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Leis do movimento em geral
Egídio Namorado (*)
A realidade fundamental, o facto primitivo e imediato, que preocupa a Dialéctica é o movimento, a transformação, o perpétuo devir das coisas. Daí que a Dialéctica se defina como a ciência das leis gerais do movimento e da transformação e que ponha, como princípio, que tudo se move e se transforma: as coisas, os homens, as sociedades e as ideias.
Quer dizer: é o movimento em geral que interessa à Dialéctica, e não só, nem principalmente, o movimento mecânico; o seu escopo é a multiplicidade infinita de aspectos que assume a realidade, a compreensão das transformações objectivas, do aparecimento de novas qualidades, de como o novo emerge do decadente, o complexo nasce do que é simples.
Postulado o movimento e formuladas as suas leis torna-se imediatamente mais compreensível o universo e os seus fenómenos e é até possível, em muitos casos, prever com grande rigor acontecimentos futuros, êxito incontestável da Razão humana e critério seguro de que algo da realidade objectiva foi captado pela inteligência.
Mas em seu afã de compreender, de racionalizar, o espírito humano procura explicar em função dos seus quadros racionais ou deduzir a partir dos princípios que o estruturam, os acontecimentos que se lhe deparam, mesmo os que a urna primeira abordagem, parecem não precisar de serem explicados.
É, afinal, uma maneira de a Razão se experimentar e pôr à prova o seu valor. Ora, precisamente este problema do movimento foi um daqueles em que a tentativa de compreensão racional esbarrou com dificuldades de toda a ordem, de que algumas ainda subsistem.
A questão começou com os gregos:
Para a Escola Pitagórica o Universo seria um conjunto de mónadas extensas e indivisíveis e daí que, segundo Pitágoras, toda a ciência natural se pudesse fundar na noção de número.
Desta concepção resultava, como consequência necessária, que a razão de dois segmentos de recta quaisquer formados por números inteiros de mónadas, seriam sempre comensuráveis, isto é, cociente de números inteiros. Ficava portanto excluída a possibilidade de existência de outros números além dos racionais (inteiros e fraccionários).
Mas os deuses, nem sempre são propícios - e é o próprio Pitágoras quem descobre ou redescobre a famosa relação entre os catetos e a hipotenusa do triângulo rectângulo, que tem o seu nome, e que aplicada à diagonal e aos lados do quadrado mostra que a diagonal e o lado são incomensuráveis ou, como hoje dizemos, que a sua relação se exprime por um número irracional.
A escola Pitagórica impôs aos seus sequazes um sigilo rigoroso acerca desta descoberta, que deitava por terra o seu sistema, ameaçando de castigo severo quem o desvendasse, pois isso poderia acarretar a ira dos deuses ao verem surpreendidos os seus segredos.
A critica da concepção pitagórica foi feita pelos Eleatas, nomeadamente Parménides e Zenão. A este se devem os célebres paradoxos que tão larga influência tiveram na história do pensamento científico e filosófico. Hoje, depois dos trabalhos de Tannery, Federigo Enriques e Rufini, os parodoxos interpretam-se como uma demonstração por absurdo da insuficiência dos números racionais para a compreensão do movimento, e não como a negação do movimento ou a afirmação da sua natureza antinómica. São, pois, por um lado, a negação da teoria das mónadas e, por outro, a afirmação da continuidade da matéria.
Baseiam-se os paradoxos do Eleata na presunção de que a soma de um número infinito de instantes é infinito; ora a análise infinitesimal estabeleceu claramente que uma série de número infinito de termos pode ter e tem, no caso presente, limite finito.
O argumento não pode, portanto, demonstrar a impossibilidade do movimento: o ágil Aquiles atingiria ràpidamente a tartaruga, embora entre a partida e a chegada se possa supor uma infinidade de momentos intermédios. Na linguagem da moderna teoria dos conjuntos atingi-la-ia no instante representado pelo número ordinal ω, o primeiro número transfinito, o que vem depois de todas as ordens a que correspondem inteiros finitos. Todavia, na opinião de Hilbert, o grande matemático alemão, as dificuldades levantadas pelo subtil eleata não ficam definitivamente resolvidas pela convergência das séries infinitas, pois se põe ainda a questão de saber como se atinge, de facto, o fim de um processo ilimitado (1).
A questão está, portanto, neste pé: por um lado não há uma objecção racional inultrapassável à possibilidade do movimento; por outro, não tem sido possível deduzir ou «realizar» o movimento a partir de princípios ou categorias racionais.
O drama representado na velha Grécia por Zenão e Diógenes pôs o problema em toda a sua agudeza:
Zenão negando em face dos princípios a possibilidade do movimento; Diógenes movendo-se, com a malícia nos olhos, negando os princípios. Zenão negando a realidade pelo instrumento da Razão; Diógenes negando a Razão pelo confronto da realidade.
Simplesmente a boa tradição helénica exigia que um argumento só poderia ser rebatido por outro argumento e a questão continuou de pé, desafiando as idades. É, afinal, todo o problema do contínuo, do infinito, do espaço e do tempo que está em jogo.
A realidade apresenta-se ao homem corno múltipla - os objectos são distintos, bem delimitados, independentes. Se observo grosseiramente esta mesa parece-me feita de matéria compacta, impenetrável, contínua; no entanto posso destruí-Ia e fazê-la em pedaços; o que é incompatível com a sua continuidade. A realidade parece-me, pois, múltipla e discontínua. Por outro lado se me desloco entre dois pontos distintos, parece-me claro que atravessarei uma sucessão contínua de posições distintas, porque, na hipótese contrária, como se faria a passagem entre duas posições consecutivas?
Concluo, assim, que o espaço é contínuo, e, portanto uno. Mas uno não quererá dizer indivisível? Pois o que é indefinidamente divisível não será, antes, uma multiplicidade infinita? E em qualquer dos casos que significará passar dum ponto do espaço para outro ponto do espaço?
Para compreender, a Razão disseca, analisa, desmonta; todavia, ao pretender refazer a unidade, há sempre qualquer coisa que falta ou qualquer coisa que sobra. A realidade é dinâmica e complexa - é uma multiplicidade una. O movimento é a maneira de existir das coisas; o contrário é uma ficção do espírito. Do mesmo modo, ao que se me antolha, são ficções o espaço e o tempo independentes dos corpos.
Suponham-se por um momento os corpos inexistentes e o conceito de espaço deixará de ter sentido; suponham-se as coisas imutáveis e deixará de ter sentido a noção de tempo. Considerem-se independentes os corpos, o espaço e o tempo, e será impossível ou contraditório conceber o movimento. As partes do Universo movem-se umas em relação às outras e não em relação ao... «Nada». O conceito de espaço, abstraído do suporte corpóreo e generalizado da definição de referencial, é o que podemos chamar um conceito funcional, a passagem ao limite de um conceito de raiz empírica, o salto em que este se transforma no seu contrário, dando origem ao conceito que o limita e define.
