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A cultura integral do indivíduo – problema central no nosso tempo
Bento de Jesus Caraça (*)
Nota explicativa (1)
As páginas que vão ler-se contêm a matéria de uma conferência que o autor realizou em 1933 (25 de Maio) a convite duma organização de novos - a União Cultural «Mocidade Livre», para inauguração da sua actividade.
Viviam-se nesse altura horas inquietas e fecundas. A marcha acelerada dos acontecimentos na Europa presagiava grandes transformações próximas. Hitler tomara, havia meses, o poder na Alemanha; agitavam-se as mais variadas correntes dentro e fora do Reich; a instabilidade geral era manifesta; tudo isto criara um ambiente de espectativa e ansiedade.
Os espíritos moços, como sempre, viviam os acontecimentos com intensidade, despertavam para as preocupações mais fundas, auscultavam o futuro cheios de optimismo, uniam-se para pensar. Foi desse ambiente que nasceu a União Cultural «Mocidade Livre».
O futuro imediato não correspondeu às aspirações e impaciências desses espíritos juvenis e ardentes. O desenvolver da vida social europeia seguiu por caminhos que haviam de provocar a revisão de muitos optimismos fáceis e, em contrapartida, fazer abrir muitos olhos para realidades cruéis, em suma, proporcionar grandes lições.
Tudo isso fez que se amortecessem alguns entusiasmos das primeiras horas. Que importa? é essencial que tenham existido! Mas foram mais algumas ilusões perdidas, dir-se-á. Não. As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas.
Benditas as ilusões, a adesão firme e total a qualquer coisa de grande, que nos ultrapassa e nos requer. Sem ilusão, nada de sublime teria sido realizado, nem a catedral de Estrasburgo, nem as sinfonias de Beethoven. Nem a obra imortal de Galileo.
Minhas senhoras e meus senhores:
Quis a União Cultural «Mocidade Livre» que, neste seu primeiro acto público, eu lhe prestasse a minha colaboração, dizendo-vos algumas palavras acerca da sua razão de ser, da necessidade da sua existência, das suas intenções de acção futura.
Aceitei, se bem que me não tenha proposto fazer-vos a apresentação desse organismo que, em boa hora, alguns espíritos moços decidiram fundar.
Essa apresentação está sobejamente feita pelo simples facto da sua constituição, e a junção feliz, no seu próprio nome, das duas palavras «cultura» e «mocidade» abre horizontes rasgados para a esperança daqueles que, não tendo desesperado de viver melhores dias, vêem precisamente numa renovação espiritual da geração nova a condição indispensável para a realização das ideias que lhes são caras.
Quero afirmar aqui a minha inteira solidariedade com estes moços que pretendem compreender e viver o seu tempo e trazer-lhes, do mesmo passo, a minha modesta contribuição para o seu labor que será fecundo, na medida da força e poder de sinceridade que puserem, através ainda das maiores dificuldades, em se conservarem iguais a si mesmos, fiéis a si mesmos. Esta foi a intenção com que aceitei o encargo que me cometeram.
Encargo pesado, pois não é fácil tarefa o alguém abalançar-se hoje a emitir juízo, por mais despretencioso que ele deseje ser, sobre o tempo que vivemos. Mas não há também tarefa mais importante nem mais urgente. O que o mundo for amanhã, é o esforço de todos nós que o determinará. Há que resolver os problemas que estão postos à nossa geração e essa resolução não a poderemos fazer sem que, por um prévio esforço do pensamento, procuremos saber, por uma análise fria e raciocinada, quais são esses problemas, quais as soluções que importa dar-lhes - saber donde vimos, onde estamos, para onde vamos.
E pensemos, agora que ainda o podemos fazer. Amanhã pode ser tarde, porque a tempestade que tem vindo a acumular-se sobre as nossas cabeças pode desencadear-se e arrastar-nos nos seus turbilhões brutais. A violência da borrasca não nos permitirá que façamos mais do que gestos elementares e instintivos que só não nos trairão se forem, a todo o momento, orientados e dominados por uma personalidade de uma só peça, aquela personalidade que agora temos de forjar - enquanto é tempo.
O dizer-se que a época actual é caracterizada essencialmente por uma perturbação e inquietação vivas, é já quase um lugar comum, de tal maneira isso se impõe, mesmo após o mais superficial exame. Não é, contudo, demasiado repeti-lo, pois há muitos sujeitos de ouvido duro que ainda o não compreenderam ou não quiseram compreender e que, numa cegueira teimosa, continuam a querer aplicar, para medida de valores numa sociedade abalada nos seus fundamentos, aqueles padrões cujo uso já de há muito não é legítimo.
Desenganem-se essas pessoas. O que estamos actualmente vivendo e sofrendo não é apenas uma borbulhagem fugaz, destinada a passar como tantas coisas passam, sem deixar sinal; é, muito pelo contrário, uma época de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que desaparece e o que vai surgir. E nessa ponte de passagem chocam-se todas as correntes, coexistem todas as contradições, fazendo dela aparentemente uma feira de desvarios e, na realidade, um formidável laboratório de vida.
Época singular! em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização - Einstein e Broglie - e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece.
Época em que é possível um tal campear do cinismo que um ministro holandês propõe, numa conferência internacional, a interdição do bombardeamento aéreo do inimigo em tempo de guerra, para que alguns dias depois um avião holandês lance, sobre um barco holandês, em tempo de paz, uma bomba que semeia a morte a bordo (2); mas em que é também possível um tal florescimento de virtudes, que um homem, velho e fraco, consegue, quase só com o poder da sua alma que é forte, agitar milhões de homens num esforço de emancipação nacional e, o que é mais, de libertação de uma casta dos preconceitos que a escravizam, excluindo-a do convívio humano.
Época em que se verifica um tão grande desprezo pela existência alheia que na sombra se prepara, metòdicamente, sistemàticamente, cientìficamente, a destruição do homem; mas em que ao mesmo tempo existe uma tal admiração pelo corpo humano que, num vasto movimento de cultura física, ele se enaltece e glorifica no que tem do nobre e belo - antítese simbólica do nosso tempo: preparação da guerra química e salão do nu fotográfico.
E é numa época assim, tão ìntimamente trabalhada por antagonismos irreconciliáveis, que se pretende vir falar-vos num problema central? Não estará errado pela base o título e intenção desta conferência? É o nosso tempo susceptível de mais do que de pequenos problemas parcelares sem conexão uns com os outros e reflectindo, na sua pulverização, o amorfismo actual?
É a estas perguntas, que a mim mesmo tenho posto com angústia, que vou procurar dar uma resposta.
Para ela, não reivindico outra categoria de valor que não seja a honestidade com que foi procurada. Sei demasiado, para que outro mérito pretenda ver-lhe atribuído, quanto são falíveis ainda os juízos mais prudentes, e, se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.
