Evolucionismo, estruturalismo e dialéctica

 

 

João Esteves da Silva

João Esteves da Silva (*)

                
        


É a natureza específica do objecto real a conhecer, e não qualquer exigência meramente metodológica, que impõe que se parta do resultado para a compreensão da génese, e não de uma origem empiricamente constatável a partir da qual o processo se desenrolasse linearmente segundo a ordem da sua filiação histórica.

O estudo pretensamente teórico-histórico, que procura reconduzir o objecto de estudo às origens concretas, que confunde uma filiação com uma explicação, e se afadiga na busca infinitamente regressiva dos primeiros começos, não guarda a mínima relação com a teoria da história.

As razões da inoperância deste tipo de abordagem não são, aliás, difíceis de descortinar; se um objecto é histórico, ele tem atrás de si e dentro de si toda a história do universo; mas é justamente por isso que a tentativa de determinar todos os pressupostos e todas as condições da sua origem envolve necessariamente uma regressão infinita, naquele sentido a que Hegel chamava o «mau infinito».

Em que ponto da regressão deve parar-se, a fim de dar início ao processo? Onde devemos fixar o começo? E óbvio que, iniciada uma regressão desta ordem, toda a paragem terá que ser forçosamente arbitrária, e, na ausência de critérios objectivos, serão as inclinações pessoais do investigador a decidir; procurando explicar aquilo que é por algo que justamente não é aquilo que se pretende explicar, a variação desta entidade originária pode ser praticamente infinita.

Sejam, por exemplo, as origens do capitalismo; confesso ter-me faltado a paciência para compulsar todas as obras dedicadas a este momentoso problema; mas se o leitor quiser dedicar-se a este tenebroso trabalho, posso, desde já, afiançar-lhe que encontrará, pelo menos, uma boa dezena de respostas: poderão situar-se as origens do capitalismo no momento da eclosão da revolução industrial, com a invenção da máquina a vapor ou a sua aplicação à indústria, nas leis anti-corporativas da revolução francesa ou nas célebres leis do trigo em Inglaterra, no comércio das cidades italianas da alta Idade Média, no recuado tempo dos fenícios e das suas feitorias mediterrâneas, etc., etc., até àquele momento em que o selvagem real constrói o primeiro instrumento de trabalho, ou o selvagem mítico de Bohm-Baverk inventa o primeiro sistema de canalização de águas.

Por esta via, o objecto real de que se partiu acaba por dissolver-se completamente no decurso da investigação; embora possa não se aperceber disso, quando põe o problema das origens, o investigador dispõe-se a trocar o seu objecto por outro, pelo que não admira que finalmente o reencontre sob tudo e mais alguma coisa; aquilo que parecia novo mostra-se afinal ser antiquíssimo e existir já, sob a forma de prenúncio, anúncio, semente, aproximação, elemento, eu sei lá..., desde os primórdios da história humana.

Esta pseudo-investigação histórica é tudo quanto há de mais alheio ao pensamento de Marx; Marx parte sempre de um presente histórico, de uma totalidade concreta que jamais abandona e mantém sempre presentificada no decurso do processo de investigação; é por isso que, no processo de exposição, «ela não começa de modo algum a existir apenas a partir do momento em que é questão dela enquanto tal»; desde as pri meiras páginas de «O Capital» é da sociedade burguesa desenvolvida de que se trata, é «o todo concreto, vivo e já constituído» que, mesmo nas análises mais abstractas, se encontra sempre presente.

A partir destas considerações, poderemos, porventura, procurar delimitar mais claramente o equívoco com que se debatem as abordagens tanto estruturalistas como evolucionistas, da história, e tentar definir o problema real que por detrás delas se dissimula.

O conhecimento científico de um processo de desenvolvimento não envolve — como já se disse —, uma recondução dos efeitos às causas, dos resultados a uma origem primitiva, ou dos consequentes aos antecedentes cronológicos do processo; se o desenvolvimento constitui um processo de estruturação, o estruturalismo está de algum modo no certo quando postula que, para examinar a história de um objecto, é preciso saber o que o objecto é. A teoria da história não diz outra coisa; a enorme diferença reside apenas no entendimento daquilo que o objecto é; interpretando aquele princípio como uma regra metodológica, o estruturalismo ignora afinal o seu alcance, já que o refere a um problema de método, quando está em causa o estatuto de objectividade de um processo de desenvolvimento. Daí que, ao julgar possível uma definição do objecto, independentemente do processo, acabe por fazer da determinação daquilo que o objecto é, não uma condição da explicação da génese, mas uma maneira de a tornar inexplicável.

Marx afirma igualmente que é o conhecimento do objecto que permite proceder à reconstituição da sua génese, não porque subordine o desenvolvimento a qualquer definição estática do objecto, mas porque concebe precisamente o desenvolvimento como processo de constituição da sua objectividade.

Na medida em que o estruturalismo, ao contrário do que acontecia com os economistas clássicos, se recusa a aceitar a redução de todos os modos de realidade histórica à objectividade do ser natural, e compreende que o estatuto de objectividade de uma substância depende da estrutura em que se insere, ele vai o mais longe que é possível, no interior de uma forma de racionalidade que arranca da separação das formas e dos conteúdos do conhecimento.

O estruturalismo compreende que todo o desenvolvimento se processa no interior de uma estrutura, e que o sentido objectivo dos elementos isolados depende da sua integração num todo que lhes confere o seu específico estatuto de objectividade e lhes define a sua função; o que não compreende é que toda a estrutura é um processo de desenvolvimento, uma totalidade concreta e viva em evolução, o objecto efectivamente real que só existe enquanto reproduz continuamente nos seus resultados as suas próprias condições de existência e os seus pressupostos de carácter natural ou histórico.

O objecto cujo conhecimento constitui uma condição necessária da reconstituição do processo da sua génese, não é um objecto abstracto susceptível de uma definição formal; é, pelo contrário, o supremamente concreto, a totalidade viva que representa o ponto de partida e o ponto de chegada da apropriação cognitiva.