Idênticamente, contínuo será o conceito funcional de discreto: discreto é o que é divisível até um certo limite; o divisível para além de qualquer limite é o contínuo, mas o indefinidamente divisível é, afinal, o uno, o indivisível (2).
Criando estes seres fantásticos, a Razão precipita-se nas antíteses que parece que a negam, mas que paradoxalmente, são o seu verdadeiro motor, como se a resolução e superação dos conflitos de contrários fosse a condição sine qua non de progresso do pensamento.
O espaço indefinidamente homogéneo, contínuo, no qual mergulhariam todos os corpos, que poderia assumir todas as estruturas possíveis, é puramente conceptual.
O espaço físico, real, é criado pelo próprio corpo - é ainda o corpo.
Quando um corpo penetra no espaço de outro, fica submetido às leis desse espaço, derivadas da sua estrutura.
Não será este o significado físico do espaço-tempo quadrimensional da Teoria da Relatividade? A realidade fundamental não será o complexo dinâmico, massa-energia, de que captamos, abstraímos, aspectos particulares como posição, velocidade, etc., que desligados nada significam? Não será essa a origem do êxito, na descrição dos fenómenos e da evolução dos sistemas materiais, dos espaços abstractos, multi-dimensionais (continuum espaço-tempo, espaços μ e γ da Mecânica Estatística, etc.) em que figuram como coordenadas, além das características dinâmicas, as coordenadas de posição?
De qualquer modo, em todos os planos da realidade, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, da maior nebulosa à mais ínfima partícula subatómica, é esse dinamismo perpétuo e essencial que encontramos. É por isso que é essencial, que é o dado primitivo, será o que não pode explicar-se, aquilo donde se deve partir para explicar o restante. O movimento é o modo de existência das coisas; as coisas existem movendo-se e transformando-se. Esta propriedade é pois a mais geral; as coisas, abstraídas todas as outras qualidades, são idênticas a respeito dessa propriedade. É este o enunciado base, a proposição fundamental da Dialéctica.
A Mecânica dá-nos as leis do movimento mecânico; a Química, a Biologia, a Sociologia, a História, a Economia, etc., dão-nos as leis dos movimento particulares de cada domínio do real. A Dialéctica pretende dar as leis mais gerais da transformação: da evolução lenta e da transição revolucionária - do devir.
1.ª lei: Foi Heraclito de Efeso quem pela primeira vez concebeu coerentemente o universo como um processus global, um todo dinâmico em perpétua transformação e movimento. Exprimiu-se numa linguagem metafórica e estranha o que lhe valeu o epíteto de obscuro.
«Tudo flui, tudo muda», afirma ele; «é impossível entrar duas vezes na mesma corrente». «Este mundo, o mesmo para todos os seres, nenhum dos deuses ou dos homens o fez, mas existiu sempre, é e será um fogo sempre vivo, ateando-se e extinguindo-se segundo leis determinadas» (3).
O homem moderno, depois de atravessar um longo período dominado pela concepção estática de um universo cristalizado, de ter passado pela fase necessária das ciências especiais estanques, aporta, maravilhado e confuso, ao desconcertante país em que «nada fica onde está, nada permanece o que é». Ainda mal afeiçoado à ideia de que a Terra é esférica e gira à volta do Sol, já ouve falar, com Kant e Laplace, em evolução do próprio sistema solar e em formação a partir de uma nebulosa primitiva incandescente; com Lamarck, Goethe e Darwin, em evolução dos seres vivos a partir de outros mais simples e com funções menos especializadas; com Dalton, Prout e Mendeleev, em formação dos próprios elementos químicos a partir do ténue hidrogénio; com a moderna História e Sociologia, em evolução das sociedades humanas; com a Antropologia, a Biologia, a Psicologia, em evolução do próprio homem-físico e moral. Assiste com a Revolução Francesa e as duas revoluções industriais à modificação da própria base política, económica e social que se habituara a considerar a ordem natural e fatal das coisas.
Encontra transformação, movimento - sempre e em tudo. Surge, assim, uma nova maneira de pensar, oposta à Metafísica das propriedades e das relações fixas e imutáveis: a Dialéctica.
Primeiramente em sua forma idealista, opõe-se de um lado ao materialismo e de outro ao idealismo metafísico, subjectivista e dogmático; por último, sob a sua forma materialista, luta numa frente contra o idealismo, unilateral sob qualquer forma, e na outra contra o materialismo metafísico, mecanista e grosseiro. Esta última concepção, tendo marcado um progresso na medida em que se opôs à doutrina medieva segundo a qual as coisas são agregados de propriedades que podem existir independentemente umas das outras, cai no polo oposto considerando o mundo um agregado de partículas materiais, agindo externamente umas sobre as outras, reduzindo todo o movimento ao movimento mecânico, à variação de posições relativas, e afirmando a estreita ligação, a correspondência rigorosa entre diferenças qualitativas e diferenças quantitativas. Ao contrário a dialéctica vem afirmar a íntima conexão e interacção das coisas e nega que um complexo seja apenas a soma das suas partes, um conjunto de partes justapostas. Nega, por contrária à experiência, a correspondência entre variações quantitativas e mudanças qualitativas pois, se assim fosse, pequenas variações qualitativas corresponderiam a pequenas variações quantitativas e a transição entre qualidades diferentes seria lenta e gradual. Assim, a uma diminuição lenta de temperatura corresponderia uma gradual passagem da água ao estado sólido; ora verifica-se o contrário - ao arrefecimento gradual corresponde uma transição brusca (a 0º C) do estado líquido ao estado sólido. A relação entre quantidade e qualidade não pode ser de tipo mecânico. A cada qualidade corresponde um determinado tipo de movimento fundamental, que define a natureza interna da coisa, que é específico dela. Compreender a evolução de uma coisa é, antes de mais, conhecer o seu movimento interno, aquilo a que podemos chamar o seu autodinamismo, de que dependem, afinal, as metamorfoses e o comportamento do objecto. O erro mecanicista consiste em explicá-las por acções puramente externas, em reduzir as transformações a transformações mecânicas brutais, impostas de fora, deixando de lado as inúmeras formas concretas de transformação que se observam nos diversos planos da realidade e são fundamentalmente autodinâmicas, dialécticas - constituem processos históricos.
Esses processos estão ligados ao movimento mecânico mas são algo diferente e superior:
«Todas as formas mais elevadas de movimento estão ligadas sempre e necessàriamente com o movimento mecânico real (externo ou molecular), e semelhantemente as formas superiores de movimento produzem ao mesmo tempo outros aspectos de movimento; a acção química é sempre acompanhada por mudanças de temperatura e acções eléctricas; a vida orgânica é impossível sem variações mecânicas moleculares, químicas, térmicas, eléctricas e outras. Mas a presença destas formas colaterais não esgota a essência da forma principal em cada caso» (4).