Do mesmo modo que é impossível, pelo simples exame de alguns minutos, descobrir, no bater das ondas numa praia, o movimento regular das marés, assim também quem se detiver na contemplação de um único momento histórico não poderá surpreender o ritmo da evolução que o determina e condiciona.
Num como noutro caso, só o recuo que forneça aos fenómenos uma perspectiva adequada pode permitir um estudo objectivo da sua natureza e significação. No primeiro, algumas horas bastam; no segundo, é todo o largo período da história da humanidade que se torna indispensável abraçar numa apreciação de conjunto.
Vejamos se nos aparece assim, ao menos nas suas linhas gerais, alguma lei à qual se subordine todo o desenvolvimento que a história nos apresenta ao longo do extenso caminho percorrido, desde o aparecimento dos primeiros agrupamentos humanos até às sociedades de hoje.
Creio que essa lei existe e que pode formular-se, pouco mais ou menos, nos seguintes termos: no seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários - o individual e o colectivo - de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio - o individual - chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo.
Demoremo-nos por alguns instantes na explanação da ideia contida neste enunciado que, receio muito, corre o perigo de, à primeira vista, vos aparecer como paradoxal.
Nos primeiros grupos humanos, em que aquilo que distingue o homem dos outros animais se encontra ainda mal liberto da ganga da irracionalidade primitiva, não há lugar para mais do que para os instintos e sentimentos gregários, num estado de existência em que o indivíduo mal tem consciência de si, fundindo-se no agrupamento de que depende. É só a pouco e pouco que os mais aptos, os mais capazes pela força ou pelas qualidades de observação, se vão elevando acima do grupo, destacando-se dele, impulsionando-o e fazendo-o progredir.
O esforço individual aparece assim como indispensável para o progresso do agregado que, sem ele, permaneceria sempre tal qual nasceu, como acontece, por exemplo, com certas associações de animais inferiores que hoje vemos.
Mas essa acção do individual sobre o colectivo não tem apenas, infelizmente, a virtude criadora de progresso que lhe acabamos de assinalar.
Bem depressa ela se manifesta com outros caracteres que formam o cortejo sinistro do domínio do indivíduo sobre o grupo - o mais capaz só subsidiàriamente põe o seu esforço ao serviço do agregado; a sua primeira ideia é servir-se dessa capacidade maior para seu interesse próprio.
E aqui reside o grande drama em que, de todos os tempos, se tem debatido a humanidade - condenada a só poder evolucionar e progredir sob a acção vivificadora e fecunda de alguns dos seus indivíduos, ela vê-se ao mesmo tempo impotente para impedir que esses indivíduos se transformem em seus verdugos. Ela assiste, incapaz de o evitar, à criação das castas que são como outras tantas sanguessugas sobre o seu corpo, sem, ao menos, lhe restar a solução de as eliminar, porque isso equivaleria à sua morte no pântano estéril da incapacidade.
Encarada sob este ângulo, a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo. Luta gigantesca, e trágica, e sangrenta, em que transparece um domínio quase permanente do individual sobre o colectivo e, de longe em longe, um estremecimento do grande corpo mortificado, um movimento de revolta, um triunfo efémero do colectivo, que logo cai sob outro ou o mesmo jugo pela sua incapacidade de se reconhecer e dirigir.
E esse grande corpo, curvado ao peso dos seus donos, segue o seu caminho sem parar, cai aqui, levanta-se além e aspira, aspira sempre a qualquer coisa de melhor. Mas esse «qualquer coisa» é vago e impreciso e, por isso mesmo que o é, leva a todos os desvios e todos os erros, pressurosamente amparados e com cuidado mantidos, precisamente por aqueles - o princípio individual em acção - a quem uma consciência colectiva forte ameaçaria no seu poderio egoísta.
E assim acontece que a pobre humanidade, não abdicando da sua aspiração confusa a uma felicidade e unidade superiores e não encontrando em si, no seu corpo chagado, de que alimentar a pureza da sua chama interior, renuncia a si própria e vai procurar fora os elementos que dêem alimento e vida a essa aspiração e pureza. As castas depressa reconhecem quanto esse sentimento de evasão do homem as pode servir e, daquilo que é puro desejo de elevação do espírito, fazem, a breve trecho, a adoração de um ídolo; deformou-se um sentimento, mas enraizou-se mais o poder. Abre-se assim um grande capítulo da História, capítulo que não é, de todos, o menos dramático - o das concepções religiosas. Sobre a terra paira, como uma consequência necessária da luta entre o individual e o colectivo, uma ideia vagabundeante e de encarnações polimorfas - aqui, um deus feroz do deserto, além, uma coorte de deuses amáveis de uma península ridente, mais adiante, sobre uma estrutura social absurda, um deus absurdo - infinita bondade e infinito amor criando e regendo um mundo onde existe a malquerença e a injustiça.
A luta entre o indivíduo e a colectividade não se trava sempre no mesmo plano de vida nem com o mesmo grau de amplitude.
De época para época, os seus aspectos variam, não porque no fundo a sua essência mude, mas porque as circunstâncias características dessa época lhe fazem tomar uma aparência diversa - as formas da vida são várias e permitem diferentes transposições de plano do mesmo fenómeno fundamental. Uma vez, a revolta elementar e cega dos que têm fome, outra, uma tentativa de unificação política de um grande império, depois, o assalto a esse mesmo império e o seu desmembramento, mais tarde, a reivindicação dos direitos políticos do cidadão, de várias maneiras, e com fisionomias locais e temporais determinadas, nos aparece esse grande movimento que permanece sempre uno na sua significação profunda.
Evidentemente, não pretendo com isto afirmar que todo o fenómeno da vida social, no extremo da sua minúcia, seja uma manifestação dessa luta, mas nem por isso nas suas linhas gerais deixa de ser assim, do mesmo modo que a existência de cordilheiras de montanhas não impede a esfericidade da terra.
Para que o quadro da diversidade seja completo, não lhe faltam sequer vastas regiões vazias, períodos extensos em que reina a acalmia e onde as sociedades parecem ter encontrado urna posição de equilíbrio fecunda para o progresso espiritual e material.
Mas, mesmo nesses períodos de tranquilidade, as forças íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso. Não é difícil discernir as correntes que carreiam incessantemente os materiais para a nova fase de luta. A agitação do organismo social não é menos viva, simplesmente ela exerce-se em camadas mais fundas, interessando os alicerces e deixando provisòriamente de parte a epiderme. Por isso, em todas as épocas de transformação nas relações sociais se encontram sempre pessoas a quem os acontecimentos surpreendem e que até ao fim negam aquilo que é a própria evidência.
Vejamos como se podem caracterizar esses períodos intermédios de acalmia.
