O Corporativismo

 

 

Cansado Gonçalves

Firminiano Cansado Gonçalves (*)

 

 

 

É o eixo do sistema. É a sua filosofia e a sua orgânica. É a sua economia. É a sua moral. Mas o que é o corporativismo actual, se ele já era absoluto e negativista no século XVII, tendo-lhe dado o Marquês de Pombal o primeiro golpe que o levou à morte quando da revolução liberal de 1821? O Salazar nunca o disse claramente, o seu programa político nunca existiu. Por isso temos que o procurar noutro ponto, o que não é difícil.

 

Apesar de a juventude começar logo na 1.ª classe primária a ser envenenada politicamente através da Mocidade Portuguesa, simbiose da Juventude Hitleriana e dos Balilas fascistas, quando chega ao 6.º ano dos liceus, portanto quando se começa a preparar para entrar na Universidade, tem durante dois anos uma cadeira de educação fascista, que é obrigatória para todos os estudantes, seja qual for o curso a que se destinem, e que se chama Organização Política e Administrativa da Nação.

 

É seu autor o professor Adelino Costa, e diz textualmente:

 

«Dentre os antecedentes da nossa actual organização corporativa, destacam-se:

 

a) O Integralismo Lusitano (movimento tradicionalista monárquico, que, dizendo-se na linha do absolutismo miguelista, é uma cópia da Action Française de Charles Maurras). Do seu programa fazia parte a formação dum estado orgânico, isto é, um estado em que as corporações económicas, os concelhos, as províncias, as Universidades, a Igreja, etc., fossem os verdadeiros representantes dos interesses parciais da Nação. Foi certamente ao Integralismo Lusitano que se foi buscar a ideia do corporativismo integral, isto é, do corporativismo que abraça todas as manifestações da actividade humana, as morais, como as culturais e económicas;

 

b) A corrente social-católica, representada em Portugal pelos círculos dos Operários Católicos e o Centro Académico de Democracia Cristã, de Coimbra. (Foram seus fundadores o Salazar e o então seu colega Manuel Gonçalves Cerejeira, actual Cardeal-Patriarca de Lisboa.) Foram as doutrinas das célebres encíclicas Rerum e Quadragesimo Anno. É esse espírito cristão que o Estado Novo procura introduzir na orgânica corporativa, sem o que ela não dará frutos desejados. (Deve ter sido por isso que o Papa Leão XII afirmou, e o Diário da Manhã, órgão oficial do fascismo português, publicou em grandes caracteres: O SENHOR DEU À NAÇÃO PORTUGUESA UM CHEFE DO GOVERNO QUE TEM SABIDO CONQUISTAR NÃO SÓ O AMOR DO SEU POVO, ESPECIALMENTE DAS CLASSES MAIS POBRES, MAS TAMBÉM O RESPEITO E ESTIMA DO MUNDO.);

 

c) O fascismo influiu e orientou em parte a nossa actual organização política, económica e social. Sem deixar de ter uma feição verdadeiramente portuguesa, a nossa nova organização corporativa reflecte a influência da escola italiana, na Constituição, e muito especialmente no Estatuto do Trabalho Nacional, que corresponde à Carta del Lavoro Italiana.»

 

Isto é a cópia textual do livro obrigatoriamente adoptado em todos os liceus portugueses, com exclusão dos parêntesis, que são esclarecimentos nossos.

 

Aqui está pois a originalidade do fascismo salazarista: o absolutismo dos caceteiros miguelistas, acrescentado ao cozinhado do fascismo italiano com o catolicismo chamado social.

 

Para os fascistas portugueses a grande originalidade do seu sistema e aquilo de que mais se orgulham é ser o único no mundo que pôs em acção, que realizou, a doutrina das encíclicas papais. No passado a grande experiência política da Companhia de Jesus foi a criação do Estado do Paraguai. No presente, a grande experiência política da Igreja foi o estado salazarista, tendo como «eminência cinzenta» o Cardeal Cerejeira. Vejamos pois como tem actuado essa experiência no campo económico.

 

Depois de uma política fiscal, em que as contribuições chegaram a uma altura nunca alcançada em Portugal, criou o corporativismo para estimular a produção, produção para exportar, receber cambiais, vender tudo, vender até a honra do País, roubar, roubar por todos os processos (a técnica do Duarte Pacheco tornou-se clássica). O que é preciso é dinheiro, muito dinheiro para o Estado, para que os altos funcionários tenham que roubar e para gastar em obras demagógicas para a sua propaganda, para vestir a sua vaidade.

 

A indústria nacional, a agricultura, as colónias, o comércio, têm sido uma vaca que o Salazar não pára de mungir. Os úberes já não pingam leite, mas ele continua a puxar por eles. Depois do leite começaram a deitar sangue. Mas não pára. O pobre animal já não tem carne, caído por terra, agonizante. Mas ele continua a sugá-lo. Enquanto houver uma pinga de sangue não parará. O que é preciso é dinheiro. Tudo se vende, tudo dá rendimento. E quando as fontes de produção começaram a secar - elas nunca foram fortes - abriram-se novas: a miséria. Portugal é um país doente, as doenças abundam entre nós? Que os hospitais sejam uma fonte de rendimento. Até a prostituição dá rendimentos para o Estado. E quanto mais doentes e quanto mais prostitutas, mais o Estado ganha. Por isso se matriculam como prostitutas até crianças de onze anos. A fonte alarga o caudal, o Estado continua a enriquecer.

