A propósito de Althusser
-a ambiguidade da Teoria

 

João Esteves da Silva

     

Em lançamento da Editorial Estampa foi muito recentemente publicada entre nós a primeira tradução portuguesa de um texto de Louis Althusser; trata-se da comunicação subordinada ao título "Lenine e a Filosofia", apresentada perante a Société Française de Philosophie há já perto de dois anos e meio, mais precisamente, em 24 de Fevereiro de 1968.

É este aliás o último texto de alguma relevância assinado por Althusser. Esquivar-me-ei à tentação propriamente althusseriana de começar por interpretar este silêncio como significativo; embora muito provavelmente o seja, julgo, entretanto, mais necessárias algumas considerações acerca daquilo que, independentemente do seu posterior silêncio, Althusser aí nos diz.

E isto porquê? Em primeiro lugar porque não é difícil verificar que a obra de Althusser tem vindo a exercer no nosso meio um poder de atracção que se revela, difusa ou claramente, em tudo, ou quase tudo, quanto se escreve, desde há cerca de dois anos a esta parte, sob a pena dos nossos intelectuais de vanguarda. O fenómeno não é aliás de molde a provocar estranheza: após várias décadas de sentimentalismo piegas, desvelado amor pelos pobrezinhos, e infinita reverência pela condição do trabalhador braçal, não admira que a obra de Althusser tenha, em boa hora, propiciado o apaziguamento do tenebroso sentimento de culpa que a circunstância de não sermos todos proletários semeava entre boa parte da nossa intelectualidade, fazendo ressurgir, de um momento para o outro, uma verdadeira multidão de vocações teóricas.

Esta descoberta de um vazio teórico seria eminentemente salutar, não fora justamente a ambiguidade que Althusser introduz no domínio do que designa por Teoria.

A fim de tentar limitar os equívocos a que não deixarão de dar lugar as considerações que pretendo expender, julgo dever afirmar liminarmente que se me afigura incontestável representa a obra de Althusser uma das mais importante contribuições que, desde há longos anos, têm sido produzidas no seio daquilo que, mais descritiva que rigorosamente, se designa pelo pensamento marxista.

Ao mostrar que, rompendo com problemática ideológica dos seus tempos de juventude, centrada fundamentalmente no prolongamento do antropologismo feurbachiano, Marx fundou uma nova ciência, Louis Althusser constitui um adquirido teórico para aquém do qual se torna impossível regressar sem que de novo voltemos a enredar-nos no círculo fechado das mistificações ideológicas. Delimitando rigorosamente um conjunto de conceitos cuja articulação coloca as bases de uma teorização científica do mundo sócio-histórico, Althusser abre um campo de investigação propriamente infindável, fornecendo às assim chamadas ciências humanas o quadro teórico no interior do qual se torna possível definir o estatuto de objectividade dos fenómenos e levar a cabo um autêntico esforço de conceptualização científica; os conceitos de modos de produção, níveis ou instâncias da formação económico-social, a distinção entre estruturas e práticas, a definição do lugar da ciência e da ideologia, etc., constituem, de facto, os instrumentos teóricos imprescindíveis para a produção de um conhecimento, e não um simples reconhecimento, da vida social. O lugar teórico em que estes conceitos se articulam é o de uma teoria da história, para cuja construção Marx carreou os primeiros fundamentos e que Althusser veio desenterrar da camada ideológica sob a qual se tem encontrado persistentemente reinscrita.

A partir deste esforço que representa, como atrás afirmei, o verdadeiro adquirido teórico da obra de Althusser, a obra de Marx pode finalmente ser encarada como algo a partir do qual se torna possível levar a efeito um autêntico trabalho de investigação, e não como um "cânon" que tivesse por função dispensar-nos do esforço de pensar, ou como uma ideologia, óptima par alimentar conversas de café ou de salão, ou para fornecer temas poéticos ou cinematográficos, o que pode ser mais "interessante", mas igualmente inoperante no que se refere ao conhecimento efectivo.

