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Karl Marx: o doutrinário
Emílio Costa (*)
I Formação da ideologia de Marx
A ideologia dos indivíduos forma se das mais diversas maneiras, segundo as condições da vida, os acasos da Ieitura, a convivência, etc.. Todos êsses factores, cujo valor relativo se não pode determinar, estão subordinados ainda ao temperamento e à inteligência, digamos à personalidade inata de cada um.
É por isso impossível determinar, com exactidão, qual a dose ou a percentagem de influência que cabe ao que se lê ou se observa, na formação ideológica; e poucas vezes e possível fixar se uma determinada leitura exerceu ou não grande influência.
Esta influência só se pode atribuir, com alguma segurança, àqueles homens que, pela natureza dos trabalhos a que se entregaram, pela vida que levaram, pertencem à espécie classificada: os de um só livro. É evidente que a expressão um só livro é cada vez mais relativa, pois .já não há ninguém que leia um livro só, sendo, em geral, cada vez maior, o número de livros que cada um lê. Tem portanto que se entender, por aquela expressão, o homem cuja formação ideológica se realizou com a influência predominante dum livro, que o mesmo é que dizer duma idea, no livro expressa, que circunscreve o seu interêsse em volta dessa idea e lhe subordina tudo o mais. Êstes homens, de mentalidade exclusivista são, lògicamente, exclusivistas na acção mostrando-se, em geral, obstinados para a consecução dos seus objectivos; e se são dotados de grandes faculdades mentais, dão inventores e reformadores da vida social.
Êstes homens, entre os quais há, como em tudo, gradações e modalidades, levados pelo exclusivismo da idea, para a qual vivem, são, em regra, autoritários, duros, intolerantes, levando o fanatismo às suas lógicas e por vezes extraordinárias conseqüências. É entre êles que se contam Inácio de Loyola, Calvino, Pedro o grande, Lenine, o Infante D. Henrique, D. João II, etc.. Um termo há que define êstes homens no prosseguimento da sua idea: são implacáveis.
Pertencia Karl Marx a êsse tipo de homens? Não. Não foi homem duma só idea e muito menos dum só livro. Já tivemos ocasião de ver que Marx lia de tudo e por tudo se interessava, com uma sêde de saber insaciável. É por isso difícil determinar quais as influências que mais se fizeram sentir. Os estudiosos que a êsse trabalho se têm entregado, conseguiram indicar algumas que parecem ser, na verdade, as mais importantes, muito longe, em todo o caso, de serem exclusivas, nem permitindo que se descurem as outras. Em tôda a obra de Marx se notam várias influências, que desaparecem para tornar a aparecer, formando uma complicada meada que só com muito trabalho se pode desfiar.
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Na evolução ideológica de Marx, podem-se marcar três fases ou três períodos de formação, até à estabelizacão definitiva, que se produz por altura dos seus trinta anos.
Qual é a ideologia de Marx, na sua primeira fase, que vai até aos vinte anos? Como em todos, a idade requere que seja, em grande parte, de ordem sentimental. Que é êle nessa idade? Um liberal. Das lições e conversas com o pai e os Westefalen, fica-lhe gravado, mais do que qualquer outra noção geral, o entusiasmo pela sociedade idealista do J. J. Rousseau. É o ser humano naturalmente bom, olhado em si mesmo, sem preocupações de casta nem de categoria de qualquer espécie, que se deve deixar desenvolver livremente. É o entusiasmo pela liberdade do indivíduo, sem peias que lhe entravem a acção e que tanto se harmoniza com o que êle ouve e observa em volta de si, na sociedade que saía dos abalos da Grande Revolução. É a liberdade de pensamento - a mais sedutora de todas para todos - que mais o caracteriza depois na sua vida de jornalista.
Esta ideologia, êste liberalismo combinado com um humanitarismo mal definido, vago, revela-se, dado o temperamento de Marx, combativo, batalhador. Como muito bem diz Wilbrandt (1) «é a sua mocidade - os primeiros vinte anos, que são compartilhados entre a família e Berlirn - que deixa, no seu espírito, os alicerces para aquele idealismo prático e batalhador que mais tarde - silenciosamente umas vezes, e outras declarada e veementemente - há-de sentir-se na sua obra. Esta ideologia mantem-se sempre, embora mais tarde outras ideas apareçam a fazer-lhe sombra».
Na segunda fase desta formação ideológica, Marx é um hegeliano, um discípulo do filósofo alemão, Hegel. Não é para aqui examinar a forma como Marx se tornou hegeliano, pormenor da vida scientífica que não interessa o leitor e não importa ao nosso ponto de vista. O que importa é fixar o que Hegel legou a Marx. Ainda, neste caso, temos que fazer uma distinção, uma escolha, para evitarmos divagações metafísicas que inevitàvelrnente produziriam uma confusão prejudicial para a compreensão da influência de Hegel na doutrina social de Marx.
É preciso restringir, limitar, simplificar tanto mais, quanto das teorias filosóficas, a de Hegel é das de mais difícil penetração. Procedendo assim, por desbatamentos e eliminações, chegamos a reduzir a questão ao seguinte:
Hegel, que foi lido por Marx de ponta a ponta, nos ócios duma doença, reforça notàvelmente o sentimento de liberdade, aumentando assim o seu humanitarismo. Com isto toma corpo e desenvolve-se o seu antagonismo com as classes possuidoras, a sua aversão aos capitalistas, ao homem de negócio.
Sôbre a origem desta hostilidade à burguesia capitalista, alguns filiam-na no facto de Marx ser judeu. «Todos os antepassados de Marx, de que temos notícia, foram judeus; todos de estirpe rabínica, sem mescla de espírito mercantil: precisamente o mais oposto ao conceito de judaismo que a história desenvolveu». O sentimento de desprêso despertado contra os seus irmãos de raça, que por mais doloroso que fôsse, não podia deixar de compartilhar, é uma cruel experiência na vida de Marx. E esta experiência faz-lhe sentir duplamente a vileza dêsse espírito traficante e usurário do qual, como indivíduo da mesma raça, se envergonha. Á vergonha une-se o ódio, que lhe enche a vida. O Capital é um protesto inflamado contra os traficantes e os usurários».- Marx demonstra que êste espírito traficante e usurário impera, como nunca, na sociedade moderna. A consciência de que o capital é actualmente o que tem sido sempre, um usurário e um explorador, é o fio que o guia através do labirinto da sua obra. Sôbre o problema judeu chega a esta conclusão original: «Que ganhamos, nós, os judeus, com o triunfo da nossa emancipação religiosa e cultural, se entretanto tôda a sociedade se enjudaizou econòmicamente? Não somos só nós, é a sociedade que precisa desenjudaizar-se».
Mas voltemos à influência de Hegel. De tudo que êste legou a Marx, o mais importante, que é duma importância excepcional na evolução da idea socialista, porque é dela que deriva, em linha recta, o socialismo scientífico, é a chamada dialéctica, isto é, a idea de evolução constante, e que se resume no seguinte:
A palavra dialéctica, que significa, etimològicamente, conversar, foi entre os gregos a arte de raciocinar para chegar à verdade.
Hegel, na sua obra principal, A lógica, utiliza a dialéctica para mostrar que nada há, a começar pela mais simples afirmação que fazemos, que contenha em si tudo o que pretende exprimir. Numa idea há sempre alguma coisa que se lhe pode opôr, demonstrando que ela é incompleta e tende portanto a completá-la, formando um todo novo, uma idea nova. A esta por sua vez, sucede o mesmo, sempre pela mesma razão: é incompleta, aparece outra a completá-la. E assim por diante, constantemente, num perpétuo movimento de renovação, que é, ao mesmo tempo, a morte para cada idea anterior; ideas que se abandonam, que se fundem noutras, constituindo como uma estrada em que se caminha sempre em busca da verdade que vai semeada de ideas mortas. Esta concepção aplicou-a Hegel a tudo, a todas as manifestações da vida, cuja observação nos revela, de facto, um constante movimento de renovação. É uma concepção geral do mundo, no qual tudo é movimento, nada é fixo, onde nenhuma idea se basta a si própria, em que tudo é completado e substituido.
Completamente integrado nesta concepção ideológica da vida universal, que se torna num método para a observação, para a condução do pensamento, aplica-a Marx, daí por diante, em todos os seus trabalhos. Como êle é, acima de tudo, um sociólogo, aplica esta concepção à história, onde igualmente nada é eterno, tudo se renova fatalmente, necessàriarnente, como na vida vegetal e animal. É a concepção da evolução social, em que os organismos, as instituïções, as civilizações, estão em constante transformação, morrendo umas para dar um lugar a outras. Esta mentalidade histórica, aplicada às instituïções económicas, opõe-se imediatamente e forçosamente à crença na imutabilidade do regimen e das leis económicas.
Na terceira fase da sua formação ideológica, o hegeliano Marx aparece-nos a desfazer-se de Hegel, como que a mostrar-nos, pelo seu próprio exemplo, a verdade que há na dialéctica, na evolução, pela qual, o que mais sólido parecia, é, num momento, substituido e um cadáver mais a juntar-se aos ou tros.
Que é Marx nesta-fase? Um positivista naturalista.
O que actua em Marx para que abandone a ideologia espiritualista, substituindo-a pelo materialismo? Em primeiro lugar, a vida, com que êle se vê em contacto, nos seus tempos de jornalista na Gazeta Renana. Começa aí a ver, na dura realidade, que o mundo é muito diferente do que imaginava na sua concepção metafísica, em que nanobrava com as ideas, com as abstracções, bem mais à vontade do que com os interêsses dos homens. A dureza do espectáculo dêsses interêsses em jôgo, fere-o como uma decepção, como uma queda do mundo ideológico, em que até então vivera, para a realidade e exaspera-lhe a revolta contra as injustiças que uns praticam e de que outros são vítimas. Vai para Paris e aí completa-se a transformação para o que concorrem duas coisas. Uma, a mais notada e todavia menos importante, como elemento transformador, que é o aparecimento da obra do filósofo alemão Feuerbach: Essência do Cristianismo; e a outra, o ambiente espiritual que êle respira em Paris, a mais importante.
O conflito que começava a produzir-se entre as ideas materialistas e o seu hegelianismo, irrompe, com toda a fôrça, com a leitura do livro de Feuerbach. Engeis fala assim do efeito que o livro produziu então, que foi o de derrotar por completo o espiritualismo: «Quem não tenha experimentado, em si próprio, a virtude libertadora dêste livro, não pode fazer idea do que êle vale. O entusiasmo foi geral; naquele momento, todos nos fizemos feuerbachianos. E quem quizer avaliar o entusiasmo com que Marx saudou a nova doutrina e como se deixou prender por ela, - apesar das suas reservas críticas - leia a Santa Família.
