Carta Aberta ao Partido Socialista Português

 

  

César Nogueira

César Nogueira (*)

 

 

Camaradas - Há longos anos que vimos militando nas fileiras socialistas. Desde 1895, isto é, há 27 anos, que vimos dando o Socialismo o melhor da nossa dedicação, o nosso mais útil esforço, o máximo da nossa inteligência. Tínhamos apenas 16 anos, então. A nossa vida corria bonançosa, pois que, filho de família burguesa, exercendo meu pai, no antigo regime, altos cargos militares, da confiança dos governos, poderíamos ter seguido outra orientação, amoldando-nos ao estádio burguês, desfrutando das suas regalias e assegurando numa vida farta e cheia de proventos o nosso passado, o nosso presente, o nosso futuro. Não o fizemos. Elucidados sobre os problemas da questão social, tendo-os estudado sob todo os aspectos, para o que queimámos, em anos sucessivos, as nossas pestanas, viemos ao meio operário, descemos aos centros populares, onde se sofrem dores, onde se gemem torturas, onde se passam horas cruciantes, onde se sente, com verdade, enfim, o pesado fardo da má organização social, acompanhando-o nas suas misérias e procurando elevá-lo à comprensão nítida dos seus direitos e, ipso facto, à conquista da sua emancipação económica.

 

Nunca arredámos um pé dessa tarefa. E para melhor firmarmos a nossa atitude, em 1908, depois de feita a conjunção de todas as correntes socialistas da época, filiámo-nos no Partido Socialista Português. Desde que nos filiámos, a nossa vida, o nosso pensammento, passaram a ser do Partido. A ele dedicámos tudo, roubando até as horas ao nosso descanso, ao nosso sossego. Após a República vimos crescer, desenvolver-se o Partido, formando passo a passo uma organização séria e tomando, sem transviar, uma orientação segura.

 

Nele exercemos os cargos de maior responsabilidade, executando-os de forma a servir o melhor possível a acção partidária. Não nos compete a nós analisarmos a nossa tarefa. Basta que digamos que conseguimos tornar o Partido Socialista Português conhecido e respeitado na Internacional. A história dirá, de resto, o que foi o nosso trabalho.

 

Quando veio a guerra, vieram as desilusões, os desgostos. Vimos a Internacional fracassar. Assistimos ao fraccionamento dos partidos socialistas. Tivemos a dor, bem sentida, de contemplar, por instantes, o desmembrar de todo o edifício do socialismo internacional, que desde 1864 vinha sendo construído. Os mesmos factos se reproduziram em Portugal. Mas a suster toda essa derrocada, uma nova aurora resplandeceu no Oriente, com a revolução socialista russa, em 1917, que teria sido o preliminar da revolução mundial se os partidos socialistas dos outros países, e em especial os socialistas alemães, quando se produziu a revolução na Alemanha, têm acompanhado a revolução russa e não atraiçoado os objectivos revolucionários do socialismo.

 

Isso não se produziu. Aconteceu, portanto, que os verdadeiros socialistas se afastaram dos traidores, dos que se mancomunaram com o regime burguês. A Internacional de Moscovo e a de Viena surgiram. Cada qual definiu os seus campos, pois que a hora, o momento, é decisivo para que se aclarem as ideias.

 

Em Portugal, desde o Congresso extraordinário de Coimbra, em 1916, que as controvérsias entre intervencionistas e anti-intervencionistas se vieram acentuando até que tiveram um termo aparente no Congresso de Tomar, efectuado este ano. Compreendia-se que durante o conflito armado e antes da revolução russa houvesse uma coligação das forças nacionais para defesa do torrão natal. Mas em seguida à guerra, mas depois da revolução russa, não, nunca! Nem mesmo o pretexto da defesa da República colhe para desculpar o intervencionismo, pois que a República, quando em perigo, defende-se melhor com as armas nas mãos que nas cadeiras dos Ministérios. Depois, quando a burguesia em todo o mundo está formando uma frente única, não se pode consentir, não há o direito de colaborar com a burguesia, de fazer a revolução por conta-gotas. Não, isso é contra os fundamentos das doutrinas marxistas, que estabelecem o princípio da luta de classes, o único terreno em que o proletariado deve combater, posto que o alvo deste é a «organização do proletariado como classe, destruição da supremacia burguesa e conquista de poder político pelo proletariado» (Manifesto de 1848, de Marx e Engels), o que ele «realizará conquistando revolucionàriamente aos seus adversários de classe, juntamente com o poder político, a força por eles destinada a conservar intactos os seus monopólios económicos». (‘O Capital’, Carlos Marx).