Após uma grande transformação da orgânica social estabelece-se o equilíbrio entre as forças que a produziram, equilíbrio esse resultante da vitória de uma ideia revolucionária, encarnada por grupos determinados do agregado.
O que é que deu a essa ideia um carácter revolucionário e a fez inscrever na bandeira de certos agrupamentos de forças?
Se examinarmos a questão de perto, reconheceremos que a estrutura anterior não era já compatível com o estado real da evolução da sociedade. Os interesses dos grupos, castas ou classes, detentores do poder, ou duma sua parcela, encontravam-se em franco e violento antagonismo com os interesses gerais, antagonismo esse revelado, conforme a época considerada, em certo plano da vida social.
Dá-se então o choque, o qual, mais ou menos violento conforme a questão debatida, interessa em maior ou menor grau os fundamentos da estrutura existente, e nesse choque as forças dividem-se em dois campos: o daqueles que querem conservar ou, melhor, fazer sobreviver a si mesmo, um organismo condenado, e o dos que, tomando como lema a nova ideia, pretendem ascender, impondo formas novas.
O poder revolucionário duma ideia mede-se portanto pelo grau em que ela interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do momento em que actua. Assim, uma ideia ou teoria que, em dada época, é revolucionária, pode, noutra em que as circunstâncias sejam diferentes, ter perdido por completo esse carácter. Por exemplo, teve carácter revolucionário, no seu tempo, a teoria do direito divino dos reis, quando oposta à soberania divina dos papas, teoria que, mais tarde, não só perdeu essa característica, como até se revestiu duma feição eminentemente reaccionária; foi altamente revolucionária a doutrina individualista dos pensadores liberais do século XVIII, doutrina que, sob essa forma, é nos nossos dias obstáculo ao progresso e que só deixará de o ser quando compreendida num sentido que as circunstâncias actuais exigem (3).
Mas não antecipemos, e voltemos ao ponto que no momento nos ocupa.
A vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento momentâneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença; significa que se deu um novo passo no sentido de subtrair o colectivo à tirania do individual; sentem-no bem as massas que, nessas épocas de comoção dos fundamentos da sociedade, se lançam, numa explosão de entusiasmo, ao assalto do corpo decrépito e parasitário que sobre elas vive.
Mas a sua falta de preparação cultural, o não reconhecimento de si mesmas como um vasto organismo vivo e uno, torna-as incapazes de levar a sua obra mais além da destruição do passado; impossibilita-as de proceder à construção da ordem nova que a sua revolta preparou.
E então dá-se, no dia seguinte ao do triunfo, a sua abdicação, num grande gesto de renúncia - essa obra de reconstrução, é um novo grupo, uma nova classe, mas não a colectividade inteira, que a vai empreender sob a égide da bandeira que presidiu à vitória.
As novas forças detentoras do poder realizam as reformas indispensáveis, os interesses gerais estão por um momento satisfeitos; numa base mais larga que a passada, concordam o individual e o colectivo - abre-se um período de acalmia, período cuja duração depende da medida em que a nova classe dirigente se conserva fiel aos motivos que originaram o seu advento e também do grau de consciência colectiva das massas.
Passa algum tempo e começa nova diferenciação - os interesses egoístas dos dirigentes sobrepõem-se aos interesses gerais, são novos elementos individuais que começam a exercer opressão sobre a colectividade; aparecem contradições, a massa sente-o e afasta-se ìntimamente dos que a governam; surge nova ideia ou nova doutrina de antecipação que encarna as aspirações surdas dos que sofrem; tudo recomeça - a situação torna-se revolucionária; de aí à revolução vai um passo. Evitá-la? Só seria possível por uma reacomodação da classe dominante, mas esta é levada insensivelmente, a despeito da evidência e dos avisos até de alguns dos seus membros mais clarividentes ou mais desinteressados, a aferrar-se aos seus privilégios, a defender-se pela força, em vez de se voltar para aqueles princípios que, na sua pureza, a levaram ao triunfo passado.
Dá-se assim um anquilosamento da classe dirigente; a doutrina ou teoria, em cujo nome antes lutara e vencera, perde o seu carácter revolucionário, torna-se, primeiro, conservadora, e mais tarde, quando os antagonismos são flagrantes e se trava a luta, reaccionária.
Tudo recomeça, disse acima, mas seria vão pretender-se que recomeça exactamente nas mesmas bases. Não; da etapa anterior, alguma coisa, às vezes muito, ficou definitivamente adquirido.
A marcha para um estado superior da orgânica, para a supressão do antagonismo entre o individual e o colectivo é permanente, simplesmente o caminho seguido não é direito e fácil, é antes um caminho tortuoso, sempre ascendente - «la route en lacets qui monte» de que falava Renan. Que essa aquisição de um estado superior de unidade só pode fazer-se pela luta e através de contradições, é lei fundamental da vida; não há que pretender, fora da realidade, modificá-la, mas sim que interpretá-la, compreendê-la e actuar em consequência.
Cada fase da luta é um passo novo dado no caminho para a unidade do individual e do colectivo; ela interessa cada vez mais as camadas profundas, que assim surgem progressivamente para a luz, se arrancam a si mesmas da treva e conquistam um lugar ao sol.
Na época actual, estamos vivendo precisamente uma fase dessa luta, a mais ampla e mais crua de todos os tempos.
O que é que lhe dá essa amplitude e essa crueza até hoje ainda não atingidas? Para o vermos, temos que recuar um pouco.
Pelo final do século XV (4), começa a aparecer no mundo ocidental uma classe cuja intervenção nas relações sociais se torna cada vez mais frequente e mais vigorosa.
Serve-lhe de suporte económico a extensão crescente das relações comerciais com outras partes do mundo, a aparição de inventos importantes, como a imprensa, o desenvolvimento das ciências de observação que, tendo tido em Rogério Bacon o seu precursor, deviam contar nos séculos XVI e XVII com os nomes brilhantes de Leonardo da Vinci, Copérnico, Kepler e Galileo (5).
Durante estes séculos e os seguintes, o peso dessa classe nova não cessou de aumentar e a luta contra a então classe detentora do poder foi crescendo em intensidade.
Essa luta feriu-se em primeiro lugar contra a Igreja que, omnipotente durante toda a Idade Média, estava no entanto a braços com uma grave crise interior e via escaparem-lhe lentamente das mãos as alavancas mercê das quais até aí disfrutara os benefícios de uma hegemonia material e espiritual.
Luta cruenta foi essa, a de um organismo corrompido que queria continuar a sobreviver-se, luta a que não faltaram, ao lado de guerras sangrentas, os episódios mais dramáticos, como o suplício de Giordano Bruno e o processo monstruoso movido a Galileo.