Dado êste entusiasmo, esta quási súbita reviravolta e o temperamento de Marx, compreende-se o tom de combatividade da Santa Família contra o hegelianismo dos seus antigos amigos.
É por ter sido a causa imediata desta reviravolta, que o livro de Feuerbach foi considerado de tanta importância na evolução ideológica de Marx. Mas pensando-se bem, vê-se que não é assim. O terreno estava tão bem preparado, que se a semente Feuerbach não tivesse aparecido, é possível que a reviravolta se não tivesse operado, mas a evolução ter-se-ia produzido igualmente, embora mais lentamente. É que Marx não podia deixar de sofrer a influência das leituras de Saint-Simon, de Auguste Comte e outros e a influência do meio em que vivia em Paris, que, era, nesse tempo, uma fornalha de ideas de renovação social e de revolução nas sciências naturais.
É desta fornalha que sai a nova concepção social de Marx, que é a combinação da idea hegeliana de evolução com o conhecimento das sciências naturais, para dar a determinação das leis da evolução social. O que êle pretende é conhecer a sociedade como se conhece a natureza, o que o leva à elaboração duma sciência social naturalista.
Esta sciência social leva-o a fixar em bases scientíficas o movimento socialista, donde resulta, logicamente, o abandono do socialismo organizador de sociedades, substituido pela previsão nas tendências de evolução; isto é, em vez de dizer como há-de ser a futura sociedade socialista, procura ver a evolução da actual e determinar-lhe o sentido, a direcção e a finalidade. Esta finalidade, determinada com rigor scientífico, resulta socialista. É o que tomou o nome de socialismo scientífico, para o distinguir, do outro, construtor de sociedades ou utópico.
II Doutrina marxista
Da ideologia de Marx, cuja formação ficou resumidamente traçada, resultou a doutrina social que êle espalhou pelos seus trabalhos, desde o Manifesto comunista ao Capital, e que passou à história das ideas sociais com o nome de marxismo.
O marxismo é a explicação, o desenvolvimento e a concretisação dum certo número de ideas fundamentais. São estas que o caracterizam, fazem dêle um conjunto distinto e lhe dão, portanto, razão de ser, não tanto por elas próprias, como pelo facto de se combinarem para um determinado objectivo e pelas conseqüências que a doutrina produziu. Essas ideas fundamentais ou aIgumas delas teem sido classificadas de descobertas, por partidários do marxismo e admiradores de Marx, classificação que tem sido impugnada por adversários ou neutrais. Quem tem razão? Conforme ao termo descoberta se dá a significação de conhecimento original duma coisa, desconhecida antes e que aparece como uma novidade sentida e como tal compreendida por todos, têm razão os adversários; mas se com o termo em questão se quere significar, a adaptação, o desenvolvimento e a utilização de coisas conhecidas para determinados fins, donde resulta uma melhor compreensão e uma inovação no prosseguimento dêsses fins, teem razão os partidários. Em todo o caso, o termo não é muito feliz, porque além de demasiado pretencioso, dá sempre lugar a que se possa entender por descoberta original, aquilo que evidentemente o não foi.
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As ideas fundamentais do marxismo são: a teoria do valor; a da mais-valia; a da concentração capitalista, a do materialismo histórico e a da luta de classes.
Destas teorias, que têm feito gastar muita tinta e tanta discussão e agitação teem provocado, não interessam grandemente, ao militante socialista, as duas primeiras, que são do domínio da pura economia política. Se o seu conhecimento é interessante e útil, não é todavia indispensável para a compreensão clara, para a formação da consciência socialista.
Teoria do valor
Marx retomando a idea dos economistas ingleses, do trabalho dever ser a medida do valor, desenvolveu a tese, que se pode resumir no seguinte: (Le Socialisme. Encyclopédie Populaire).
«Toda a mercadoria tem duas espécies de valor; um valor de uso que depende da sua utilidade, e um valor de troca, que depende da importância que ela tiver para a troca com outras mercadorias. A primeira é constante para uma determinada mercadoria, pois que, por exemplo, um quilo de pão representa sempre a mesma quantidade de alimento. A segunda, que é o valor de troca, tem um valor variável segundo as várias circunstâncias que estão ligadas à sua produção, ao seu transporte, etc..
«Deve portanto haver uma medida comum para avaliação do valor de troca de qualquer mercadoria, a qual medida segundo Marx, é a quantidade de tempo do trabalho necessário para a produzir. Quer dizer que, se um fato valer 100 quilos de pão, é por que foi necessário empregar a mesma porção de tempo para fabricar os 100 quilos de pão e para fazer o fato». O valor de troca duma mercadoria é pois directamente proporcional ao tempo empregado em a fabricar. É portanto o tempo de trabalho, e em suma o trabalho, a medida do valor.
A teoria do valor tem sido das mais impugnadas e está hoje reduzida, por assim dizer, à discussão entre os técnicos, não tendo grande interesse para a, marcha das ideas socialistas. Os economistas teem escrito volumes para tratar a questão e chegarem a fixar a noção de valor; mas até agora o resultado tem sido nulo e creio que continuará sendo assim por muito tempo, se alguma vez se chegar ao acôrdo. É que se trata duma noção em que além dos elementos objectivos que nela entram, há a considerar o elemento subjectivo, de que resulta aquilo a que, na linguagem corrente, se chama valor estimativo e que varia de indivíduo. para indivíduo e de época para época. Os próprios marxistas não se entendem sôbre esta parte das doutrinas de Marx, como sôbre outras, desentendimento que provém, em grande parte, da forma pouco clara, abstracta, demasiadamente simplista e teórica que Marx imprimia à sua exposição. É verdade que os seus discípulos, sobretudo os alemães, pecam pelo mesmo defeito; é com razão que Sorel diz que «os livros dos social-democratas são sempre difíceis de compreender; estacamos a cada momento, em frente de fórmulas hegelianas que os autores entendem mal, que desnaturam ou das quais dão mesmo interpretações completamente fantasistas. (2)
Sôbre a teoria do valor, já Bernstein entende que ela deve ser considerada àparte ou separada das doutrinas pròpriamente socialistas de Marx. Jaurès, do seu lado, diz que «a teoria do valor é uma imagem ideológica, uma chave que, utilizada por Marx, conduziu à revelação e à demonstração do movirnnto da economia capitalista em condições de clareza, de lógica e de Iucidês nunca até então atingidas.
Mas a partir dum dado momento, a demonstração enfraquece e esta quebra tornou-se fatal a quási todos os discípulos».
Observa-se tambérn que, segundo Engels, a teoria económica de Marx, não constitue uma justificação do socialismo.
«Não se encontra em Marx, continua Sorel, uma verdadeira teoria do valor, no sentido que vulgarmente se dá a êste termo; o que há é uma teoria do equilíbrio económico, reduzido ao caso duma sociedade prodigiosamente simplificada».
Quando se passa da teoria pura, da abstracção para a aplicação à vida complexa dos fenômenos sociais, à realidade, a doutrina cai na inexatidão, na contradição.
É o que observam vários comentadores de Marx. Por isso diz Sorel, no trabalho citado, que Marx não demonstrou o que afirmou. «Marx procedeu como outrora fizeram certos fisicos, êle mostrou que talvês se pudesse explicar, mas não deu a formula scientffica da explicacão Esta doutrina está publicada desde 1894; e embora ela faça parte dos tesouros que existiriam, segundo Kautsky na obra póstuma de Marx, não se pôde ainda tirar dela partido algum para fazer dar um passo sequer à sciência. Creio, quanto a mim, que Marx tinha guardado na gaveta esta parte da sua obra por não a encontrar satisfatória.
Das críticas feitas, das dificuldades do problema, das variadas maneiras de considerar o valor, resultou o reconhecimento de que o trabalho, considerado como a única determinante do valor, é uma idea pouco sólida e pode dizer-se abandonada, com tanta mais razão, quanto em nada perde com isso a marcha do socialismo, antes ganha, porque é menos unia origem de confusões e dificuldades.
A mais-valia
A mais-valia liga-se ìntimamente com a questão do valor, mas já com mais interêsse para a idea socialista, porque é a verificação daquilo que todos os trabalhadores sentem: que são explorados injustamente. Marx pôs em relêvo o lado explorador e injusto da mais-valia, mostrando que ela representa uma desproporção muito grande entre o valor do trabalho fornecido e a importância recebida por êle, de que resulta num trabalho de, por exemplo, dez horas, dar o operário, de graça, ao patrão, umas quatro horas. Quer dizer: quando o patrão paga vinte escudos por dez horas de trabalho, êsses vinte escudos pagam com justiça, o que o operário produziu em seis horas, ficando portanto, para o patrão, o valor do trabalho não pago, das outras quatro, ou sejam doze escudos. É a acumulação dêstes escudos que constitue uma grande contribuição, possivelmente a mais importante, para a formação do capital e dos capitalistas.
Isto é a súmula do que Marx dizia no primeiro volume do Capital e que, dada a demora no aparecimento do terceiro, se propagou como verdade. Mas apareceu o terceiro volume e vê-se que: Marx, «a esta teoria da mais-valia, opõe outra, na verdade a teoria ordinária. O valor dos produtos e portanto o lucro, são determinados pelas despesas dos capitais. Capitais iguais dão, nos mesmos tempos, relativamente os mesmos lucros, mesmo que não contenham a mesma quantidade de trabalho. Esta opinião está, evidentemente em contradição com a teoria do primeiro volume, segundo a qual a mais-valia e o lucro, seriam devidas apenas ao trabalho. Marx, no seu terceiro volume, reconhece para a lei da oferta e da procura a mesma importância que lhe atribuem os economistas não socialistas.
Engels prometeu, na introdução do segundo volume, explicar, no terceiro, como a mais-valia de Marx se transforma nas formas especiais do lucro. É isso, de resto, o mais importante: nós gostaríamos muito de saber compreender a economia concreta segundo a teoria abstracta da mais-valia. Mas o terceiro volume não contem a explicação prometida.
«No «apêndice» do primeiro volume do Capital, Marx aceita a observação dum crítico russo, que diz não dar Marx leis abstractas mas leis de desenvolvimento especiais, segundo as quais é governada cada fase histórica. Segundo essa crítica, Marx reconhece para a produção capitalista, leis diferentes das do período económico precedente.
Há mais: no próprio primeiro volume, nota-se que na terceira edição «Marx modificou consideràvelmente as suas vistas sôbre a produtividade do trabalho mental, que reconhece muito mais decididamente do que na primeira» (3).
