vê em Hegel uma sobrevalorização da empiria com a crítica feuerbachiana da inversão dos sujeitos e dos predicados, o que se traduziria em assacar a Hegel uma subvalorização da existência empírica, em favor de uma substantivação de predicados ideais. Por seu turno, nos Manuscritos de 44, onde procura resolver esta contradição, mediante uma tentativa de recuperação dos mecanismos de posição da lógica hegeliana, através da distinção entre a alienação e a objectivação do sujeito humano, concebido como Ser Genérico, e assim provido dos atributos da Ideia hegeliana, Marx coloca de novo a teoria a correr paralelamente ao curso histórico, o que constitui um dos eixos da mistificação hegeliana. Quando, no primeiro daqueles textos, Marx nos diz que a abstracção hegeliana corresponde à abstracção do Estado político e que constitui um enorme êxito de Hegel ter fornecido uma descrição verdadeira da natureza da moralidade moderna, ele está a léguas do pensamento de Feuerbach e da sua desvalorização da abstracção pelo simples facto de ser abstracta, na medida em que está à beira de compreender que a especulação não começa no espírito, mas no próprio mundo real, e que a tarefa não reside em contrapor a uma filosofia especulativa uma filosofia anti especulativa, mas em contrapor a toda e qualquer filosofia de pretensões fundantes o conhecimento efectivo do mundo real, onde a especulação entronca as suas raízes, para que se torne possível transformá-lo de acordo com um projecto conscientemente assumido, projecto cujas condições de surgimento a teoria poderá explicitar, mas que não carece dela nem para se exprimir nem para se justificar. Mas mesmo quando procura preservar as aquisições de Hegel, Marx confunde ainda a sua crítica do misticismo hegeliano com a crítica feuerbachiana da abstracção, pelo que é tentado a proceder a uma total inversão do hegelianismo que redunda, como vimos anteriormente, num verdadeiro empobrecimento da dialéctica de Hegel e na completa impossibilidade de explicar porque razão, embora de forma mistificada, da racionalidade imanente ao processo de constituição da moderna sociedade industrial. Para tanto, e é esse o sentido dos Manuscritos Económico-Filosóficos, Marx é conduzido a um movimento de progressiva desvalorização do conhecimento, em proveito de uma prática que se pensa como globalmente oposta ao pensamento teórico. É esta distinção tipicamente ideológica entre uma prática concebida como o mundo real e uma teoria fora deste mundo que subjaz ao discurso dos Manuscritos: a praxis histórica, como lugar da constituição de Verdade, aparece investida dos atributos do discurso filosófico tradicional e o discurso que desentranha esta Verdade, rompendo a crosta da alienação, é o discurso filosófico humanista onde se vê o fundamento antropológico de toda a história. Como procuro mostrar pormenorizadamente num ensaio recentemente publicado (14), trata-se de uma construção interiormente desequilibrada, a partir de cuja desarticulação se tornou possível a Marx lançar as primeiras pedras de uma teoria científica da história e romper com o seu discurso ideológico anterior. Com efeito, a crítica da especulação que procura reconduzir a consciência à consciência do homem, recusando-se a fazer do homem o homem da consciência, contém em si mesma um desequilíbrio interno, já que, ao mostrar que a consciência não pode ser senão o ser consciente, suscita um problema real cuja resolução, ao mesmo tempo, impossibilita: o problema de conhecer o ser de que a consciência é consciência, independentemente da sua reflexão consciente. A recondução da consciência ao ser consciente deveria responder à pergunta: como é que o sujeito se faz objecto? E eis que a resposta aponta no sentido de outra pergunta. Como é que uma prática objectiva se faz sujeito. O jovem Marx lançava-se para a prática a fim de encontrar aí um sujeito, e eis que a prática lhe surge como a substância da objectividade. A sua pergunta era: qual é o sujeito da experiência social? E eis que a resposta surge como resposta a uma interrogação que não fora formulada: que tipo de objecto constitui a realidade social histórica? Assim, é a partir dos próprios resultados do seu discurso anterior, a recondução da consciência a um momento da prática social e a definição da substância da vida social como prática, que Marx pode proceder à caracterização desse memo discurso como ideológico, compreendendo que a sua filosofia anti especulativa acaba por cair nos mesmos vícios do hegelianismo: a projecção mítica do resultado na origem, a suposição de tudo está dado nas condições iniciais, numa palavra, que existe sempre algo a objectivar. Marx