Doutrina e acção

 

 

Bento Gonçalves - jovem

Bento Gonçalves (*)

 

 

 

Deformação socialista do marxismo

 

Ao mesmo tempo que os partidos políticos nacionais socialistas abdicavam dos princípios fundamentais da teoria que Marx legara ao proletariado para seu uso quotidiano na luta contra a exploração capitalista, os seus chefes ainda que rotulando-se de marxistas, foram, no mundo moderno da luta de classes, os maiores deformadores da ciência marxista - que é como quem diz do «materialismo dialéctico» - e a tal ponto o fizeram que, no momento actual, entre a doutrina de Marx e a doutrina pseudoproletária do socialismo oficial, estende-se uma época histórica completa.

 

O trabalho de revisão do materialismo histórico foi uma das tarefas imediatas dos leaders da lI Internacional - iniciado pouco depois da sua fundação – até que nas vizinhanças da eclosão da guerra europeia, que o movimento socialista de integração nacional atingira a sua culminância, esses «doutrinários eminentes» deslembrando-se dum dos postulados primários da teoria do proletariado: - que: «os proletários não têm pátria» - traduzido na fórmula: «Proletários de todos os países, uni-vos!» -, não obstante a saliva gasta nas reuniões que antecederam essa convulsão mundial, tornaram uma atitude verdadeiramente servil em toda a época posterior, aconselhando por toda a parte as massas trabalhadoras à defesa nacional, e o que é mais fazendo-o em nome das palavras de ordem «liberdade», «fraternidade» e «igualdade» e outros chavões da terminologia chauvinista de que a burguesia dos países beligerantes se serviu, também, para arrastar as massas à luta pela manutenção da ordem social capitalista, ordem que perpetua a exploração do homem pelo homem, que perpetua a opulência de uma minoria a expensas da miséria criada à maioria.

 

Armados em barões de quiproquó, os chefes socialistas, então já renegados conscientes, foram os melhores esteios de uma burguesia embaraçada ao curso de uma guerra por ela desencadeada, duma guerra que foi a materialização positiva da exacerbação dos antagonismos de classe que o actual regime de exploração e permuta engendra e desenvolve.

 

Foi desde essa data, isto é, desde os últimos momentos que precederam a conflagração de 1914-18, que, com toda a clareza, se pôs à luz do dia a falência, desse organismo (a II Internacional) como centro de acção capaz de prosseguir até ao fim a emancipação do proletariado - princípio que, aliás, havia inscrito no seu programa de luta.

 

Esquecendo-se que de ambos os lados do front guerrista se encontrava o proletariado, esquecendo as relações sociais entre a classe capitalista e a classe trabalhadora - porque de há muito se haviam cristalizado na defesa dos interesses transitórios de classe - foram os precursores de uma política burguesa, de uma política de traição ao proletariado, pois que essa política respondia no fundo, aos interesses directos da burguesia. Era a identificação com o móbil das guerras modernas, móbil que tomou um maior corpo com a transformação do capitalismo em capitalismo dos monopólios, dos trusts e das oligarquias financeiras - o imperialismo. Favoreceu então a luta por uma nova partilha do mundo empreendida pelas principais potências da Europa.

 

Actualmente, a integração burguesa do socialismo é absoluta em todos os sectores.

 

No seu aspecto geral, a ideologia da corrente predominante do socialismo contemporâneo é a ideologia da pequena burguesia citadina, a qual em virtude dos interesses essenciais da classe que os propaga substitui o princípio da luta de classes pelo da colaboração de classes, já porque é na pequena burguesia ou por entre os indivíduos ao serviço dela, que os partidos socialistas recrutam os seus efectivos, já porque esta classe - que o desenvolvimento económico-social condena a uma posição secundária nos domínios da produção - para assegurar a sua posição como entidade produtora pretende elevar-se à categoria de classe dominante, e, nesse sentido carece de neutralizar os efeitos maléficos sobre si causados pela grande burguesia - a classe dominante do mundo capitalista presente. A política da colaboração de classes é então o meio segundo o qual procura para si a posição de centro de geração de toda a vida social.