Reconstituir a totalidade concreta por meio do pensamento, apropriá-la cognitivamente, é reconstituir idealmente o processo da sua estruturação objectiva, a sua realização como forma específica de objectividade social.

A determinação daquilo que o objecto é, constitui uma condição do estudo da sua génese, não por virtude de qualquer princípio metodológico, mas porque a génese é a realização do próprio objecto como totalidade concreta real, e o conhecimento tem por condição de possibilidade absoluta a de que o seu objecto exista, isto é, tenha completado o processo da sua. formação.

Seja a totalidade em exame a de um determinado modo de produção ou a totalidade do processo histórico de formação da infra-estrutura, ela representa sempre, não uma variante exemplar de algum tipo de combinatória, mas o específico objecto real, que «subsiste na sua independência, antes como depois», e que a ciência pode reconstituir idealmente, como «síntese de múltiplas determinações», na medida em que os seus conceitos não são simples universais abstractos obtido por comparação exterior, mas a expressão das abstracções reais que o processo de desenvolvimento reproduz, nos seus resultados, como fundamento elementar da sua génese e da sua existência actual.

O objecto histórico é sempre um resultado; não, porém, um resultado estático, passivo, um efeito de causas históricas situadas num momento cronologicamente anterior de onde pudesse ser extraído por filiação linear. Constitui um mérito do estruturalismo haver mostrado a inoperância de um evolucionismo simplista, incapaz de dar conta da forma pela qual a contingência histórica se reproduz como necessidade, no interior de uma totalidade em evolução (1).

Mas o problema não se resolve contrapondo a este evolucionismo uma simples descrição formal das ligações que definem a estrutura do todo, como sistema de dependências internas; por esta via, não podemos deixar de desembocar numa definição da estrutura em termos matemáticos, e o sistema concreto e vivo de que se partiu acaba por dissolver-se com uma eficácia semelhante. Simplesmente, em vez de se dissolver nos seus elementos tornados desconexos, é agora dissolvido, na sua qualidade de sistema, como variação exemplar entre as combinações que podem definir-se abstractamente, no seio de uma combinatória onde se inscrevem todas as transformações que obedeçam a uma estrutura de grupo.

Este método formal poderá ter a vantagem de não desarticular completamente a totalidade, diluindo a especificidade do objecto em questão numa série de factores históricos arbitrários e contingentes; mas a contingência e a arbitrariedade reaparecem, tão pronto se trate da totalidade como tal, a qual resulta, no melhor dos casos, rigorosamente descrita mas tão inexplicável e tão opaca como se oferecia ao nível da representação.

O que se perde, tanto num como no outro caso, é o conhecimento do objecto como tal; pela primeira via, como acontece, por exemplo no funcionalismo de Malinowsky, perdemos por completo a especificidade das formas e limitamo-nos a constatar estupidamente que os homens sempre forma feitos da mesma substância biológica, que sempre tiveram determinadas necessidades, e sempre procuraram satisfazê-las de algum modo; pela segunda via, dissolvemos toda a substância nas formas, e produzimos, quando muito, um novo tipo de objecto matemático, que poderá revelar-se muito fecundo para o progresso das disciplinas hipotético-dedutivas, mas deixará a história mergulhada na sua tradicional obscuridade.

Enquanto concebermos o conhecimento como o abstracto e a representação sensível como o concreto, teremos forçosamente que recusar a própria possibilidade de um conhecimento efectivo de um processo de desenvolvimento real, apodando de metafísica toda a tentativa de superação da chateza do facto empírico.

A ciência teria apenas duas opções: dissolver a plenitude da representação caótica do todo, reduzindo-a à identidade de uma substância abstracta, isolada por comparação e generalização — é o método empirista do qual decorre, como consequência necessária, o evolucionismo historicista; ou construir idealmente, mediante o recurso às formas do intelecto, modelos racionais de natureza formal, de que o «concreto» será exibido a título de realização exemplar ou aproximativa — é o último avatar do racionalismo kantiano.

A partir de semelhantes pressupostos epistemológicos, a compreensão do alcance da teoria científica da história resulta propriamente impossibilitada, já que a teoria da história constitui-se como ciência ao rejeitar liminarmente aquela alternativa e afirmando que não há que subordinar a realidade a qualquer método, mas sim que subordinar o método à realidade.

E esta revolução teórica no modo de conceber a natureza dos conceitos e o seu estatuto de objectividade, que é pensada, as mais das vezes, como a redescoberta ou a reinvenção do método dialéctico.

No entanto, todas as dificuldades de compreensão do que seja a racionalidade dialéctica radicam justamente na tentativa de a caracterizar como um método.

Como já anteriormente afirmei, supor que exista um método do conhecimento que possa definir-se fora do conhecimento efectivamente produzido, equivale a supor que antes ou depois do conhecimento do objecto real existiria já ou ainda outro conhecimento, que seria conhecimento do conhecimento (2).

O que torna completamente estéreis as tentativas de definição de um método de conhecimento que pudesse conceber-se como exterior aos objectos conhecidos, não é a sua vacuidade; elas são, pelo contrário, sobrecarregadas de todo um complexo de pressuposições não explicitadas; o seu defeito não é o de serem vazias, mas precisamente demasiado plenas. Nada querendo prejudicar em relação ao real, prejudicam de facto bastante mais do que gostariam de admitir; com efeito, o que aí se encontra implicado é toda uma concepção estática da realidade, a definição eternitária do ser como aquilo que é dado de uma vez para sempre, a redução de toda a objectividade à consideração de uma substância imutável de natureza material ou espiritual, que, ao limite, constituiria como que o único objecto do conhecimento.