 

Salazar, o catedrático de Economia, combateu a economia liberal e dispôs-se a aniquilá-la. Com uma técnica nova, criada pelo seu potentíssimo cérebro? A potência do seu cérebro, coitado, nunca pôde ir além de cópias, de imitações. A sua propaganda afirma aos quatro ventos do mundo, em artigos e relatórios publicados especialmente em jornais e revistas católicas, que o seu corporativismo é a realização da encíclica Rerum Novarum. Se é assim (e não somos nós que o afirmamos, mas eles, os católicos responsáveis), como é que esses senhores ainda têm coragem de defenderem um sistema cujos resultados estão bem visíveis em dezassete anos de realizações em Portugal?

 

Para o Salazar o corporativismo foi apenas um processo de criar novas fontes de receita. Grémios, federações, juntas, são, no fundo, apenas novas repartições de finanças, novos processos de extorquir mais e mais dinheiro. Faliu o corporativismo, declararam-no os mais próximos e mais fanáticos colaboradores do Salazar. Mas ele mantém-no e mantê-lo-á enquando por esse processo poder arrancar mais um tostão que seja.

 

Para isso é preciso exportar muito, exportar tudo, para receber-divisas cambiais. O deputado Supico Pinto (que pelo nome não perca) dizia na Assembleia Nacional em 1939, seis anos depois de fundada a organização corporativa: «Sr. Presidente: Dependentes do Ministério do Comércio apenas se encontram as actividades ligadas a alguns produtos fundamentais da nossa economia: vinhos, arroz, azeites, frutas, cortiça, resinas, toros para minas, conservas de peixe, lanifícios, bordados da Madeira, bacalhau, algodão em rama. Verifica-se pois que quase todos os produtos organizados se destinam à exportação. Nestas condições não se entende bem como se fala tanto em consumidores nacionais asfixiados, em dificuldades de vida em Portugal, desde que existe organização corporativa, e graças a esta, se a nossa organização é quase toda ela referente a produtos de exportação.» O homenzinho - mas que culpa tem ele de ser burro? - não entende. Não entende que um país com um deficit tradicional e secular de alimentação dos mais altos do mundo asfixia se lhe exportarem o poucochinho que tem para comer. Mas há muitos Supicos. Os directores do Banco de Portugal também pensam assim, e têm o descaramento de o escrever nos seus relatórios. Depois de se referirem às exportações e importações de matérias-primas, escrevem: «Nas substâncias alimentares acentuam-se igualmente as mesmas tendências favoráveis. Não só houve um decréscimo nas importações, e um aumento nas exportações, mas as exportações excederam as importações.» Depois dizem: «É sabido que Portugal deixou de importar trigo. Mas é menos sabido que em outros sectores da produção alimentícia se têm realizado progressos não menos acentuados. Isto para os ingénuos, ignorantes ou parvos mostra que as nossas produções aumentaram em tão alta medida que se as não exportássemos apodreceriam ou morreríamos de indigestão.

 

Consultemos os números.

 

Em 1925 a população portuguesa era de 6.091.745 habitantes. Nesse ano importámos substâncias alimentícias no valor de 820.000 contos, e exportámos 565.000 contos. Então a estatística era feita por valores monetários e não por tonelagem. Quer dizer, nesse ano, para comermos, além do que produzimos, comprámos mais 255.000 contos de alimentos no estrangeiro. Em 1939 a população era de 7.539.484 habitantes, isto é, éramos mais 1.447.739 pessoas, mais 1.447.739 bocas a sustentar. O que produzimos não só nos bastou (como eles dizem), mas ainda nos sobrou para exportarmos a quantidade brutal de 433.877 t. de géneros alimentícios, visto que as exportações e importações foram respectivamente de 269.081 e 702.897 t., isto graças à organização corporativa, como disse o tal Supico. Naturalmente que os que nos ouvem pensam: com uma tão grande exportação, acrescentada ainda de um milhão e meio de habitantes, com certeza que as nossas produções aumentaram de uma maneira assombrosa. O melhor seria comparar as principais produções agrícolas dos anos de 1925 e 1939. Mas como não temos o Anuário de Estatística de 1939, utilizámos o de 1938, porque as diferenças em pouco podem influir nas conclusões que pretendemos tirar.

 

 

1925

1938

Trigo, kg.

437 334 630

430 063 760

Milho, lit.

486 629 280

423 183 470

Centeio, lit.

173 705 670

137 202 330

Total

1 097 669 580

990 449 560

 

Aveia, lit.

198 229 970

206 044 270

Cevada, lit.

82 850 060

67 236 610

Arroz, kg.

16 973 010

68 412 642

Fava, lit.

50 436 840

43 640 180

Feijão, lit.

45 359 130

37 788 980

Grão, lit.

11 830 390

18 091 660

Batata, kg.

339 644 460

595 734 990

Azeite, lit.

42 722 430

37 115 250

 

É assombroso, mas não admite dúvidas. Os números são oficiais, tirados todos do Anuário de Estatística, publicado pela repartição de estatística do Governo do Salazar. A não ser a batata, o arroz e o grão, em que houve um aumento sensível, em todos os outros géneros a produção baixou.

 

Num país como o nosso, com um nível de vida dos mais baixos do mundo, a base de alimentação das populações trabalhadoras, especialmente das rurais, é o pão. Pão de milho e de centeio no Norte, pão de trigo no Sul. Pois bem. Nesses três cereais houve um decréscimo de produção de 1925 para 1938 de 107.220.000 kg.. E com uma produção desta maneira inferior à de 1925, com o aumento de perto de 1.500.000 bocas, ainda se arrancou ao País para exportar 433.000 t. de géneros alimentícios.