 

É neste sentido, isto é, no sentido da conquista para a pequena burguesia de uma situação política de comando, que o socialismo vem trabalhando desde várias décadas.

 

Mas o socialismo põe e a economia dispõe. E assim a história vai-se encarregando de negar praticamente as teses elaboradas pelos desvios de doutrina, constituídos em escola nos domínios das ciências históricas.

 

É desta substituição de tácticas - colaboração de classes por luta de classes - que resulta a oposição destes «marxistas» com Marx, e é por via dela que, ainda que apelidando-se os socialistas de defensores do proletariado, são no fundo os defensores da burguesia, visto que a renúncia às doutrinas proletárias, só beneficia de facto a esta classe.

 

Este desvio «marxista» como tendência é já velho no mundo ocidental especialmente. Simplesmente a filosofia que daí decorre é que vem sendo apresentada como que nova entre nós.

 

Encaremos, portanto, dum modo mais efectivo a questão que nos propusemos e que serve de título a este artigo.

 

A sociedade futura, isto é, a sociedade reduzida a uma só classe, à classe dos produtores, foi definida por Marx, deste modo:

 

«Os antagonismos de classe, uma vez desaparecidos ao curso de todo o desenvolvimento social, achando-se toda a producão concentrada nas mãos de indivíduos associados, então o poder público perde o seu carácter político. O poder político no seu verdadeiro sentido é o poder organizado de uma classe para a opressão das outras. Se na sua luta contra a burguesia, o proletariado, se constitui forçosamente em classe, se se erige por revolução em classe dominante, destrói violentamente o antigo regime de produção, destrói as classes em geral e por isso mesmo a sua dominação como classe.

 

«No lugar da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e os seus antagonismos de classe, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um, é a condição do livre desenvolvimento de todos.»

 

Eis, em poucas palavras, como Marx definiu a sociedade futura. Os socialistas, apesar das suas aberrações de doutrina, proclamam ainda a sua identificação quanto ao objectivo final do proletariado. Põe-se, portanto, desde já a questão das relações entre a sociedade presente e a sociedade futura. Mas antes de tudo, convém sublinhar que, segundo Marx, na sociedade reduzida a uma só classe, o poder público perde a sua razão de existência. Segundo o socialismo moderno, o poder público, isto é, o Estado subsistirá a fim de salvaguardar «o direito burguês».

 

A questão das relações entre a sociedade presente de classes sociais diferentes e a sociedade futura de uma única classe foi posta por Marx como segue:

 

«Entre as sociedades capitalista e comunista estende-se um período de transformação revolucionária da primeira à segunda. A este período corresponde um período político transitório durante o qual o Estado não pode tomar outra forma senão a da ditadura revolucionária do proletariado.»

 

Este período transitório que Marx qualificou, também, de fase inferior da sociedade comunista, é ainda conhecido hoje por período de construção socialista.

 

O período em referência é o período da democracia proletária. «A questão da ditadura do proletariado, é, portanto, a questão das relações entre a democracia proletária e a democracia, burguesa.»

 

A transformação da democracia burguesa em democracia proletária é caracterizada, no campo económico, pela transformação da propriedade privada, dos meios de produção e de troca, em propriedade colectiva desses mesmos meios, transformação que, segundo Marx e confirmada pela Comuna de Paris e pela Comuna Soviética, se opera pela apropriação revolucionária do proletariado sobre esses meios.

 

A análise dos traços distintivos destas duas espécies de democracias deixa-la-emos para um artigo futuro. Vejamos, porém, desde já, o que o socialismo compreende por conquista da democracia pelo proletariado, e até mesmo por democracia.