acaba por compreender que se limitara a colocar na origem da história, e como fundamento de todo o processo histórico, uma forma de subjectividade que constitui, na realidade, o resultado do seu desenvolvimento mais recente; como mais tarde afirmaria nos Grundrisse: “ esses indivíduos universalmente desenvolvidos que não têm entre si senão relações sociais nascidas da comunidade que controlam objectivamente não são um produto da Natureza mas da história”. A explicitação do alcance da fundação, por Marx, de uma teoria científica da história e da sua importância para a subversão do campo teórico habitualmente designado por ciências humanas, bem como para a compreensão do que poderá ser uma reflexão filosófica, destituída das suas pretensões fundantes, levar-nos-ia muito para além dos limites de uma simples comunicação (15). Procurarei cingir-me, como inicialmente prometi, à tentativa de mostrar que a solução do problema da relação Hegel-Marx só poderá ser encontrada quando se partir da compreensão de que o discurso do Marx da maturidade, o discurso da teoria da história, se situa em posição de absoluta descontinuidade em relação a todo o discurso da filosofia ocidental de que Hegel representa o coroamento e a integral realização. Deve sublinhar-se que o problema foi justamente reaberto, nas últimas décadas, a partir da obra daqueles teóricos que procuraram recuperar o alcance científico do discurso marxista, desvinculando-o tanto do discurso tradicional do Diamat, como das versões humanistas e historicistas do “marxismo ocidental”. Refiro-me, evidentemente, à obra de Della Volpe, em Itália, e de Louis Althusser, em França. É ocioso, em relação ao tema que nos ocupa, procurar destacar as profundas divergências que subsistem entre estas duas correntes quanto às suas respectivas interpretações do texto de Marx. Para além das inúmeras divergências há, no entanto, uma convergência que essa sim é digna de registo e se traduz na acentuação da descontinuidade entre o discurso hegeliano e o discurso marxista. Como anteriormente afirmei, a acentuação desta descontinuidade constitui a condição essencial para que o problema da relação Hegel-Marx possa ser colocado em termos teoricamente rigorosos. Acontece porém que, tanto no que se refere à escola dellavolpiana, como no que respeita à escola althusseriana, a introdução desta descontinuidade é efectuada em termos tais que em lugar de facilitar, vem justamente impossibilitar a solução do problema que entretanto e com felicidade permitiram reabrir. O problema é efectivamente este: como é que a partir de uma posição de discurso que não mantém qualquer relação de continuidade ou de contiguidade com o discurso de Hegel, Marx logra proceder à recuperação da dialéctica hegeliana e reconhece, até ao fim dos seus dias o seu enorme débito para com este grande pensador? A questão não reside, com efeito, em dar conta das diferenças que são não só inúmeras como recondutíveis a uma descontinuidade radical. O problema reside, pelo contrário, em dar conta daquilo que é não apenas semelhante mas perfeitamente coincidente. Como observa Luporini (16), Marx faz a Hegel não apenas um mas dois reconhecimentos positivos; com efeito ele não se limita a afirmar que a dialéctica hegeliana contém um núcleo racional, reconhecimento que Marx estaria igualmente disposto a conceder relativamente a Aristóteles ou a Spinoza, mas também que, apesar da mistificação que ele sofre nas suas mãos, Hegel foi o primeiro a expor as formas gerais do movimento da própria dialéctica. É este duplo reconhecimento que impede que o problema se resolva por acentuação das diferenças como fazem, cada um a seu modo Della Volpe e Althusser, e antes exige que se ponha em evidência o espaço teórico onde a convergência pode ter lugar. Tanto mais que, como observa igualmente Luporini, quanto ao primeiro reconhecimento, segundo, aliás, no texto do posfácio, ele é justificado pelo próprio Marx, através da metáfora da inversão, a qual é muito claramente reconduzida à crítica do misticismo lógico hegeliano nos termos que anteriormente deixei assinalados, ao passo que, no que respeita ao segundo reconhecimento, precisamente o mais comprometedor não se vislumbra directamente qual o lugar teórico onde possa situar-se, uma vez que o processo de pensamento foi distinguido do processo real e denunciada a mistificação que consiste em conceber o real como encarnação da Ideia. Em minha opinião, o espaço teórico no interior do qual Marx opera a recuperação da lógica hegeliana é justamente o da teoria da história. Simplesmente, para que se torne visível a forma de utilização da dialéctica hegeliana