 

Entremos agora no Palácio de S. Bento e ouçamos o que dizem os lacaios do Salazar naquelas reuniões a que chamam Assembleia Nacional, e em que ganham três contos por mês servindo o patrão que os mandou para ali. Todos sabem como aquilo é organizado. O Salazar faz a lista daqueles que estão dispostos a servi-lo lançando-lhes um osso, um riquíssimo osso de três contos. O Ministro do Interior papagueia discursos de propaganda para uma coisa que não pode ter oposição. Isto durante quinze dias, acompanhado por senhores da mesma força. Os jornais são forçados a dar o maior destaque a esses discursos. Fazem-se as eleições. Há mesas que se não chegam a constituir por falta de membros para elas. Há assembleias em que só entram as listas dos que compõem as mesas. Noutras, mais felizes, aparecem funcionários públicos e dos grémios, freiras, legionários e membros da PIDE. O apuramento total dá 5% dos eleitores. É assim mesmo, 5% não há aqui exagero. Os jornais publicam grandes listas e muitas fotografias, em que se diz, com o descaramento que caracteriza o fascismo, que 95% dos inscritos votou.

 

Esses senhores depois reúnem-se e discursam. Falam dos assuntos que Salazar manda que falem. Às vezes falam doutras coisas, do que interessa aos seus rendimentos, profissões ou bolsa. Um ou outro sério (tem acontecido o Salazar enganar-se e meter na lista nomes de pessoas honestas) faz contracanto e perturba a orquestra. Mas isso têm sido excepções raras. O conjunto é afinado.

 

Como o corporativismo prejudicou também os seus lucros como lavradores, industriais ou comerciantes que são, em 1939 pretenderam emendá-lo. Claro que com muito jeitinho, com muitos elogios ao sistema e ao seu criador.

 

Como afirmou Mário de Figueiredo, não foi uma crítica ao sistema, porque este é a própria mística do Estado Novo, mas ao seu funcionamento. Tudo ficou na mesma, apenas se agravaram os defeitos que então já lhe apontavam. É dessas críticas que vamos fazer alguns extractos. É que, no meio dos seus elogios, mostram-nos coisas que nós estamos fartos de saber, mas as suas palavras têm o valor que lhes dá a insuspeitabilidade.

 

A medida que um grémio se funda ou lançam as bases duma federação, os artigos pioram, encarecem ou desaparecem. Nós já vimos porquê. Ou todos, ou os melhores, são exportados. Pois um desses deputados (Ângelo César), metendo um aparte no discurso dum colega, que propunha a criação do Grémio de Energia Eléctrica, disse: «Se eles fazem um grémio, ela encarece... » E outro, fazendo espírito, chegou a propor a criação dum grémio dos mendigos, para ver se dessa maneira a mendicidade acabava.

 

Vejamos portanto o que é o Corporativismo, através do Diário das Sessões da Assembleia Nacional.

 

Eis algumas passagens do discurso de Mário de Figueiredo, actual Ministro da Educação Nacional, discurso pronunciado em 1939, em que começou por afirmar não criticar o sistema, mas o seu funcionamento: «Corre no País, do Norte a Sul, um longo clamor contra o funcionamento da organização corporativa. O clamor é geral. Basta tomar contacto com as diferentes camadas da sociedade portuguesa para se verificar que ele parte daqueles mesmos que estão indiscutivelmente com a situação. O montante de letras protestadas aumenta muito de 1936 para 1937, e em 1938 mantém-se acima da média mensal de 1936; a dívida hipotecária sobre prédios rústicos e mistos diminui em 1935 para aumentar em 1936, e continua a aumentar muito em 1937 e 1938.» E não deixa de aumentar nos anos seguintes. Vêm a justificação do desaparecimento de 231.368 prédios rústicos de que falámos na obra financeira do Salazar?

 

Mas continuamos a transcrever: «Aumenta sempre o número de desempregados inscritos. Quanto às curvas de preços: a dos preços por grosso sobe ou mantém-se alta, apesar da queda da que representa a nossa actividade económica. A curva dos preços a retalho não acompanha aquela. Sucede por outro lado que o nosso índice de custo de vida acompanha, embora por forma pouco sensível, o dos preços por grosso. Não pode delas deduzir-se uma relação com a organização corporativa que se lhe mostre favorável. Se se pudesse deduzir alguma coisa, essa seria antes desfavorável, porque a baixa do índice da actividade económica e do dos preços a retalho em confronto com a alta de preços por grosso significaria (sic) que está mal o produtor e o retalhista, mas que está bem o grossista, isto é, precisamente a actividade económica na qual é mais extensa a organização corporativa, que teria (sic) assim funcionado como um instrumento de protecção de alguns em prejuízo de muitos.»

 

Foi assim que falou Mário de Figueiredo, um dos corifeus do Estado Novo, e actual Ministro do Governo do Salazar. E isto faz-nos lembrar as palavras do Papa: «O Senhor deu à Nação Portuguesa um chefe do governo que tem sabido conquistar não só o amor do seu povo, especialmente das classes pobres, mas também o respeito e estima do mundo.»