Alcançada porém a vitória da concepção laica do Estado e dissipada em Westfália a esperança de continuação da soberania papal, pelo divórcio do Sacerdócio e do Império, pareceria que a nova classe deveria definitivamente ascender à direcção da sociedade, impondo uma ordem nova. Tal não se deu porém. O conflito religioso, por maior acuidade que tivesse revestido, não interessava os alicerces do edifício; esses eram trabalhados por outras correntes e a luta ia continuar noutro plano - o político-económico.
Vemos assim aparecer, na segunda metade do século XVII, várias concepções quanto à natureza e legitimidade do Estado, concepções que oscilavam entre dois polos extremos: a do Estado justificado na medida em que assegura e promove a defesa da liberdade individual e propicia as condições de uma existência racional, única verdadeiramente humana, - Spinoza; a do Estado consubstanciado com uma pessoa sagrada, cuja actuação tem um só controlo - o da sua própria consciência, inspirada directamente por Deus, único a quem o soberano tem que dar contas - Bossuet.
Triunfou momentaneamente a tese de Bossuet, na pessoa de Luís XIV; a de Spinoza deveria esperar pelo século XVIII para que lhe fosse dada uma realização parcial na grande transformação que se avizinhava.
Por várias razões, que seria longo enumerar aqui, foi a França o ponto nevrálgico das contradições e conflitos dessa época; lá se concentrou a actividade dos grandes individualistas revolucionários, obreiros espirituais da revolução que havia de abrir uma era nova na História.
A nova classe, que vimos começar a manifestar-se alguns séculos antes, inscreveu na sua bandeira as reivindicações fundamentais formuladas por esses homens, e assim tornou possível um novo acordo, numa base ampla, entre o individual e o colectivo. Quando esses homens reclamavam o reconhecimento dos direitos do indivíduo, não faziam mais que pretender subtrair a colectividade ao poderio de uma classe restrita e, portanto, reforçando a personalidade individual, dar, por isso mesmo, uma força nova ao agregado.
O grande erro dos individualistas de hoje é o conservarem-se agarrados à letra das fórmulas, sem notarem que os termos têm agora um sentido novo que lhe é emprestado pela diferença fundamental das circunstâncias.
Então, por não haver liberdade reconhecida expressamente, os interesses gerais exigiam a luta por esse reconhecimento; hoje, em que dela se usou e abusou criminosamente, os mesmos interesses gerais exigem uma limitação, não do uso mas do abuso. Desenvolvimento e reforçamento da personalidade, sim, tarefa essencial, mas que eles sejam permitidos e propiciados a todos (3).
Por que razão o estado social saído da revolução francesa não garantiu até hoje essa identificação da individualidade com a colectividade?
A burguesia, após a sua ascensão ao poder, não resistiu ao anquilosamento que vimos atrás ser característica essencial das classes dirigentes (6). Depressa cessou a harmonia dos seus interesses com os interesses gerais. Os seus fundamentos económicos - livre concorrência e propriedade privada - cedo se tornaram, pela acção implacável da evolução acelerada do século XIX, em armas terríveis que ela brandiu em seu exclusivo proveito.
A civilização de base capitalista tornou inoperantes os princípios de liberdade individual e de igualdade, para não falar já no da fraternidade que só por sarcasmo se pode pretender que esteja incluído hoje entre as ideias dominantes da governação.
Um elemento novo entrou em cena - a máquina, cujo desenvolvimento permitiu, como diz Ayguesparse no seu luminoso estudo sobre Maquinismo e Cultura, «uma formidável síntese entre uma classe - a burguesia, e uma doutrina económica - o capitalismo».
E essa síntese, que teria sido fecunda se a máquina tivesse sido posta, como devia, ao serviço do homem, tornou-se, pelo contrário, monstruosa, porque produziu, não a emancipação, mas a escravização económica do trabalhador.
O homem escravo da coisa - eis a grande condenação, no campo moral, do regime social contemporâneo (I).
Contra esse regime social, levantam-se de todos os lados os protestos e as flagelações; vamos ver dois exemplos.
Ouçamos, em primeiro lugar, o que a este respeito diz o Dr. Harold Laski, professor da Universidade de Londres, no seu livro Gramática da Política:
«Podem resumir-se brevemente os resultados deste sistema. A produção efectua-se com desperdícios e sem plano conveniente. As «comodidades», os serviços necessários à vida da comunidade, não são repartidos de modo a satisfazer as necessidades ou a produzir o máximo de utilidade social. Construímos cinemas sumptuosos e temos falta de casas de habitação. Gastamos em navios de guerra o dinheiro necessário para as escolas. Os ricos podem gastar num só jantar o salário semanal de um operário, enquanto o operário não pode enviar à escola os filhos insuficientemente alimentados. Uma rapariga rica gastará no seu primeiro vestido de baile mais que o salário anual dos trabalhadores que o fizeram. Em suma, produzimos «comodidades» inúteis e distribuimo-las sem atender às necessidades sociais. Mantemos num parasitismo ocioso uma vasta classe cujos gostos exigem que capital e trabalho concordem em satisfazer necessidades sem nenhuma relação com os interesses humanos. E esta classe não se põe à margem da comunidade. Como tem o poder de tornar as suas exigências eficazes, estimula a imitação servil daqueles que procuram misturar-se a ela. A riqueza transforma-se em padrão de medida do mérito; e a recompensa da riqueza é a capacidade de fixar os níveis daqueles que procuram adquiri-Ia. Esses níveis são fixados, não para satisfação de um fim moral, mas do desejo de ser rico. Os homens podem começar a adquirir bens para assegurar a sua existência, mas continuam a adquirir para alcançar a distinção que lhes confere a propriedade. Ela satisfaz a sua vaidade e o seu amor do poder; permite-lhes harmonizar a vontade da sociedade com a sua. Resulta daqui o que pode lògicamente esperar-se de uma tal ambiência. Produzem-se bens e serviços, não para os utilizar, mas para tirar da sua produção elementos de posse. Produz-se para satisfazer, não exigências legítimas, mas aquelas que são susceptíveis de render. Aniquilam-se as fontes naturais de riqueza. Falsificam-se as «comodidades». Lançam-se negócios fraudulentos. Corrompem-se os legisladores. Falsificam-se as fontes do saber. Realizam-se alianças artificiais para aumentar o preço das «comodidades». Exploram-se, com uma crueza por vezes terrível, as raças atrasadas da humanidade..»
Isto diz o professor Laski. Demos agora a palavra ao Dr. Oliveira Salazar, o qual, num discurso recentemente pronunciado em Lisboa, menos violento nos termos, não formulou, no entanto, uma crítica menos condenatória. São suas estas palavras, que transcrevo do Século de 17 de Março de 1933:
«Nós adulterámos o conceito de riqueza, desprendemo-la do seu fim próprio de sustentar com dignidade a vida humana, fizemos dela uma categoria independente que nada tem que ver com o interesse colectivo nem com a moral e supusemos que podia ser finalidade dos indivíduos, dos Estados ou das Nações, amontoar bens sem utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu uso. Nós adulterámos a noção de trabalho e a pessoa do trabalhador...»