 

A concepção de classe da democracia que a história atesta exuberantemente não existe para o socialismo. É, baseando-se na «democracia pura», no desenvolvimento da democracia e suas possibilidades de êxito para o proletariado que o socialismo pretende edificar uma ciência completa, não tendo, porém, em conta que «a menos de se zombar do senso comum e da história, não se poderá falar de democracia pura enquanto na sociedade existam classes distintas. Democracia pura é, não só uma frase de ignorante que nada compreende da luta de classes e da natureza da própria democracia, mas ainda uma fase vazia de sentido, porque na sociedade dos produtores a democracia regenerada e transformada extinguir-se-á sem nunca ter sido uma democracia pura». (N. L.)

 

Refutada pela história do pós-guerra, isto é, pelo fenómeno de transformação da democracia em fascismo em alguns países, a definição socialista de democracia e com ela todo o sistema doutrinário do socialismo, vejamos, no entanto o que a corrente social-reformista portuguesa compreende por conquista do poder político pelo proletariado. Para isso servir-nos-emos dum artigo recente, subordinado ao título «A preponderância da classe trabalhadora», inserto no «Protesto» de 5 de Maio do corrente ano.

 

Aí é dito: «A terceira parte da definição (do poder da classe trabalhadora) consiste no ponto «poder político», que não quer dizer exercer-se a acção governativa do Estado, mas sim, e visto que o operariado constitui a maioria da população e a parte reconhecidamente mais útil, ser tida na mais alta consideração nas regiões da governação, a fim de que as leis e a causa pública não sirvam interesses quaisquer com prejuízo moral ou material dos trabalhadores.»

 

Isto é o que se chama bater o record da deformação, o que se chama a renúncia aos ensinamentos de Marx, até à aceitação do statu quo na dinâmica social.

 

Em primeiro lugar, é dos domínios da história que a classe que domina em economia domina simultaneamente em política, visto que a política não é senão a «expressão concentrada da economia».

 

Assim, na época presente, a época do capital financeiro e dos monopólios, a dominação económica e política pertence aos trusts e às oligarquias financeiras, isto mesmo até nos países de democracia mais adiantada, isto mesmo na Inglaterra das maiorias trabalhistas...

 

Em segundo lugar, uma classe não domina em política sem que se tenha apoderado das «alavancas de comando» da sociedade, isto é, das principais unidades produtoras.

 

Uma qualquer classe social ou domina ou é dominada. A história não conhece um único caso de dominação política simultânea de todas as classes existentes na sociedade.

 

A simples comparação do conteúdo da parte citada deste artigo, com as citações que atrás fizemos da doutrina de Marx, demonstra à evidência até que ponto o socialismo se afasta do marxismo.

 

Ainda há mais e muito mais a dizer a este respeito, e isso fá-lo-emos em artigos seguintes. Por agora quisêmos apenas tratar a traços largos a deformação do marxismo levada à prática por uma das tendências do socialismo oficial. A análise das características especiais das outras correntes há-de vir a seu tempo.

 

Das democracias

 

Quando tratámos da deformação socialista do marxismo prometemos dedicar um artigo à questão dos traços distintivos entre a democracia burguesa e a democracia proletária. O assunto é vasto, e, porque a sua análise detalhada transbordaria dos quadros restritos que o local nos impõe e para tanto nos escasseiam os requisitos indispensáveis, procuraremos encarar à luz do marxismo ortodoxo e revolucionário, isto e debaixo do ponto de vista do materialismo dialéctico, apenas o que há de essencial em tão magna questão e mesmo assim em resumo.

 

Tomando por base a renúncia aos princípios da luta de classes em toda a época moderna e a capitulação em presença do conflito de 1914/18, do socialismo oficial, concluímos por dizer, em artigo anterior, que, sob o ponto de vista de doutrina, método e acção, os fundamentos teóricos desse desvio do movimento operário são essencialmente burgueses, ainda que, sistematicamente, os seus propagadores lhe pretendam imprimir um conteúdo proletário. E, de facto, assim é. Logo que E. Bernstein e consortes empreenderam o revisionismo preconizando a ideia da atenuação e da conciliação dos antagonismos de classes, a sua primeira tarefa consistiu em negar precisamente o método marxista, isto é, a dialéctica materialista. É justamente um filósofo do revisionismo contemporâneo, Z. Mark, que declara: «o revisionismo e o marxismo revolucionário são opostos um ao outro, tanto sob o ponto de vista do método como da ideologia.»