 

Esta maravilha de organização quanto custa ao País? Como natural, Mário de Figueiredo não o quer dizer, e as contas dos grémios são contas de saco, de que não dão satisfação ao País. Ele apenas nos deixa vagamente visionar, e até para nos ludibriar melhor, quando diz: «Terá a nossa organização corporativa funcionado em condições económicas? Para responder importa antes de tudo determinar quanto custa à economia do País. (É claro que me refiro à organização só no sector económico.) Não posso indicar números precisos, mas, calculando antes por defeito do que por excesso, direi que em taxas, multas, jóias e quotas não custa menos de 120 000 contos. O cálculo é feito em relação só a 1936, que, como se sabe, foi um ano mau. É claro que este número, só por si, diz pouco».

 

E noutra altura do seu extenso informe: «Se eu quisesse, mas não quero, fazer comparações, então procurava, por exemplo, o que é que rende a contribuição predial rústica, e o que é que em taxas pagam os organismos corporativos que, precisamente, organizam os produtos da terra. Isto já podia ter um sentido, mas eu não digo que o tenha. Eu podia dizer, por exemplo, que a contribuição predial rústica oscila entre 120 e 130.000 contos, e que feitas deduções de vária ordem, os organismos corporativos, nem todos, mas alguns, que se referem a produtos da terra, cobram de taxa 40.000 contos. Quer dizer: agravam a contribuição predial rústica num terço.» Num terço? Que descaramento! Só para a Federação dos Vinhos do Centro e Sul de Portugal (hoje Junta Nacional dos Vinhos) pagaram os vinicultores, para fundo da Federação, qualquer coisa parecida com 130.000 contos (cento e trinta mil contos). Quer dizer: só de vinho, e de um certo tipo de vinho, vinho seco, de mesa, sem contar com quotas, guias, multas, etc., pagou o produtor de vinhos tanto como o País inteiro de contribuição predial rústica.

 

E quanto a vinhos do Porto, a grande mina por excelência da exportação?

 

E quanto a vinhos verdes? Ouçamos o que eles dizem: «Os encargos que paga uma pipa de vinho verde que custou 150$00 no lavrador elevam-se a 180$00.» É preciso não esquecer que Mário de Figueiredo percebe bastante de vinhos. Ele conta no seu activo algumas pipas bebidas.

 

Ora sabendo nós que a produção de vinho verde nesse ano foi de 371.812 pipas, só para a organização corporativa pagaram os produtores 67.000 contos.

 

E quanto pagam as carnes? Eles dizem: «O movimento da Junta dos Produtos Pecuários foi de 149.000 contos em 1941.» Como vamos longe dos 120.000 contos de poeira que Mário de Figueiredo nos quis lançar nos olhos.

 

Isto quanto ao vinho e à carne. E o trigo? E o azeite? E a batata? E o arroz? E o peixe? E todos os outros produtos? Alguém julgará exagerado se afirmarmos custar à Nação esse monopólio da produção pelo Estado muito e muito mais do que a Nação pagava já ao mesmo Estado em toda a espécie de impostos? São verbas astronómicas que é melhor não calcular, mas de que veremos as consequências.

 

Falemos apenas e ao de leve no trigo, base de alimentação que foi duma grande parte do povo português, e pedra de toque da nossa economia.

 

Portugal, como toda a Europa (com excepção da U. R. S. S.) nunca se bastou em trigo. Não pode vir para uma apreciação geral o caso de anos excepcionais. O Salazar, dentro do seu critério tacanho de autarquia, organizou a chamada «campanha do trigo», sem planos, sem perspectivas, sem visão sequer do problema, apenas com a mira de economizar divisas que se gastavam com a compra do trigo exótico. O produtor respondeu à chamada e semeou-se trigo onde nunca se tinha semeado, em terras de charneca contra-indicadas para essa cultura, semeou-se trigo no meio das vinhas, em pomares e em todos os terrenos possíveis, com prejuízo de outras culturas. Cansaram-se terras, esgotaram-se outras, mas ao lavrador tinham sido feitas promessas tentadoras, e ele não viu - não era ele que devia ver - que uma sementeira deste género esgotaria as terras e que redundariam em prejuízo nos anos agrícolas seguintes as vantagens desses anos. Foi o que se deu. A produção tem diminuído sempre e sempre de 1935 para cá. Mas nesses anos de produção excepcional houve outro factor que toda a gente viu, menos o Governo. Não é verdade. Viu-o, mas atribuiu-o a um favor especial e pessoal da Senhora de Fátima. É assim mesmo. O Salazar tem feito todos os esforços, empregando todas as violências, para nos fazer voltar ao fanatismo supersticioso medieval.

 

Mas voltemos ao trigo. Normalmente a produção nacional anda à roda de oito sementes. Pois naqueles anos, de condições climatéricas excepcionais, houve quem chegasse a colher sessenta alqueires de um alqueire de semeadura! A média de produção nesses anos foi de cerca do dobro da média normal. O que fez o Governo? Improvisou. Salazar não sabe senão improvisar. A política salazarista é uma política de improvisações.

 

Fazem a campanha da produção, mas não sabem que será necessário guardar essa produção. Não tinham onde guardar o trigo. E em vez de construírem silos, como se faz em todo o mundo, mandou construir celeiros, sem nenhumas condições de salubridade para o cereal, celeiros, que serviram apenas para enriquecer empreiteiros, mancomunados com os dirigentes das federações dos produtores de trigo, onde apodreceram milhares e milhares de toneladas de trigo que lá foi armazenado.