Não dará um passo na compreensão da Dialéctica quem não capte esta distinção essencial entre as diversas formas de movimento e não compreenda que no estudo da evolução duma coisa ou de um fenómeno é fundamental o conhecimento do seu autodinamismo. As transformações dialécticas são as derivadas do processus interno, autodinâmico e necessário das coisas.
Quando um homem morre, vítima de desastre, há uma quebra brutal no processus da sua existência - sofre uma transformação não dialéctica, mecânica. Quando uma civilização é destruída por um cataclismo - o dilúvio, um terramoto, uma invasão - sofre uma transformação mecânica; se termina, dando lugar a outra, em virtude do desenvolvimento das forças internas - sofre uma transformação dialéctica. Assim, a civilização azteca tem um fim, não devido ao jogo de forças internas, mas à acção do conquistador espanhol; pelo contrário, as civilizações chinesa e hindú evoluem graças à influência primacial de forças internas, embora desencadeadas por acções externas. A evolução geral da humanidade é, por consequência, um processo dialéctico complexo, que compreende várias cadeias de eventos, vários processos cujas linhas de evolução muitas vezes se cruzam, dando lugar a transformações mecânicas, englobadas num processus dialéctico global. Em breves palavras: as transformações mecânicas, ou de outra ordem, de um processus particular, são compreendidas nas metamorfoses dialécticas de um procesus mais geral.
A 1.ª lei da Dialéctica afirma, por conseguinte a essencial e perpétua mobilidade das coisas individuais e do Universo, considerado como um todo fluídico - tudo muda, tudo se move e se transforma.
2.ª lei: Corno e porque se realizam a transformação e o movimento?
A resposta a estas questões é-nos fornecida pelas restantes leis da Dialéctica.
A segunda lei ou da acção recíproca diz-nos que «tudo age sobre tudo», que não há fenómenos independentes, que não há coisas absolutamente externas a outras. A interacção pode ser mais ou menos importante mas existe sempre. As ciências especiais movem-se na rede inextricável dos processos, isolando-os e tomando apenas em conta os de influência dominante. De outro modo seria impossível o pensar, o que justifica este procedimento e o promove a fase necessária do conhecimento. No entanto, considerar o que se isola por necessidade (por virtude da limitação das faculdades humanas) como realmente isolado, é um erro: é o erro que conduz a uma mentalidade, a um método e a uma problemática - a Metafísica.
O indivíduo de mentalidade metafísica não vê os seres na sua perspectiva histórica, no seu devir. Vê-os por isso acabados e imutáveis, encontra a sua razão de ser neles próprios ou em actos mágicos. À indagação da origem de uma coisa o metafísico responderá porque sim ou atribuirá a um Demiurgo o acto criador. Em oposição, o dialecta procura captar as coisas no seu movimento e estudar a interacção das circunstâncias, destrinçar o entrelaçado dos fenómenos actuantes; mostrar o nascimento de uma coisa a partir de outra coisa e o condicionamento da sua existência. Para ele a existência da matéria (da realidade não subjectiva) é absoluta - não resultou de um acto mágico de criação -, mas a sua maneira de existir é relativa; a harmonia do Universo, que tanto surpreende os homens de temperamento místico, não é mais que a mútua limitação que as suas partes se impõem.
O homem é o resultado da evolução dos seres vivos nas circunstâncias especiais da Terra no sistema solar, nos últimos milhões de anos, circunstâncias cósmicas que sem dúvida se modificarão e hão-de trazer modificaçães e até, porventura, o desaparecimento da vida; é por outro lado, o produto das lutas históricas pelo progresso e aumento do domínio e aproveitamento das forças naturais; é influenciada por circunstâncias locais que determinam características particulares; é, ainda, agente das suas próprias modificações que em cada dia constrói e em cada dia destrói algo de si próprio.
O presente está de certo modo contido, mas é sempre diverso do passado; anàlogamente, o futuro está de certo modo contido, mas será com certeza diferente do presente. Captando o universo no seu devir, concebendo o próprio conhecimento como um processus aberto, que penetra em camadas cada vez mais profundas do objecto, a Dialéctica, igualmente distante do pragmatismo, do dogmatismo e do relativismo, nega a Metafísica, provando a falsidade do método que tem implícito, e, ao mesmo tempo, realizando e superando a sua problemática. As coisas provêm de outras coisas e darão origem a outras coisas; influem e são influenciadas umas pelas outras; existem em perene transformação - a transformação é a natureza das coisas em todos os níveis da realidade (5).
A permanência e a identidade não são mais que formas de equilíbrio mais estáveis, de duração mais ou menos longa, conforme as circunstâncias do processo interno e das influências externas - são momentos dum Processo. Só o movimento e a transformação são absolutos; a imobilidade, o repouso são relativos. A Monarquia de direito divino é, a este respeito, exemplar. Considerada pelos seus ideólogos como a forma política mais perfeita, a cristalização e o desenlace lógico do feudalismo, é roida de dentro pelo desenvolvimento da burguesia e das forças produtivas, criando-se as condições que, desencadeadas, provocarão o aparecimento do Estado burguês.
Atingido o ponto de rotura do equilíbrio, um pequeno acontecimento interno ou externo, basta para o precipitar. No caso da Revolução Francesa, uma questão de Tesouro, noutras circunstâncias banal, e uma longínqua revolução americana, são as chispas que provocam a explosão.
Os acontecimentos em França vão, por sua vez, modificar as condições ambientais, e despertar dentro dos outros países forças latentes e reprimidas, antes sem condições de êxito. Inúmeros outros exemplos poderíamos colher em todos os planos da realidade. O que acabamos de dizer sugere que as acções externas são em geral desencadeantes e só eficazes na medida em que induzem processos internos de grande força expansiva.
É, por isso, neste momento, oportuno fixarmos a nossa atenção nos processos internos - no que é afinal o motor principal das transmutações.
3.ª lei: É esse o conteúdo da 3a lei, do conflito e unidade dos contrários, a lei da contradição, já assim formulada por Heraclito: «O conflito é pai de todas as coisas, rei de todas as coisas»; «É o mesmo em nós», dizia, «ser o que é vivo e ser o que é morto, desperto ou adormecido, jovern ou velho; porque pela transformação isto é aquilo, e pela transformação aquilo é por seu turno isto»; e ainda: «do que difere nasce a mais bela harmonia, e é a discórdia que produz todas as coisas» (6).
As coisas transformam-se porque são unidades de contrários. Os opostos não se excluem, vivem em permanente conflito, em correlação recíproca.
Transformam-se um no outro. E essa é a razão do devir. Disse-o Hegel, o filósofo idealista alemão: «A identidade é só a definição de um ser morto, imediato, simples, mas a contradição é a raiz de todo o movimento e vitalidade, e só na medida em que uma coisa tem em si a contradição ela se move e possui impulsão e actividade». A mutação, o aparecimento de uma qualidade em um todo não pode interpretar-se como o crescimento, de uma qualidade já existente mas despercebida devido à sua pequena grandeza; essa qualidade é realmente nova e resulta do movimento interno, do conflito dos contrários que constituem o todo. O todo é uma unidade de contrários indissolùvelmente ligados, mas esses contrários não se justapõem, interpenetram-se e estão em luta constante. O todo é unidade e conflito de opostos. Em todos os sectores do real isto se verifica. Mesmo o movimento mecânico em que as contradições são sobretudo exteriores, acções e reacções entre corpos, observado de mais perto, mostra-se como o efeito observável e estatístico de interacções interiores.