 

A luta de classes, a conquista do Estado capitalista por meio da revolução, é pois o objectivo histórico do proletariado. É isto que se define do socialismo científico, posto que Marx «aplicou à economia o novo critério sociológico, chegando à conclusão histórica de que a produção económica e as classificações sociais, que são a sua consequência necessária, criam, para cada época, a base da sua história política e intelectual. Assim, pois, desde que a posse comum do solo, tal como primitivamente existia, desapareceu, a história ínteira tem sido ùnicamente, nos diversos graus de desenvolvimento social, uma luta de classes - luta de explorados contra os exploradores, das classes dominadas e das classes dominantes. Nos tempos modernos, esta luta entrou numa fase em que já não é possível à classe explorada e oprimida, ao proletariado, libertar-se da classe que a explora e oprime, da burguesia, sem libertar, desde esse instante para sempre, a sociedade inteira da exploração, da opressão e, ao mesmo tempo, da luta de classes. A propriedade particular foi o produto de séculos de exploração; no seu auge produziu o actual sistema económico, baseado no antagonismo do capital e do salário; mas o invólucro capitalista virá por fim a romper-se e o proletariado, adquirindo a consciência da sua autonomia, dará um assalto ao capital e exigirá um sistema novo, em que a propriedade privada desapareça para dar lugar à propriedade e ao trabalho colectivo». (A 1.ª Internacional, César Nogueira).

 

Tal é a finalidade do Socialismo, que esperámos em vão que o Congresso de Tomar (1922) confirmasse. Mas não. O referido Congresso votou o contrário. Atraiçoou assim a missão histórica do Partido Socialista Português, aceitando a colaboração com a burguesia, a participação nos governos, posto que o programa do Partido Socialista Português, votado na Conferência de Tomar em 1895 e sancionado em sucessivos congressos nacionais, dispõe bem claramente que o objectivo do Partido Socialista Português é a «abolição do Estado em todas as suas formas históricas», adquirindo para esse efeito todos «os elementos de força para assegurar, por sua parte, o triunfo da revolução socialista mundial».

 

Camaradas. - A abolição no Congresso de Tomar do art.º 65.º do regulamento partidário, que dispunha que «em caso nenhum dentro dos partidos burgueses poderão os membros do Partido fazer parte do Governo», foi a afirmação da incompatibilidade do Partido Socialista Português com os princípios doutrinários do Socialismo e as bases de acção revolucionária do programa do mesmo Partido. Foi a traição desmascarada. Foi a condenação da luta de classes, foi a transformação dos velhos métodos revolucionários do Partido Socialista Português em partido de governo, em partido participante da mesa do orçamento. Foi, enfim, um passo à retaguarda, violando assim a memória de Antero de Quental, José Fontana, Azedo Gneco, Agostinho da Silva e tantos outros, que toda a sua vida pugnaram pela pura causa do Socialismo.

 

Nós, que somos socialistas por convicção e educação, posto que pela nossa situação social poderíamos auferir um relativo bem-estar, não queremos continuar, com o nosso silêncio, a acompanhar a traição do Partido Socialista Português. Saímos do Partido como entrámos, isto é, com a consciência sossegada, pois que nunca solicitámos benesses, nunca subimos as escadarias dos Ministérios a fazer petições, nunca ladeámos os nossos princípios, as nossas ideias, para agradarmos ou contemporizarmos fosse com quem fosse. Mantivemo-nos sempre íntegros no nosso critério, dentro dos pontos de vista do Socialismo. Tomamos a responsabilidade de todos os nossos actos, porque temos a consciência e a dignidade precisa para o podermos fazer.

 

Por isso:

 

Acusamos, altivamente, o Partido Socialista Português de no seu Congresso de Tomar (1922) ter atraiçoado a sua ideologia, o seu programa, as doutrinas do Socialismo;

 

Acusamos o Partido Socialista Português de no seu Congresso de Tomar (1922) ter-se mancomunado com o regime burguês, posto que outra coisa não é a sua resolução de colaborar com a burguesia, participando dos seus governos; e,

 

Acusamos o Partido Socialista Português de no seu Congresso de Tomar (1922) ter faltado aos seus compromissos internacionais exarados no seu programa, não aderindo à frente única do proletariado, que se vem operando mundialmente, contra a ofensiva burguesa, a reacção imperialista do capitalismo, o que significa, em síntese, renegar a luta de classes e a acção revolucionária.