Esta concepção de uma racionalidade epistemológica que contrapõe o infinito dinamismo do espírito à opacidade dos seus objectos, definidos como exterioridade pura, não é uma invenção arbitrária, mas uma ilusão que tem as suas raízes em condições históricas precisas, que uma teoria da produção dos conhecimentos e do saber ideológico deverá esclarecer objectivamente, mostrando designadamente o modo pelo qual ela segrega, a título de subproduto irredutível, um resíduo de irracionalidade que reduz o conhecimento racional à contingência de uma escolha arbitrária.

Este aspecto da questão será ainda ulteriormente abordado; de momento, interessa-nos apenas pôr em evidência que a concepção eternitária da realidade está necessariamente correlacionada com a separação das formas e do conteúdo do conhecimento, bem como mostrar a sua total inaptidão para dar conta de todo e qualquer processo de desenvolvimento.

Colocada perante a tarefa de teorizar um processo de desenvolvimento real, uma concepção da racionalidade que se pense completamente isolada dos seus objectos — a título de qualquer essência ou qualidade definidora da cognição —, não poderá deixar de defrontar-se com a seguinte antinomia: seja um estado «A», no momento «t», e um estado «B», num momento «t+n»; a que título poderá afirmar-se que «A» se transformou em «B»? Se os estados «A» e «B» são considerados como igualmente concretos na sua aparência empírica, e se toda a abstracção se concebe como simples propriedade das formas do intelecto, a explicação da passagem de «A» em «B» estará votada a oscilar permanentemente entre a redução de «B» a «A» — de onde resulta que «B» já se achava pré-formado em «A» e que a evolução é aparente —, e a consideração de «B» como uma emergência pura — o que se traduz na separação radical dos dois estados e na concepção de que a evolução é real mas inexplicável, já que «B» é, então, efectivamente novo, mas a passagem resulta totalmente ininteligível. Ou nada acontece de novo, ou tudo é novo; eis os dois processos simétricos de tornar a realidade histórica completamente incompreensível e de ressuscitar o temor sagrado do cientista «racionalista» perante os inescrutáveis desígnios da Providência. No primeiro caso, a evolução é contínua, mas a sua realidade aparente; no segundo caso, o desenvolvimento é pulverizado numa série de descontinuidades radicais; a mudança, a produção do novo, ou é aparente ou é irracional (3) .

Não é difícil reconhecer aqui — sob esta forma depurada —, a antítese entre o evolucionismo historicista e o estruturalismo contemporâneo; Marx fundou a teoria da história ao reenviar em sentidos opostos estes dois tipos de pseudo-teorização, separando-se definitivamente do modelo de racionalidade em que ambos entroncam a sua própria simetria; o que Marx nos oferece é a possibilidade de teorizar efectivamente um processo de desenvolvimento, como reconstituição do movimento do próprio real concreto, concebido, não como cada um dos estados «A» e «B», estaticamente considerados, — que, assim separados, são justamente o abstracto—, mas o desenvolvimento mesmo como processo de estruturação.

A fim de designar a apropriação cognitiva da totalidade concreta em desenvolvimento, a reconstituição conceptual do todo como «síntese de múltiplas determinações», Marx utiliza por vezes a expressão «método dialéctico». Mas se, como observa o mesmo Marx, no Prefácio à segunda edição alemã de «O Capital», a dialéctica apreende «o movimento mesmo de que toda a forma não é senão uma configuração transitória», e é por isso que ela é «essencialmente crítica e revolucionária», então a dialéctica não é precisamente um método e não existe qualquer exposição concebível da dialéctica, independentemente da exposição do movimento real.

Supor que é possível construir um método dialéctico ou uma lógica dialéctica, que represente a expressão das formas mais gerais do movimento no mundo da matéria, da vida, da história e do pensamento, equivale a regressar à velha separação das formas e dos conteúdos do saber, acreditar que existe um conhecimento antes do conhecimento e que a forma do movimento possa ser conhecida antes que o processo mesmo de que se trata haja sido reconstituído e apropriado por um discurso científico.

Seja como discurso directamente ontológico — Engels e todo o marxismo soviético —, ou como sistema evanescente de uma metalinguagem formal - Althusser —, o materialismo dialéctico é um objecto teórico inapreensível porque de impossível constituição (4).

Não admira, pois, que toda a tentativa de construção deste objecto paradoxal - uma espécie de idealismo materialista —, de natureza evanescente, só possa conduzir à constituição de outra coisa que, essa sim, pode ser facilmente designada e conhecida: uma variante do mais chato materialismo oitocentista ou uma metafísica espinozista, onde o informulável sistema ausente assume, por força de um misterioso isomorfismo com o «devir geral das coisas», as propriedades da substância eternitária que só se manifesta em cada uma das suas diferentes afecções ou modos.

Supor que exista um discurso material ou formal —, que constituiria o conhecimento da dialéctica, sem constituir o conhecimento de nenhum processo real determinado, e que, na sua expressão descarnada, pudesse ser igualmente válido em relação a todos os processos reais, é o protótipo da ilusão metafísica, que separa as formas e os conteúdos do saber e oscila permanentemente entre a substanciação das formas e a idealização dos conteúdos.

Trata-se, no fundo, de pensar o conhecimento, segundo o modelo da consciência de si; assim como toda a consciência do objecto seria simultaneamente consciência intencional do objecto e consciência de si, ou (de) si, assim também todo o conhecimento seria, além do conhecimento do seu objecto, conhecimento de si mesmo; todo o discurso científico possuiria como que duas faces, uma voltada para o real, e outra para si mesmo; a reconstituição cognitiva do objecto seria simultaneamente reconstituição do processo de apropriação desse objecto, e o processo de exposição seria como que o resumo depurado do processo de investigação; toda a ciência seria ciência (de) si.

Esta confusão entre o processo da prática científica, que é um processo real articulado com todos os outros níveis da prática, e o discurso científico, que é o conhecimento do seu objecto e mais nada, só pode conduzir ao duplo e simétrico equívoco de atribuir uma eficácia real às formas do discurso, ou uma natureza ideal ao processo de investigação.