A propósito, deve dizer-se que aquela feliz expressão de trabalho não pago e por conseqüência a idea que ela exprime, é anterior a Marx. «Era uma expressão há muito tempo empregada e muito popular em Inglaterra, para designar o aumento do dia de trabalho que alguns patrões impunham aos seus operários sem lhes aumentar os salários. Por outro lado, os socialistas ingleses, que se diziam discípulos de Ricardo, tinham insistido muito no facto de que o lucro capitalista seria o resultado da retenção duma parte do produto do trabalho do operário (4).
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Quanto à afirmação de que o capital é apenas trabalho não pago, tem dois defeitos: é errónea e demagógica. É errónea porque o exame do mecanismo económico, extremamente complexo, mostra que a formação e acumulação têm, além do trabalho não pago, outras origens ou modos de formação. Reduzir tudo à simples retenção do valor de algumas horas de trabalho, é fechar os olhos àquela complexidade de fenómenos, que fazem do estudo da questão social um conjunto de dificuldades tais, que produzem muita hesitação antes de se fazerem certas afirmações. Quando estas se fazem de ânimo leve, porque assim convêm aos fins da propaganda, cai-se na demagogia. É o que acontece com a questão do trabalho não pago. Como se trata, de facto, duma grande injustiça e como se trata duma demonstração fàcilmente apreendida e que é, em grande parte verdadeira, não se quere perder tão boa semente de propaganda (5).
Como a uma injustiça se deve opôr a reivindicação que a remedeia, apareceu, lògicamente, a fórmula sedutora do direito ao produto integral do trabalho, aceita, é claro, com a mesma facilidade que a injustiça que ela devia remediar e portanto um bom instrumento de propaganda. Deve-se dizer que tudo isto nada tem com a boa fé dos propagandistas, que, não se dando ao trabalho de examinar as questões de perto, e outras vezes por um êrro de visão, julgam sinceramente estar prégando ou expondo a verdade.
O direito ao produto integral do trabalho não tem razão de ser e portanto de se reclamar, porque sendo impossível determinar o quanto dêsse produto - o que leva, quem o pretender fazer, ao Iabirinto da teoria do valor - é impraticável a sua aplicação. É uma reivindicação puramente teórica - e de falsa teoria - platónica nos seus efeitos, a não ser nos de agitação ideológica das massas, e por isso demagógica. A reivindicação é tão pouco recomendável que até se torna numa injustiça para os trabalhadores, porque é, afinal de contas, mesmo reduzindo o problema à sua maior simplicidade, como se êle estivesse resolvido e fôsse praticável, dar a cada um segundo a sua capacidade de produção e não segundo as suas necessidades, segundo o seu direito à vida.
Além disto há ainda que considerar-se - supondo sempre tudo resolvido quanto à questão da determinação do valor - que a vida de cada um não é apenas feita com aquilo que se ganha. Há uma infinidade de coisas de que gosamos, que não nos são dadas como produto, mesmo integral, do trabalho e que são a resultante das actividades humanas, que entrelaçando-se e sucedendo-se constantemente, produzem uma soma de conquistas progressivas de tôda a espécie. Não há portanto que falar, como reivindicação, em produto integral do trabalho, mas apenas em exigir da comunidade, para a qual vai a produção, o que é necessário para satisfação das necessidades correspondentes ao grau de civilização em que se vive.
Concentração capitalista
Da questão da mais-valia e da acumulação de capital, caminha-se para a da concentração capitalista. A evolução da vida social, a partir do aparecimento da grande indústria, pelos meados do século passado, tem-se caracterizado pela intensificação, sempre crescente, do predomínio do aspecto industrial, pela industrialização da vida colectiva. Êste fenómeno tornou-se muito mais intenso e geral com as necessidades da guerra e do post-guerra.
A que é devido o fenómeno? É devido às aplicações mecânicas das invenções scientíficas, o que produziu um enorme desenvolvimento da técnica industrial, a qual assenta, para ser profíqua, na divisão do trabalho ou sua especialização, o que permitiu uma produção cada vez maior. Portanto, quanto mais perfeita é a técnica de que um industrial dispõe, maior pode ser a sua produção. Quanto mais a indústria produz, mais produtos se podem vender. Mas para o desenvolvimento da técnica, isto é, para se dispôr do maquinismo necessário, é preciso adquiri-lo, o que se faz com dinheiro. Logo, de quanto mais dinheiro se dispõe, mais fàcilmente se aumenta a capacidade de produção e portanto de venda. Daqui resulta a necessidade, sempre crescente, de ter capital para a indústria, pelo sempre crescente desenvolvimento da técnica servida pela áplicação scientífica. Tudo se produz em movimento cada vez mais acelerado, porque a aplicação duma invenção suscita outras, cada vez com mais facilidade.
Dêste fenómeno de progresso industrial, resultaram os seguintes, de grande importância para o movimento socialista:
(a) Necessidade de concentrar capital, em grande quantidade, para o desenvolvimento industrial, o que produziu o aparecimento de várias formas de associar capitais, e associar industriais, pois a união faz a fôrça. O resultado dêste facto foi, pouco a pouco, a supremacia da grande emprêsa que matava ou mal deixava viver a pequena.
(b) Um número sempre crescente, e em fortes proporções, de operários industriais, aglomerados em fábricas e oficinas de dimensões cada vez maiores e maior complexidade e variedade de trabalhos.
(c) A esta complexidade e variedade de funções, dentro da fábrica, foi correspondendo o fenómeno inverso no operário, podendo dizer-se que quanto maior e mais variada é a vida da fábrica, mais mesquinho e monótono é o trabalho do operário.
(d) O desenvolvimento da técnica, exigindo uma maior soma de gente habilitada, produziu a necessidade do ensino técnico e da instrução geral.
(e) Dêste fenómeno e das relações constantes entre os operários, filhas da aglomeração, resultou uma maior compreensão da sua vida, das suas nenessidades, dos seus direitos e portanto um maior entendimento para defeza dos respectivos interesses, pois, por sua vez, viram que a união faz a fôrça.
É a visão que dêste desenrolar da industrialização da vida social, teve K. Marx, que constitue, quanto a mim, uma das marcas mais fortes da sua grande agudeza de espírito e extraordinário poder de dedução e que o levou a desenvolver a idea da lei da concentração capitalista, na qual, todavia, nem tudo é acêrto, como vamos ver. Mas antes, devemos marcar qual a posição de Marx, nesta questão fundamental para o socialismo, em relação aos socialistas que o precederam, dos quais, por ela, se distingue por completo.
No segundo quartel do século XIX, há cem anos, os socialistas utópicos tinham notado que se produzia um desequilíbrio entre os progressos scientíficos e o desenvolvimento da indústria, por um lado; e por outro, a incapacidade dos capitalistas em dirigirem uma produção que se tornava muito grande. Portanto, ou a indústria havia de definhar por falta de capacidade directiva ou teria de passar do domínio particular para o domínio colectivo, ou ser auxiliada directamente pelo Estado. Outra causa de desequilíbrio provinha da incapacidade dos técnicos, como diríamos hoje, em se entenderem com as aplicações scientíficas; isto é, o industrial fôra surpreendido pela sciência, que anda bem mais depressa.
G. Sorel mostra-nos como a situação se apresentava e o papel do capitalismo industrial: «Outrora, (6) as empresas capitalistas eram dirigidas por homens sem conhecimentos scientíficos, porque eram conduzidas à maneira dos negócios comerciais e usurários. Causava pavor verificar-se a desproporção que existia entre a capacidade dos directores de fábricas e a sciência do tempo. Hoje, a sciência, com os seus inúmeros progressos não é extranha, em nenhum dos seus ramos, aos engenheiros que dirigem as oficinas. O problema que mais tinha preocupado os utopistas, encontra-se resolvido pelo capitalismo contemporâneo; se ainda há excepções, é porque o regímen industrial ainda não triunfou por tôda a parte e a aristocracia financeira continua exercendo a sua má influência num certo número de negócios.
O problema da organização da oficina não parecia menos difícil que o da sua direcção. A Idade Média legara hábitos de brutalidade entre os «companheiros»; era pois natural que a disciplina das fábricas fôsse também brutal. Os contramestres tinham, de resto, que lutar contra a má vontade dos operários, que não podiam habituar-se fàcilmente a lidar, por exemplo, com teares complicados que exigiam muita atenção e movendo-se ràpidamente. Mas esta educação acabou por se fazer, sem recorrer aos meios mais ou menos burlescos inventados pelos utopistas. Assim, o capitalismo resolveu os problemas para os quais os utopistas procuravam soluções perfeitamente vãs; creou as condições que hão-de permitir a passagem para uma forma social nova; o socialismo não terá que inventar o maquinismo scientífico nem que ensinar aos homens a maneira de se servirem dêle com o maior proveito; o capitalismo industrial resolve todos os dias, por tentativas e progressivamente, êsse problema. Marx, descobrindo esta formação das condições da sociedade nova, tornou todo o utopismo inútil e até um tanto ridículo».
O que sobreudo permitiu a Marx poder expôr a idea da concentração capitalista, foi a evolução do industrialismo. No seu tempo, já a indústria se diferençava muito do que fôra vinte anos antes, no tempo de Luís Felipe, mostrando já as caracteísticas do seu papel predominante. Êste facto, as ideas expostas por outros socialistas e a dialéctica de Hegel (veja-se a segunda fase da sua formação ideológica) constituem os elementos de formação da lei da concentração capitalista. Esta diz-nos, em substância, o seguinte:
Pela evolução industrial, o capital tende a agrupar-se, como vimos, a condensar-se e a ficar, portanto, pertença dum número cada vez menor de indivíduos. Como conseqüência, vai desaparecendo o pequeno capitalista e aumentando, tanto por êste facto como pelas necessidades da expansão industrial, o número de proletários, cuja existência depende do trabalho dado pelo capitalista.
Dêste fenómeno deduzia Marx que, poduzindo-se, dum lado, aumento de riqueza e diminuïção do número de ricos, se produzia, do outro, aumento do número de pobres, aumento de miséria colectiva, chegando êste estado de coisas a atingir um tal grau, que o equilíbrio social cada mais instável, acabava por se romper, produzia-se fatalmente a revolta dos miseráveis e dos oprimidos e a expropriação dos últimos capitalistas, entrando-se assim na fase socialista.
Das ideas utilizadas por Marx para a evolução da concentração capitalista, destaca-se, por exemplo, a de Sismondi, que dizia que «pela concentração das fortunas num pequeno número de proprietários, o mercado interior limita-se cada vez mais e a indústria vê se obrigada a procurar saída nos mercados estrangeiros, onde produzirá graves perturbações». Como se vê, Sismomdi previa a concentração e também a expansão, em busca de mercados, que é a mãe do imperialismo. Por um lado, F. Vidal, com uma previsão quási profética, dizia, trinta anos antes de Marx, quando o maquinismo estava ainda na infância: «O trabalho tornou-se uma mercadoria que se oferece cada vez mais e se pede cada vez menos, uma mercadoria que o capital compra com abatimento. O trabalhador, liberto da gleba e das corporações, está d'oravante amarrado à oficina e talvez não passe muito tempo em que até poderá ser dispensado. O homem tornou-se um simples acessório da máquina, um anexo das coisas; estando-lhe subordinado, está dominado, possuido pelo capital e à mercê do capitalista (7).