no interior de um discurso que nada tem em comum com o discurso hegeliano, a ponto de poder ser considerado como o seu contrário directo, é absolutamente necessário que se proceda à clarificação do estatuto da teoria da história e se apreenda a novidade radical que ela introduz no domínio da própria racionalidade científica e no modo de conceber a natureza dos conceitos por oposição às abstracções meramente representativas. Se não for rigorosamente marcada a distinção entre o estatuto da teoria da história e o das ciências da Natureza, por um lado, e o das ciências hipotético-dedutivas, por outro, estaremos condenados a reconduzir Marx a Galileu e à racionalidade experimental das ciências físico-químicas tal como se foi precisando desde Bacon a Claude Bernard, o que é o caminho seguido por Della Volpe, ou a conceber o discurso da teoria da história como um discurso formal encerrado do domínio dos seus objectos do conhecimento, o que é via adoptada por Althusser. Tanto num caso como no outro, será possível conceder a Hegel o reconhecimento de qualquer núcleo racional, seja a teoria da razão como tauto-heterologia, como faz Della Volpe ou o conceito de processo sem sujeito nem fins, como faz Althusser; mas o que continuará para sempre misterioso é precisamente o segundo reconhecimento, ou seja, a utilização das próprias formas da dialéctica hegeliana ao longo de todo o texto dos Grundrisse e de O Capital. Ora especificidade da teoria da história, em relação a todas as ciências constituídas até ao seu surgimento, reside em que nela se encontra em causa o que poderíamos designar como uma ontologia do ser social. Marx inaugura a ciência da história quando compreende que a especulação não começa na cabeça dos filósofos mas na própria realidade social e que a crítica directa da especulação não pode ser senão uma crítica ainda ideológica, formulada a partir de qualquer pseudo evidência concreta como o “ser sensível” de Feuerbach, a experiência prática, o mundo ante predicativo ou o drama vivido. O verdadeiro conhecimento começa quando se identifica no próprio real a origem da especulação, quando se mostra que é a própria realidade social, como união contraditória de uma substância e de uma forma, que é, em si mesma, especulativa, e que a contradição das determinações internas do conceito não é senão a expressão das contradições reais do objecto de que o conceito é conceito. Só então se torna possível, não apenas reconhecer mas conhecer a ilusão hegeliana que atribui ao conceito, na sua qualidade de construção espiritual, a força interior que lhe permitiria desdobrar-se nas suas determinações ulteriores mais concretas; pois só assim pode mostrar-se que, assim como uma cadeira aparece, por vezes, sob a configuração sensível de um trono, a água benta como a encarnação sensível de uma bênção divina, assim também um indivíduo zoológico pode aparecer, como dizia Hegel, a título de encarnação da soberania, e um objecto de uso, como diz Marx, como encarnação do valor de troca. Este tipo de ilusão não radica no pensamento, como acreditava ainda o jovem Marx ao tempo em que descrevia na Sagrada Família “o mistério da construção especulativa”; a ilusão é constitutiva da forma específica de objectividade do ser social. Quando numa página da Wertfom, Marx afirma que no interior da relação dos valores, e na expressão do valor que aí se contém, o universal abstracto vale não como qualidade do concreto sensível real, mas, ao contrário, é o concreto sensível que se apresenta como simples forma fenoménica de realização do universal abstracto, ele afirma muito explicitamente que, sendo a objectividade social uma objectividade constituída de acordo com determinados mecanismos de posição tudo se passa como se o fruto em geral se encarnasse nas peras, maçãs e cerejas ou como se o animal em geral existisse de forma concreta ao lado dos gatos, cães, cavalos e mulas (17). Isso significa que o mistério da construção especulativa descrito na Sagrada Família não é apenas o mistério da filosofia hegeliana mas é igualmente o mistério da objectividade social, tal como se oferece, pronta e acabada, à sensibilidade dos agentes históricos. É porque a reconstituição cognitiva do processo de constituição das formas de objectividade do ser social se efectua, em Marx, de acordo com os mecanismos de posição da dialéctica hegeliana, que ele nos adverte do perigo de se pensar que estamos perante uma construção a priori (posfácio) ou que o real seja o resultado ou do pensamento que se engendrasse a si mesmo, exteriormente e acima das intuições e as representações (Introdução de 1857). Como observa J.A.Gianotti, o