Sob este ponto de vista, a descoberta da dialéctica corresponde à descoberta de que o conhecimento — como processo de investigação —, é um processo real de natureza objectiva, dependente de todos os outros níveis da prática, o qual arranca das representações verbalizadas que constituem, em cada momento da história o adquirido cultural da humanidade, constantemente reproduzido em cada geração humana, e as transforma em conceitos capazes de servir de base à reconstituição ideal da realidade e dos processos da sua transformação.

A afirmação de que o conhecimento é dialéctico não se reveste de qualquer alcance epistemológico, nem representa, por si só, uma teoria da produção dos conhecimentos; afirmar que o conhecimento é dialéctico constitui uma proposição de conteúdo objectivo, e não meramente subjectivo, cujo alcance é o de que o processo do conhecimento é um processo de desenvolvimento real, que possui um estatuto de objectividade que lhe é próprio. Não está aí em causa a caracterização formal do conhecimento, mas a objectividade do processo da sua produção; não se trata de descrever o modo pelo qual os indivíduos pensam nem, muito menos, estipular como devem pensar; a afirmação de que o conhecimento é dialéctico limita-se a designar a prática científica como um processo real susceptível de constituir o objecto de um novo processo de conhecimento, para além de um simples motivo de reflexão.

Tais afirmações referem-se ao processo de investigação, e não ao processo de exposição, o qual, como entidade ideal, não goza de nenhum estatuto de objectividade específica — para além da sua natureza de discurso —; a este nível todos os conceitos são entidades ideais e, quando encarados formalmente, redutíveis às operações que os engendram.

Nesta sua qualidade, toda a teoria científica constitui um objecto ideal, susceptível de ser submetido a uma análise formalizante, a qual representa, em muitos casos, um instrumento indispensável de eliminação de toda a contradição lógica. A ilusão residirá apenas em supor que — como já atrás observei —, este tipo de análise nos ensine alguma coisa acerca do processo da prática científica, ou acrescente seja o que for ao conhecimento do objecto da teoria que se trata de formalizar.

Uma análise formal, que encare os conceitos como entidades ideais articuladas segundo relações de implicação formal, não constitui uma investigação que tenha por objecto o conhecimento, nem como prática nem como discurso. O que essa investigação poderá sim produzir é um aprofundamento das estruturas lógicas operantes no discurso de que se trata, as quais constituem sistemas de formas «quaisquer», cujas respectivas leis de articulação interna são rigorosamente independentes dos objectos a que se aplicam, na medida em que exprimem tão só as possibilidades combinatórias de toda a acção real ou virtual —, sobre um objecto «qualquer». E justamente por esta razão que todos os sistemas formalizados admitem modelos não categóricos, como foi rigorosamente demonstrado por Skolem.

Isto significa que, quando se procede à formalização de uma teoria, esta deixa de ser considerada como conhecimento de um domínio objectivo, para ser reduzida à sua forma lógica, a qual poderá encontrar-se eventualmente reproduzida noutra teoria relativa a um domínio completamente diferente, noutros discursos destituídos de qualquer alcance cognitivo - como o discurso mítico —, ou, inclusivamente, num sistema estruturado de práticas institucionalizadas.

Quando consideramos o produto da prática científica como um discurso formal, abstraímos precisamente da circunstância de ser conhecimento do seu objecto, e conservamos dos conceitos científicos apenas aquilo que têm de comum com qualquer forma de abstracção representativa — o serem formas que exprimem um universal —, desprezando aquilo que os especifica como conceitos — o serem formas dos objectos reais cuja apropriação cognitiva tornam possível.

Porque, se em vez de encararmos o conhecimento como discurso, encararmos o discurso como conhecimento, não encontraremos aí coisa alguma, além da reconstituição ideal do seu objecto.

Poderemos, então, afirmar que este discurso é dialéctico quando o objecto por ele apropriado é um processo de desenvolvimento real (5), ou que não é dialéctico, quando o seu objecto é reconstituído estaticamente como o invariante de um sistema de transformações exteriores (6), ou ainda, quando o seu objecto é este próprio sistema de transformações (7). Em todo o caso o qualificativo de dialéctico só pode referir-se primordialmente ao movimento do objecto da teoria, e apenas por forma derivada ao movimento dos conceitos no discurso.

Propriamente dialéctico é o movimento da coisa mesma, pelo que a descoberta da dialéctica equivale à definição da natureza ideológica do problema epistemológico e à sua liquidação teórica.

Diremos, então, que uma teoria explicativa releva de uma racionalidade dialéctica quando procede à reconstituição ideal de um processo objectivo de estruturação, a partir dos conceitos determinantes que permitem identificar, teoricamente, a contradição real elementar, que não é a causa do desenvolvimento, mas o fundamento genético, constantemente reproduzido no decurso do processo, e que estipula, para além da infinita dispersão das causas e dos efeitos, o sentido objectivo da articulação dos fenómenos contingentes à necessidade de uma organização real.

O que define a racionalidade dialéctica e lhe confere o alcance crítico e revolucionário de que falava Marx, é a não aceitação do objecto como um dado, e a reconstituição do processo da sua formação, não a partir das causas de que seria o efeito passivo, nem a partir dos antecedentes cronológicos que se perdem na noite dos tempos, mas a partir da análise das suas contradições internas onde se situa o fundamento genético elementar cuja forma de reprodução define a forma de objectividade específica do objecto em exame como totalidade concreta em desenvolvimento e transformação.

A compreensão de que todo o desenvolvimento é uma organização e de que toda a organização é um desenvolvimento, de que todo o processo é a estruturação de uma totalidade concreta e viva, que só existe como sistema de interacções reais onde se unifica a dispersão das infinitas séries causais entre elementos atómicos, não é um simples postulado metodológico que possa justificar-se a um nível formal e fora do processo do conhecimento efectivo.