Pequeur, em 1838, observando o que se passava em Inglaterra, o país mais industrializado, de grande pauperismo e supremacia financeira, dizia, prevendo os perigos duma situação semelhante para a Europa: «ou a Europa reproduz o triste espectáculo que oferece a Inglaterra ou a indústria terá de tomar uma forma democrática, pela formação de sociedades em pequenas acções e pela introdução dum regimem representativo nas oficinas».
Quanto às conseqüências da concentração capitaliata, as coisas não parecem passar-se com tanta simplicidade, tanto em face da lógica como dos factos.
Não se compreende bem como é que esta sucessão de factos: concentração de capitais, diminuïção do número de capitalistas, aumento do número de proletários, aumento da miséria dêstes, maior subordinação, degenerescência e maior exploração da classe operária, produz, num dado momento, a expropriação dos últimos capitalistas e o conseqüente triunfo do proletariado. Corno é que êste tremendo triunfo, e o comêço duma sociedade nova, sai dum proletariado em tão tristes condições?
Ou esta revolução se operou milagrosamente ou a evolução do capitalismo e do pauperismo proletário não seguiu a linha indicada. Como não podemos admitir o milagre temos que admitir o segundo caso e ver o que se passa, embora nas suas linhas gerais, apenas, para não caírmos, com desenvolvimentos esclarecedores, na confusão a que tanta vez êstes conduzem.
*
A questão reduz-se ao seguinte: Os factos não dão a Marx toda a razão.
Se é certo que a concentração capitalista se produziu, o proletariado aumentou de número e a miséria do operariado, nas grandes aglomerações industriais, é um facto sempre fácil de verificar, não é menos certo que, a par da redução do número de empresas industriais pela sua aglutinação, indústrias novas iam surgindo, filhas do progresso scientífico e técnico. A complexidade da vida social é que se desenvolveu num grau que Marx não previu e da qual resultaram fenómenos que desmentiram as suas previsões. Um dêles, é o da multiplicação das indústrias, sobretudo das indústrias subsidiárias, as quais, embora tendam geralmente a reunirem-se, a concentrarem-se, dando assim razão à parte fundamental da idea de Marx, conservam-se muito tempo isoladas, individualisadas. E destas indústrias nascem constantemente outras novas, porque as invenções, os aperfeiçoamentos as fazem aparecer.
Este facto dá em resultado que a tal diminuição do número dos capitalistas não se produz ou pelo menos produz-se, o que é muito discutível, mas muito lentamente.
Desta complexidade resulta que as classes médias não tendem a desaparecer tão ràpidamente como a lei da concentração capitalista fazia supôr. Além disso, Marx parece ter pensado apenas na vida industrial-fabril da sociedade e ter prestado pouca atenção à vida agrícola (que forma a grande maioria da população em quási todos os países) e na qual o fenómeno da proletarização oferece aspectos muito diferentes, assim como o regime da propriedade, que tende a dividir-se mas não a desaparecer, em todo o caso, a seguir uma evolução bem diferente da notada na evolução industrial. Para estas diferenças contribue poderosamente o factor psicológico das populações rurais, que não pode deixar de se ter na devida conta, para a compreensão e explicação dos factos.
Por outro lado, não se produziu o crescimento geral da miséria do operariado, porque se produziram fenómenos que o desmentem. A êste respeito, partidários e adversários, jogam com as estatísticas do movimento da população, das greves, de tudo, enfim, a que dá lugar a vida do operariado, interpretando números, significados de palavras – como se dá, por exemplo, com o termo miséria - textos de Marx, etc., para mostrar que êste acertou ou se enganou, o que é muito bom para estabelecer confusão. O que é evidente é que, considerando-se a evolução da vida do proletariado no seu conjunto, pondo de parte factos isolados e acidentais, nota-se uma melhoria de vida material, intelectual e moral. Não há sofisma nem retórica que contradigam êste facto; basta olhar e comparar a vida do trabalhador industrial em épocas diferentes, para se verificar a verdade.
Donde provém esta melhoria - relativa, é claro, como a miséria, que também é relativa - que se manifesta em contrário da tendência exploradora e desumana, do capitalismo? De várias causas: das reclamações e revoltas do operariado; da organização operária para o barateamento e outras melhorias (cooperativismo); da multiplicação e facilidade de aquisição de objectos de uso comum, de toda a espécie, que melhoram e afinam a vida; da generalização da instrução e da cultura escolar e sobretudo não escolar; uma comodidade geral maior, dada pela melhoria nos serviços públicos; por melhores condições de trabalho, quer arrancadas ao patronato pela acção do operariado, quer pela acção dos poderes públicos, quer ainda pela iniciativa do patronato inteligente, que compreende que só ganha com isso, etc..
E é porque as coisas se passam assim, isto é, porque aumenta o bem-estar material, a capacidade intelectual, a independência moral do proletariado e a consciência do seu papel na sociedade e não pelo aumento de miséria, de exploração, de subordinação e degradação, que se caminha, de uma maneira ou de outra, o que é secundário para êste caso, para a expropriação dos capitalistas, para o triunfo do proletariado, para a vitória do mundo do trabalho, para a vida socialista, enfim, inevitàvelmente, pela evolução necessária e fatal do movimento social, a que se não escapa e que é a demonstração da verdade, da dialéctica hegeliana empregada por Marx, expurgada dos seus defeitos, (porque os tem) melhorada e completada pelo método indutivo, do estudo dos factos na vida económica dos povos.
Materialismo histórico
De todas as ideas de Marx, é esta a mais interessante, a mais atraente, a que contém mais sólida porção de verdade e a mais justamente célebre. Tem sido vulgarizada por todas as formas, não havendo ninguém, medianamente culto, que não tenha lido dela alguma exposição, larga ou resumida.
A afirmação fundamental, em que assenta a teoria, é a seguinte: das condições da produção económica, que satisfaz as necessidades mais importantes e imediatas dos homens, dependem todas as formas sociais, políticas ou mentais da sua vida.
A designação materialismo histórico ou concepção materialista da história, provém da necessidade, que sentiu Marx, de aplicar aos fenómenos sociais, ao conjunto da vida social e à sua evolução, a filosofia materialista de que se fizera adepto. (Formação ideológica, terceira fase). Como, segundo êle, é a vida material, a actividade humana tendente à satisfação das necessidades, que está na base de tudo que o homem faz; ou como diz Engels, os homens antes de tudo, alimentam-se, abrigam-se e agasalham-se, esta forma de conceber a evolução social tomou naturalmente o nome de materialista e êsse nome tem conservado. Todavia outra designação apareceu, que é, incontestàvelmente, mais justa, porque sintetisa com mais clareza e exactidão, a idea de Marx: é a de determinismo económico. São os fenómenos económicos, os de produção (que podem mesmo não ter um aspecto claramente material), que determinam, são causa de todos os outros.
A parte mais interessante desta concepção, a que produziu uma verdadeira revolução na história, é a derrota sofrida pela concepção idealista e pela providencialista, com que antes se procurava explicar a formação das sociedades e a sua vida. A diferença entre a teoria do determinismo económico e as outras pode resumir-se no seguinte:
Antes, explicavam-se todos os fenómenos sociais pela intervenção duma influência espiritual: a Providência divina, que tudo ordenava, que tudo dispunha na vida dos homens, para bem dêles e maior glória de Deus. Esta maneira de conceber a vida social e portanto a história, era cheia de lógica e harmónica com a sciência do tempo. Pois se Deus é a causa de tudo, está em toda a parte, pode e sabe tudo, noções de cuja verdade ninguem duvidava, onde se havia de procurar a razão de ser de tudo que na vida dos homens se passava, na sua vida de relação, na paz e na guerra, nas instituições de toda a espécie, senão na Providência, na vontade divina?
Vieram depois outras teorias, fundadas na inteligência humana. O que move os homens, é o pensamento humano, são as ideas, inatas, superiores às contigências do mundo, donde resultou a teoria do homem superior ser o agente da modificação na vida social e outras, fundadas na idea do que é a inteligência humana o agente modificador, o agente progressivo das sociedades.
Com elas apareciam já outras concepções que sujeitavam, pelo contrário, toda a actividade do homem à natureza, fazendo dêle um absoluto dependente do meio em que vive. Pouco a pouco, foi-se desbravando o terreno, cada um trazendo algum elemento de contribuïção para uma visão mais nítida, ao mesmo tempo que o progresso das sciências contribuia, por seu lado e poderosamente, para a modificação na concepção da história. Todos procuravam sempre o mesmo, que era responder a esta pregunta: que é o que move as sociedades humanas ou, por outras palavras, como se explica o dinamismo social? Estamos por alturas do segundo quartel do século XIX, quando os estudos históricos se intensificam e adquirem mais carácter científico. As seguintes palavras de Enrico Ferri, resumem, com muita clareza, o que sepassou (8):
«Auguste Comte e principalmente a sua escola, disseram: as ideas são fòrças directoras, a evolução social é determinada pelas ideas. Depois da escola de Comte, vem a de Spencer e diz: Não; a evolução social não é determinada pelas ideas, as ideas não são mais que a última floração da vida psíquica; antes das ideas há as emoções e os sentimentos, e a escola de Spencer diz: o que move a actividade humana, individual e colectiva, é o sentimento. O homem procede, não como pensa, mas como sente».
«Há nisto tudo uma grande parte de verdade, mas não é a verdade completa. Marx veio e disse: Não; não são as ideas nem os sentimentos, são as condições de existência que determinam no homem e na colectividade; os sentimentos que, por sua vez, determinam certas ideas. Vos não vêdes, diz êle, senão a superficie, senão o verniz superficial, quando afirmais que o facto social e determinado pela idea, porque não vedes que antes da idea está o sentimento e antes do sentimento estão as condições de existência, que determinaram tal ou tal sentimento, tal ou tal idea.
«Eis a idea de Marx que, quanto a mim, é a maior descoberta scientífica que a sciência social fez. E facto curioso, ela aparece ao mesmo tempo que as outras grandes conquistas da sciência. Foi por 1855 ou 1856 que Darwin publica o seu livro sôbre a Origem das Espécies, que Spencer publica os Primeiros Princípios, que disciplinavam a lei universal da evolução e que Marx publica a Crítica da Economia Política, na qual expunha a idea de que são as condições de existência que determinam as ideas e os sentimentos dos homens».