que Marx opõe a Hegel é o carácter propriamente improdutivo do pensamento teórico que se limita a apropriar-se e a reproduzir o concreto já constituído, sob forma espiritual (18). A grande mistificação hegeliana consiste em confundir o processo de pensamento, “produto do trabalho de elaboração que transforma intuições e representações em conceitos” , e assim reconstitui o processo de formação do real e o restitui sob a forma de todo pensado, com a génese da própria realidade. É essa operação que lhe permite desdobrar o pensamento e o ser no mesmo plano e realizar o sonho filosófico de um discurso que reabsorve o curso do Mundo e se desenrola em estreito paralelismo com ele porque lhe é consubstancial. Daí que a sua dialéctica possa pensar-se como o motor de todo o desenvolvimento e prescindir de quaisquer condições exteriores. Para Marx, a dialéctica não é esta força irresistível da razão a que nada poderia opor-se: a dialéctica é a reconstituição ideal do movimento da coisa mesma, a partir dos conceitos universais concretos que, porque correspondem a uma abstracção efectivamente real, produzida por um mecanismo redutor objectivo, independente da abstracção mental, permitem identificar teoricamente a contradição real elementar, que não é a causa do desenvolvimento mas o fundamento genético, constantemente reproduzido no decurso do processo em exame e que estipula, para além da dispersão das causas e dos efeitos, o sentido objectivo da articulação dos fenómenos contingentes na necessidade de uma organização real. Julgo que com estas considerações ficam postas as grandes balizas teóricas a partir das quais o problema que procurei delimitar poderá vir a encontrar a solução. A construção efectiva desta solução e a consequente abertura do campo teórico onde poderá finalmente proceder-se de uma maneira rigorosa e não simplesmente alusiva ao desconto da diferenças e das semelhanças será uma tarefa de longo fôlego a que não poderia abalançar-me aqui. Acrescentarei apenas algumas notas tendentes a mostrar que, tal como em Hegel, a dialéctica de Marx não pode se concebida como um método, mas tão só como a reconstituição do movimento da coisa mesma. O que Marx deve fundamentalmente a Hegel, adquirido que jamais abandona no decurso do seu trabalho científico, é conceptualização do real numa perspectiva de constituição, a preocupação de apreender a necessidade do objecto como coisa (19) e de reconstituir os processos através dos quais o objecto se produz de modo necessário, definindo o seu lugar entre as diversas ordens de realidades, uma mais reais outras mais mistificadas, antes de proceder à crítica dos diferentes discursos que sobre eles puderam ser proferidos. E o que Marx recusa, tal como Hegel é redução positivista de todos os modos de objectividade a um só, a sujeição da teoria à prova da sua verificação empírica exterior. Antes de confrontar a teoria com os factos, é necessário determinar a necessidade de cada facto, definir o lugar que cada objecto ocupa na ordem dos seres e determinar o tipo de experiência que comporta a sus racionalidade intrínseca. Assim, a teoria do objecto torna-se inseparável da crítica do seu tipo peculiar de objectividade e não há método do conhecimento que não suponha uma ontologia subjacente, nem teoria da ciência que possa pretender nada prejudicar sobro o real. A ciência deixa de poder ser pensada como um espaço desdobrado num só plano, um reflexo sem relevo ou uma duplicação formal de um real perfeitamente homogéneo. A constituição da teoria da história como domínio de objectividade científica corresponde à liquidação do problema epistemológico clássico: inserindo a ciência, como prática efectiva, no seio do processo histórico, concebido como um processo objectivamente estruturado, a teoria da história exclui toda a separação ontológica das formas e dos conteúdos, na medida em que são as formas e o processo da sua génese real que constituem o objecto do seu discurso. É justamente na medida em que subordina a prática cientifica às condições reais do seu exercício efectivo e a autonomia do discurso científico ao estatuto de objectividade dos seus objectos, o que supõe, como dizia Hegel, que só haja conhecimento dos processos acabados, que Marx pode reencontrar a lógica hegeliana, como lógica objectiva de um processo de estruturação que corresponde à formação de uma totalidade concreta em desenvolvimento e que só existe, como tal, enquanto reproduz nos seus resultados as condições elementares da sua génese. Note-se ainda que é justamente porque a dialéctica conceptual não possui qualquer força determinante, e a génese categorial, só por si, nada