As próprias partículas «elementares» se presume, hoje, serem compósitos de corpúsculos em interacção: assim, há neste momento fortes razões para supor que o que até agora se tem chamado electrão é composto na realidade de partículas positivas, negativas e fotões gama em interacção.
Onde, no entanto, com maior clareza, se manifesta o carácter dialéctico dos fenómenos naturais é na vida individual dos seres vivos e das suas comunidades. No plano da célula, do organismo e da espécie observamos a emergência e desaparecimento, vida e morte, assimilação e desassimilação; permanência e mudança, hereditariedade e evolução. O indivíduo e a espécie «procuram» subsistir, mas para o conseguirem têm que modificar-se. O homem reconhece-se a si próprio, através da sua consciência, como o mesmo mas diferente; e reconhece que os processos pelos quais se modifica se passam nele próprio, uns induzidos do exterior, outros, hereditários, profundos, forças latentes desencadeadas. Nas formas sociais unitárias em que vive reconhece-se a divisão da unidade em contrários em conflito permanente e de cuja luta resulta o progresso. A unidade e o conflito entre forma e conteúdo é, de resto, uma das categorias gerais da Dialéctica. A forma social superior actual, o Estado, é uma unidade de indivíduos, agrupados mais ou menos solidàriamente em classes, que são o conteúdo da forma Estado.
Do combate dos grupos, da sua interpenetração, das modificações que produzem uns nos outros, resulta a evolução social.
Sem as classes o Estado não existiria; é, pois, uma emanação das classes, uma unidade de contrários. Não se pode eliminar o Estado sem se eliminarem as classes. A condição social «classe» é a expressão de uma solidariedade fundamental de interesses económicos vitais (7), razão por que, em última análise, o motor principal do movimento histórico é a base material de existência.
As modificações materiais determinam ou sugerem ideias e são estas que orientam a acção transformadora do homem sobre as condições materiais. Daí que o moderno materialismo sublinhe particularmente o papel das ideias nas modificações do suporte material, embora não 'esqueça que a acção inversa é primordial. Compreende até que, dados o homem e o mundo, e visito que o pensamento é específico e único no homem, as ideias serão, nesse sentido, o que o homem tem de mais importante, e nesse aspecto concorda com o idealismo. Não esquece todavia que sem o Mundo, sem a terra, não existiriam as ideias... nem sequer os homens. As atitudes metafísicas perante este problema, o idealismo, o materialismo mecanista e o ecletismo não o resolvem anulam-no. Em verdade o que é preciso compreender é como a matéria pode pensar e como a matéria e as ideias se transformam.
No seio das unidades de contrários nascem e desenvolvem-se os germes da própria destruição. Da sociedade feudal dos senhores, guerreiros e servos, nasce, mercê das contradições entre os senhores e das próprias necessidades da sua existência, um novo tipo de homens, os artífices e os mercadores dos burgos, que vivem dos senhores, que enriquecem e se tornam poderosos e começam a fazer-lhes sombra. Em alguns séculos os fracos tornam-se fortes, e os senhores feudais que haviam sido a condição do desenvolvimento dos burgueses, passam apenas a incomodá-los, a forma social, que atribuía ainda aos senhores o papel preponderante, deixou de corresponder ao conteúdo que encerrava, e por isso, naturalmente, este fez estalar a armadura que o cingia, e os dominados passaram a dominadores, absorvendo e assimilando os antigos senhores.
No plano do conhecimento, já examinámos na 1.ª parte deste trabalho o funcionamento antitético do pensamento movendo-se pelo jogo das contradições contínuo-descontínuo, corpúsculo-onda, idêntico-contraditório, etc..
Não se deve cair, todavia, no erro mecanista de identificar contradição e antagonismo. São antagonistas as contradições em que os opostos indissolùvelmente ligados se chocam externamente, em que o contrário dominante procura manter o tipo da contradição e a subordinação do outro oposto, e em que este pretende destruir o primeiro e a própria forma da contradição. As contradições resolvem-se pelo seu próprio desenvolvimento interno e não pela força de acções externas, mas enquanto «nas contradições de carácter não antagonista o desenvolvimento da contradição significa não só o crescimento das forças que conduzem à sua resolução final, mas cada novo passo no desenvolvimento da contradição é ao mesmo tempo também a sua resolução parcial, as contradições antagonistas são resolvidas pela espécie de salto em que os opostos internos emergem como contrários relativamente independentes, externos um ao outro, por um salto que conduz à abolição do oposto primeiramente dominante e ao estabelecimento de uma nova contradição (nesta contradição o oposto subordinado da contradição prévia torna-se agora o oposto dominante, conservando certo número das suas peculiaridades e determinando ele próprio a forma da nova contradição, especialmente nas primeiras fases do seu desenvolvimento)» (Text-Book).
Em fases ulteriores o antagonismo é destruído e a passagem a estádios superiores faz-se pelo jogo de contradições menos brutais. Assim, na sociedade sem classes na qual foram destruídos os antagonismos, permanecerão as contradições que se traduzirão no progresso das formas sociais, e cada degrau subido marca uma resolução parcial da contradição. Em todo o processo, do princípio ao fim, a contradição é o motor do desenvolvimento; as acções externas podem acelerar ou retardar o movimento mas a penetração e intertransformação dos contrários são, em última análise, a sua condição. A contradição é da própria essência do processo, é da sua natureza, não aparece, como pensam os mecanistas, apensa numa fase já adiantada do devir.
Pelo contrário, a harmonia e justaposição dos contraditórios, o seu equilíbrio, é transitório, passageiro e excepcional.
«A unidade (a coincidência, identidade, força resultante) dos opostos é condicional, temporária, transitória e relativa. A luta dos opostos mùtuamente exclusivos é absoluta, como o são a evolução e o movimento». (V. U.).
4.ª lei: Ao enunciarmos as precedentes leis, vimos como os primeiros filósofos gregos já concebiam o universo em perpétuo devir e sublinharam o papel da contradição no movimento. Eles tinham uma visão global do mundo e da vida, que se apresentava realmente móvel 'e diversa: o tempo corria, as estações sucediam-se, os homens nasciam, envelheciam e morriam, a fortuna era contingente, o rico tornava-se pobre e o pobre enriquecia.
No entanto, com a consolidação do regime esclavagista, entre os homens livres mais predispostos e preparados para a reflexão surge a oportunidade de uma observação mais atenta dos fenómenos naturais e de um exame mais minucioso do próprio pensamento e da mesma faculdade de pensar.