Se nos situássemos a um nível epistemológico, a escolha entre a consideração atomista e o ponto de vista da totalidade, entre a emergência e a construção simultaneamente progressiva e reflexiva, teria todo o ar de uma decisão arbitrária. Mas a opção real não tem lugar entre métodos; a opção que se coloca tem lugar entre o conhecimento efectivo e a possibilidade prática de uma transformação conscientemente projectada, e o simples reconhecimento de que o que é, é como é; então aquelas considerações que, tantas vezes, se apresentam como metodológicas, deixam de ser tais, porque se impõem ao investigador, não como princípios ordenadores do conhecimento, mas como características internas da realidade a conhecer.

O problema que aqui se discute não é, aliás, específico da teoria da história; temos hoje suficientes razões para pensar que, sempre que esteja em causa a apropriação cognitiva de um processo de desenvolvimento, a prática científica se defrontará com uma questão do mesmo tipo; mas, será, em todos os casos, a natureza objectiva do processo considerado que imporá ao investigador a lógica concreta do objecto concreto, sem que a dialéctica possa arvorar-se em sistema supra-científico, capaz de orientar, com idêntica proficiência, o teórico no seu trabalho de investigação, e o prático, na sua acção transformadora.

A unidade que a racionalidade dialéctica introduz no domínio do conhecimento dos processos de desenvolvimento não é a unidade de um método universalmente válido e aplicável independentemente da natureza dos seus objectos, mas a unidade de uma prática científica efectiva e tão real como os objectos de que pretende apropriar-se cognitivamente.

Quando Jean Piaget procede à reconstituição do processo de formação das estruturas lógico-matemáticas elementares no decurso do desenvolvimento psico-genético, a sua teoria explicativa releva de uma racionalidade dialéctica, não porque Piaget haja lançado mão de um método de conhecimento, compendiado por Marx ou por Engels — cuja obra, aliás, ao tempo conhecia mal —, mas porque o objecto real que Piaget procura conhecer, como totalidade em desenvolvimento, lhe impõe a conceptualização deste processo como um processo de estruturação que pode ser reconstituído idealmente, não a partir das suas causas, mas a partir do mecanismo de reprodução, nos resultados do processo, das condições elementares da sua génese, no seio de uma continuidade meramente funcional, cujos invariantes Piaget designa por assimilação e acomodação.

Seria totalmente descabido proceder aqui a um desenvolvimento da teoria de Piaget; limitar-me-ei a reenviar o leitor para o conjunto da sua obra, e muito particularmente para o estudo elaborado em colaboração com o matemático e lógico W. Beth «Epistemologia Matemática e Psicologia», onde as suas teses fundamentais foram expostas de um modo verdadeiramente magistral (8).

Quero apenas chamar a atenção para o facto de que Piaget — tal como Marx —, não arranca de uma origem empírica a partir da qual fosse possível fazer decorrer o processo por um mecanismo de filiação linear; Piaget parte da análise dos estados finais de equilíbrio, cuja estrutura submete a um tratamento formal (9), e é aí que encontra, sob a forma de um equilíbrio móvel, tornado possível pela conquista da reversibilidade operatória — por inversão e reciprocidade —, a contradição real entre os invariantes funcionais, constantemente reproduzidos no processo, através da descontinuidade das estruturas.

Particularmente instrutiva é a convergência, posta em relevo por Piaget, entre o primitivo axiomático e o elementar genético. Piaget mostra, com efeito, que a ordem de construção real das estruturas geométricas, no decurso do desenvolvimento infantil não é conforme à ordem histórica — geometria euclidiana, projectiva e, finalmente, topológica —, mas lembra, pelo contrário, a ordem de construção teórica — intuições topológicas, estruturas projectivas e métrica euclidiana. «A reconstrução teórica fornece um fio precioso para a análise genética». Entre as estruturas topológicas, as estruturas algébricas e as estruturas de ordem que a reconstrução formal da escola de Bourbaky coloca no início do seu processo de construção, e as estruturas elementares que estão na base do desenvolvimento psicológico, verifica-se uma convergência que não pode deixar de ser significativa para quem procura esclarecer as relações entre a ordem lógica e a ordem de sucessão empírica na teoria da história.

Como observa Piaget, «é precisamente porque se deseja integral que esta reconstituição própria da formalização encontra certas ligações elementares e fundamentais que a análise genética revela» (10).

Exactamente como acontece na teoria da história, a teoria de Piaget não releva de um princípio de racionalidade metodológica que subordine um objecto «dado» à estrutura das operações formais que podem definir-se sobre ele; a lógica de Piaget é a lógica concreta de um processo que só existe como tal, enquanto reproduz constantemente, no seio de uma invariância meramente funcional, os pressupostos da sua existência como totalidade.

Para Piaget, como para Marx, determinar o que o objecto é, significa reconstituir o processo da sua formação como totalidade concreta, como sistema de interacções recíprocas cuja consistência, como sistema, assenta na reprodução do fundamento elementar a partir do qual a sua reconstituição teórica se torna possível.

O relativo acabamento do processo de estruturação da totalidade em questão constitui um «prius» indispensável do seu conhecimento e do conhecimento da sua génese. É por isso que a constituição de uma teoria da história não era uma possibilidade inscrita em todos os presentes, e só poderia ter-se verificado quando o processo de formação da infra-estrutura entrou, de facto em vias de completar-se; só então o fundamento elementar reproduzido através de todo o processo, se constituiu efectivamente — na realidade, como no pensamento —, como uma abstracção real que pode ser conceptualmente captada como um universal concreto, capaz de servir de ponto de partida à reconstituição teórica da sua génese.