cria, que os conceitos não podem ser encarados como simples abstracções nocionais destituídas de toda a relevância ontológica. Para além da representações abstractas construídas por simples comparação mental, o conhecimento efectivo de um processo de formação exige a construção de conceitos universais concretos, que denotam uma efectiva abstracção real, uma forma objectiva de realidade, a partir da qual se torna possível proceder à reconstituição da totalidade concreta que se pretende apropriar cognitivamente. Os conceitos da teoria da história não são formas puras, destituídas de todo o peso real, mas formas da própria realidade objectiva, nos seus diferentes níveis de estruturação. É esta distinção entre a representação e o conceito, originalmente formulada por Hegel, que constitui o fundamento racional da conceptualização do real como um processo de formação. É óbvio que esta distinção não é formulável a um nível simplesmente metodológico; distinguir um simples termo geral de um conceito explicativo não é uma operação que possa efectuar-se ao nível das formas do discurso; a este nível a palavra e o conceito são propriamente indiscerníveis; na medida em que os conceitos são também palavras, termos gerais que denotam um universal, as teorias que assimilam toda a casta de nomes comuns já que se referem a uma multiplicidade de fenómenos e são igualmente abstractos e gerais não são logicamente absurdas e podem preservar um elevado grau de aparente rigor. O vício da concepção nominalista dos conceitos não é um absurdo lógico, mas aquilo gostaríamos designar como absurdo dialéctico; o erro do nominalismo não reside na sua incoerência, mas, pelo contrário, na sua coerência; e isto num duplo sentido, coerência formal da teoria e coerência desse formalismo com uma concepção do real como um sistema eternitário, constituído de uma vez para sempre. Enquanto concebermos o conhecimento como o abstracto e a representação sensível como o concreto, teremos forçosamente de recusar a possibilidade de um conhecimento efectivo de um processo de desenvolvimento real. A ciência teria apenas duas opções: dissolver a plenitude do todo, reduzindo-o à identidade de uma substância abstracta, isolada por comparação e generalização, é método do empirismo do qual decorre, como consequência necessária, o evolucionismo historicista, ou construir idealmente mediante o recurso a formas do intelecto, modelos racionais de natureza formal, de que o concreto será exibido a título de realização exemplar ou aproximativa, o que é o último avatar do formalismo kantiano. A partir destas duas perspectivas a compreensão da teoria da história é completamente impossibilitada, já que a teoria da história constitui-se, como ciência, ao rejeitar liminarmente aquela alternativa e afirmando que não há que sujeitar a realidade a qualquer método, mas sim subordinar o método à realidade. O problema com o qual Marx se defronta não é o de construir os conceitos operatórios que, mediante um jogo de transformações regidas permitiriam a apreensão de uma objectividade definida nos moldes da realidade natural; problema é o de pôr ao objecto a questão da sua forma de objectividade, de inquirir acerca do processo da sua constituição, e do modo por que chega a apresentar-se à sensibilidade dos agentes históricos sob uma determinada configuração empírica. O que está em causa nos conceitos da teoria da história é o estatuto de objectividade da realidade sócio-histórica e das formas de subjectividade que lhes correspondem, de acordo com os mecanismos de determinação que lhe são próprios : o objecto da teoria da história não é uma história ideologicamente totalizada que se tratasse de reconduzir a um fundamento unitário, material ou espiritual, mas o processo de estruturação que constitui os seres sociais no seu modo específico de objectividade. Se o ser social é uma realidade sensível-suprasensível, unidade contraditória de uma substância e de uma forma, a sua objectividade não pode definir-se independentemente daquela forma: um negro é um negro, mas só em determinadas circunstâncias se define como escravo, uma máquina é uma máquina, mas só em determinadas condições surge como capital, um objecto útil é um objecto útil, mas só em determinadas condições se apresenta como mercadoria, um homem é um homem, mas só em determinadas condições se define como indivíduo, o ouro é o ouro, mas só em determinadas condições aparece como moeda … Em todos os casos, a realidade social assume esta natureza especulativa, esta dupla face de um conteúdo sensível definido por uma forma que não existe fora dele mas que estipula o sentido da sua própria objectividade