Não devemos esquecer Saint-Simon, pelo menos, que investigando metòdicamente a história, consegue ver a fôrça histórica da vida económica. «Observa, que durante vinte cinco anos a constituïção de França muda dez vezes, o que o leva a pensar que a organização política é uma manifestação de ordem secundária e não a base da organização social, a qual se encerra na lei da propriedade. Em última instância, a sociedade, segundo Saint-Simon, não assenta sôbre manifestações ideais, mas sôbre factores de ordem material, isto é, sôbre a «indústria» ou o trabalho. É no trabalho que residem todas as fôrças reais da sociedade».
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O valor do determinismo económico provém de que êle constituiu e forneceu à sciência social um admirável instrumento de investigação histórica, de harmonia com a teoria scientífica da evolução e da transformação, que, por aquela época animava toda a sciência. Está em ter determinado «as leis gerais do movimento, que se manifestam na história das sociedades humanas».
O valor da teoria não está na verdade do que Marx anunciou; está no método que permitiu às sciências sociais avançarem num terreno firme pela sugeição da evolução social a directrizes, a leis que se vão pouco a pouco determinando e fazendo da sociologia uma sciência positiva, e, por isso mesmo apta a realizar, como sucedeu com as outras sciências, progressos reais, donde dimana, para os homens, progresso no seu bem-estar, em todos os aspectos da sua vida. A inexatidão do determinismo histórico poderia provar-se completa, que o método não deixava de ficar de pé.
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Reconhecido o mérito da descoberta e prestada a devida homenagem, pregunta-se: o materialismo histórico ou melhor, o determinismo económico é verdadeiro em absoluto? As coisas passam-se exatamente como disse Marx? Não.
Como vimos com o direito ao produto integral do trabalho e a concentração capitalista, as coisas não se passam com tanta simplicidade.
Postas assim as relações de dependência de toda a vida social das condições económicas, os indivíduos sem preparação que as ouvem ou leem, são levadas a formular juízos e a tirarem conclusões cheias de erros.
Vamos exemplicar, com um texto ao alcance de todos, para mais fácil verificação do que segue.
Marx, no prefácio da Crítica da Economia Política, diz o seguinte (9):
«No decurso da produção social da sua vida, os homens contraem, entre si, determinadas relações, indispensáveis, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento das suas fôrças produtoras materiais. O complexo destas relações de produção constitue a extrutura económica da sociedade, base real sobre que se erige o edifício jurídico e político e à qual correspondem formas determinadas da consciência social. O modo de produção determina o processos social, político e espiritual da vida em geral. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência; é, pelo contrário, a sua existência social que determina a sua consciência.
O importante da transcrição é o último período, importância que muito bem se reconheceu, porque se sublinhou. É uma afirmação feita, como se vê, de forma peremptória. Outra afirmação, esta de Engels, no livro citado, pág. 78:
«As ideas e as crenças de cada época, explicam-se igualmente, da maneira mais simples, pelas condições de vida económica dessa época, e pelas relações sociais e políticas decorrentes». (Esta idea repete-se mais duma vez no volume).
Que necessidade há de fazer uma afirmação daquelas (a relativa à determinação da consciência) como que a sintetizar tudo que se disse antes, como se se tratasse duma verdade tão evidente, que não precisa de demonstração e que não deve suscitar dúvidas? Em primeiro lugar, é uma inutilidade porque não vai juntar qualquer esclarecimento ao que está dito antes; depois é uma afirmação que nem o seu autor nem ninguém é capaz de demonstrar. Para que se faz então, se não é para vincar, no espírito do leitor, a concepção materialista em oposição ao espiritualismo? Mas as noções recolhidas e aceites dessa forma, o que são, senão preconceitos?
Quanto à afirmação de Engels, que efeito pode ela produzir em espíritos pouco cultos, senão o de que, desde que se saiba como os homens duma dada época, comem, se vestem, se abrigam, se transportam, se fica sabendo, da maneira mais simples, quais as suas ideas e as suas crenças? Que é isto, senão encerrar o espírito crítico dos outros em fórmulas simplistas, num assunto da maior complexidade e dificuldade e formar preconceitos?
Apresentando as ideas de Marx e Engels, assim, sem restrições, sem comentários, como se nada se tivesse dito nem houvesse a dizer de diferente, não creio que V. Ilitch tenha prestado um bom serviço. Ele que se mostra tão profundamente conhecedor do marxismo, não podia ignorar, por exemplo, que Engels rectificou o seu determinismo económico.
Em 1895, Engels, referindo-se às primeiras exposições da teoria do materialismo histórico, dizia que elas tinham sido feitas quando «ainda não era tempo, não havia lugar nem oportunidade para fazer justiça a outras considerações, que dizem respeito e afectam o factor económico (10)». E depois: «A evolução política, legal, filosófica, religiosa, literária e artística, assenta sôbre a evolução económica. Mas todas elas reagem umas sôbre as outras e sôbre a base económica».
«Não é que a situação económica seja a única causa activa, e tudo o mais apenas um efeito passivo, mas sim que se trata duma reciprocidade mútua sôbre a base da necessidade económica, que é, em última instância, a que sempre se impõe. Os próprios homens é que fazem a sua história, mas num meio dado, que as condiciona e sôbre a base de relações que encontram anteriores a êles, entre as quais, as económicas podem ser influenciadas pelas outras, políticas e ideológicas; mas aquelas são em última instância, as decisivas e constituem o fio conductor sem solução de continuidade que serve de guia explicativo... Quanto mais afastado do económico está o campo que devemos estudar e mais perto do puramente abstracto e ideológico, verificaremos que mais obstáculos ou acasos apresenta o seu desenvolvimento e maiores curvas tem a sua espiral. Mas se traçarmos a linha média da espiral, reconheceremos que quanto maior fôr o período examinado e mais extenso o campo em questão, mais de perto e mais paralelo à curva, caminhará a linha da evolução económica (11)».
«Nos escritos dos últimos tempos de Engels, diz Wilbrandt (12), a ordem causal - económica, social, política e ideológica em geral - já não aparece traçada em termos tão radicais. Notam-se certas diferenças nos pontos seguintes: origem e acção das ideas; valor da tradição; influências recíprocas em vez da série de causa a efeito numa direcção única; processos autónomos no campo espiritual - sciência e influência dêstes nos estados sociais - por exemplo, na legislação protectora do trabalho; - importância da raça». Isto significa, em suma, que Engels vira, por fim, que o factor económico não tem o papel exclusivo, de preponderância absoluta que primeiro lhe fôra atribuído.
Há ainda a notar o seguinte, quanto ao papel que Marx e Engels atribuíam ao materialismo histórico, e que lhe tira a importância de elemento causal.
No citado trabalho de G. Sorel (Les Polémiques pour l'Interprétation do Marxisme) lê-se o seguinte: «Croce, entende que é preciso ver na concepção materialista da história, apenas uma indicação para investigações. Poder-se-iam citar muitas passagens em que Engels a considera também como um instrumento de trabalho, que Marx e êle tinham adoptado desde 1845, cada um por seu lado. Engels cita freqüentemente o folheto de Marx intitulado XVIII brumário, como um modêlo perfeito da aplicação do método. M. Kautsky considera também êste trabalho como o verdadeiro modêlo da narração histórica no ponto de vista marxista. Para quem estuda êste opúsculo, não pode haver a menor dúvida; Marx realizou as suas investigações no sentido que Croce indica: esforçou-se por ligar as explicações dos factos às diferenciações económicas que revela a análise da sociedade civil. Mas isso não é uma grande inovação, sendo fácil verificar que Proudhon, estudando os mesmos acontecimentos, num escrito da mesma época, (La révolutiori sociale démontrée par le coup d'Etat) procurava fazer a mesma coisa.
O resultado obtido por aquela forma simplista e absoluta, de apresentar a espíritos pouco esclarecidos o determinismo económico, é que êstes passam a encarar os problemas sociais como coisas cuja resolução não oferece dificuldade. Para êles, tudo está feito desde que se mudem as condições económicas, mudança que tem o condão de transformar tudo o mais; e inversamente, que é inútil provocar mudanças que não sejam económicas, porque a sua influência é nula ou desprezível na modificação da extrutura social. A política social que lògicamente deriva duma concepção destas, é a de pretender operar no que há de mais complexo - a vida social - como se esta fôsse um corpo simples, movido por uma e única causa, o que não pode deixar de conduzir a êrros profundos e grandes decepções.
*
Pode dizer-se que já ninguém considera o factor económico como único determinante da vida social.
Evidentemente que as necessidades de ordem económica são as mais importantes, sem a satisfação das quais a vida se torna impossível e que, por conseqüência, as instituições que regem a satisfação dessas necessidades, são das básicas nas sociedades e às quais se vai sempre parar, em última instância, porque, primeiro que tudo, está viver. Mas êste facto é uma coisa e a relação de dependência dos outros fenómenos sociais para com os económicos, é outra.
É esta distinção que, não se fazendo, estabelece uma grande confusão e julga-se assim que a sciência, as religiões, a arte, etc., toda a vida espiritual enfim, é produzida pela vida económica.
A confusão está no seguinte: Engels diz uma verdade, quando afirma que «os homens, antes de poderem ocupar-se de política, de sciências, de arte, de religião, devem primeiramente comer, beber, alojar-se e vestir-se»; desta verdade tira imediatamente a conseqüência de que «os meios de produção, o grau de desenvolvimento económico dum povo ou duma época formam a base de onde se deduzem e se explicam as instituições do Estado, as concepções jurídicas, a arte e mesmo a religião dos homens».
Isto, á primeira vista, é simples, claro e atraente. Simplesmente, o que Engels deveria ter feito, era explicar como é que se realiza essa ligação de dependência, isto é, como é que, por exemplo, a sciência nasce das condições económicas.
Mas há umas perguntas a fazer aos partidários do determinismo económico: Se as condições económicas são a base onde tudo o mais assenta, a causa donde o resto da vida social deriva, como apareceram elas? Por geração expontânea? Se não, qual é a causa delas? De que são elas efeito e como se explica que, em qualquer grau de desenvolvimento, se encontrem condições económicas diferentes?
Se a causa desta diferença é o meio telúrico, (o que parece ser verdade) como se explica o progresso das condições económicas, que se observa em tantos pontos diferentes do globo?
O que influe, o que actua num agregado humano, vivendo num determinado meio, para os seus componentes melhorarem as suas condições económicas?
O leitor que queira, de boa vontade, responder a todas estas preguntas, reconhece certamente, mesmo que responda, que a questão não é tão simples como parecia. E verifica também o seguinte: é que, admitindo que as condições económicas produziram os fenómenos de ordem scientífica, religiosa, moral, artística, etc., êstes autonomizam-se, passando a ter uma evolução própria e actuando, por sua vez (como já vimos que dizia Engels) nas condições económicas.