Inaugura-se nesta altura uma fase analítica do conhecimento, em que o objecto é separado dos outros objectos e dividido nas suas partes, por motivo de comodidade e necessidade de simplificação. Daí resultou a concepção segundo a qual as diferentes qualidades das coisas correspondiam a diferentes propriedades, e inaugurou-se um largo período do conhecimento humano segundo o qual as coisas seriam misturas de propriedades consubstanciadas em corpos como o mercúrio (brilho metálico), a água (humidade), etc..
As próprias modificações seriam devidas a uma propriedade ou essência transformadora (a pedra filosofal, a quintessência). Esta forma de pensamento, a metafísica das propriedades é, mais tarde, ultrapassada, subsistindo e manifestando-se como mentalidade e atitude, muitas vezes na própria ciência. Com o andar dos tempos, a descoberta de novas terras, de novos costumes, novas éticas, novos instrumentos, com o incremento e variedade da experiência humana torna-se evidente como é falível o julgar dos homens, como as coisas se mostram diferentes quando observadas com meios mais poderosos (lupa, telescópio, microscópio... ) como é relativo e contingente o que se tomava por absoluto e necessário. As qualidades, as diferentes maneiras por que as coisas se manifestam, revelam-se agora, em vários graus, como dependentes por um lado do objecto e por outro do observador. As que derivam só, ou predominantemente, das coisas, as objectivas, são as qualidades primárias; as que dependem do observador, subjectivas, são as qualidades secundárias. Assim: cor, cheiro, gosto, temperatura, são qualidades secundárias, só existem em relação ao homem; a extensão, a forma, etc., serão qualidades primárias, independentes do homem. Estas, são propriedades da única realidade objectiva - as partículas constituintes da matéria; as secundárias só existem como sensações na «psique» dos homens. O idealismo filosófico, criticando com argúcia e pertinentemente esta metafísica das relações reduz as qualidades primárias às secundárias, mostrando como também aqueIas têm uma certa subjectividade, reduzindo as coisas a complexos de sensações do sujeito e concluindo necessàriamente que ou só o sujeito existe (solipsisrno) ou que a realidade exterior, se existe, é mental (idealismo objectivo). Esta última concepção é vulnerável pois se as coisas são ideais, existem numa consciência, e essa consciência ou é individual (e cairemos no solipsisino, que é absurdo) (8) ou é universal - as coisas serão ideias do Espírito Absoluto, Deus, e cairemos num panteísmo, em última análise equivalente ao materialismo. Eis o beco sem saída a que conduz a metafísica das relações, que concebe como absoluto o relativirno das propriedades. O que é preciso é explicar como a quantidade e qualidade estão objectivamente ligadas, saber que mudanças quantitativas se traduzem em mutações qualitativas, que modificações qualitativas induzem mudanças quantitativas. É a isso que respeita a 4.ª lei da Dialéctica, da transformação da quantidade em qualidade ou do progresso por saltos.
«Natura non facit saltus», diziam os romanos, «natura facit saltus», afirma a Dialéctica materialista. «A qualidade é a marca inalienável e específica duma coisa ou acontecimento. É inalienável porque sem ela a coisa cessa de existir como essa coisa dada. É específica porque distingue essa coisa de outras coisas» (Text-book, pág. 248).
A definição de uma coisa, que permite caracterizá-la sem ambiguidade, enuncia as suas qualidades específicas que permitem distingui-Ia de todas as outras, refere aquilo em que o objecto é análogo e em que difere de todos os outros. Por isso Spinoza afirmava que «toda a definição é negação».
Por isso a Dialéctica afirma que o individual e o universal se interpenetram, que toda a coisa, sendo individual, participa do univeral, e que o universal existe através do particular.
O individual e o universal constituem uma unidade de contrários que não podem isolar-se. As qualidades definem-se em relação a outras e limitam-se mútuamente. Esta relatividade das qualidades deve, no entanto, entender-se considerando-as não como absolutamente externas, apenas relacionadas na mente do homem, mas como realmente e ìntimamente conexas, entendendo essas relações como provenientes da sua ìntima natureza. Assim, à medida que vai decorrendo o processo, a metamorfose, do objecto «a sua conexão como mundo que o cerca, transforma-se». A linha e o sentido desta transformação revelam a forma de movimento que lhe é característica e a sua verdadeira natureza. «Na realidade não há qualidades independentes isoladas. A qualidade existe em relação, e estas relações derivam da natureza única de cada coisa por uma necessidade interna. Como resultado das suas contradições uma coisa deve existir em conexão com outras e as suas propriedades não são mais que as manifestações da sua qualidade em relação com outras coisas» («Text-book», pág. 246).
A qualidade específica e inalienável duma coisa ou de um processo revela-se nas suas relações com outras coisas no seu movimento; as propriedades não são mais que «exteriorizações» da natureza íntima, das qualidades dos objectos, são o resultado da interpenetração e condicionamento das qualidades de uma coisa pelas de outra coisa. Assim, a comburência do oxigénio é uma propriedade que resulta da sua estrutura interna, em particular do nível electrónico exterior, por outro, da estrutura da substância que com o oxigénio se combina, pois a combinação já se não dá, por exemplo, com o hélio cuja estrutura, cuja qualidade, o impede. O carácter, a qualidade desumana, do regime nazi é revelada pelos actos de agressão aos seus adversários, pelos autos de fé a livros, pelo apelo a forças instintivas, primitivas e obscuras, etc.. Não há propriedades sem qualidades, nem qualidades sem propriedades; não há propriedades de urna coisa que não derivem da sua natureza interna, nem qualidades que se não exteriorizem de uma ou de outra maneira. O progresso do conhecimento faz-se no sentido de determinar as qualidades a partir das propriedades. A ciência é criadora na medida em que provoca o «aparecimento» de novas propriedades que permitam a descoberta de novas qualidades - é assim que a coisa em si é transformada em coisa para nós. A ciência moderna cria na câmara de Wilson as condições que permitem fotografar as trajectórias das partículas materiais de que se concluem a massa e a carga desses corpúsculos. Da multiplicidade infinita das propriedades, cada uma das quais traduz um aspecto do objecto, o pensarnento, pela sua actividade selectiva e totalizante, reconstitui o objecto, vai penetrando-o cada vez mais profundamente, embora nunca chegue a conhecê-lo totalmente. O conhecimento é, pois, possível porque o universo é um imenso processo, e porque o homem faz parte desse processo. - As coisas definem-se pelas suas qualidades dominantes, pelo que nelas é específico e singular e consideram-se essenciais, precisamente aquelas que as distinguem dos seus opostos, que as opõem aos seus contrários. O masculino define-se pelo que o opõe ao feminino; o burguês pelo que o opõe ao senhor feudal e ao operário; o carnívoro pelo que o opõe ao herbívoro; o projéctil pelo que o opõe à couraça. As coisas identificam-se, definem-se, na interacção com outras coisas e ao mesmo tempo transformam-se. O indivíduo, no seu comércio social com outros homens vai adquirindo carácter, firmando as suas qualidades, e ao mesmo tempo modifica-se: identifica-se como o mesmo e sente-se como outro.