Se é o resultado que permite compreender a génese, isso não acontece porque o resultado se encontre já contido na origem — como pensava Hegel —, nem porque seja algo de auto-subsistente sem o seu devir — como pensa Althusser e todo o estruturalismo —, mas porque o resultado não é um efeito passivo nem um dado arbitrário, mas uma totalidade que só existe como tal enquanto reproduz na sua estrutura as condições naturais e históricas da sua própria génese como sistema.

É isto que Marx nos diz com a mais meridiana clareza, a propósito da génese do modo de produção capitalista:

 

«A mercadoria, como forma elementar da riqueza burguesa, era o nosso ponto de partida, a condição da génese do capital. Por outro lado, as mercadorias aparecem agora como produtos do capital.
Esta progressão circular da nossa análise corresponde ao desenvolvimento histórico do capital; uma das condições da sua génese, a troca de mercadorias, o comércio, forma-se sobre a base de diversos estádios da produção que só têm em comum o facto de que a produção capitalista não existe ainda senão de forma esporádica. Por outro lado, a troca desenvolvida e a mercadoria, como forma universal do produto, são elas mesmas o resultado do modo de produção capitalista.
Nas sociedades que têm uma produção capitalista desenvolvida, a mercadoria aparece, ao mesmo tempo, como condição elementar permanente do capital, e como resultado imediato do processo de produção capitalista» (11).



É esta reprodução da condição no resultado, do antecedente no consequente, que permite falar rigorosamente num processo de desenvolvimento, sem o reduzir a uma sequência linear de causas e efeitos, ou a uma série arbitrária de estados discretos.

A necessidade de determinar o que o objecto é, a fim de proceder ao exame da sua génese, não é o último avatar de uma lógica aristotélica, que, por qualquer condicionamento de natureza gramatical, exigisse a substantivação do sujeito de toda a proposição de forma apofântica.

É porque o objecto é o resultado de um processo de estruturação — o processo de formação de uma totalidade concreta—, que não é possível trocá-lo por outra coisa qualquer no decurso da investigação, desarticulando a sua unidade complexa em elementos díspares numa busca indefinida das suas origens; só a partir do resultado, como reprodução continuada das suas condições de existência, é que o objecto real pode ser reconstituído, segundo a ordem das suas determinações necessárias, e não segundo a ordem ou sucessão contingente das suas vicissitudes empíricas.

Neste momento da exposição ter-se-á certamente tornado claro qual o alcance do privilégio teórico do modo de produção capitalista; independentemente de qualquer vinculação a uma ideologia historicista, a constituição da teoria da história supõe o conhecimento do funcionamento do modo de produção capitalista, muito simplesmente porque aí se produz e reproduz, sob a forma de uma abstracção efectivamente real, o fundamento genético elementar, a partir do qual se torna possível proceder à reconstituição teórica de todo o processo histórico de formação da infra-estrutura.

A substância que constitui o conteúdo da forma valor da mercadoria, é, do mesmo passo, a substância, funcionalmente idêntica, de todo o processo histórico, que só a partir dela pode ser conceptualizado como desenvolvimento das suas metamorfoses.

Considerada isoladamente — e não como resultado do processo de produção do capital —, a mercadoria é apenas uma condição, entre muitas outras, do surgimento histórico do modo de produção capitalista; é na medida em que a mercadoria passa a constituir o pressuposto constantemente reproduzido pelo funcionamento do sistema, que ela se constitui como a forma celular de toda a riqueza burguesa e pode servir de ponto de partida para a reconstituição categorial do sistema a partir da análise das contradições internas da sua forma.

Era preciso que o processo de produção e reprodução das condições de existência material se houvesse constituído em sistema, para que as formas elementares do processo de trabalho e as suas contradições intrínsecas pudessem ser formulados como conceitos capazes de servir de base à reconstituição do processo de formação da infra-estrutura.

Só no modo de produção capitalista, aqueles elementos simples do processo de trabalho e as relações entre eles — os invariantes a que se refere Balibar, e a partir de cuja apreciação dei início ao presente estudo —, se constituem, em toda a sua simplicidade, como abstracções efectivamente reais e despojadas de toda a contaminação super-estrutural. Como já observei anteriormente — seguindo neste ponto André Glucksmann —, o caso torna-se particularmente nítido no que se refere à relação de propriedade; a distinção entre uma relação de apropriação infra-estrutural, como apropriação do trabalho pelo não trabalhador, e a sua expressão ou consagração ao nível jurídico, é uma distinção que só pode efectuar-se com clareza no interior do modo de produção capitalista; é só aí que o processo de reprodução assegura, por um mecanismo de natureza exclusivamente infra-estrutural, a apropriação do excedente económico pelos detentores dos instrumentos de trabalho. Como, aliás, Balibar assinala expressamente, em todos os anteriores modos de produção, são necessárias razões extra-económicas — jurídicas, ideológicas, religiosas ou políticas —, para garantir a apropriação da substância da mais valia — o excedente económico —, pelos detentores dos meios de produção.

Antes que se pudesse reconstituir a história da infra-estrutura, era, de facto, necessário saber o que ela é; mas, para saber o que ela é, era, antes do mais, necessário que ela fosse. Era necessário que o processo da sua formação entrasse em vias de completar-se, para que as relações simples que definem a sua estrutura elementar pudessem ser isoladas e utilizadas como ponto de partida da reconstituição genética.

Como ainda insistem constantemente, hoje como já nos tempos de Marx, os teóricos académicos, é só no seio do modo de produção capitalista que a infra-estrutura ganha uma consistência e uma objectividade que nunca anteriormente havia possuído. O capitalismo é o único modo de produção susceptível de uma caracterização exaustiva em termos estritamente económicos; se passarmos ao estudo dos modos de produção feudal ou esclavagista, a explicação do funcionamento da sua estrutura interna terá forçosamente que incluir considerações de natureza jurídica, política ou ideológica, sem as quais se tornará impossível dar conta da coesão do sistema e da forma da sua reprodução.