Pois muito bem. É para sustentar isto que se cria e desenvolve, por toda a parte, um aparelho repressivo de cuja actuação brutal todos os dias temos novas afirmações.
À falência completa no campo moral, vem juntar-se, como é do conhecimento de todos, a falência total no campo económico. A proletarização de vastas camadas da população de todo o mundo, a destruição dos meios de consumo, que a todo o momento se realiza, no meio de povos a quem falta o indispensável, a existência de dezenas de milhões de desempregados, são factos que falam bem eloquentemente por si e dispensam, por isso, comentários.
Nunca se viu um anquilosamento tão completo e tão rápido de uma classe dirigente e nunca se viu também um tão grande apego ao poder. É que a crise atinge os fundamentos da orgânica. Por isso, como dizia acima, a luta é mais crua do que nunca.
É também mais ampla do que nunca, precisamente porque os alicerces estão atingidos.
Há alguns séculos, os destinos de um agrupamento social jogavam-se no próprio local em que o agrupamento vivia. Hoje, o futuro de nós, portugueses, joga-se tanto em Portugal, com em Nova York ou nas planícies do norte da China.
«O desenvolvimento do nacionalismo foi a obra do século XIX, o do internacionalismo será a do século XX». Estas palavras, proferidas há pouco na Sorbonne por Lord Lytton que, por encargo da Sociedade das Nações, presidiu à comissão que foi à China investigar das causas do conflito sino-japonês, merecem ser meditadas pelos adeptos do nacionalismo.
Não por aqueles para quem a pátria é um balcão de compra e venda, esses não precisam de pensar, nem têm tempo para isso; mas pelos que, nem por estarem num campo errado, merecem menos consideração e respeito, desde que nele militem com boa fé e desinteresse.
Poucas questões há que tenham sido tão mal postas como esta do nacionalismo e isso não admira, pois foram sempre as águas turvas o ambiente propício para as manobras de certos pescadores...
Se ser nacionalista é, reconhecendo a existência de grupos étnicos com características próprias, trabalhar pelo desenvolvimento desses grupos (nações), defender e propulsionar a autonomia das suas instituições de vida e cultura, num largo espírito de colaboração com os outros grupos étnicos, como pode deixar de ser-se abertamente, francamente, nacionalista?
Mas se ser nacionalista é ver em cada estrangeiro um inimigo em potência (7), viver em guerra económica permanente com as outras nações; encerrar-se cada um em sua casa para que, fora do contrôle da parte sã e pura dos outros grupos, uma certa classe possa viver parasitàriamente sobre outra; se ser nacionalista é isto e depois, quando interesses internacionais da alta indústria e da alta finança o exigem, ir-se estipidamente para uma matança estúpida, para que, sobre as fronteiras regadas de sangue generoso, se unam de novo, em faina macabra, mãos sinistras a mercadejar: se ser nacionalista é isto, pergunto como se pode sê-lo sem que a razão condene e o coração se insurja.
Aos nacionalistas de boa fé direi, e é só para esses que falo, que o defender-se hoje a divisão da humanidade em grupos hostis ou, pelo menos, indiferentes uns aos outros, separados em compartimentos estanques, é trabalhar contra a linha geral da evolução histórica, é contrariar o princípio de unidade que a determina, é retardar, quem sabe por quanto tempo, o advento de um período de civilização superior, cujo desejo têm porventura inscrito no coração.
Agora, é toda a humanidade que é chamada a resolver o seu próprio problema, está tudo em causa, há que refazer tudo, e por isso o nosso tempo é o mais perturbado e inquieto de todos os tempos que o homem tem vivido. A ocasião é única também para realizar finalmente um grande passo nessa síntese grandiosa do indivíduo e da colectividade.
Aquela luta multimilenária, a que comecei por me referir no início desta palestra, vai entrar numa fase decisiva.
Conseguirá a Humanidade, num grande estremecimento de todo o seu imenso corpo, tomar finalmente consciência de si mesma, revelar a si própria a sua alma colectiva, feita do desenvolvimento ao máximo, pela cultura, da personalidade de todos os seus membros?
Eis a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossa geração - despertar a alma colectiva das massas.
Ou ela a realiza e ascendemos a um estado superior de unidade, ou fracassa, e amanhã assistiremos a um novo gesto de renúncia e o individual continuará a sobrepor-se ao colectivo numa adulteração criminosa da moral social.
Precisamos, para não trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos o nosso tempo e de actuar como homens dele. Como homens que sabem distinguir o fundamental do acessório, que, na resolução de um problema, não se deixam perder no emaranhado dele, nem cegar pelas nuvens de fumo que os interessados pela sua não solução a todo o momento e infatigàvelmente lançam.
Dessas nuvens de fumo, tantas e de tão variados aspectos, quero referir-me hoje a uma apenas -a confusa questão das elites. Confusa e delicada.
Vejamos, em primeiro lugar, qual é, a este respeito, a tese corrente. Com pequenas variantes, pode exprimir-se assim. Em todos os tempos, o progresso da civilização, o florescimento das ciências, das letras e das artes, foi obra de uma elite, mais ou menos reduzida; e deve ser sempre assim -a massa geral da humanidade não é acessível a certas preocupações que só espíritos elevados sentem; a guarda e a propulsão das instituições culturais da sociedade deve ser portanto confiada a um grupo restrito, a uma elite, a qual, só, tem direito a orientar superiormente os destino do agregado.
Muito bem. Analisemos agora com algum cuidado esta tese para ver o que nela se contém de verdadeiro.
Uma dúvida se forma, logo após o primeiro exame: as elites propulsionadoras, em cada período histórico, do desenvolvimento científico, literário, artístico, foram realmente aquelas que, nesse período, ditaram a forma de constituição da sociedade, a orientaram, regulam o seu funcionamento orgânico? por outras palavras, elite científica e cultural e classe dirigente, são a mesma coisa? ou, melhor ainda, a primeira está compreendida na segunda? Uma consulta à história fornece resposta imediata pela negativa. É abrir esse grande livro e prestar ouvidos aos queixumes e protestos com que aqueles homens verdadeiramente de elite, aqueles que, alguns séculos mais tarde, dão o tom ao mundo da alma e do pensamento, respondem às perseguições que os seus contemporâneos das classes dirigentes lhes movem.
Incompreensão completa duma forma nova de pensar, temor de que um ataque à rotina abale os alicerces de um poderio egoísta de natureza espiritual ou material, vários são os elementos que se conjugam para fazer desses homens um grupo à margem, que só à força de heroísmo consegue conservar aceso, e transmitir às gerações seguintes, o facho da cultura.