Êste entrelaçamento de acção duns fenómenos sôbre outros, esta complicação de causas e efeitos, em que as condições económicas tanto são influenciadas como influenciam, começa tão cedo na vida dos povos, que não se conhece a vida de nenhum deles onde essas influências recíprocas se não produzam, não podendo determinar-se, objectivamente, o seu cornêço. Pode alguém determinar em que circunstâncias começa a inteligência a ser modificada pelas condições económicas, se é impossível provar que foram estas que produziram aquela? Donde vem o progresso, se não é da acção da inteligência?
Pode dizer-se, sem receio de errar muito, que quanto mais uma sociedade evoluciona, se eleva e afina em civilização, mais importância adquirem os fenómenos não económicos.
Tanto assim é, que a medida de avaliação da civilização dum povo, está na sua cultura scientífica, artística e moral, isto é, nas manifestações da sua vida espiritual. O facto que se observa modernamente, com os efeitos da expansão colonial, é urna prova disso: regiões coloniais e países novos possuírem, introduzidos pelo capitalismo industrial e comercial, os mais modernos apetrechamentos económicos; transportes, maquinaria, bancos, armazens, etc., aperfeiçoamentos enfim de ordem económica, superiores aos de alguns países europeus. Todavia, ninguém se lembrou de os considerar de civilização superior a êstes, antes pelo contrário.
Quando Bernstein diz: «O grau de evolução a que actualmente se chegou, deixa aos factores ideológicos, e mais especialmente aos factores éticos, o campo mais livre do que antes», Kautsky responde: «Não há lugar, no materialismo histórico, para uma moral independente das fôrças económicas e superior a elas»; e Sorel pregunta:
«É então verdade que as reformas sociais realizadas durante êste século, tenham sido feitas sem que preocupações morais tenham desempenhado um grande papel? Em que pensava então Marx quando, no prefácio do Capital, falava dos motivos elevados que se juntam às considerações de interesse bem entendido, para levar as classes dirigentes a fazer desaparecer os obstáculos que embaraçam o desenvolvimento das classes operárias?»
Assim se verifica que também Marx, espírito menos filosófico do que Engels (Engels mais filosófico, Marx mais económico) entendia que os factores ideológicos, motivos elevados, influíam nos económicos neste caso, os mais baixos.
Para terminar, transcrevo as seguintes palavras de Macdonald, do já citado trabalho Socialismo, porque contêm urna conclusão muito acertada:
Macdonald comenta, como se segue, as palavras transcritas de Engels, de atenuação ou rectificação ao determinismo economico: «Assim, o problema resolve-se, por si mesmo, dentro do valor relativo das diversas fôrças creadoras, no caso melhor; e no pior, numa discussão vã, semelhante à outra, para se saber se foi o ovo ou se foi a galinha que primeiro apareceu. Quando a teoria era nova, teve que lutar violentamente para se defender e teve que ser reduzida a dogmas duma grande rigidez. Esta é a historia da maior parte das teorias. De comêço pretendem imperar em absoluto; depois contentam-se em que se lhes reconheça uma importância relativa».
A Luta de Classes
O famoso Manifesto Comunista, de 1848, depois dum ligeiro introito, começa assim: «Toda a história da sociedade humana, até á actualidade, é a história da luta de classes».
O materialismo aplicado ao estudo da vida social, levou Marx a estabelecer, por um lado, o determinismo económico e por outro uma concepção histórica, filha da dialéctica hegeliana, baseada portanto no mesmo princípio de evolução e substituição. (Formação ideológica de Marx, 2.ª fase).
Por êste método foi Marx levado a procurar a razão de ser da sucessão dos factos, das instituições que se substituíam umas ás outras, qual o fenómeno que caracterizava todo êsse movimento, a cadeia que os ligava uns aos outros, o motivo que os determinava. Quere dizer: Marx queria achar o fenómeno social, pelo qual se compreendesse toda aquela sucessão de factos, se compreendesse a história, para tirar dela os ensinamentos necessarios para o presente e olhar para o futuro com probabilidades de acertar. Êste fenómeno tinha de possuir uma qualidade indispensável para poder desempenhar o seu papel de ligação e determinação dos outros: tinha de ser constante, isto é, manter-se sempre atravez dos tempos e sempre com a mesma característica, ao passo qne os outros iam desaparecendo. Só assim é que êle poderia constituir o traço de ligação, que dava a explicação da seqüência dos acontecimentos. Karl Marx encontrou, nessa investigação, a luta de classes.
Depois daquela afirmação do comêço do manifesto, que sintetiza o resultado das investigações feitas, os autores explicam:
«Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre artífice e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, erguidos uns contra os outros num conflito permanente, teem travado uma luta sem tréguas, ora disfarçada ora ás claras; uma luta de que resultava umas vezes uma transformação revolucionária da sociedade, outra a destruição das duas classes em conflito».
A explicação desenvolve-se ainda para que se chegue á idea de que a evolução, que se opera na vida das sociedades, é determinada pela luta de classes. Mas em que campo se trava essa luta? No campo economico: Uns pretendendo obter mais para viverem melhor, os outros opondo-se a essa pretenção, porque é á sua custa que ela se satisfaz. A luta é portanto travada em vista do bem estar económico, para o que pode revestir várias modalidades, aparecer com aspectos diferentes. É neste ponto que a idea da luta de classes se conjuga com o determinismo económico, formando corpo com êle, na concepção marxista da evolução social.
A idea de duas classes em luta na sociedade, não era nova.
Brissot de Warbille já afirmava, em 1771, que a sociedade está dividida em duas classes: a dos cidadãos proprietários e a outra, mais numerosa.
Blanqui, em 1825, dizia: «Em todas as revoluções não tem havido mais que dois partidos em luta: os que querem viver do seu trabalho e os que querem viver do trabalho dos outros. Patrícios e plebeus, escravos e libertos, guelfos e gibelinos, rosas vermelhas e rosas brancas, cavaleiros e populares, não são mais do que a variedade da mesma espécie».
Estas palavras, se nos lembrarmos das do comêço do Manifesto Comunista, fazem-nos pensar numa influência real e directa, nos autores do manifesto.
K. Grün disse, em 1844, que a história não tem sido até agora, senão a dos afortunados, dos abastecedores, dos vitoriosos contra os desgraçados, os deserdados, os oprimidos.
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As formas mais gerais que caracterizam as relações de dependência do dominado para com o dominador, e do vencido para com o vencedor, é que marcam as grandes épocas da história dos homens, que são caracterizadas pelas condições e respectivas instituições económicas.
É assim que a escravidão do vencido marca um progresso relativamente à sua destruição, vindo depois a servidão e em seguida o salariato, marcar outros tantos progressos e outras tantas épocas históricas, tudo sempre fundado na vida económica, na maneira como os homens satisfazem as suas necessidades materiais, isto é, na exploração da terra, nas artes industriais e na permuta dos produtos.
As instituições que definem cada época, são a organização social que serve para manter os privilégios, as regalias da classe dominante. Mas pela própria evolução das condições económicas, (evolução produzida pelas mudanças, pelas inovações que trazem os inventos que melhoram a vida, as viagens e descobrimentos de terras que trazem novos produtos, costumes novos, modificações na forma de trabalhar, de utilizar a matéria prima, de aumentar a produção, de generalizar a um maior número de indivíduos o seu consumo pela melhoria nas condições da troca, no comércio) por essa evolução, produz-se um grande desequilíbrio entre aquelas instituições e a actividade económica a que elas já não correspondem, que já não podem enquadrar. O mal-estar manifesta-se, vai-se agravando, até que, por uma luta mais ou menos prolongada e intensa, as velhas instituições são substituidas por outras adaptadas às novas condições económicas, que as reclamavam.
E assim, de transformação em transformação, de revolução em revolução, se vai realizando o progresso humano, o qual tem, como se vê, a sua base na luta de classes. Por conseqüência, a luta de classes é uma condição fatal, iniludível do progresso, ainda que dolorosa e por isso mesmo lamentável.
É esta, dada grosso modo, a explicação da tese marxista da luta de classes. A tese é verdadeira? É falsa? Se é verdadeira, não há nada a regeitar, a rectificar, tendo que se aceitar em bloco? Dada a íntima ligação da luta de classes com o determinismo económico, o que se diz dêste pode aplicar-se aquela, como fàcilmente se compreende. Vindas da mesma origem, constituindo aspectos, modalidades do mesmo princípio, os defeitos e qualidades duma tese são os defeitos e as qualidades da outra.
O defeito principal desta tese (como das anteriores, constituindo assim o defeito fundamental das ideas marxistas) é ser demasiado simplista, não atender à complexidade dos fenómenos e á sua interpendência. Se a vida social se desenrolasse segundo a lógica que o cérebro formula, as ideas de Marx e Engels eram perfeitas, completas; não haveria mais nada a dizer, mais nada a fazer do que assistir ao desenrolar dum filme com o programa na mão. Mas as coisas não se passam assim. A complexidade da vida está cheia de mistérios, de enigmas, de surprezas, que a cada passo nos desorientam, nos obrigam a rectificar opiniões e a ver nas relações dos fenómenos que se produzem, nos seus efeitos, desmentidos a regras e leis que julgávamos bem estabelecidas. É por isto que as teses de Marx, sendo verdadeiras em princípio e constituindo (o que é o seu grande valor) um fio condutor e um magnífico instrumento de trabalho, de investigação, teem de ser rectificadas, esclarecidas, completadas.
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Se a luta de classes é a causa fundamental, o factor determinante da evolução social, das transformações históricas, há uma pregunta a fazer. É a seguinte:
Se tudo, em última instância, se reduz ao antagnisnio de duas classes - exploradores e explorados ou dominadores e dominados - donde provém a revolta dos segundos contra os primeiros, ou porque não se resignam os oprimidos a continuar sofrendo a opressão e a exploração?
Medite o leitor nesta pregunta e reconhecerá que, como sucedeu com o determinismo económico, a questão não é tão simples como à primeira vista pode parecer.
Por que fôrça são êles animados, nos seus movimentos de reclamação, de protesto, de revolta, se não é por um sentimento de justiça, pela idea de que teem direito ao que pretendem?