 

Apesar de todo o trigo estragado, que o País pagou, ainda sobrou muito. Sobrou porque o pão é caro, e a maior parte da população de Portugal não tem dinheiro para o pagar. O pão de trigo (onde é que ele existe hoje?), ou melhor, o que tem esse nome, pois é fabricado com a mistura de todos os cereais panificáveis, come-se numa grande parte do nosso país como sobremesa, como os ricos comem doces. Mas o Salazar achou preferível, estava mais de harmonia com a sua moral política, vender o excedente ao estrangeiro por um preço irrisório - 0$50 o quilograma - do que vendê-lo às populações famélicas do País.

 

A coisa passou-se assim: A Federação dos Trigos, monopolista de toda a produção, foi obrigada a ficar com ela ao preço da tabela, cerca de 1$50 o quilograma. Distribuiu e guardou, e como vimos, muito bem guardado. Depois de entregue à moagem - outro odioso monopólio - o que entenderam ser o bastante para a nossa alimentação, depois de deitarem fora o trigo podre, sobrou-lhes 110.000 t.. Foram essas 110.000 t. que exportaram ao preço de 0$50. Isso acarretou um prejuízo da diferença que vai do preço de compra ao preço de venda, que foi de um escudo por quilograma. Quem pagou essa diferença? O Estado? A Federação? Isso sim! O produtor. Como? Descontando-lhe nas entregas do trigo que fizeram nos anos seguintes. Quanto mais trigo produzissem, maior era a contribuição para pagarem uma dívida que não tinham contraído. E a dívida era uma insignificância: 110.000 contos!

 

Naturalmente que a produção tinha de se ressentir. O desinteresse veio com a desilusão, e os grandes lavradores, sobretudo eles, porque são os únicos que podem escolher, abandonaram as terras, deixaram-nas de pousio, ou utilizaram-nas em pastagens ou culturas menos dispendiosas.

 

A descida da produção foi apenas a seguinte: em 1925, como lhes dissemos há pouco, apesar de a lavoura estar entregue a si mesmo, sem auxílio nenhum nem estímulo do Estado, a produção do trigo foi de 437.334 t.. A maior produção nestes anos excepcionais, com a Senhora de Fátima à frente da campanha «produzir e poupar», foi de 710.000 t.. Em 1940 já tinha descido para 268.000 t.. Porquê?

 

Apenas os médios e pequenos lavradores, arrastando com todos os roubos e desonestidades cometidas pelo próprio Estado, continuaram a semear, porque se o não fizessem morreriam eles e os seus à fome. Continuaram, apesar de serem eles, no fundo, as maiores vítimas dos prejuízos impostos. O corporativismo, monopolista e absorvente, está matando toda a pequena produção.

 

Dada a fraca qualidade da maior parte das nossas terras, a falta de máquinas agrícolas, de adubos baratos, etc., etc., o custo do trigo fica em Portugal, nas melhores zonas, a mais de 1$30 o quilo, atinge normalmente 1$40, muitas vezes 1$50, chegando a 2$00 e mais. Como, com um preço de exploração tão alto, e de venda tão baixo em relação ao custo, poderia o produtor suportar um desfalque de 110.000 contos, únicos resultados positivos das promessas que o Salazar lhes fez para que semeassem muito?

 

Com o vinho deu-se um fenómeno idêntico. A produção foi excepcional nesses anos e a Federação não tinha onde guardar o vinho. Deixou-o na adega do lavrador, proibindo-o de o vender, sem condições nenhumas de conservação, e quando chegou o ano seguinte, os lavradores com as adegas cheias não podiam fazer as vindimas. O que fez a Federação? Havia vinho a mais? Mandou arrancar vinhas e queimar vinho. Isto aos pequenos e médios proprietários, porque os grandes, eram eles que estavam à frente da Federação e dos Grémios concelhios, venderam zurrapas como vinhos bons, enquanto que aos pequenos os seus vinhos foram considerados impróprios para consumo, deitaram-lhes cal para dentro e pagos por quantias irrisórias, queimaram-nos para aguardente.

 

E as carnes? Dizia o deputado Pinheiro Torres em 1939: «O lavrador vende os gados por preços aviltantes que o empobrecem, ao passo que o marchante enriquece com a carne que vende: é esta a situação!» Serviu para alguma coisa este aviso? Isso sim! Agravaram-na. Já este ano, a caminho do 4.º ano da guerra, demonstraram-nos que cada vez é maior a anarquia na produção, motivada pelo corporativismo, que explora cada vez mais o produtor. Só o matadouro cobra por um boi que rende 2.800$00 a quantia de 500$00. Enquanto a carne é vendida por preços absolutamente proibitivos, o lavrador recebe por cada quilo 8$00. Pois quê! Se para o novo matadouro nós já pagámos em taxas suplementares sobre a carne 28.000 contos! E onde está esse matadouro que ninguém sabe quando será construído? E as taxas continuam a correr.

 

Com o leite a exploração é a mesma. O custo do leite, segundo estudos feitos, fica ao lavrador por 1$21 o litro, custando só a alimentação das vacas cerca de 0$87 por litro de leite. Pois esse leite que nós compramos por 2$00 o litro, e que o Salazar vende para a Alemanha a 5$00, é pago aos produtores a 0$70. Resultado desta admirável política económica: os lavradores abatem as vacas, que só lhes davam prejuízo, e a nossa capitação de leite, a mais baixa de todo o mundo, continua a descer. O resultado desta política foi que uma empresa de lacticínios de Vale de Cambra distribuiu o ano passado 1.200 contos pelos seus associados, ao mesmo tempo que só em Oliveira de Azeméis o número de vacas diminuiu de 1.300 unidades, devido ao preço do leite.