Há, no entanto, uma ambiguidade que, desde os seus primeiros escritos, atravessa toda a obra de Althusser e que a ser mantida, ou dissipada no sentido de uma das suas vertentes, se arrisca a inutilizar a contribuição efectiva por ele fornecida à construção da teoria da história, além de produzir, o que é, porventura, ainda mais importante, os efeitos políticos mais aberrantes.

Concebendo a ruptura da ciência produzida por Marx em relação à problemática de que emerge, como um simples "corte epistemológico", no sentido que Bachelard emprestou a este conceito, Althusser é conduzido a encarar a teoria da história como uma ciência formal, cujos conceitos, objectos abstracto-formais, na expressão introduzida pelo seu discípulo Poulanzas, gozariam de um estatuto meramente ideal, à imagem dos termos de uma construção axiomática. Por esta via, Althusser que, num primeiro tempo, havia liquidado a questão gnoseológica clássica, assinalando com o maior rigor, a natureza ideológica da problemática em que se insere, vê-se forçado a reintroduzir uma nova variante de pseudo solução epistemológica, duplicando a teoria da história, o materialismo histórico, por uma teoria "sui generis" que, após algumas hesitações, aceita designar por filosófica, o materialismo dialéctico, à qual caberia nada menos do que garantir a cientificidade da primeira.

Daqui resulta uma ambiguidade constitutiva do pensamento althusseriano que, tanto se coloca no domínio do conhecimento efectivo, como logo exorbita deste domínio, suspendendo a ciência a um sistema filosófico de cariz metonímico (1), o qual na sua rigorosa articulação sincrónica (ausente), ao mesmo tempo que garantiria, por um lado, a discursividade diacrónica (presente) do discurso científico, permitiria, por outro lado, a intervenção do filósofo marxista em todos os domínios da produção social desde a política à estética, armando-o do poder soberano de denunciar a ideologia onde quer que ela se infiltre, isto é, em toda a parte.

Como por esta referência, necessariamente esquemática, se poderá, no entanto, entender, bastará inclinar um pouco aquela ambiguidade sobre a vertente do Sistema. para que o filósofo marxista nos surja como um verdadeiro Santo Antoninho intelectual, dispondo de uma ubiquidade espiritual que lhe permite, com um mínimo de esforço, o que não deixa de ser aliciante intervir soberanamente em todos os domínios da vida social, a fim de denunciar a ideologia e apontar aos inocentes e aos ignorantes a pureza da linha justa rigorosamente científica.

Ora, eu não teria decidido cometer estas linhas, não fora haver-se reforçado em mim a convicção, cada vez mais acentuada, de que a atracção que Althusser tem vindo a exercer entre nós se deve, menos à sua genuína contribuição para um processo de investigação efectivo, do que à sua ambição, propriamente metafísica, de duplicar a ciência por uma filosofia «sui generis» que garante ao teórico o dom supremo de se definir por uma ausência e de, assim, não estando em parte alguma, poder intrometer-se em toda a parte.

Esta desconfiança que progressivamente se elabora quando se começam a ter afirmações como "O socialismo é uma ciência» (ponto), quando são já fartas as referências ao «modo de produção estético», e se teme ler um dia destes a definição do "modo de produção culinário"... tal desconfiança surge reforçada pelo facto de, entre os diferentes escritos do autor se haver seleccionado para publicação em versão portuguesa, aquele texto em que Althusser consegue levar a efeito como que a sua própria caricatura.

A sanção fornecida por este texto desastroso ameaça vir a funcionar como cobertura capaz de permitir às sumidades locais voltar a debitar, e agora sobre o tom inteligente, aquelas velhas banalidades que já só se atreviam a trocar entre si, com receio de que terceiros, desprevenidos, se lhes rissem pura e simplesmente na cara.

Esta a razão pela qual me parecem necessárias algumas considerações sobre o alcance desta obra em que Althusser se dispõe a abordar de frente a questão do estatuto da filosofia marxista que, nos seus anteriores escritos, era apenas tratada obliquamente.

Ora, o abandono da perspectiva oblíqua, única que poderia mostrar-se compatível com a aparência de apreensão de um objecto evanescente como o materialismo dialéctico e a adopção de uma abordagem frontal teria forçosamente que conduzir a consequências perigosas.