Passam-se ao menos as coisas de maneira diferente no século em que vivemos? Devemos confessar, em homenagem àquilo que temos como a verdade, que, apesar de as condições actuais de vida constituírem, dentro de certos limites, um meio mais propício para a luta de ideias, não deixa porém de ser certo que a actuação das elites, sempre que queira exercer-se contra os interesses da classe dirigente, está sujeita a perigos análogos aos de outros tempos. Quando é preciso, queimam-se livros, demitem-se professores, fecham-se fronteiras, abrem-se prisões, e se na Indochina um povo pretende conservar a autonomia das suas instituições e defender-se contra a civilização do álcool que querem impor-lhe, lá estão os tribunais franceses para distribuir, com mão larga e generosa, em nome dos sagrados princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, dezenas de condenações à morte (8).
Mas, se a identificação de classe dirigente e elite cultural nunca se deu nem se dá, para quê o pretender estabelecê-la?
Razão evidente e única - porque a classe dirigente, não tendo que fazer de momento, nem necessitando, dessas antecipações geniais no domínio da ciência e da cultura (aos seus autores é dada a liberdade de morrer na miséria), precisa no entanto daquilo a que podemos chamar valores científicos e culturais de segundo plano, carece de tomar posse do que da ciência vai derivando constantemente para as aplicações, a fim de adquirir uma base mais sólida de existência e domínio. E como, por outro lado, ela sabe bem que mal vai ao seu poderio quando ele é exclusivamente de natureza material, fabrica, para seu uso próprio, um conceito novo de elite, deformador do verdadeiro, e, armada com esse conceito novo e servida por aqueles que se prestam a dar-lhe corpo, pretende aparecer como suporte único do movimento cultural, relegando para o domínio do subversivo, a que é preciso dar caça, tudo aquilo que contrariar os seus cânones.
E devemos concordar em que tem realizado a primor essa tarefa. O trabalho de submissão, de lamber de botas, da parte das chamadas camadas intelectuais, tem sido duma perfeição dificilmente excedível. Digamos, para irmos até ao fim, que os mais excelsos nesse mister são frequentemente aqueles que, partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacia de palhaço, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para trair os seus antigos irmãos no sofrimento.
Problema grave, e tanto, que não faltam as vozes que, para o resolver, advogam um abandono da cultura por verem nela, não um meio de elevar, mas sim de diminuir a condição humana. Terão razão os que assim pensam? Conduz a civilização necessàriamente a uma escravização do homem?
Para podermos responder a estas perguntas, temos que começar por definir os termos e pôr depois convenientemente o problema. O que é o homem culto? É aquele que:
1.º - Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;
2.º - Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;
3.º - Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.
Ser-se culto não implica ser-se sábio; há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios; mas o que o ser culto implica, é um certo grau de saber, aquele precisamente que fornece uma base mínima para a satisfação das três condições enunciadas.
A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.
E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem da fadiga da ladeira.
Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura - que ele seja econòmicamente independente. Consequência - o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. Tudo aquilo que for empreendido sem a resolução prévia, radical e séria, desse problema, não passará, ou duma tentativa ingénua, com vaga tinta filantrópica, destinada a perder-se na impotência, ou de uma mão-cheia de pó, atirada aos olhos dos incautos.
Não deve também confundir-se cultura com civilização.
O grau de civilização de um povo mede-se pela quantidade e qualidade dos meios que a sociedade põe à disposição do indivíduo para lhe tornar a existência fácil; pelo grau de desenvolvimento dos seus meios de produção e distribuição; pelo nível de progresso científico e utilização que dele se faz para as relações da vida económica.
O seu grau de cultura mede-se pelo conceito que ele forma do que seja a vida e da facilidade que ao indivíduo se deve dar para a viver; pelo modo como nele se compreende e proporciona o consumo; pela maneira e fins para que são utilizados os progressos da ciência; pelo modo como entende a organização das relações sociais e pelo lugar que nelas ocupa o homem.
Assim, um povo pode ser civilizado e não ser culto e vice-versa. Não pode, por exemplo, comparar-se o nível desenvolvido de civilização do povo americano actual com o incipiente do povo ateniense do período áureo, como não podem também comparar-se os seus respectivos graus de cultura, muito superior o deste ao daquele (9). Entre um Péricles e um Hoover medeia uma distância enorme, aquela mesma que separa o povo que aplicava a lei do ostracismo para evitar que um indivíduo influente pudesse exercer coacção sobre a liberdade dos cidadãos, daquele outro povo em que há anos foi possível que um grupo de homens metesse outro homem, porque era revolucionário, dentro de uma gaiola e o andasse mostrando de terra em terra, a tanto por cabeça.
Definidos os termos, podemos agora resolver o problema posto - o problema do homem, unidade social, perante a cultura.
Se o desenvolvimento da civilização, entendida como acima, só por si, pode conduzir ao automatismo e à consequente escravização do homem, o que nos é mostrado pela civilização capitalista actual, é isso devido, não a um alto mas sim a um baixo grau de cultura que permite que os meios de progresso sejam utilizados num ambiente de completo abandono dos objectivos superiores da vida.
E esse abandono, e a adulteração que se lhe segue, só podem ser evitados pelo reforçamento intenso da cultura; esta aparece-nos assim como um condicionador e correctivo constante da marcha da civilização.
Como se põe então agora a questão das elites? Evidentemente que o cultivo e progresso da ciência, bem como a sua aplicação à vida corrente da sociedade, hão-de ser sempre obra de grupos especializados - prospectores e realizadores; chamemos-lhe elites, se assim o quiserem - existem e existirão, como existem e existirão as elites das outras profissões e actividades.
Mas o que não deve nem pode ser monopólio de uma elite, é a cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.
Só deste modo poderá levar-se a bom termo a realização daquela tarefa essencial que atrás vimos ser o problema central posto às gerações de hoje - despertar a alma colectiva das massas (II).
Houve quem dissesse um dia que as gerações dos homens são como as das folhas, passam umas e vêm outras.
Está na nossa mão o desmentir o significado pessimista desta frase.
Só figuram de folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores cujo ideal de vida se concentrou egoisticamente em si e que não cuidaram de construir para o futuro pela resolução, em bases largas, dos problemas que lhes estavam postos, numa elevada compreensão do seu significado humano.
Essa concentração egoísta tem um nome - traição, e, se hoje trairmos, será esse o nosso destino - ser arredados com o pé, como se arreda um montão de folhas mortas.
E não queiramos que amanhã tenham de praticar para connosco esse gesto, impiedoso mas justiceiro, exactamente o mesmo que hoje nos vemos obrigados a fazer para com aquilo que, do passado, é obstáculo no nosso caminho.