Como nasceu a idea de justica? Como tantas outras manifestações do espírito humano, vem de muito longe, mergulhando certamente as suas raízes na vida animal. Começa manifestando-se de forma obscura, grosseira, titubeante, desenvolvendo-se, aclarando-se, definindo-se cada vez com mais vigor e mais amplidão, à medida que toda a vida social se engrandece e afina. Sem essa idea, não se pode explicar que a reivindicação se manifestasse. Ora, por mais que se procure, não se pode encontrar a forma como as condições económicas, por piores que se apresentem, por mais dolorosas que sejam, possam suscitar o movimento, a idea de justiça. Quando muito, o sofrimento produzirá a revolta, mas nunca a reivindicação; é esta que, apoiada na fôrça do revoltado, produz a mudança, a transformação, a revolução, isto é, a melhoria da classe oprimida, realizada à custa das regalias da classe opressora, que as vê diminuídas.
Temos forçosamente que considerar a idea ou o sentimento de justiça tão primordial, pelo menos, como as condições económicas e considerar êstes dois factores de evolução, como actuantes na transformação social. Desta consideração resulta que o sentimento e a idea de justiça desempenham, na história um papel de grande importância, tão grande como o das condições económicas.
A luta de classes é portanto originada pelos dois factores: desigualdade de condições de vida e sentimento ou idea de justiça, indispensáveis ambos, nada podendo um sem o outro. Como é que a desigualdade económica havia de chegar à reivindicação, sem perceber que havia injustiça nem desigualdade? E como é que a idea de justiça se havia de manifestar sem um campo de aplicação? Mas se assim é, temos que chegar agora a outra verificação.
A idea de justiça, aplicando-se a remediar o que de injusto houver nas condições de vida, aplica-se apenas sob a forma de luta, de guerra entre oprimidos e opressores? Basta olhar para a vida social, em qualquer das suas fases, (e quanto mais elevado é o nível social mais o facto se produz), para se verificar que as transformações progressivas não são devidas ùnicamente à luta de classes, que a idea de justiça procura combater a injustiça por mil formas e não apenas pela luta de classes.
Bem sabemos que os marxistas dizem que esta luta se manifesta de diferentes maneiras e até por formas aparentemente pacíficas. Mas, concedendo mesmo à significação do termo luta, a mais lata acepção; sabendo que se pode, por profundeza ou subtilezas de interpretação, descobrir a luta de classes onde ela mais dificilmente se revela; e contando até com o talento sofístico para descobrir a luta onde ela se não revela, pode dizer-se que há inúmeros casos em que a injustiça é combatida e o progresso se realizou, tanto no campo económico como em todos os outros, sem recorrer à luta de classes.
É que além da idea de justiça, há uma série de ideas ou sentimentos, tão antigos como o homem, que vêm reforçar aquela no trabalho de remediar o mal ou acabar com êle, de realizar o progresso: a solidariedade, a bondade, a compreensão da utilidade do esfôrço em comum, etc. ; Tudo isso que o homem tem em si de bom, a par do que tem de mau, é que forma a sorna de elementos actuantes nessa admirável forma de actividade humana que se chama o auxílio mútuo; e é com muita razão que Kropotkine pôs ao seu excelente trabalho L'Ent'raide, o sub-título «Um factor da evolução».
Quando a doutrina do determinismo económico era prègada dum modo absoluto, a luta de classes, com os seus crus antagonismos, foi dela um lógico corolário. Quando factores diferentes dos económicos animaram o impulso evolucionista da sociedade, outros motivos, além dos de interêsse de classe, animaram os partidos políticos que conscientemente ajudavam a evolução socialista. Quando Engels escreveu a confissão apologética, que há pouco citámos, repudiou também a luta de classes como ela tinha sido compreendida até então, colocando-a fora do núcleo dos argumentos socialistas» (13).
Um inconveniente, porque origina confusões, da tese da luta de classes, foi o emprêgo do termo classe.
No marxismo, classes são duas; exploradores e explorados e é assim que, na questão social, o termo se emprega, tanto por marxistas como por não marxistas. Mas o que é certo é que, neste campo, se emprega também o termo classe aplicado doutras formas, havendo numerosas classes, que se confundem com as profissões.
Todos nos entendemos muito bem no meio destas variadas aplicações do termo. Não é aí portanto que reside o inconveniente; é na expressão luta de classes. Porque a luta não se dá apenas entre as classes exploradas e as exploradoras; dá-se também entre as da mesma espécie. E é aqui que nos aparece a complexidade da vida social, a perturbar profundamente a simplicidade da tese marxista, e a dar que fazer aos intérpretes profundos, subtis ou sofísticos, para harmonizarem tudo com a concepção marxista.
Todos podemos verificar a justeza das seguintes palavras de B. Montagnon (14): «Há luta de classes? Como se manifesta ela? É evidente que há luta; luta entre patrões e operários para a repartição do lucro. É a fonte dos conflitos: greves e lock-out. E como a comunidade de interesses faz agrupar dum lado os patrões e do outro os operários, Marx tem razão em dizer que os dois blocos se medem e se chocam. Mas não há apenas luta entre patrões e operários; há luta entre patrões para a partilha dos mercados e entre operários para a partilha dos salários. Por outro lado, não há apenas interesses opostos entre patrões e operários; há também comunhão de interesses. Os operários e os parões duma determinada especialidade, têm um interesse comum em que a actividade da sua indústria não enfraqueça; em que os preços de venda sejam mantidos ou aumentados, em que os direitos alfandegários sejam mantidos ou estabelecidos. Esta comunhão de interesses manifesta-se de várias maneiras»:
«É Metthew-WiIl, vice-presidente da Federação Americana do Trabalho que, à frente duma liga fundada por Uniões, protesta contra as importações estrangeiras, aconselha a compra exclusiva dos produtos do país e pretende impedir a exportção de capitais que subvencionam as indústrias de países concorrentes».
«São, em França, os trabalhadores do espectáculo, que se unem aos directores e proprietários para obterem reduções de taxa».
«São os sindicatos dos serviços públicos que juntam a sua acção à das companhias para obterem aumento de tarifas, para lutar com vantagem com o automovel que lhes faz concorrência».
«São os sindicatos dos ferroviários ingleses que, êles próprios, pedem a reorganização das redes, para lutarem contra as concorrentes».
«São as Trades-Unions, que, conscientes do mau funcionamento das indústrias inglesas, propõem uma entente aos agrupamentos patronais para estudarem em comum uma organização melhor».
A êstes exemplos dados por Montagnon, todos podem juntar alguns, pelos quais se vê que os oprimidos nem sempre recorrem à luta contra o opressor e não se importam de prejudicar outros oprimidos, se isso é a favor dos seus interesses imediatos. Onde a fôrça dêstes se manifesta de forma patente é na defesa de direitos protectores de indústrias, em que os explorados se erguem uns contra os outros, mostrando bem assim as surpresas que o complexo da vida social trás à tese simplista da luta de classes.
Desta verificação resulta que há uma classe social que pertence incontestàvelmente á categoria das exploradas: é a dos consumidores. É esta classe que, em última análise, sofre as conseqüências do embate entre patrões e operários, capitalistas e proletários, e patrões e operários entre si; os efeitos das crises de deficiências e de abundância de produtos, da dificuldade e carestia dos transportes, etc.. Simplesmente, a esta classe pertencem todos; e é porque todos a ela pertencem e todos procuram defender-se, que a vida social toma realmente o aspecto duma luta, da luta entre consumidores e produtores. Como todos são mais ou menos ambas as coisas, aparece clara e temerosa a dificuldade de explicar e resolver tudo com a tese marxista da luta de classes.
Quere isto dizer que não existe o antagonismo entre as duas classes extremas: capitalistas e proletários? De modo nenhum; e é a êsse antagonismo que se vai bater, olhadas as coisas no seu conjunto. Mas tem de se reconhecer que a solução dos problemas sociais é muito mais complicada do que a indicada na tese marxista. Esta complicação não impede que o princípio da luta aplicado às duas classes, fazendo abstracção das variadíssinias modalidades que a vida social produz, constitua uma verdade suficientemente forte, para ser uma das bases da luta que o proletariado vem travando pela sua emancipação.
Resumindo
Analizadas sucintamente as ideas fundamentais de Karl Marx, pode-se preguntar: mas foi Marx, ou não foi, original nas doutrinas? Fez ou não fez descobertas no campo da sciência social? Que é que se lhe deve, afinal, no campo das doutrinas?
Toda a espécie de respostas têm sido dadas a estas preguntas, segundo o que a razão e principalmente os sentimentos comandam, ordenam a cada um. Principalmente os sentimentos, porque, infelizmente, êstes raras vezes têm menos fôrça do que a razão, sendo dificílimo, à maior parte da gente, subtrair-se à influência da simpatia ou antipatia que as opiniões que se têm, fazem despertar nos indivíduos que professam ideas contrárias.
Compreende-se fàcilmente que Marx tenha sido, pela importância das suas doutrinas e pela influência que exerceu, um dos mais louvados e dos mais criticados.
Para uns vale tudo, para outros pouco mais que nada, sendo variada a gama de opiniões entre os dois extremos. Mas à medida que os anos vão passando e a vida vai ensinando, predomina, pouco a pouco, a opinião média, a que corresponde à verdade, porque é a que está mais dentro da relatividade das coisas.
O sentimento a sobrepôr-se à razão, faz dizer, por exemplo, o seguinte: «A história contemporânea dirige-nos para a grandeza radiosa e imortal dum homem que existiu realmente. O santo cuja memória é festejada no 1.º de Maio, chama-se Karl Marx, escrevia um jornal burguês de Viena, no fim de Abril de 1890. É que, com efeito, Karl Marx era um génio munido de todos os conhecimentos da sua época, um homem cujo pensamento ousado abraçou tôda a história humana, desde o passado mais remoto até à aurora esplêndida em que a humanidade começa, pela primeira vez, a dirigir conscientemente os seus destinos. Ele encontrou o fio condutor no imenso labirinto da história das sociedades humanas». A isto responde A. Depré, dizendo que aquelas palavras são da mais pura idolatria e que Marx e Engels não descobriram coisa alguma, pois já tudo estava dito antes dêles (15).
Estas duas opiniões não são marxismo nem anti-marxismo; são apenas sectarismo. Fazer de Marx um semi-deus da sabedoria ou uma vulgaridade, é espalhar o êrro, o preconceito e desnortear, num e noutro campo, os espíritos menos esclarecidos, em serviço duma propaganda facciosa.