Com efeito, como encarar de frente um sistema que só se define pela sua ausência e que só se apresenta nos seus efeitos? Será possível definir o estatuto de um sistema ausente, sem repetir as estafadas banalidades que passaram por constituir o conteúdo do materialismo dialéctico?

Vejamos como Althusser desfaz magistralmente esta meada.

O fenómeno do carácter inapreensível do conteúdo da ortodoxia "marxista" que constitui o dogma director dos partidos comunistas de obediência estalineana, tem sido, em diversas ocasiões, assinalado. Para além da chateza de algumas afirmações de uma banalidade desarmante relativas às leis mais gerais do movimento da matéria e à definição do conhecimento como reflexo, o assim chamado materialismo dialéctico caracteriza-se, no seu uso prático no seio das lutas ideológicas e políticas, pela circunstância de se apresentar como um dogma cujo conteúdo é inapreensível: denunciando inapelavelmente desvios da sua evanescente pureza em todas as direcções, o esquerdismo, como o revisionismo, o teoricismo, como o practicismo, o cepticismo, como o dogmatismo, o anarquismo, como o burocratismo e outros pares de "ismos" reenviados em direcções opostas, o dogma marxista acabou por não ser mais do que o lugar geométrico, sem conteúdo nem dimensões, equidistante de todos os desvios ideológicos da linha justa.

Esta inapreensibilidade da linha justa gozava de uma segura vantagem, qual fosse a da sua irrefutabilidade, mas enfermava simultaneamente do pesado inconveniente da indemonstrabilidade, o que sendo embora o reverso daquela mesma irrefutabilidade, se arriscava a diminuir perigosamente o seu poder de convicção.

Aguardava-se a todo o transe o surgimento do espírito subtil capaz de converter esta ausência de teoria na teoria de uma ausência.

Coube a Althusser esta suprema honra e o resultado de tal cometimento foi esse desastre intitulado "Lenine e a Filosofia", editado agora entre nós para edificação de teóricos sedentos de proceder à teorização da sua própria vacuidade mental.

O empreendimento de Althusser é pouco menos que assombroso: trata-se, nem mais nem menos, do que assumir até ao fim a perfeita vacuidade do dogma. Arrancando da exaltação da ciência, a ortodoxia é desapiedadamente esvaziada de todo e qualquer último resquício de conteúdo: Althusser pode inclusivamente dar-se ao luxo de se mostrar altamente céptico em relação a todos os pratos fortes do Diamat: leis universais da dialéctica, a matéria em movimento, o célebre reflexo de triste memória, tudo isso é generosamente abandonado. Qualquer espírito menos dado a subtilezas intelectuais poderia ser conduzido a supor que, apontada a impossibilidade de construir uma lógica dialéctica, demonstrada a inanidade das leis mais gerais do movimento do mundo da natureza da vida e do espírito mostrando o alcance meramente polémico da teoria do reflexo, etc., o materialismo dialéctico resultaria irremediavelmente destruído, ou, como agora é de melhor tom, desconstruído (2). Nada disso: ei-lo que renasce mais vigoroso do que nunca, completamente destituído de todo e qualquer conteúdo, mas conservando o altaneiro esplendor da sua forma pura.

Perguntará, porventura, o leitor: mas, como é isso possível? Que filosofia é essa onde não se afirma nada?

Simples! responde Althusser; essa forma pura é precisamente a filosofia, porque rigorosamente a definição científica da filosofia é a de um lugar onde não se passa nada.

"A Filosofia pode ler-se, é este lugar teórico estranho onde não se passa propriamente nada, nada a não ser a repetição do nada. Dizer que não se passa nada em filosofia quer dizer que a filosofia não conduz a parte alguma, por isso que não vai a parte alguma: as vias que ela abre são, como dizia Dietzgen antes de Heidegger, Holzwege, caminhos que não levam a parte alguma".