Tudo isto é absolutamente exacto; simplesmente, Marx jamais disse outra coisa; antes de ser uma distinção que se opera mentalmente, e se exprime em conceitos, a distinção entre infra-estrutura e super-estruturas opera-se na própria realidade, e é só no modo de produção capitalista que tal distinção se efectua realmente. Mas, este modo de produção não é uma realidade «sui géneris» que tenha caído do céu aos trambolhões - uma «trouvaille» como diz Balibar —; o modo de produção capitalista é o resultado de um processo histórico, cuja forma de estruturação pode ser reconstituída a partir dele, justamente na medida em que aí se produz, a título de abstracção efectivamente real, a contradição de base que está no fundo de todo o desenvolvimento.

Não se trata de privilegiar o modo de produção capitalista pelo facto de ser presente — como faz Della Volpe —, ou por outra razão mais interesseira ou mais ingénua; trata-se justamente de não o privilegiar.

O supremo absurdo consiste em admitir que aquilo que impropriamente se designa por «interpretação materialista da história», constitua uma «hipótese» válida ou operatória para o estudo do sistema capitalista, onde as super-estruturas não têm, como teria suposto Marx, qualquer autonomia, e podem ser reconduzidas à sua base económica, mas já não seria uma «hipótese» admissível em relação a sistemas anteriores, onde as super-estruturas gozariam de uma autonomia capaz de impedir a sua recondução à infra-estrutura, O materialismo histórico seria uma espécie de anacronismo, um simples produto de uma ilusão retrospectiva.

A teoria da história ensina-nos precisamente o contrário deste conto de fadas. À autonomização da infra-estrutura, que se produz no modo de produção capitalista, corresponde, como não poderia deixar de ser, a autonomização das super-estruturas; estas não são menos autónomas no modo de produção capitalista, mas, pelo contrário, mais autónomas. Com a autonomização do processo produtivo, as super-estruturas adquirem igualmente uma autonomia que nunca anteriormente haviam possuído. E isso que justamente permite a formulação da sua distinção conceptual.

O problema que a teoria da história coloca perante as formas das super-estruturas é precisamente do mesmo tipo do que coloca perante as formas da infra-estrutura: de que é que essas formas são formas? qual é a substância que nelas se plasma? porque razão esse conteúdo toma essas formas? E a sua resposta é igualmente do mesmo tipo: essas formas são formas da mesma substância, e essa substância é a acção prática dos homens no seio do processo de produção e reprodução da sua vida material, e as relações que se estabelecem entre eles tendo a natureza por termo médio.

Só com a autonomização das formas do processo de trabalho, é que as formas da super-estrutura deixam de ser directamente formas do processo de trabalho, e podem, por isso, ser conceptualizadas como aquilo que jamais deixaram de ser a um nível meramente funcional: a consolidação e a consagração do modo de produção e reprodução das condições de existência material e das suas contradições objectivas.

É só quando deixam de ser precisas razões extra-económicas para garantir a reprodução do estado de coisas existente, que essas razões podem ser compreendidas justamente como razões, isto é, como a justificação e a consagração de um conteúdo que não é posto por elas e pode, agora, ser apreendido por outras vias.

Quando estas razões eram efectivamente necessárias, as formas da super-estrutura não podiam deixar de assumir aquele estatuto de objectividade natural que hoje é especifico das forma da infra-estrutura: a ausência de personalidade jurídica do escravo era um atributo naturalmente inscrito no seu corpo, a qualidade de aristocrata pertencia ao dono da terra tão naturalmente como a verdura à relva dos prados ou a brancura à neve dos montes.

Pode ver-se, então, o absurdo que reside na suposição de que o jurídico, o político ou o ideológico gozariam, nos modos de produção anteriores, de uma independência que teriam perdido com a autonomização do processo produtivo. O que a teoria da história nos ensina é que, nos modos de produção anteriores ao capitalista, as formas do processo de trabalho são directamente super-estruturais, e a ilusão que a reconstituição do funcionamento do modo de produção capitalista permite dissipar é justamente a ilusão objectiva que, nos modos anteriores, fazia surgir as super-estruturas como que providas de um estatuto de objectividade natural do mesmo tipo da que posteriormente se fixou nas formas transformadas do valor.

O que a reconstituição teórica do sistema capitalista permite compreender é que os diferentes sistemas sociais que se sucederam no decurso do processo histórico são outras tantas etapas da formação da infra-estrutura económica da sociedade, e que as formas que estipulam o estatuto de objectividade deste processo são, em todos os casos, as formas que estruturam o processo de trabalho, de acordo com as forças produtivas existentes e aumentadas de geração em geração.

Interpretar a teoria da história como um determinismo económico é simplesmente esquecer que o que Marx efectuou em relação ao sistema económico capitalista foi precisamente a desmistificação do fetichismo da economia, mostrando que a objectividade dos seres económicos é uma objectividade constituída, que o valor é o trabalho materializado, que a mais valia é o sobre-trabalho e o capital uma relação entre classes sociais.

A redução das «evidências» da vida quotidiana ao movimento real do sistema, e a explicitação do mecanismo de determinação das práticas pela estrutura interna real, que estipula o sentido objectivo das suas próprias finalidades, é simultaneamente a identificação dos invariantes funcionais de todo o processo histórico, a descoberta de que a substância de toda a vida social é prática e de que as formas de objectividade constituída são, em todos os casos, as formas fetichizadas daquela substância prática.

Quer o sobre-trabalho se apresente sob a forma da mais valia e das suas metamorfoses —juro, renda e lucro —, quer se apresente sob a forma de uma dependência pessoal de natureza jurídico-política, é sempre «na relação entre o trabalhador directo e o possuidor dos meios de produção que reside o fundamento escondido da construção social inteira».

E esta inseparabilidade entre os mecanismos de determinação funcional e estrutural, e a impossibilidade de conceber uma sem a outra, que constitui o cerne da racionalidade dialéctica de que releva a teoria da história.