 

Na vida prática os partidos socialistas têm confirmado a sua identificação obsoluta aos princípios revisionistas. Toda a propaganda do Labour Party por ocasião das últimas eleições inglesas foi caracterizada por um ataque cerrado ao marxismo revolucionário - à doutrina que predica a abolição do Estado em todas as suas formas históricas.

 

Posta a questão nestes termos pelos próprios revisionistas (e revisionistas são todos os amsterdianos), é naturalíssimo que, fiéis à dialéctica marxista, estendamos a nossa crítica a tal ideologia, que tornemos esta crítica tanto mais veemente, já que essa tendência se pretende rotular de proletária - e marxista para ludíbrio dos trabalhadores conscientes.

 

BREVES REPAROS

 

1.º - A «República Social», órgão oficial do social-reformismo português, já que não pôde fazê-lo de frente, escolheu uma via indirecta para responder ao que aqui escrevemos há duas semanas. A resposta veio por partes. Feriu-se com a apelação de traidores que consignamos aos seus correligionários e começou por aí. Como que para eximir-se a tal qualificação, publicou em duas jornadas, um artigo subordinado ao título «Quem são os traidores»! O que nos é dito aí? Apenas que um amigo Banana ou um Zé dos Anzóis haviam abjurado das suas anteriores convicções para se incorporarem em partidos reaccionários uns, e em seitas religiosas outros. E, de factos bem parciais de resto; que nada provam em abono do fim que se propuseram, concluem: «Na verdade, todos os extremistas têm um mau fim: desiludidos de obterem os seus objectivos num abrir e fechar de olhos, acabam por se passar para o outro extremo - o da reacção clerical.»

 

Gostaríamos de conhecer o compêndio de filosofia por onde estudam os senhores socialistas, e que ensina a inferir conclusões tão transcendentais de factos tão particulares. - Mussolini, Pilsudsk!, etc., etc., foram socialistas militantes. Há aqui, também, uma questão de velocidade, ilustríssimos cavalheiros?

 

No fundo a coisa não foi deslocada, nem um só milímetro, do pé em que a deixámos. A «República Social» deu-nos em resposta uma apreciação acerca de deslizes individuais. Nós falávamos duma traição em massa.

 

Em relação ao que nos conta somos a dizer: no caminho das grandes provas que é toda a vida de acção, é deste modo que os agrupamentos revolucionários se depuram.

 

2.º - «Democracia Socialista» tal é o objectivo que a mesma folha se propõe proclamar e defender. O termo é vago e como a definição não veio à luz, aguardamos que a coisa seja convenientemente esclarecida. Por nossa parte, além das democracias históricas que nos propomos analisar, conhecemos o ensaio de democracia funcional de Otto Bauer - outro social-renegado -, que, com a pedra de fecho que é o partido fascista, deu forma ao Estado corporativo de Itália. Se é desta democracia que nos falam, dispensamos qualquer definição; conhecemo-la razoavelmente tanto sob o ponto de vista da sua estrutura actual como da sua origem teórica - é, também, socialista.