Condenação inapelável! Julgará o leitor incauto e pouco subtil. Nada disso: porque, prossegue Althusser: "a filosofia não será suprimida, a filosofia continuará a ser a filosofia". Quer dizer: a ciência não condena nem salva, a ciência limita-se a conhecer: que o objecto do seu conhecimento seja algo que se chame a filosofia ou a composição química do anidrido carbónico é perfeitamente irrelevante pelo que respeita ao rigor dos princípios: a ciência (una e indivisível na pureza do seu discurso formalizado). A afirmação de que na filosofia não se passa nada, por isso que a filosofia não tem história. já que tão pouco tem objecto, não é uma afirmação filosófica, mas uma afirmação rigorosamente científica.

O filósofo marxista é uma espécie particular de filósofo que não produz nenhuma afirmação que não seja rigorosamente científica: por isso ele não representa uma nova filosofia, mas uma nova prática da filosofia.

Armado deste conhecimento não filosófico do que a filosofia é (um jogo para nada), o filósofo marxista pratica-a segundo a sua essência. Sabendo que a filosofia não é a ciência, e que as categorias filosóficas não se confundem com os conceitos científicos, o teórico marxista eximir-se-á de fazer qualquer uso pseudo-conceptual das categorias, coibindo-se de afirmar filosoficamente seja o que for, sabendo que afirmações com conteúdo só podem ter lugar na ciência, o teórico marxista poderá finalmente instaurar uma nova prática da filosofia adequada ao conhecimento que dela tem. A sua função será a de assumir até às últimas consequências o nada que constitui a sua essência e dedicar-se ao mister que bem poderia chamar-se policial, de traçar "linhas de demarcação", intervindo politicamente no domínio da ciência e cientificamente no domínio da política, a fim de aí demarcar soberanamente os limites do científico e do ideológico.

Começa-se por demonstrar, o que não é difícil, porque correcto, que a pretensão universalista da filosofia corresponde à denegação de uma efectiva tomada de partido nas lutas do seu tempo: que todos os filósofos intervieram de um ou de outro modo, nos domínios da ciência e da política e que aí tomaram posição, ainda quando afirmassem fazê-lo em nome dos princípios universais da razão humana ou divina.

"Toda a filosofia, diz Althusser, consiste no traçado de uma linha de demarcação maior, pela qual repudia as noções ideológicas das filosofias que representam a tendência oposta à sua".

Num segundo tempo, assume-se, e agora sem denegação, o papel essencialmente interventor e pretensamente fundante da filosofia, traçando, aqui e ali as mesmas linhas de demarcação.

Por esta via, a filosofia, que se havia inclinado perante a ciência até ao ponto de abdicar de produzir qualquer afirmação com um mínimo de conteúdo positivo, aparece invocada como o supremo juiz da cientificidade. É ela que, sempre em nome da ciência, vem distinguir o que é científico e o que é ideológico, controlando toda a forma de actividade e atribuindo a cada nível da realidade social o seu coeficiente de ideologia.

Esta pretensão legiferante da filosofia não é nova. Como observa o próprio Althusser, "já Platão havia falado da luta dos Amigos das Formas e dos Amigos da Terra, e declarado que o verdadeiro filósofo deve saber dividir, recortar, traçar linhas de separação" (3). A grande originalidade de Althusser, consiste em se apresentar como campeão de uma forma de Saber Absoluto que discretamente se nega todo o conteúdo próprio, para se apresentar como modesto representante da Ciência.

Através deste artifício de malabar, esta filosofia que não é nada senão "o vazio de uma distância assumida", surge-nos como a terceira e suprema instância encarregada de representar a política junto das ciências e as ciências junto da política: e o teórico marxista resulta pura e simplesmente investido de um absoluto poder de intervenção que não carece demonstrar a sua legitimidade na medida em que se limita a traçar linhas de demarcação e uma linha de demarcação não é nada.

Assim como o poder totalitário não carece legitimar-se porque é, por definição, o poder do povo inteiro, assim também este novo dogmatismo de uma ausência não requer qualquer espécie de título, porque, por definição, não é nada senão o saber da ciência.

É de facto assombrosa a subtileza da solução. Com a construção deste novo objecto ideal que é uma filosofia que sabe que não é nada e que nessa qualidade condena toda a filosofia que pretenda ser alguma coisa, deste novo saber absoluto que descarrega sobre a ciência a tarefa de definir todos os objectivos tácticos e estratégicos da acção humana, arvorando-se um discreto poder de supervisão sobre as múltiplas ameaças de uma ideologia tentacular. Althusser consegue emprestar um certo atractivo intelectual à ausência de pensamento de um aparelho burocrático para o qual o socialismo já deixou há muito de ser um movimento histórico para se reduzir ao simples conhecimento do capitalismo e sua consequente racionalização.