 

Como se vê, a guerra em nada influiu nas medidas asfixiantes a que o Salazar condenou o povo português, medidas que lhe têm permitido as remessas constantes para o seu aliado Hitler.

 

Voltando à organização corporativa e às críticas de Mário de Figueiredo, lemos que este, depois de se ter referido ao custo da organização, diz mais adiante, referindo-se a ordenados: «Em geral os vencimentos são altos, mais altos do que os dos funcionários do Estado ou empregados de casas comerciais da mesma categoria.» O Supico (que raio de nome!) saltou tentando demonstrar que os ordenados não são altos: Ora a verdade é que os dirigentes dos organismos de coordenação económica ganham o seguinte: 4.500$00 os directores dos institutos; 3.000$00 os presidentes das juntas nacionais e das comissões reguladoras, 2.500$00 os vice-presidentes e 4.000$00 os directores-adjuntos dos institutos.»

 

Nenhumas habilitações técnicas ou académicas se exigem a esses cavalheiros de indústria, quando um professor do liceu, com um curso universitário, ganha 1.600$00.

 

Mas os ordenados não ficam por ali... aquilo é apenas um ordenado-base. Como é pequeno para a sua voracidade, aumentam-no ainda, chegando a duplicá-lo, e ainda mais. Como? É o Mário de Figueiredo que nos vai explicar: «Encontram-se ajudas de custo régias. Aparecem vencimentos suplementares: gratificações, subsídios de família. E se refiro os subsídios de família não é porque entenda que a justiça os não impõe; mas também entendo que, não os havendo ainda instituído o Estado para os seus funcionários, se justifica mal que apareçam, num ou noutro caso, a sobrecarregar a economia dum produto, sobretudo sabendo-se que os vencimentos em geral são altos. Parece pensar-se que a economia dum produto é uma corrente caudalosa onde todos podem beber,que não há estiagem que a seque. E por outro lado o que tem rendido à economia nacional?»

 

O que tem rendido? Nós sabemos. Sabemos e vamos provar com documentos oficiais. Tem rendido a ruína da produção nacional, o aumento do custo de vida, a diminuição dos salários. Tem rendido a ruína total do País, aumento de doenças, aumento de mortalidade, diminuição de natalidade, retrocesso na cultura, aumento de criminalidade, aumento de filhos ilegítimos, aumento da prostituição.

 

Isto tudo para a conservação do fascismo, para que os cúmplices do Salazar lhes não fujam quando sentirem o cheiro a esturro, esses bandidos que levam urna vida de milionários, morando em casas de dois e três contos de renda, com automóveis de luxo, amantes e batota. Tem rendido de maneira que não há grémio ou junta que não tenha comprado ou alugado um palácio, os melhores palácios de Lisboa, para se instalarem. Para criar uma burocracia maior, muito maior e muito mais bem paga do que a burocracia do Estado. Isto tudo em tempo de paz. Foi com esta preparação, que durou treze anos, que o País viu rebentar a guerra. Como foi ela recebida?

 

Por mais estranho que pareça, a guerra foi recebida pelos fascistas portugueses com manifestações de alegria. Eles que tanto tinham ajudado Hitler e Mussolini no esmagamento do povo espanhol, estavam convencidos que a guerra relâmpago, prometida por Hitler, seria coisa de poucos meses, e depois é que era fartar! Agora já nada se opunha às grandes negociatas. O aumento do custo de vida em tempo de paz, o aumento da miséria, era difícil de explicar. Agora a guerra explicaria tudo. Explicaria o aumento da circulação fiduciária, explicaria o aumento de preços de todos os géneros alimentícios, explicaria o desaparecimento dos mesmos géneros. Não há nada, tudo desaparece, tudo vai para a Alemanha, mas a culpa é do bloqueio inglês. Em Março deste ano, um telegrama de Angola e publicado no Diário da Manhã dizia que os ingleses já não davam autorização para virem mais produtos este ano, porque só no primeiro trimestre tinham saído de Angola mais do que em todo o ano passado. Para onde foram? Quem os viu?

 

Os dirigentes corporativos rejubilaram com a guerra. Comerciantes improvisados, amigos e cúmplices daqueles proliferam por toda a parte.

 

É costume as pessoas devotas pedirem toda a espécie de favores aos santos da sua devoção. No Norte, especialmente no Minho, os que sabem ler, não confiando muito na memória do santo, costumam escrever num papelinho o pedido, e pregá-lo com um alfinete no manto da Senhora de Fátima a seguinte súplica: «Minha rica Nossa Senhora, fazei com que a guerra não acabe depressa.»

 

O bacalhau, quando a guerra começou, comprava-se, do mais ordinário, a 3$50 o quilograma. Agora custa 10$40. Porquê? Porque há-de ser! Por causa da guerra. É o que toda a gente diz. A verdade, porém, é muito outra.