social e o modo por que se oferece à sensibilidade dos agentes históricos. E é porque a realidade social tem esta natureza de substância formal que as formas através das quais a sua objectividade se define não podem ser encaradas como pressuposições dadas: a Natureza não produz escravos, nem dinheiro, nem indivíduos, nem mercadorias, pelo que as formas que estipulam a objectividade dos seres sociais só podem ser o resultado de um processo de constituição. É na medida em que os conceitos denotam as formas que são expressivas de um conteúdo cujo sentido é posto por elas e não existe, como entidade social, independentemente delas, que Marx recupera no seio de um discurso que é não só diferente como totalmente oposto ao discurso hegeliano, os mecanismos de posição da dialéctica, desenvolvendo a sua exposição como uma génese objectiva de formas que procura reconstituir a racionalidade imanente ao processo social que se trata de teorizar. Foi esta racionalidade imanente ao processo de constituição dos seres sociais, a qual não é exterior às práticas dos agentes históricos mas precisamente só se realiza no processo de reiteração dessas práticas conscientes, que Hegel captou e simultaneamente mistificou e que Marx pôde recuperar, a partir de uma posição de discurso destituída de toda a pretensão fundante, discurso que não se desenrola paralelamente à superfície do curso histórico, antes o atravessa como que perpendicularmente, pondo a nu as suas diversas camadas e os diferentes níveis de objectivação, desde a substância prática funcionalmente idêntica no decurso de todo o processo histórico até as formas mistificadas que se impõem aos olhos de toda a gente com o ar das coisas mais naturais deste mundo.
(*) Este ensaio constituiu a comunicação do autor ao XI Congresso Internacional Hegel, da Internationale Hegel Gesellschaft, realizado em Lisboa de 23 a 27 de agosto de 1976. Foi reunido, com as restantes comunicações, no volume ‘Ideia e matéria’, Livros Horizonte, Lisboa, 1978. ____________ (1) Vid. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, p. 81. (2) Vid. Il Marxismo e Hegel. Ed. Laterza, Bari, 1974. (3) Cf. Fenomenologia do Espírito, I vol., p. 41, trad. Hyppolitte, Ed. Aubier. (4) “Abstrair quer dizer colocar a essência da Natureza fora da Natureza, a essência do homem fora do homem, a essência do pensamento fora do pensamento…”, Cf. LUDWIG FEUERBACH, Teses…vol. III, op. comp. Ed. F. Verlag, 1960, p. 227. (5) J. A. GIANOTTI, Origens da Dialéctica do Trabalho, Ed. Difusão Europeia do Livro, S. Paulo, 1965, p. 180. (6) Carta a Engels de Janeiro de 1858. (7) Carta a Kugelmann de Março de 1868. (8) “O verdadeiro Deus é movimento, processo, mas, ao mesmo tempo, quietude“. Cf. Introdução à Filosofia da História, trad. italiana de A. Plebe, Ed. Laterza, Bari, 1956, p. 63. (9) Loc. cit., p. 56. (10) “Todo o saber, todo o aprender, toda a ciência e a própria acção não tendem senão a tornar manifesto aquilo que é interior ou em si”. Cf. ibidem, p. 58. (11) “O em si quando entra em existência passa, é certo, através de variações, mas mantém-se, todavia, um o mesmo porque é ele que regula todo o processo”. Cf. Ibidem, p. 64-65. (12) Cf. Ibidem, p.100. (13) Este aspecto da crítica marxista de Hegel foi particularmente acentuado pela escola italiana de Della Volpe e parece-me constituir, independentemente da justeza das concepções globais defendidas por esta escola, um adquirido irrefutável na interpretação de Marx. (14) Vid. J. ESTEVES DA SILVA, Para uma Teoria da História.
De Althusser a (15) Cf. O meu ensaio anteriormente referido. (16) Vid. “Marx segundo Marx” in Crítica Marxista nº 2-3, 1972. (17) Cf. MARX-ENGELS, Studienausgabe. II, p. 228-229: “em lugar de se desfazer pela sua oposição mesma, as determinações contraditórias da mercadoria reflectem-se uma à outra. Assim é como se, ao lado dos leões, tigres e lebres e todos os outros animais, existisse também o animal, encarnação individual de todo o reino animal”. (18) “É esta a razão pela qual Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo, se reabsorve e se aprofunda a si mesmo, enquanto o método que consiste em elevar-se do abstracto ao concreto não é, para o pensamento, senão a maneira de o reproduzir sob a forma de um concreto mental”. Cf. MARX, Introdução de 1857. (19) A justeza da definição consiste no seu acordo com as representações existentes; por este método deixa-se de lado aquilo que importa do ponto de vista do conteúdo, a necessidade do objecto em si e para si”. Cf. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, Ed. Gallimard, p. 34.
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