 

3.º - A base doutrinária do socialismo oficial é essencialmente chauvinista. Para Kautski - ex-marxista revolucionário, tornado depois revisionista, principal chefe de II Internacional e sustentáculo denodado do capitalismo mundial - o conceito «ditadura do proletariado» que representa no fundo o resumo de toda uma teoria revolucionária, fundamentada nas revoluções de 1848 e 1871, não significava senão um pequeno termo de Marx: (das Woitchens). A tomar a sério os reformistas nacionais, o mesmo conceito parece ser admitido por eles com o seu verdadeiro significado. É da mesma folha esta passagem: «Karl Marx defendeu a ditadura do proletariado, mas ao fazê-lo, afirmou que ela deveria ser feita pelo proletariado contra a burguesia.» Simplesmente a propósito da União das Repúblicas Soviéticas, fingem, actualmente (oh, capitulação repugnante!) que a sua divergência se filia no facto de ali se opor a ditadura de um partido à ditadura do proletariado.

 

A resposta continua, aqui, também confusa. Segundo Marx, por ditadura da proletariado entende-se o proletariado organizado em classe dominante, agindo no sentido de aniquilar e destruir todas as classes sociais suas antagónicas, tendo por objectivo reduzir a sociedade a uma só classe - ao tipo único de produtores - e reorganizando, ao mesmo tempo, em novas bases a economia do velho mundo. Ao transpôr esta etapa, o proletariado não carece mais de se utilizar do poder coercitivo do Estado e nem do Estado carece. O aparelho repressivo transforma-se em aparelho de administração de coisas como diz Engels no prefácio de A Guerra Civil em França.

 

Foi desta etapa histórica inelutável que Marx nos falou e o verdadeiro sentido em que o fez é-nos transmitido, além doutros, por um escrito de 5 de Março de 1852, onde é dito: «A minha contribuição (à luta recíproca das classes) consiste em ter provado: 1.º, que a existência das classes está intimamente ligada a formas históricas determinadas de luta, inerentes ao desenvolvimento da produção; 2.º, que a luta de classes conduz inevitavelmente à ditadura do proletariado; 3.º, que esta ditadura não é em si própria senão uma transição para a abolição de todas as classes e estabelecimento duma sociedade onde não haverá lugar, para a divisão em classes.» (O sublinhado é nosso.)

 

À parte a contradição fundamental resultante do reconhecimento deste preceito de Marx e a sustentação da tese «democracia socialista», pareceria que a luta que aqui intentamos se encontra da certo modo simplificada. Tratar-se-ia, a bem dizer, de demonstrar, apenas, o verdadeiro carácter e conteúdo da ditadura existente na U.R.S.S.. Mas... é o oportunismo que fala e por isso prosseguiremos na análise que nos propusemos e em obediência ao plano traçado. Esse aspecto foca-lo-emos, também.

 

(continuação) (1)

 

À medida que o movimento revolucionário proletariano atingia as culminâncias da sua acuidade, burgueses e reformistas debateram-se em esforços convulsivos para descobrir uma base filosófico-política justificativa da sua manutenção do predomínio capitalista, da sua dominação como classe, condição sine qua non de todo o equilíbrio social.

 

A condenação da ditadura do proletariado e a defesa da democracia constituíam os pólos essenciais de toda a argumentação do «seu» neo-socialismo.

 

Para manejar a crítica a seu belo talante, faziam discorrer os seus raciocínios sobre a democracia e a ditadura tomadas no sentido geral, deixando na sombra o conteúdo de classe de cada um destes conceitos - precisamente porque a revolução social vinha de tomar um carácter prático e imediato.

 

Atestam todos os movimentos históricos que, após a diferenciação da sociedade em classes, nenhuma base oprimida pôde transformar-se em dominante sem passar por um período de ditadura durante o qual se apoderou do poder político e abateu pela força a resistência exasperada que lhe foi oposta pelas classes exploradoras de então. «A burguesia, cuja dominação é defendida hoje pelos reformistas, conquistou o poder nos países civilizados ao curso de uma série de insurreições, de guerras civis, do esmagamento pela força - dos reis, dos nobres, dos proprietários de escravos - e pela repressão das tentativas de restauração do regime anterior.» (N. L.)

 

Assim, o Estado saído da luta das diferentes classes sociais, significa o momento da dominação de uma classe que se apoderou do aparelho governamental, quebrando neste momento a última resistência das outras classes, submetendo-as à sua força legalizada e transformada na força do Estado.