Uma outra face pela qual os objectos devem ser estudados e identificados é o aspecto quantitativo. Os aspectos quantitativo e qualitativo duma masma coisa parecem, à primeira vista, independentes: podemos a partir duma grande barra de aço obter barras mais pequenas sem que, por isso, deixemos de ter o mesmo aço. A barra grande e as pequenas distinguem-se pela quantidade e têm de comum a sua qualidade; no entanto se levarmos a divisão mais adiante, por métodos mais delicados, chegamos a uma altura em que o aço perderá as suas qualidades, dando carbono e ferro macio, e podemos até imaginar uma experiência, ao nível do átomo do ferro, em que este, dividido, daria lugar a substâncias muito diferentes. Por aqui já se vê que qualidade e quantidade não são coisas separáveis como se apresentavam a um primeiro e superficial exame. Mas mantenhamo-nos por um momento no nível em que essa distinção é válida e formemos grupos de coisas qualitativamente idênticas.
O que nos permite distinguir coisas de um mesmo grupo são diferenças quantitativas: assim, deste grupo de homens, considerados idênticos de outros pontos de vista (abstraídas as diferenças), distingo os baixos dos altos, os pesados dos leves, etc.. Quer dizer, a quantidade é o que permite «definir», caracterizar, separar o que é idêntico, ou tomado como idêntico, o que não apresenta diferenças sob outros aspectos.
Segundo Hegel, quantidade é definição, caracterização, sem diferença.
O quantitativo e o susceptivel de medida, o que permite arranjar coisas diferentes, abstraídas todas as diferenças e escolhido o aspecto comum comparável. Peso e extensão constituem os elementos comuns de comparação de que as ciências exactas se serviram desde os seus primeiros passos no estudo quantitativo da natureza e forneceram um critério tão eficaz, e que permitiu tais êxitos da filosofia natural, que fez perder de vista o aspecto qualitativo dos fenómenos, considerado puramente subjectivo, dando lugar à concepção mecanicista e rigidamente determinista do mundo.
No entanto o progresso das ciências sociais e biológicas e das próprias ciências quantitativas atinge uma fase em que o problema das relações de quantidade e qualidade se põe agudamente, em que se pode vislumbrar a sua dialéctica, a sua íntima conexão e a impossibilidade de se isolarem os dois aspectos opostos. Quantidade e qualidade, forma e conteúdo, são categorias da Dialéctica. Penetremos agora no domínio em que quantidade e qualidade já não podem separar-se. Com efeito, como se sabe, a determinação de pesos atómicos mostra que, tomado convencionalmente o hidrogénio com o peso 1, os outros (com raras excepções hoje compreensíveis com o conhecimento dos isótopos) apresentam pesos atómicos sensivelmente inteiros. Este facto permitiu a Prout formular a hipótese da origem comum da matéria que, sob todas as suas formas, resultaria da condensação de um número inteiro de átomos de hidrogénio. As diferenças qualitativas estariam, deste modo, estreitamente dependentes dos modos de ligação e diferenças quantitativas. O mesmo se conclui, actualmente, em face dos mais recentes conhecimentos acerca da estrutura do átomo. Noutro domínio, as cores correspondem a radiações da mesma natureza mas com diferentes comprimentos de onda.
No entanto, qual a natureza da dependência entre quantidade e qualidade?
A correspondência será rigorosa? A uma pequena variação quantitativa corresponde necessàriamente uma mudança qualitativa?
A lei do progresso por saltos enuncia que: «A transição para uma nova qualidade procede através dum conflito em que, numa determinada fase, emerge uma quebra, uma viragem decisiva, um salto. Na base de todo o progresso subjaz um conflito de tendências contraditórias, e é por isso que a emergência do novo, a transição da velha qualidade para a sua oposta, procede não como devida à acção duma força externa, estranha, mas como o resultado do crescimento, do seu próprio crescimento quantitativo» (Text-book, pág. 291).
Quer dizer, por conseguinte, que as pequenas variações quantitativas de um processo, provocam uma evolução interna que conduz a um momento de tal instabilidade que se faz urna transição brusca, violenta, para uma nova qualidade. As graduais modificações quantitativas, prepararam e tornaram possível, a transição brusca. Não se pode enxertar arbitràriamente urna modificação num processo que para isso não foi preparado pela sua evolução interna. Não há revolução sem evolução. Por outro lado, a evolução não é contínua; a modificação do aspecto fundamental, da qualidade básica, de um processo faz-se de um salto brusco, mas é antecedida de modificação sacudida dos aspectos secundários, de saltos parciais, que preparam a modificação fundamental - vão nascendo elementos que exercem tensões nas fronteiras da velha estrutura, e terão a máxima expansão e desenvolvimento no novo arranjo.
Poderíamos ilustrar as afirmações anteriores com múltiplos exemplos escolhidos em todos os sectores do real. Tomemos alguns particularmente simples e conhecidos: À medida que se baixa a temperatura da água, o movimento das moléculas vai afrouxando, aproximam-se, até que a 0º C, atingem as distâncias em que as forças da coesão actuam mais fortemente, e a água gela aparecendo novas qualidades. A evolução social no centro e ocidente da Europa caracteriza-se a partir do século XI pelo aparecimento da tímida classe dos artesãos e dos comerciantes que assistem, inermes, às lutas dos senhores cujas consequências sofrem mas nas quais não podem intervir. Entretanto a técnica das construções navais progride, o perigo dos piratas turcos e berberes é a pouco e pouco afastado, os comerciantes e atrás deles os artesãos enriquecem, e no séc. XIV já constituem uma classe poderosa com a qual é precico contar e que, em alguns acontecimentos, tem acção decisiva, como na independência de Portugal em 1385. Os descobrimentos trazem novo incremento ao comércio e à ciência e no séc. XVII já, em Inglaterra, os burgueses puritanos fazem tremer o trono e adquirem a posição de classe dominante duma monarquia de mercadores e banqueiros. Em França, a armadura feudal, mais resistente, ou sujeita a tensões menos fortes aguenta mais tempo mas acaba por estalar violentamente e dar lugar a um estado tipicamente burguês sem compromisso. Simultâneamente a descoberta da força motriz do vapor e dos teares mecânicos permite a substituição das relações de produção do artesanato por outras de base mais larga - a oficina é substituída pela fábrica, o barco à vela pelo vapor, a diligência pelo combóio e nascem o capitalismo e o proletariado industrial. As modificações das forças produtivas provocaram o aparecimento, no seio da sociedade feudal, do seu oposto, os homens dos burgos, dos ofícios e dos estabelecimentos de crédito, que a destroem e criam uma nova forma de relações de produção na qual a burguesia atinge o seu máximo desenvolvimento e na qual se geram novas contradições.
Todavia, surge agora a interrogação: as transformações qualitativas geram também modificações quantitativas?