Que Althusser esteja em vias de assumir, após a expulsão de Garaudy, o papel de eminência filosófica no seio do P.C.F. é algo que desde a publicação do "Lenine e a Filosofia" se poderia esperar a todo o momento.

O que pode entretanto causar estranheza é que o mesmo pensador rigoroso que produziu os estudos sobre o jovem Marx e outros textos igualmente fecundos relativamente às possibilidades de um conhecimento efectivo, tenha cometido aquela triste comunicação cujo carácter apologético ressalta de todas as entrelinhas.

Chega a ser inclusivamente pouco crível que Althusser se não aperceba da natureza mistificadora do seu texto. Será esse um dos motivos do seu silêncio posterior: É muito possível; e com tanto mais razão quanto é certo que, por outro lado, o modo pelo qual Althusser concebia nos seus escritos anteriores, o estatuto da ciência fundada por Marx o arrastava já por força da sua lógica própria para as espantosas posições que veio a assumir explicitamente no seu último texto.

Althusser encontra-se hoje no ponto em que ou assume até às últimas consequências o seu papel mistificador, demitindo-se de todo o esforço original e validando retrospectivamente as críticas superficiais que lhe dirigiram um Lefèbvre ou um Goldmann, ou deverá necessariamente fazer marcha atrás e repensar o estatuto por si atribuído à teoria da história, libertando-a do constrangimento de uma epistemologia aberrante que, arrancando da intransponível distinção entre o objecto real e o objecto do conhecimento, conduz directamente à negação de toda a relevância ontológica dos conceitos e à consideração de toda a ciência como ciência formal, encerrada no domínio dos seus objectos abstrato-formais e cujo misterioso isomorfismo com os objectos reais teria que ser garantido por uma instância exterior.

Mas, independentemente de qual venha a ser o itinerário pessoal de Althusser, o certo é que esse é o único caminho que se abre a quem queira continuar a sua obra na sua parte efectivamente positiva e fecunda, e aceitar as penas do trabalho científico que renuncia às facilidades de um saber evanescente e de aplicação universal.

Se quisermos efectivamente continuar a obra de Althusser haverá que libertá-la da sua ambiguidade constitutiva, mas no sentido exactamente inverso ao daquele que conduz directamente às facilidades de uma concepção terrorista da teoria.

Para tanto, haverá que mostrar que o objecto da teoria da história não se reduz à construção do conceito de história e que aquilo de que aí se trata é do processo de formação do seu próprio objecto real; que os conceitos não têm a simples consistência diferencial dos termos de um discurso formal, mas exprimem, como dizia Marx, condições de existência histórica; que quando a ciência transforma intuições e representações em conceitos, não se afasta, antes se aproxima da realidade; que os objectos da ciência não são menos reais do que os objectos da ideologia, mas, pelo contrário, mais reais; e que a ordem de ligação dos conceitos no discurso não reenvia à sua articulação sincrónica num sistema categoria projectado sub-repticiamente na compacticidade do Ser, mas à ordem de determinação interna do sistema histórico real que constitui o processo de completamento da formação económico-social e à transformação das diversas histórias numa história universal.

Então se compreenderá que o marxismo não é um anti-humanismo nem um anti-historicismo, como tão pouco é um humanismo ou um historicismo, mas a disciplina que permite a reconstituição cognitiva da realidade que se exprime em todos esses ismos, na sua qualidade de formações ideológicas, expressão que não significa que todos eles se equivalham, mas sim que nenhum deles dispõe de qualquer relevância cognitiva.

Muito especialmente haverá que mostrar que o conhecimento não tem por missão constituir o fundamento de todos os projectos humanos e que a ilusão que é posta em causa pela constituição da teoria da história justamente a pretensão que define o projecto filosófico clássico de fundar no conhecimento daquilo que é a validade de todos os objectivos da acção humana.