NOTA I. - O problema do maquinismo. O processo da máquina e da sua acção na vida social contemporânea tem sido feito, nos últimos anos, muitas vezes, e com diferentes orientações. Há quem a acuse dos maiores males de que actualmente enferma a civilização - o desemprego, a superprodução, o automatismo do homem, e há quem leve a delicadeza da sua sensibilidade ao ponto de se cobrir de suores frios à ideia do que seria um mundo regido pela máquina, estandardizado, frio e sem poesia. O tema é evidentemente daqueles que se prestam à fantasia...
Mas dum estudo sério dele ressaltam dois factos fundamentais:
1.º - A existência da máquina na vida de hoje é um facto contra o qual não há que fantasiar nem lamuriar. Ela veio a introduzir-se lentamente, ganhando pouco a pouco novos campos e já agora não é concebível o desenvolvimento normal da vida dos povos sem ela; mais, ela está destinada a tomar nesse desenvolvimento uma parte cada vez maior.
2.º - Os males não estão na máquina mas na desigualdade de distribuição dos benefícios que ela produz. O mal não está em que se reduza de 100 a 5 o número de horas necessário para a fabricação de dado produto, mas sim em que o benefício correspondente seja reservado a uma minoria, escravizando a essa má distribuição a maioria. Quer dizer, o problema fundamental é, não um problema de técnica, mas um problema de moral social. E não é aos técnicos que se pode entregar a sua resolução. É a homens.
NOTA II. - O leitor poderá perguntar se o despertar da alma colectiva das massas tem algum significado real para a marcha da civilização tal como foi esquiçada atrás, ou se, pelo contrário, a experiência dos últimos anos mostrou ou não que esse despertar se deu (Alemanha e Itália) num sentido de expansão imperialista e, consequentemente, de regressão de liberdade.
O conjunto dos movimentos que se têm dado na Europa nos últimos anos é muito complexo e sai fora dos limites duma simples nota a sua análise aprofundada. Podem, no entanto, dar-se algumas perspectivas dessa análise.
Em primeiro lugar, todo esse complexo de fenómenos se torna totalmente incompreensível se o ponto de vista para o seu estudo não for convenientemente escolhido. Mais duma pessoa, conhecendo a Alemanha por lá ter habitado, ao verificar a existência, lado a lado, de manifestações da mais alta civilização e da mais negra barbaridade (10), se declara incapaz de perceber. Alguns falam de psicose colectiva, outros do poder magnético de um grande visionário, etc., etc., tudo explicações tão insuficientes que melhor será confessar incapacidade de compreender.
Ora as coisas tomam talvez jeitos de se esclarecerem se se considerar a situação da Europa nos últimos vinte anos e a posição da Alemanha dentro dela.
Recorde-se o final da guerra, a revolução alemã, o tratado de Versalhes e o que ele representou como contradição brutal entre os objectivos apregoados da luta e os resultados reais da vitória; o que ele representou como fonte de humilhação material e moral para o povo alemão. Recordem-se as dificuldades da vida da República de Weimar, com base de apoio no partido social-democrata e recorde-se, sobretudo, o grande, o tremendo erro da política europeia após-guerra - a política egoísta praticada durante anos pela França em relação a essa República. O mais elementar senso político indicava que era o interesse da França e da Europa ajudar a social-democracia alemã que poderia transformar-se num grande factor de paz e de liberdade no centro da Europa. Mas os Poincaré, os LavaI, os Tardieu não o viram assim - a sua pequenez de horizonte político não lhes permitiu que fizessem mais do que exactamente o contrário do que deveriam fazer. A despeito da boa-vontade dum Briand - o único homem de Estado da França nesse período, com um pouco de humanidade - a França é a grande responsável do que se está passando agora.
Mas não caiamos no erro fácil de atribuir tudo aos erros dos homens. O desejo natural de largas camadas da população francesa de não deixar fugir os frutos duma vitória dificilmente conseguida, por um lado; um mau estado da economia mundial que gerou uma política geral de nacionalismo económico - exactamente o contrário do que deveria racionalmente fazer-se, mas os interesses de classe sobrepuseram-se, por toda a parte, aos interesses gerais -; a crise terrível que a partir de 1929 se desencadeou sobre o mundo capitalista; tudo isto são razões suficientemente fortes para explicar que a política desses homens dificilmente poderia ter sido diferente daquilo que foi. Muito bem, mas eu pergunto - o que é então um estadista? (11)
A partir de 1931, as coisas levaram na Alemanha jeito de se precipitarem. No primeiro plano da actividade política, na fachada, quatro forças principais: a social-democracia e o partido católico ao centro, o nacional-socialismo de Hitler e o partido comunista, aos lados. As forças do centro, passivas, detinham ainda o poder, num movimento duma regularidade de evolução surpreendente - a social-democracia abandonando dia a dia, com sorrisos, elegantemente, as alavancas que tinha na mão, em proveito do partido católico de Brüning, o qual as havia de transmitir, também elegantemente, a Hitler (12). As forças dos lados, igualmente activas e percucientes, lutavam diàriamente nas ruas pelo poder, mas as possibilidades não eram as mesmas, a luta era desigual - havia as forças por detrás da fachada. Estas congregaram-se em dois núcleos principais: o exército; a finança e grande indústria. Com problemas particulares, com interesses particulares, o sentido de acção destas duas forças, quando se aproximasse a hora do perigo comum, não oferecia porém dúvidas. Foi o que realmente se deu - Hitler subiu ao poder numa altura em que as suas forças eleitorais estavam em regressão como o haviam mostrado umas eleições realizadas meses antes. Quer isto dizer que os seus adversários directos mais perigosos - a extrema esquerda comunista - estivessem a ponto de tomar o poder? Não, mas representavam, em todo o caso, para a armadura capitalista alemã um perigo suficiente para que esta resolvesse entregar-se a quem, não sendo de todo um aliado, oferecia no entanto garantias largas de acomodamento.
Mas a corrente das coisas é mais forte do que a vontade dos homens. Hitler atraíra a si uma grande parte da juventude alemã, agitando duas ideias fundamentais - internamente, uma revolução socialista, externamente, o repúdio da vergonha de Versalhes e a miragem da construção dum novo grande império.
Não é impunemente que se faz apelo, mesmo demagògicamente, às massas. Uma vez elas postas em movimento atrás duma bandeira, só três coisas são possíveis: ou dar-lhes inteira satisfação, cumprindo o programa traçado, ou, se isso não for possível, uma de duas - tomar outra força de apoio e fazê-las retomar à chicotada a quietude amarga anterior, o remoer de mais uma desilusão; ou agitar-lhes diante dos olhos espantalhos sucessivos, cuja acção perniciosa explique a impossibilidade de cumprimento do programa.