Qualidade e quantidade não podem separar-se - isoladas, são impensáveis.
Donde se conclui que as suas transformações são recíprocas: modificações quantitativas, geram novas qualidades e estas por sua vez, dão origem a mudanças quantitativas. A qualidade, a forma das relações sociais influi na produção: o trabalho planificado e organizado numa fábrica é muito mais produtivo que o trabalho do mesmo número de operários trabalhando isolados. Do arranjo dos objectos num determinado recinto, depende o número dos que nele cabem; com a distribuição e a ordem porque se dispõem os paralelipípedos num pavimento ou os cubos numa caixa varia o número dos primeiros que devemos utilizar para cobrir o pavimento ou dos segundos que enchem a caixa. A sociedade capitalista do séc. XIX permite o desenvolvimento das novas forças produtivas que sufocavam sob a organização feudal.
As transformações qualitativas assinalam o caminho, o ritmo e o carácter das transformações quantitativas. Com efeito o exame da história do homem, das formas sociais e relações de produção, mostra a linha progressiva do seu desenvolvimento, o ritmo ora mais rápido (Renascimento e revoluções industriais) ora mais lento da evolução (Idade Média, séc. XVII), e o seu carácter cíclico, sem repetição. Aparecem de facto, épocas correspondentes, idênticas a um exame superficial, mas profundamente diferentes se as examinarmos de perto - mais ricas e em nível mais elevado. O conhecimento concreto de um processo exige a discriminação das contradições contidas numa determinada qualidade, do seu movimento, das posições relativas dos contrários em cada passo do momento culminante da contradição, e a determinação da situação revolucionária em que se dará a passagem a nova qualidade.
Requer também, depois da viragem, a detecção do que permanece da antiga forma e das novas forças que surgem, de modo a fazer intervir como factor eficaz no processo, a própria consciência do seu desenvolvimento.
A consciência é, destarte, um elemento específico dos fenómenos sociais ou dos processos em que o homem intervém.
Estas leis da Dialéctica são contidas numa forma mais geral - a negação da negação - na qual se afirma que a realidade concreta e o pensamento se processam segundo um movimento de tese, antítese e síntese (afirmação, negação e negação da negação), ligando-se a estas palavras um conteúdo material e não apenas ideal. Entenda-se também que a negação não é oposta exteriormente à afirmação; muito pelo contrário, ela gera-se na própria afirmação e é dela inseparável. A síntese é a negação da negação e não apenas a soma ou justaposição, a conciliação da tese e da antítese; gera-se no conflito da afirmação e da negação, contém-nas e excede-as, é qualquer coisa nova e diferente, mais rica que a tese e a antítese somadas, e é por sua vez, a tese de um novo processo, numa nova unidade de contrários.
«A negação da negação emerge, assim, como:
1.º - O resultado do desenvolvimento das contradições de um processo; e como uma contradição essencial que aparece ao mesmo tempo como ponto de partida de uma nova contradição, que por seu turno a nega;
2.º - Um momento numa contraditória unidade de opostos; e como o desenvolvimento desta nova contradição;
3.º - O momento especial no desenvolvimento do processo que se quebra a si próprio na fase seguinte, um momento que denota a resolução das contradições básicas, o acabamento do ciclo de desenvolvimento e a transição para uma nova unidade de opostos; e como a quebra desse processo e a consequente resolução relativa tanto dele como da contradição, originada no novo processo que se originou no desenlace do precedente desenvolvimento» (Text-book, pág. 373).
A tese e a antítese sobrevivem e realizam-se na síntese.
O idealismo e o materialismo, a teoria e a prática, o empirismo e o racionalismo, unem-se e realizam-se no moderno materialismo.
A Teoria da Relatividade foi, ao mesmo tempo, o fim de uma fase na história da Física e o princípio de outra, mais rica. A música de Beethoven foi o coroamento de uma fase na história da música e a aurora de outra, mais brilhante. A matéria viva «continua» a matéria inerte, havendo entre as duas um salto dialéctico, contém a matéria inerte mas é algo mais (H. Lefèbvre).
Chegados, portanto, ao extremo desta já longa caminhada, ficam-nos entre mãos um certo número de enunciados que constituem por um lado um guia de investigação e descoberta, e nesse sentido estruturam um método, e, por outro, são já o resíduo, a quintessência, de uma concepção do mundo, e por isso fazem parte duma doutrina ou sistema filosófico aberto. Aqui, ainda, nos surge uma dialéctica do método e da doutrina que se forjam mùtuamente por ajustamentos e correcções múltiplos: o método implica a doutrina, e a doutrina implica o método. O método que está no princípio, e presente a cada passo da procura teórica e da acção prática, é, por sua vez, o produto catártico de toda a actividade e de todo o conhecimento humano, caldeado em toda a praxis social: É, neste sentido, «o imediato que sofreu todas as mediações», é o oceano onde desaguam todos os rios e onde têm origem todas as fontes do conhecimento e da acção. As suas leis são as leis internas e necessárias de todo o devir; são universais e concretas, na medida em que são a realidade mais profunda e essencial, mas são, ao mesmo tempo, particulares e abstractas, porque se manifestam e são abstraídas do particular. O próprio método está em devir e é enriquecido através da aplicação ao particular; guiando a pesquisa e o estudo dos fenómenos particulares, penetra mais profundamente no real, torna-se conhecimento mais concreto e instrumento mais dúctil de conhecimento.
As suas leis «são supremamente objectivas, sendo ao mesmo tempo leis do real e do pensamento, quer dizer leis de todo o movimento no real como no pensamento» (H. Lefèbvre - «Logique formelle et Logique dialectique», pág. 220).
Aplicado à compreensão dos diversos sectores da realidade orienta a descoberta das leis próprias desses domínios e é, no nível do social e do indivíduo, a auto-consciência da sua necessidade interna, o que permite a intervenção racional nos fenómenos sociais e a desmistificação da consciência do homem individual e do grupo social que nada tem a perder com essa desmistificação. A verdadeira liberdade, a liberdade concreta, que não a liberdade ilusória e utópica, é assim realizada através da desmistificação das consciências, do conhecimento do condicionamento das ideologias, das leis naturais e da evolução social. O moderno materialismo, o mais puro herdeiro do que de melhor nos legou a civilização ocidental, síntese do racionalismo, do materialismo e do pensamento dialéctico, que se traduz num humanismo concreto e actuante, fornece, como corolários das suas leis, as seguintes regras práticas de acção:
Regras do método:
«1.ª - Ir à própria coisa. Nada de exemplos exteriores de digressões ou de analogias inúteis; logo análise objectiva;
2.ª - Apreender o conjunto das conexões internas da coisas - dos seus aspectos; o desenvolvimento e o movimento próprios da coisa;
3.ª - Apreender os aspectos e momentos contraditórios; a coisa como unidade de contraditórios;
4.ª - Analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a tendência (o que tende a ser e o que tende a cair no nada);
5.ª - Não esquecer que qualquer coisa está ligada a todas as outras; e que uma interacção insignificante, desprezável porque não essencial num momento, pode tornar-se essencial noutro momento ou sob outro aspecto;
6.ª - Não deixar de apreender as transições: transição dos aspectos e contradições, passagens de uns para os outros - transições no devir. Compreender que um erro de apreciação (crer que se está um pouco mais longe no devir que o ponto em que se está efectivamente, crer que a transição está consumada ou não está começada) pode ter graves consequências;
7.ª - Não olvidar que o processo de aprofundamento do conhecimento - que vai do fenómeno à essência e da essência menos profunda à essência mais profunda - é infinito. Nunca se satisfazer.