        
        
        

 

Para uma teoria 1

 

Para uma teoria 2

 


(*)
João Esteves da Silva é autor desconhecido do grande (senão mesmo do mais pequeno) público leitor. Publicou em 1975-6, na efémera editora Diabril, uma obra em dois volumes sob o título ‘Para uma teoria da história – de Althusser a Marx’, da qual colhemos este extracto (é o ponto 10 do seu capítulo III). Escrita em 1968-9, a obra esteve para ser então publicada em França. Gorada essa hipótese, seria publicada em Portugal nos anos “de brasa”, tendo porém passado completamente despercebida no sáfaro meio intelectual português. O autor nasceu em 1936, em Lisboa, cidade onde ainda hoje vive. Licenciou-se em Direito. Aproximou-se do marxismo enquanto estudante, mantendo-se porém sempre afastado de agrupamentos políticos e intelectuais, salvo a convivência que manteve sempre com João Lopes Alves (outro filósofo notável por descobrir). Deu algumas palestras na Sociedade Portuguesa de Filosofia. Tem colaboração sua dispersa por alguns periódicos. Participou em Lisboa, em Agosto de 1976, no XI Congresso da Internationale Hegel-Gesellschaft, com a comunicação ‘Hegel e Marx. A dialéctica e o problema da inversão’ (in ‘Ideia e Matéria’, Livros Horizonte, Lisboa, 1978) Publicou traduções e dois livros recreativos sobre problemas, paradoxos e quebra-cabeças (um deles sobre o cubo de Rubik). É funcionário bancário, hoje aposentado. O seu arco de interesses intelectuais vai da teoria do conhecimento à história, passando pela psicanálise, a lógica e a psicologia infantil. Depois de acompanhar fielmente a cena inteletual francesa durante muitos anos, desiludiu-se com o pós-estruturalismo. Fez então uma desentoxicação wittgensteiniana de que resultou ‘Cinco ensaios sobre Wittgenstein’, Cadernos de Filosofia das Ciências, Lisboa, 2010. Publicou ainda na revista brasileira Crítica Marxista (nº 23, ano de 2006) um importante ensaio sobre ‘A Realidade da Abstracção’. É colaborador habitual na revista eletrónica O Comuneiro, com artigos seus ou traduções (Bernard Stiegler, Jean-Claude Michéa, entre outros autores). Tem outros escritos filosóficos a aguardar oportunidade de publicação. Assim é Portugal, país em que pensadores com a craveira de João Esteves da Silva se mantêm num quase completo anonimato.

______________
NOTAS:

(1) A incapacidade de explicar como o privilégio histórico se mantém no sistema.

(2) Esta dupla formulação destina-se a englobar a dupla ilusão da epistemologia e do meta-sistema.

(3) Em diversos pontos da sua vasta obra, Piaget tem exposto este problema com exemplar clareza.

(4) Não pode estranhar-se, que a ortodoxia soviética, ao fazer do materialismo dialéctico a «ciência proletária universal», tenha assumido a forma deste objecto paradoxal que é uma «ortodoxia sem dogma» (cf. Kostas Papaioannou, «L’ideologie Froide», ed. J. J. Pauvert, Holande, 1967). Como observa Papaioannou, «a originalidade da ontologia marxista em relação àquelas que a precederam é que ela se arrisca a ser inconcebível, porque se tornou informulável». Sob a orientação suprema do «corifeu das ciências e das artes», o dogma marxista, utilizado como arma de perseguição política, sempre pronta a denunciar o mais pequeno desvio, em qualquer direcção — o objectivismo como o subjectivismo, o chauvinismo como o cosmopolitismo, o teoricismo como o practicismo, o revisionismo como o dogmatismo, o burocratismo, como o autonomismo —, acabou por ser reconduzido à pureza de um não ser, a uma nova espécie de teologia negativa da qual só é possível saber-se aquilo que não é, e que, como observa Raymond Aron (Cf. «Le Grand Schisme», Paris, 1948, pág. 97), «é irrefutável, na medida em que é inapreensível».
Pode então surgir a pergunta: considerando que não há mais perfeita equivalência do que a que existe entre o nada e coisa nenhuma, haverá de facto alguma diferença entre o «no man’s land» teórico de Estaline, e o sistema ausente e informulável de Althusser? Entre as leis universais da matéria em movimento — que não são leis de nenhuma ciência constituída —, e as leis sincrónicas de articulação dos signiflcantes num sistema que não pode constituir-se como tal, poderá descortinar-se alguma diferença essencial?
Deixemos ao leitor o encargo de reflectir sobre se toda a filosofia de pretensões legiferantes, toda a teoria de pretensões fundantes, não estará submetida a este constrangimento da informulabilidade; se a convicção de deter toda a verdade numa fórmula sintética, não implica o esvaziamento de todo o conteúdo desta fórmula, e se toda a teoria que se funda a si mesma, como o educador que se educa a si mesmo, não encontra o seu melhor símbolo na simpática figura do Barão de Munchaussen que julgava poder elevar-se do solo puxando-se os seus próprios cabelos. Acrescentarei apenas que não me recordo se, na fábula, o Barão desistiu ou acabou por ficar careca; sei é que, na história real do nosso século, Estaline e Althusser preferiram a calvície.

(5) Neste caso, o discurso em questão não é rigorosamente formalizável.

(6) É o caso do discurso das ciências físicas no estado actual.

(7) É o caso do discurso das ciências hipotético-dedutivas.

(8) Cf. «Études de Epystemologie Genetique», PUF, Paris, 1961.

(9) Cf. «Traité de Logique», passim.

(10) Cf. ob. cit., pág. 273.

(11) Cf. os trabalhos preparatórios de ‘O Capital’ recentemente publicados em França sob o título ‘Resultados do Processo Imediato de Produção’, em «Economie et Societés», série «Études de Marxologie», nº 6, pág. 167.