É certo que a teoria da história, na sua qualidade de disciplina científica, poderá dar conta da génese do projecto de uma transformação revolucionária da sociedade capaz de submeter ao domínio consciente dos indivíduos associados as forças produtivas objectivadas, fazendo da comunidade real uma rede de relações de indivíduos como indivíduos sem máscaras.

Mas a transformação histórica de que Marx pensou a possibilidade não constitui um resultado da teoria, nem tão pouco um valor ideal que cumpra à teoria justificar racionalmente. Muito pelo contrário é a teoria científica que pressupõe, como sua condição absoluta de possibilidade, o surgimento objectivamente condicionado de uma forma de subjectividade histórica capaz de projectar uma nova forma de sociedade e conceber o processo histórico anterior como um todo, a partir do ponto de vista da humanidade socializada.

A redescoberta da cientificidade da teoria da história não constitui a solução "passe partout" que o teórico possa extrair do bolso do colete para ensinar às massas estupidificadas os princípios do «socialismo científico».

Pensando o seu próprio discurso na dependência do processo histórico real, a teoria da história sabe que a ciência não possui qualquer privilégio supra-histórico e que o nascimento de um novo discurso científico é um produto histórico, ao mesmo título que a invenção de um novo instrumento técnico, de uma obra de arte ou uma nova forma de comunidade real.

O empolamento da teoria que lhe atribui um carácter legislativo e lhe confere a função de definir toda a estratégia e toda a táctica, não pode deixar de traduzir-se, na prática, numa concepção da revolução que a reduz a um evolucionismo determinista, ilusão típica da social-democracia, ou, simetricamente, à técnica do golpe de mão conduzido por um punhado de peritos, especialistas da ciência do socialismo.

Se, como muito bem pretende Althusser, há que liquidar a pretensa fundamentação do socialismo na recuperação de uma essência humana alienada e redimida no decurso do processo histórico, há também que compreender que o apelo à teoria da história não pode servir de caução para que nos sejam servidas, sob o rótulo prestigioso da ciência, e numa embalagem "dernier cri", as estafadas banalidades que constituem a herança de várias décadas de esclerose do pensamento marxista.

Reconduzindo a teoria às condições do seu exercício efectivo e mostrando que o conhecimento do real só existe no interior do processo da sua própria constituição, o que a teoria da história nos ensina é que só há conhecimento daquilo que é ou vem a ser, e que o real há-de completar o processo da sua formação efectiva antes que possa ser cognitivamente reconstituído por qualquer discurso científico. Há que deixar o futuro aos profetas, aos astrólogos e a nós também, como é evidente, embora sem a caução de um conhecimento científico, porque o futuro não é da ordem do conhecimento, mas da ordem da acção e da esperança.

Não pode haver ciência do socialismo enquanto o socialismo não existir: e porque não me consta que o socialismo exista já em algum lado, a pretensão de uma teoria científica do socialismo, que é como quem diz da revolução, só pode querer significar que a revolução está já pronta e acabada, ou no Estado do Grande Timoneiro, ou na cabeça privilegiada dos teóricos e que tudo o que resta fazer é levar até às massas esse modelo já completo, na ponta dos tanques ou na ponta das canetas, consoante os meios de que, num ou noutro caso, se dispõe.

 

 

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NOTAS:

(1) Para os leitores menos versados nas subtilezas do calão actualmente em curso, devo esclarecer que este palavrão significa que o tal sistema filosófico só será definível pelos seus efeitos no discurso da ciência, pois só se encontra presente nesse discurso por efeito da sua própria ausência. Para uso dos lógicos pode acrescentar-se que, por este meio, Althusser pretende pura e simplesmente contornar o célebre paradoxo da auto-refexividade dos sistemas formais.

(2) Neste ponto, atrevo-me a solicitar a benevolência dos críticos no sentido de que me poupem a detalhada explicação da diferença entre destruir e desconstruir, o trabalho produtor, a produção do sentido, etc. e tal qual.

(3) Sobre o alcance da divisão platónica vide as belas análises de Gilles Deleuze in "Logique du Sens", ed. Minuit, e "Différence et Répetiton", ed. PUF.