 

Deixámos de importar bacalhau. Todo o bacalhau que comemos é pescado em barcos portugueses, por pescadores portugueses. Com um aumento destes, beneficiaram alguma coisa os pescadores, os únicos sacrificados, aqueles que têm a vida permanentemente arriscada? Não, os seus salários continuam sendo os mesmos que eram antes da guerra, a sua situação de mobilizados a que Salazar os condenou é a de trabalhadores forçados a que a organização corporativa os condenou. Porque só assim consegue equipagens para todos os barcos. Os armadores, esses sim, ganham, mais, mas não é o que se pode supor. Porque o trabalho, despesas e responsabilidades pertencem a pescadores e armadores, mas a parte de leão pertence ao Grémio. Os armadores entregam o bacalhau ao Grémio em Lisboa a 4$60; este entrega-o aos armazenistas a 9$60. O Grémio, sem despesas, sem trabalho, sem responsabilidade, sem riscos, ganha 5$00 por quilograma de bacalhau, que lhe é entregue a 4$60. Foi para este reforço do roubo que representa o corporativismo que serviu a guerra.

 

Na Inglaterra o Estado indemniza os produtores do aumento provocado pela guerra, para que eles possam ganhar e para que os artigos não subam de preço no mercado. Em Portugal, país «oficialmente» neutral, faz-se exactamente o contrário. E para que o Grémio receba 100.000 contos por ano, para que o Tenreiro esteja a fazer fortuna fabulosa, é que nós pagamos o bacalhau, que noutros tempos era o «fiel amigo», por um preço proibitivo.

 

De dentro dos grémios, das federações, da Câmara Corporativa, saiu, como um vento de morte, o grito «Agora é que é enriquecer! Para o Eixo são permitidos todos os contrabandos!» É fartar vilanagem!

 

O mercado negro é um organismo semi-oficial, formado pelo pessoal dos grémios. A lã está tabelada a 150$00. Os fiscais compram-na a 5$00 para seguir o mesmo destino. E o deputado José Nosolini arma em ingénuo, dizendo na Assembleia Nacional: «Dos 8.000.000 kg. de lã que o País produz, nas vésperas da nova colheita ainda não estão entregues mais de 3.500.000 kg.. O resto dessa colheita eclipsou-se, não se sabe onde pára.»

 

Surgem por toda a parte actividades industriais misteriosas. Não acabaríamos hoje só a inumerá-las. Apenas duas, de género diferente, como exemplos.

 

Em Moura, antes da guerra, juntaram-se cinco indivíduos, com um capital de vinte contos, para explorarem um pequeno comércio de carnes de porco. Depois de ter começado a guerra, apareceu-lhes um espanhol, oferecendo vinte contos por cada quota. Só dois as venderam. A sociedade foi refundida, entrando o espanhol com milhares de contos e novos sócios. Enviaram compradores a todas as feiras, que compravam todos os porcos que apareciam por todo o preço. As carnes depois de preparadas era preciso fazê-las entrar em Espanha. Então a guarda fiscal ainda se opunha. Um dos sócios, um tal Vasco, cunhado do deputado Sebastião Ramires, o antigo Ministro do Salazar, veio a Lisboa avistar-se com esse sustentáculo do Estado Novo. Voltou a Moura com a necessária licença de passagem. E os porcos seguiram, e continuam a seguir, para a Espanha. E se seguirmos a fronteira do Algarve ao Minho encontramos centenas de casos semelhantes.

 

Outro caso:

 

No começo da guerra apareceu no stand de vendas da Casa Ford um chauffeur que queria comprar um camião. Foi difícil, porque não tinha dinheiro nem crédito. Chama-se o homem Mário Silva. Um ano depois tinha mais de duas dúzias, sempre nas estradas para a Espanha, Alemanha e Itália. Levam um oleado a cobri-Ias e um letreiro que é um insulto, uma bofetada na face do País: «SOBRAS DE PORTUGAL.» Os vagões dos comboios que seguem o mesmo destino também levam o mesmo letreiro: «SOBRAS DE PORTUGAL.» Sobras dum país que morre à fome, e as populações famélicas vêem-nos passar, recebem o insulto, e o medo do desemprego forçado, dos campos de concentração, das torturas na polícia, deixam-nas paradas, mordendo o seu ódio. Esse Mário Silva comprou em Dois Portos uma enorme propriedade, construiu nela um palácio, que lhe ficou, diz ele, por três mil contos, continua a comprar propriedades com dinheiro arranjado «honradamente» com a protecção do Estado salazarista-cristão.

 

Não há sabão? Quem faz o mercado negro? A empresa Alfredo da Silva mandando quase toda a produção, de que tem quase o monopólio, em comboios de camiões para a Alemanha e Itália. Quem faz o mercado negro do azeite? Os dirigentes do Grémio, por intermédio de três amigos que servem de cabeça de turco. Todas as noites, todas, aviões de carga do Eixo saem do aeroporto de Lisboa, de Alverca e de Sintra carregados. Um leva diariamente 1.000 kg de pão. Há dias, um avião carregado de porcos teve de alijar em pleno voo um porco, por a carga ser pesada demais. Toda a manteiga que apanham vai para fora.

 

O Grémio dos Armazenistas de Mercearia, em ofício enviado aos negociantes de ovos, indicava-lhes uma morada onde se deviam dirigir, caso quisessem exportar ovos. Tudo, tudo segue o rumo de Berlim e Roma. Feijão, grão, batatas, hortaliças, vão para os exércitos nazistas. O que ganha o País com isto? Passar fome, cada vez mais fome, como os países ocupados. Mas o que importa isso ao cristão Salazar? O que é necessário é que todo o peixe, toda a carne, todos os deficientes produtos alimentares nacionais sigam para a Alemanha para alimentar as hordas fascistas que assolam a Europa, e que os Rafaeis Duques, os Isidoros Maria de Oliveira, os Alfredos da Silva, os Tenreiros, enriqueçam, enriqueçam mais, abarrotem de oiro.