 

Camaradas - Desde esta hora consideramo-nos desligados do Partido Socialista Português. É com profunda dor que o fazemos, posto que foram 14 anos de luta que dentro das suas fileiras sustentámos, mas a nossa consciência, a nossa dignidade, o nosso sentimento, não nos permite que colaboremos na obra de renegação e traição que se vem operando, últimamente, nas fileiras do Partido Socialista Português. Readquirimos a nossa liberdade de acção, fazendo votos para que os velhos lutadores dos tempos de Fontana, Antero e Gneco saiam da sua inactividade, para, com coragem e audácia, conservarem de pé as gloriosas tradições do velho Partido Socialista Português, desfraldando a sua bandeira vermelha à sombra dos verdadeiros princípios do Socialismo. É o que o momento histórico que ora atravessamos impõe que se faça. Não vamos para casa. Vamos todos, absolutamente todos, que temos a firme crença na obra revolucionária socialista, para a luta.

 

E esta luta só poderá ser feita por socialistas de alma e coração, pois que, como diz Eugène Varga, antigo professor da Universidade de Budapeste: «A revolução proletária tem necessidade de campeões resolutos, prevendo todas as dificuldades e prestes a todas as privações». (La Dictature du Prolétariat).

 

São estes campeões que, por motivos óbvios, não existem agora nos soit disants socialistas do Partido Socialista Português.

 

Camaradas - Eis o que tínhamos a dizer para sossego da nossa consciência, posto que continuarmos silenciosos seria um crime, seria uma traição aos nossos ideais. Se tendes também a consciência convicta dos erros, dos crimes, das traições do Partido Socialista Português, juntai a vossa voz à nossa, para que em todo o mundo proletário se saiba, enfim, que em Portugal ainda existem socialistas de coração e de consciência, prontos a trabalharem pela revolução socialista mundial,

 

Saudações fraternas.

 

 

Lisboa, aos 14 de Julho de 1922.

César Nogueira

  

 

César Nogueira - Notas

 

(*) César Henrique Xavier Nogueira nasceu em 1879 de uma família de tradição militar forjada no liberalismo, tendo frequentado os melhores colégios da capital. Aderiu ao Partido Socialista Português (PSP) em 1908, na altura da sua refundação por ocasião da fusão das correntes revolucionária (Azedo Gneco) e possibilista (Luis de Figueiredo). Foi uma voz muito marcante do partido durante as duas décadas seguintes, como director ou redactor principal dos seus órgãos de imprensa - ‘A República Social’, ‘A Batalha Socialista’ e ‘O Combate’ - secretário externo do Conselho Central e delegado ao Bureau da Internacional Socialista. Nestas últimas qualidades tornou-se no elo essencial de ligação do PSP à II Internacional do princípios do século XX. Foi correspondente muito assíduo de Eduard Bernstein, Camille Huysmans e de todos os grandes partidos socialistas europeus. Por seu intermédio, notícias e análises sobre a república portuguesa e o seu movimento operário apareciam em periódicos centrais do socialismo do seu tempo, como o ‘Vorwärts’ e ‘Die Neue Zeit’. Devido à sua porfia e metódico trabalho secretarial, o PSP participou no histórico Congresso anti-guerra da Internacional Socialista, reunido em Basileia em 1912, aderindo depois formalmente a esta organização em 1914. A sua formação marxista não seria muito mais profunda do que a permitida pela leitura da imprensa e de algumas brochuras de ampla circulação no movimento socialista europeu do seu tempo. César Nogueira apoiou a entrada de Portugal na grande guerra, em 1916, partilhando por inteiro os objectivos “patrióticos” da preservação do império colonial. Contudo, perante a definitiva rendição do PSP ao carreirismo político republicano burguês, afastou-se do partido, lançando um grito de revolta na forma desta “Carta Aberta”, publicado a 3 de Setembro de 1922 no semanário ‘A Voz do Operário’. Para quem aprecia o marxismo clássico, este documento histórico, apesar das suas ingenuidades teóricas, revela-nos um César Nogueira no seu melhor. Em 1925 tornaria a filiar-se no mesmo PSP, a cuja inglória morte assistiria poucos anos depois. Os dois volumes das suas ‘Notas para a história do socialismo em Portugal’ (Portugália, Lisboa, 1964-66) são um instrumento de estudo fundamental sobre as organizações socialistas portuguesas até ao final da I República.