 

A burguesia conquistou o Estado na luta contra a classe feudal e este Estado não é senão a incarnação da força burguesa, a forma nova da sua existência, a legalização do seu predomínio.

 

A luta até então não foi uma luta de aniquilamento do direito da força; foi a substituição da força feudal por uma nova - a força da burguesia.

 

Transformando a sua vontade e a sua potência na vontade e na potência do Estado a classe burguesa não e de liberdade individual: substituiu, apenas, a origem feudal da violência pela violência burguesa.

 

A força libertadora transformou-se em força conservadora, de opressão.

 

Mas, tudo isto porquê? Porque, diz Marx, «a sociedade feudal desenvolveu no seu seio os meios de produção e de troca sobre os quais se devia edificar a burguesia».

 

E a revolução teve lugar logo que as condições de propriedade feudal se tornaram os entraves das forças produtoras em desenvolvimento.

 

Substituindo o regime de propriedade senhorial pelo regime de propriedade privada, a revolução burguesa não aboliu os antagonismos de classe; no lugar da velha hierarquia social formam-se duas hostes distintas e irreconciliáveis: - capitalistas e trabalhadores assalariados.

 

É por isso que as palavras de ordem «liberdade», «igualdade» e «fraternidade» lançadas do alto da tribuna pelos revolucionários de 1848 tinham, apenas, como finalidade atrair às falanges burguesas a massa dos oprimidos desse tempo.

 

No que diz respeito à revolução nacional de 5 de Outubro, o estribilho demagógico do «mais além duma simples República democrática», etc., obedeceu ao mesmo critério: facilitar o recrutamento das massas proletárias

 

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ainda que desconhecedoras dos meios da sua materialização dada a falta de experiência. Era pois a fraseologia de adaptação. O conteúdo do movimento era diferente, como diferentes eram - do operariado - os objectivos da burguesia liberal -então dirigente da luta.

 

I - DEMOCRACIA BURGUESA

 

Quando marxista, Karl Kautski deu-nos uma apreciação da democracia que, apesar dos cerca de vinte anos já decorridos, ainda conserva hoje a clareza e a precisão do primeiro dia. A citação é um pouco longa. Esperamos no entanto que a falta nos seja relevada, dado que vem muito a propósito do assunto que nos ocupa presentemente e ainda porque responde suficientemente à argumentação que nos opõem, por via e regra, os nossos adversários de tendência. Eis os termos dessa apreciação:

 

«Pretende um grande número de políticos que só a dominação despótica duma classe torna a revolução necessária, que a democracia torna-a supérflua e que em todas as nações civilizadas se goza de uma dose de democracia suficiente para que a evolução pacífica seja possível, para que ela se produza sem revolução. É-nos dada em toda a parte a faculdade de fundar sociedades de consumo; ampliadas, elas praticarão a produção por conta própria, e, lentamente mas seguramente, transformam o carácter da produção capitalista. É-nos dada por toda a parte a faculdade de organizar sindicatos: estes limitam de mais em mais o poder exercido pelo capitalista na sua própria exploração, substituem na fábrica o absolutismo pelo constitucionalismo e preparam assim, lentamente, a passagem desta à forma republicana. Por quase toda a parte a democracia socialista tem a faculdade de entrar nos conselhos comunais, de fazer entrar em linha de conta, nos serviços públicos, os interesses da classe operária, de aumentar sucessivamente a tarefa dos municípios e de restringir a produção privada, alargando constantemente os domínios da produção comunal. Enfim, a democracia socialista entra no parlamento, adquire aí uma influência crescente e conquista uma reforma após outra, limita o poder dos capitalistas por via de uma legislação proletária do trabalho, estende cada vez mais a esfera da produção do Estado, conduzindo à transformação dos grandes monopólios em serviços públicos. Assim, pelo simples uso dos direitos democráticos e mantendo-nos sobre o terreno já hoje conquistado, a sociedade capitalista desenvolve-se em sociedade socialista, e a conquista revolucionária do poder pelo proletariado torna-se inútil, e favorecê-la é simplesmente prejudicial; ela não pode ter outro efeito do que perturbar este progresso, lento mas seguro.