 

Só em volfrâmio, o Alfredo da Silva já ganhou mais de cem mil contos, Francisco Mourão de Cana já vai para lá dos vinte mil. Mas isso não importa, o que é preciso é que o povo, o povo que trabalha, que produz, não ganhe senão o suficiente para sobreviver. O que se passou com os pesquisadores de volfrâmio é, dentro do regime de ignomínia do fascismo português, do mais demonstrativo da sua finalidade, mas também e por isso mesmo do mais miserável, do mais canalha que jamais em qualquer regime ou em qualquer época um governo se lembrou.

 

Foi proibido, simplesmente proibido, aos trabalhadores do campo pesquisar e vender volfrâmio que apanhassem. O Diário da Manhã, órgão oficial do Governo, justificava essa medida afirmando ser um perigo que essa gente recebesse o dinheiro que o volfrâmio rendia, porque, habituando-se a ter dinheiro como nunca sonhara ter, não se sujeitariam depois aos salários a que a sua condição os forçava. E reforçava essa sua generosa tese contando sem vergonha que uns pobres camponeses que nunca tinham conhecido como suas notas de 100$00 terem ido a um restaurante de Viseu e pedido um jantar de ricos. E ficaram muito admirados por lhes terem começado por servir sopa de hortaliça. E justificaram a sua admiração ao criado que os servia dizendo que pensavam que os ricos não comiam couves. Eles que nunca tinham comido em toda a vida senão um mísero caldo-verde, raras vezes com um pouco de gordura, e, quando tinham dinheiro, acompanhado com um bocado de broa. E o canalha do jornalista que escrevia o artigo ria, ria alvarmente, quando devia chorar de vergonha, por conservarem o povo, aquele povo que produz tudo o que eles consomem, aquele que é o Portugal verdadeiro, levar uma vida tão miserável, tão fora da vida, uma vida de servos da gleba, de escravos em pleno século XX, neste paraíso salazarista.

 

E a exploração do volfrâmio continuou, mas apenas para os potentados. É Portugal que continua a alimentar de volfrâmio a máquina de guerra hitleriana.

 

O que tiramos de tudo isto? É que «as condições de toda a ordem que nos últimos quinze anos têm criado ou melhorado as condições de trabalho do País, satisfeito as suas necessidades, fomentando o seu progresso, elevado o seu nível de vida e as manifestações da sua cultura» que o Salazar tão «honestamente» afirmou no seu último discurso, são as que aí ficam inumeradas, utilizando apenas números e documentos oficiais. E de toda essa documentação, concluímos:

 

1.º Graças ao regime corporativo, e fundamentalmente por ele, foi desbaratada a débil economia nacional, e a produção baixou e continua a baixar;

 

2.º A pequena e média produção, depois da ruína, some-se, sendo as propriedades absorvidas pelo grande capital;

 

3.º Graças ao regime corporativo, o produtor não recebe preço remunerador dos seus produtos, ao mesmo tempo que o consumidor compra os produtos mais caros;

 

4.º Surgiu, devido ao corporativismo, uma nova classe de novos-ricos, formada pelos dirigentes e altos funcionários corporativos;

 

5.º Os governantes transformaram-se numa quadrilha desenfreada;

 

6.º O intermediário-grémio é mais ladrão que o intermediário-particular;

 

7.º Apesar da guerra e da crise que ela provoca, Salazar mantém inalterável a sua política de espoliação e asfixia da produção nacional, especialmente a dos pequenos agricultores, industriais e comerciantes;

 

8.º Toda a produção do País segue para alimentar a máquina de guerra de Hitler.

 

Foi a esta situação que conduziu Portugal o «honesto regime paternal e cristão de Salazar».

 

 

 

 

 

 

(*) Firminiano Cansado Gonçalves (1903-1994) foi um incansável rebelde com causa, de quem, infelizmente, se sabe muito pouco. Teve diversas profissões na sua juventude, tendo participado na revolta democrática de 7 de Fevereiro de 1927. Em 1931 frequentava a Faculdade de Letras de Lisboa e era presidente da sua associação de estudantes, sendo preso na sequência de uma greve. Nesse mesmo ano aderiu ao Partido Comunista Português (PCP), começando então um longo ciclo de clandestinidade, com passagens pelo exílio em Espanha e cumprimento de uma pena de prisão no forte de Peniche. Era então um dos dirigentes de maior responsabilidade do PCP. Pertenceu depois ao chamado “grupelho provocatório”, que resistiu à reorganização do partido operada em 1940. Beneficiando de uma amnistia após o final da Grande Guerra, consegue terminar o curso de Filosofia em 1949. Pertenceu então ao movimento neo-realista, colaborando nos periódicos ‘O Diabo’, ‘Sol Nascente’, ‘Vértice’ e ‘Liberdade’. Proibido de leccionar pela PIDE, parte para Moçambique em 1952. Foi aí professor liceal na cidade de Lourenço Marques deixando gratas recordações entre várias gerações de estudantes, incluindo futuros dirigentes nacionalistas. O texto que aqui publicamos pertence a uma série de conferências proferidas clandestinamente em Maio de 1943 e que seriam depois, na sua maior parte, recolhidas no volume ‘A traição de Salazar’, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1975. Dirigiam-se de um auditório popular, como se percebe pelo estilo coloquial e pela expressividade usados pelo orador.