8.ª - Por conseguinte, penetrar sob a simples coexistência observada, caminhar sempre mais profundamente no rico conteúdo, captar as conexões cada vez mais profundas, até atingir e apreender sòlidamente as contradições e o movimento. Até aí nada feito;
9.ª - Em certas fases, o próprio pensamento deverá transformar-se, ultrapassar-se: modificar ou rejeitar a sua forma, refundir o seu conteúdo - retomar os seus momentos ultrapassados, revê-los, repeti-los, mas só na sua aparência, para aprofundá-los por um regresso a «etapas» passadas e, às vezes, ao seu ponto de partida, etc.. O método dialéctico revelar-se-á deste modo, ao mesmo tempo rigoroso (pois que está ligado a princípios universais) e o mais fecundo, capaz de surpreender todos os aspectos das coisas, compreendidos os aspectos pelos quais as coisas são vulneráveis à acção» (Lefèbvre, Loc. cit., pág. 225).
O método é o conhecimento mais geral, mais essencial; o mais abstracto e, simultâneamente, o mais profundamente concreto acerca do Real. Por isso, para Hegel, ele é o próprio movimento da Ideia Absoluta e para o materialismo é o próprio movimento da objectividade material.
(*) Egídio Namorado (1920-1976) nasceu na vila alentejana de Alter, tendo vindo muito novo estudar para Coimbra, onde se licenciou em Físico-Química no ano de 1945. Era irmão mais novo do poeta Joaquim Namorado e, como este, militou no movimento neo-realista coimbrão. Foi fundador e pertenceu aos quadros redatoriais da revista Vértice. Colaborou ainda em Sol Nascente, O Diabo e na Seara Nova. Impedido de lecionar e de prosseguir estudos no estrangeiro, empregou-se como diretor do Centro de Cálculo Científico da Fundação Calouste Gulbenkian. Os seus campos de investigação e indagação inteletual eram sobretudo a física teórica, a filosofia e a epistemologia, mas também se interessou por estética e literatura. Ainda estudante, publicou o livro A Escola de Viena e alguns problemas do conhecimento, Atlântida, Coimbra, 1945. Traduziu vários livros científicos de Niels Böhr e Max Born. Em 1962 publicou Uma hipótese sobre a propagação das ondas electromagnéticas no vazio. Já postumamente foi publicado Camões e o pensamento filosófico do seu tempo, Prelo, Lisboa, 1979, de que é co-autor. O ensaio que aqui publicamos foi dado à estampa originalmente no Vol. 9, nº 77 da revista Vértice, janeiro de 1950, sendo incluído depois no livro ‘Ponto de vista’, Textos Vértice, Coimbra, 1958, que reúne vários textos dispersos do autor de grande valia e interesse. O texto foi, entretanto, revisto e acrescentado, sendo o título também corrigido. Se a citação feita a ‘Dialectic of Nature’ é facilmente identificável como referente à conhecida obra de Friedrich Engels, outras citações são bem mais crípticas. Há várias e extensas citações de um misterioso “Text-book” (sic), uma outra de “V. U.” (Vladimir Ulianov, ou seja, Lenine?). De todo o modo, faz-se aqui sentir também a influência de Nicolai Bukharine (o do ‘Tratado de Materialismo Histórico’ ou «manual popular de sociologia») e de Henri Lefèbvre, este citado às claras, certamente por ser desconhecido do censor.
______________ NOTAS:
(1) «Costuma-se afastar este paradoxo com o argumento de que a soma de um número infinito de intervalos de tempo converge, portanto pode produzir uma duração de tempo finita, mas com isto não se atinge um ponto essencial do paradoxo que reside em que uma série infinita, cuja representação não podemos executar, não só de facto mas também de princípio, deve estar completa na realidade.
De facto há também uma solução muito mais radical do Paradoxo; esta solução reside em que, de maneira nenhuma, somos forçados a crer que a representação matemática e espacio-temporal do movimento tem ainda sentido, fisicamente, para quaisquer pequenas grandezas de espaço e tempo; pelo contrário, temos toda a razão para aceitar que aquele modelo matemático extrapola os factos duma certa região da experiência, exactamente os movimentos, dentro da ordem de grandeza até agora acessível à nossa observação, no sentido duma simples formação de conceitos, anàlogamente ao modo como a Mecânica dos contínua executa uma extrapolação, na medida em que põe na base a representação dum preenchimento contínuo do espaço com matéria: precisamente como uma porção de água em divisão espacial ilimitada não dá sempre de novo, porções de água, também não se dará, num movimento, o caso de, por divisão ilimitada resultar sempre alguma coisa que se possa caracterizar como movimento. Se aceitarmos isto desaparece o paradoxo.»
(Hilbert - GrundIagen der Matematik)
(2) Não abrirá a Mecânica Ondulatória o caminho para a síntese (no sentido dialéctico) Contínuo-Discontínuo? Com efeito, a onda associada a um corpúsculo dá-nos, segundo a interpretação hoje mais comumente aceite, a probabilidade de presença do corpúsculo numa região do espaço. A função de onda dá-nos também a lei de distribuição no espaço de um grande número de partículas se entre estas não houver interacção. No caso contrário, a função de onda deverá ter forma um pouco diferente.
(3) León Robin: «La Pensée Grecque», pág. 89.
(4) «Dialectic of Nature».
(5) O progresso das ciências físicas e naturais nos últimos 50 anos tem marcado um recuo constante das posições mecanistas. As mais recentes concepções encaram os corpúsculos elementares da matéria como transformáveis e em permanente interacção.
Assim, segundo o físico americano R. Oppenheimer numa entrevista publicada na revista «Life» de 24-10-1949: «Estamos a chegar, além disso à conclusão de que, aquilo a que somos forçados a chamar partículas elementares não apresentam nem permanência nem identidade. Quer dizer, elas são sempre capazes de transformação umas nas outras. Todas as partículas elementares interagem tão fortemente, quando estão juntas, que a nossa principal dificuldade é separá-Ias das suas interacções com as outras».
(6) Léon Robin, ob. cit., págs. 89 e 90.
(7) O que não quer dizer que dentro das próprias classes não haja diferenciações e oposições. Vejam-se as oposições entre a alta e pequena burguesia, empregados e desempregados, etc..
(8) As coisas de que não tenho ideias não existem...
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