 

È assim que se exprimem os inimigos do método revolucionário.

 

É um idílio bem sedutor o que nos acabam de pintar.

 

Aqui, ainda não podemos dizer que isto não seja uma pura imaginação Os factos sobre os quais se apoiam são bem reais. Mas eles não nos conduzem senão a meia verdade. Um pouco mais de dialéctica teria conduzido os nossos adversários à verdade inteira.

 

Este idílio não tem valor senão quando se admite um só dos termos da oposição: que o proletariado cresce, só, em força, enquanto que o outro, a burguesia, continua intacta na sua antiga situação. Nesta hipótese, o proletariado deve naturalmente triunfar progressivamente - mesmo sem a revolução - da burguesia e expropriá-la.

 

Mas o aspecto muda se considerarmos o outro termo. Vê-se então que a burguesia aumenta também, por seu turno, de potência. Cada progresso do proletariado arrasta-a a desenvolver novas forças, a inventar e a empregar novos modos de resistência e de opressão. Só examinando incompletamente a situação, se poderá apresentar a evolução progressiva para o socialismo. Na realidade, cada vez se organizam massas mais compactas de combatentes. As armas então criadas são cada vez mais potentes e o campo de batalha estende-se constantemente.

 

A luta de classes não desaparece, o capitalismo não é absorvido pelo socialismo.

 

Bem pelo contrário, a luta reproduz-se com maior amplitude; cada vitória, cada derrota têm consequências cada vez mais profundas.»

 

Tal era já no período de ante-guerra a soma de possibilidades da transformação pacífica do capitalismo em socialismo (3).

 

 

Gabriel Batista

 

 

 

 

(*) Bento Gonçalves (1902-1942) é natural de Fiães do Rio-Montalegre e a sua educação formal foi escassa. A instrução primária foi feita já em Lisboa. Trabalhou desde os doze anos como torneiro e era um operário de eleição, um verdadeiro homo faber, capaz de construir virtualmente fosse o que fosse, com as suas mãos e a sua imaginação mecânica verdadeiramente prodigiosa. Aos 17 anos é admitido como torneiro mecânico no Arsenal da Marinha e começa depois o seu ativismo no respectivo Sindicato do pessoal. Em 1927 vai a Moscovo, ao Congresso dos Amigos da U.R.S.S., por ocasião do 10º aniversário da revolução de Outubro, regressando com a incumbência de reorganizar o Partido Comunista Português. Uma conferência realizada a 21 de Abril de 1929, nas instalações da Caixa de Previdência do Arsenal, toma em mãos essa tarefa, elegendo Bento Gonçalves como secretário-geral. Foi um excelente organizador, tendo sido o principal responsável pela conquista da hegemonia no terreno sindical para os “vermelhos” da Comissão Inter-Sindical (CIS), na primeira metade da década de 1930, sinalizando o ocaso para a C.G.T.. Esta série de artigos de doutrina política foi publicada, sob o pseudónimo Gabriel Batista, nos números 6, 10 e 12 do jornal quinzenário ‘O Proletrário’ nos finais do Verão do ano de 1929.

 

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NOTAS:

 

(1) Bento Gonçalves continua o seu ataque aos reformistas portugueses partidários da colaboração de classes. O artigo anterior suscitara uma resposta do órgão do Partido Socialista Português, «A República Social», ao qual B. G. expõe novos argumentos sobre a origem do revisionismo e da traição social-democrata.

 

(2) Falta texto no original (N. do E.)

 

(3) Embora no seu final seja indicado que continuará, o que é certo é que não será publicado mais nenhum artigo em «O Proletário», até ao final da sua existência, sobre esse tema.