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O que tem de dizer-se, se nos queremos aproximar da verdade, é que Marx foi um homem de altíssimo valor, que prestou grandes serviços à sciência social e à causa do Socialismo, que como sábio não deixou de cometer êrros e como homem de praticar injustiças, tudo isto porque, sendo um homem superior, não era um santo. Para resumir o papel doutrinário de Marx e terminar êste capítulo, escolhi a transcrição que se segue, colhida propositadamente numa fonte que obriga à serenidade e à imparcialidade, a-pesar dalguns senões que tem, mas que são secundários, em nada alterando a verdade geral. Diz assim René Berthelot, sôbre o grau de originalidade das doutrinas de Marx e do valor das ideas que prègou (16):
«A sua teoria do valor-trabalho vem-lhe de Smith e Ricardo. A sua análise da sociedade capitalista (mais valia, maquinismo, concentração, crises de super-produção, luta de classes) não é senão o desenvolvimento de ideas tiradas de Sismondi. A sua concepção do colectivismo, como forma da sociedade futura, é de origem saint-simoniana. A idea de organizar a classe operária num partido político áparte, para realizar o socialismo, encontra-se em vários socialistas franceses e ingleses, desde Owen. A idea duma revolução internacional, dum entendimento internacional do proletariado, tem por origem a idea corrente, entre os republicanos franceses, dum acôrdo de todos os povos contra todos os governos, todas as classes dirigentes; esta idea provém também de que nas análises de Marx, como acontecia aos economistas ingleses, se faz abstracção da diversidade das nações. A idea de que se não deve arquitectar um plano de sociedade futura, uma utopia, de harmonia com os nossos sentimentos pessoais e a lógica abstracta, mas procurar compreender o sentido em que se faz necessàriamente a evolução social que realiza o direito, é uma idea hegeliana».
«O que é pròpriamente de Marx, é ter combinado estas diversas téses e ter chegado assim a uma tése pessoal. Segundo esta, a evolução económica do regimen capitalista acarretará fatalmente a sua própria ruína e a realização do colectivismo, pela concentração, cada vez maior dos capitais, pela forma, cada vez mais colectiva, da produção, o que aumenta sem cessar o número, a organização e a fôrça dos proletários, que acabam por destruir um regimen contrário aos seus interesses. É esta a parte verdadeiramente nova do marxismo, pela qual esta se distingue de todas as teorias anteriores que tinham tentado combinar a noção de socialismo e a de evolução».
Quanto ao materialismo histórico, a tése segundo a qual, toda a evolução social, política, jurídica, moral e intelectual é determinada pela evolução do apetrechamento económico, e pela qual Marx se opõe aos socialistas anteriores, para quem a transformação devia ser principalmente obra de causas intelectuais e morais, parece ter sido concebida entre 1843 e 1845. O que êle fez, foi dar, no materialismo histórico, uma expressão nítida, decisiva, a ideas já expressas antes dele, mas duma forma mais ou menos confusa, nos economistas ingleses, nos historiadores liberais franceses como Thierry, Mignet ou Guizot e nos socialistas. A estas ideas já List tinha dado uma forma mais precisa».
«Em resumo: o que é notável em Marx, é menos a originalidade do que o vigôr lógico com que êle coordenou ideas de proveniências diversas; o sentido da realidade com que êle eliminou, das teorias em que se inspirava, o que só era fantasia da imaginação ou do sentimento; o espírito prático enfim, com o qual, na segunda metade da sua vida, êle trabalhou na organização do proletariado para a luta».
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Depois dêste resumo e de tudo que se disse anteriormente sôbre a originalidade das ideas de Marx e aquilo que lhe pertence de direito, pode preguntar-se: Mas onde está então o valor da obra de Marx, para lhe ter grangeado um tal renome? Que fez êle para uma tal celebridade na história do socialismo?
Em primeiro lugar, com aquela reunião de materiais ideológicos, compôs um conjunto doutrinário, o que é importantíssimo para a marcha da idea socialista se realizar mais conscientemente, com mais segurança e portanto com mais rapidez. Mas o maior serviço de Marx, quanto a mim, é que foi graças a esse conjunto, que se tornou mais fácil aos trabalhadores, aos proletários: 1.°, a compreensão do papel que representam na sociedade, o que torna mais consciente a revolta que se sente; 2.º, a compreensão do futuro que os espera, pela evolução natural da engrenagem capitalista, o que dá a confiança nos resultados da luta; 3.º, a da forma, em geral, como êles hão-de proceder - a sua emancipação há-de ser a sua própria obra - o que fez concentrar e canalizar os esforços, apressando portanto o conseguimento do objectivo final, a vida socialista.
Todas as formas de luta que o proletariado tem adoptado, dentro da fórmula: a emancipação dos trabalhadores tem de ser obra dos próprios trabalhadores, que tantas discussões teem levantado, tantas animosidades teem produzido e tantos mal-entendidos teem provocado, não são mais do que variantes, na prática, dum mesmo pensamento. Expurgada do conjunto das actividades (que, desde o aparecimento daquela fórmula, se exercem no campo socialista), a porção de êrros cometidos pelo espírito sectário e pelos temperamentos irrequietos e devaneadores (e há de tudo isso nas variantes socialistas) vê-se que nenhuma orientação ou tendência tem direito a lançar a excomunhão, como única detentora da verdade e do bom senso.
Desde que se observe, de boa fé, a fórmula sôbre a emancipação dos trabalhadores, todos são marxistas ou ninguem o é, visto que Marx, um espírito essencialmente teórico e que, além disso, não sabia entender-se bem com os homens, não marcou uma orientação, uma tática, uma linha de conduta especial, fora da qual nada se pudesse fazer de bom.
Aqui, dentro daquela fórmula, é que se pode dizer que todos os caminhos vão dar a Roma, não se podendo mesmo avaliar qual a contribuição de cada tendência ou de cada tática para o resultado final, porque todas elas se misturam, se entrelaçam, predominando mais ou menos, segundo as circunstâncias, e nenhuma podendo ser exclusiva de facto, viver completamente separada das outras, constituir um corpo isolado. E se bem examinarmos as coisas, a frio, verificaremos que as semelhanças e os pontos de contacto são mais numerosos do que as diferenças.
Desta verificação deveria resultar o acôrdo, apezar das diferenças secundárias. Mas se os homens são assim, sempre foram e continuarão sendo por muito tempo: preferem engalfinhar-se nos pormenores, para perder, a harmonizarem-se no conjunto, para ganhar!
(*) Emílio Costa (1877-1952) foi um notável jornalista, publicista e pedagogo anarquista. Nascido em Portalegre no seio de uma família da média burguesia republicana, vai para Lisboa aos vinte anos para frequentar o Curso Superior de Letras. É no meio estudantil lisboeta que adere à maçonaria e se dedica à agitação e publicismo republicano. Na viragem para o século XX adere ao ideal libertário mas mantendo-se intervencionista, isto é, pugnando sempre pela implantação da república. Em 1903 vai estudar para Bruxelas, entra em contato com os meios anarquistas europeus e inicia uma extensa colaboração com um dos mais prestigiados jornais anarquistas franceses, ‘Les temps nouveaux’, dirigido por Jean Grave. A partir de 1908 dirige em Lisboa o semanário anarquista ‘A conquista do pão’, colabora em ‘Germinal’ e na revista ‘Sementeira’, dá conferências nos meios operários. Vai para Paris onde entra em contacto com meios sindicalistas franceses e com o pedagogo anarquista espanhol Francisco Ferrer. Em 1909 traduz e faz publicar na Editora José Bastos & Companhia (antiga casa Bertrand) três livros de doutrina sindicalista francesa, que tiveram importância decisiva na formação do novo movimento sindical português. Após a implantação da república colabora assiduamente com a imprensa do movimento sindical e em órgãos anarquistas como o semanário ‘Terra Livre’. Professor do liceu em Portalegre, lecionará ainda em associações operárias (com destaque para ‘A Voz do Operário’), na Escola Comercial Ferreira Borges, no Instituto de Orientação Profissional e na Universidade Popular Portuguesa. Colaborador assíduo da revista ‘A Seara Nova’, entra para os seus corpos gerentes a partir de 1936. Em 1946 adere ao Movimento de Unidade Democrática (MUD). Entre 1930 e 1931 Emílio Costa publica três livros seus que marcam um período importante no seu pensamento: ‘Karl Marx’, ‘Jean Jaurès’ (na coleção «Homens e Ideas» da Livraria Peninsular Editora) e ‘O sindicalismo independente’. Desde o ano de 1925, ele vinha-se já distanciando do anarquismo mais ortodoxo, defendendo a formação de um Bloco das Esquerdas, na luta contra o fascismo, e colaborando mesmo com os partidários da Internacional Sindical Vermelha, escrevendo no seu semanário ‘A Internacional’ e dando conferências no Sindicato do Pessoal do Arsenal da Marinha. Infelizmente, a sua compreensão das ideias de Karl Marx manteve-se muito parcelar e preconceituosa, como atesta bem este texto, que constitui um dos capítulos do volume biográfico atrás citado. Há aqui como que um acto de contrição por excessos sectários passados. Entretanto, para uma obra não hostil, escrita de boa fé, o vulto e sucessão dos equívocos é impressionante, apenas em parte atribuível a algumas das suas fontes (Wilbrandt, Sorel, Mazaryk, Berthelot, etc.). No final do volume são incluídos alguns trechos escolhidos, retirados do Manifesto do Partido Comunista, do prefácio à Contribuição à crítica da Economia Política e de Guerra civil em França.
__________________ NOTAS:
(1) R. Wilbrandt, Carlos Marx - Ensayo para un juicio, pág. 42.
(2) G. Sorel: «Les polémiques pour l’Interprétation du marxisme». pág. 3.
(3) T. S. Masarik: «La Crise scientifique et philosophique du Marxisme contemporain». Pág. 4 e 5.
(4) G. Sorel: ob. cit., pág. 8.
(5) A teoria da mais-valia, como as outras ideas fundamentais de Marx, têm sido vulgarisadas, entre nós, em algumas publicações de propaganda socialista e últimamente nos volumes da Biblioteca Cosmopolita (marxismo leninista). No livro de Silva Mendes, Socialismo libertário ou Anarquismo, vem uma larga exposição da doutrina de Marx, com abundantes citações bibliográficas.
(6) G. Sorel: La Décomposition du Marxisme, pág. 39.
(7) A. Charboreau: De Babeuf à Ia Comune, pág. 65.
(8) E. Ferri, «Évolution Économique et Évolution Sociale», pág. 17.
(9) V. Ilitch: O Marxismo, pág. 11. (Biblioteca Cosmopolita).
(10) Citado por Macdonald, em Socialismo, pág. 128.
(11) Citado por Heller, em Las ideas políticas contemporâneas, pág. 158.
(12) R. Wilbrandt, ob. cit., p. 93.
(13) Esta referência a palavras de Engels, tem origem, como as feitas no Materialismo histórico, por Macdonald e Heller, numa carta publicada por Engels, em 1895, na revista: Sozialistischen Akademiker.
(14) B. Montagnon: Grandeur et Servitude socialistes, págs. 50-53.
(15) A. Depré: A propos de Karl Marx, em La Libre Fédération (Lausanne, Suisse) n.° 33.
(16) R. Berthelot, artigo Socialisme, em La Grande Encyclopédie.
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