É a esta última extremidade que Hitler se tem visto reduzido, a despeito de alguns triunfos sérios em política exterior. Incapaz de realizar o socialismo interior - a ala esquerda do seu partido pagou caro, com sangue, a impaciência que manifestou a esse propósito - incapaz de encontrar, por agora, força maior do que a da própria imensidade que pôs em movimento, recorre aos espantalhos: o judeu, o comunismo, o espaço vital, etc..
Dá-se aqui uma circunstância curiosa que empresta ao drama toda a sua grandeza histórica. O fundo das acusações de Hitler às chamadas democracias é quase sempre justo: que a Alemanha foi tratada em humilhantes termos após a guerra, está certo; que a Alemanha está inferiorizada na posse de recursos materiais - matérias-primas e meios de compra - em proveito das «democracias refasteladas», está certo também. O que já, evidentemente, não está certo são as consequências que disso ele pretende tirar. Mas é este fundo de justiça, inegável, que explica a adesão de grande parte do povo alemão a Hitler e a facilidade com que a parte menos pura das suas tropas de choque se entrega, no meio do silêncio geral, a cenas que são a vergonha dum século.
Assistimos aqui a um despertar das massas, mas apenas num sentido, digamos, negativo; um despertar que reage apenas contra a injustiça de que se sente vítima; um despertar truculento que não atinge a profundidade do sentido da reflexão e da justiça; acima de tudo, um despertar orientado sem grandeza. Mas essa profundidade e essa grandeza, não é já sob a conduta de Hitler que podem ser atingidas. Sem a envergadura duma grande figura histórica (Lutero, numa situação análoga de injustiça material - a divisão do mundo pelos reis de Portugal e Espanha feita no final do século XV pelo papa Alexandre Borgia - soube dar ao movimento de reacção do norte contra essa injustiça uma direcção extremamente fecunda dentro das realidades nacionais) Hitler apega-se ao que é fácil, ao que é transitório - a expansão imperialista - para mascarar a sua falência na política interior. O resto ultrapassa-o. De modo que todo o problema está nisto - saber em que grau o despertar da alma colectiva das massas na Alemanha é independente de Hitler e quando, afastado este, esse despertar entrará na fase, por enquanto não atingida, das realizações duradouras e fecundas.
Será preciso dizer que aqui se contém, neste momento, a chave dos destinos da Europa?
Mas não nos iludamos. Se o enunciar da questão parece fácil e claro, a sua resolução afigura-se-me extremamente difícil. Ao analisá-la do ponto de vista internacional (e só assim pode ser estudada) surgem as complicações, tais e de tão estranho carácter, que se não enxerga, no meio de tantas possibilidades, qual o caminho necessário de saída. A hegemonia de Hitler sobre o centro da Europa cortando-a em duas, do Báltico ao Mediterrâneo, hegemonia conseguida através da aliança com a Itália (a primeira grande vítima futura de tudo isto) é um facto inegável, uma realidade política, económica e geográfica. Mas grande nau, grande tormenta; essa hegemonia acabou por provocar, como reacção, uma conjugação poderosa de forças opostas a qualquer novo acto de expansão imperialista na Europa. À primeira vista, parece ser Hitler o inimigo n.° 1 dessas forças postas ao serviço da paz (13) e por um lado assim é; no entanto, Hitler é hoje um homem absolutamente indispensável na Europa capitalista (14); as consequências do seu desaparecimento seriam incalculáveis (que se não esqueça disto quem quiser perceber a política britânica dos últimos anos. Muita coisa obscura se torna então clara). Assim o compreendeu Chamberlain - o único estadista que a burguesia encontrou depois da guerra, com tudo o que de pequenino um estadista burguês hoje deve ter - aquele extraordinário Chamberlain, tão ingénuo enquanto houve democracias para destruir na Europa, aquele surpreendente Chamberlain que, sentindo Hitler perdido em Setembro passado, tão pressurosamente correu a salvá-lo com a farsa sinistra dos compadres de Munich! Ah! quanto daria Chamberlain (15) para que Hitler fosse um pouco mais cordato; haveria tanta possibilidade de entendimento, perspectivas de tão belos negócios... Mas aí reside o drama - Hitler (16) não pode ser cordato; nasceu do lado negativo duma catástrofe, e caminha às cegas para outra, incapaz de se manter no caminho normal do equilíbrio interno.
De modo que mais necessário e urgente que nunca, para pôr termo a esta coisa sórdida, anti-racional, a esta macacada que é a política europeia presente, mais necessário que nunca é e continua a ser despertar a alma colectiva das massas.
Lisboa, Maio de 1939.
Estas palavras foram escritas em Maio passado. Hoje a Europa está de novo em guerra. O leitor poderá verificar, à luz dos acontecimentos actuais, em que medida a análise feita corresponde (melhor - correspondia) à realidade. A quem vir atitude de injustiça para com Chamberlain nas referências que lhe fiz, recomendo a leitura dos manifestos lançados pela aviação britânica em território alemão nos primeiros dias de guerra: «A Alemanha não estava ameaçada e não era tratada com injustiça. Não se lhe permitiu a ocupação da Renânia, a realização do «Anschluss» e recuperar em paz (17) os alemães dos sudetas?... Todas (18) as ambições alemãs poderiam ter sido satisfeitas pacificamente, desde que fossem justas... » (19).
Mas agora, que vamos arrastados pelo turbilhão, os acontecimentos ultrapassam-nos com uma rapidez que nos não deixa por vezes fixar as cambiantes momentâneas de perspectiva.
Uma coisa me parece no entanto certa - esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte; começou a descida aos infernos. E a Europa nova há-de surgir (daqui a quanto tempo?) aquecida pelo sol do oriente, aquele longínquo oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo.
Lisboa, 8 de Setembro de 1939.
(*) Bento de Jesus Caraça (1901-1948) é de origem rural alentejana, mas teve a possibilidade de fazer estudos completos, concluídos com enorme brilhantismo. Em 1929 é nomeado professor catedrático de Matemáticas Superiores no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (I.S.C.E.F.), em Lisboa. Militou na Liga Contra a Guerra e Contra o Fascismo, no Socorro Vermelho Internacional, na Frente Popular, no MUNAF e no MUD. Ligou-se em idade muito jovem, e desde a sua fundação, à Universidade Popular Portuguesa (UPP), da qual assumiria a direcção em 1929. Deu numerosas conferências que se tornaram acontecimentos públicos, na UPP mas também em associações culturais e sedes sindicais. Dirigiu um projecto enciclopédico de cultura popular, ímpar no país, que foi a Biblioteca Cosmos. Animou diversas publicações e sociedades científicas, mas colaborou também regularmente em publicações culturais como ‘Seara Nova’, ‘Vértice’, o quinzenário ‘O Globo’, que fundou juntamente com José Rodrigues Miguéis, ou os semanários ‘O Diabo’ e ‘A Liberdade’. Esta conferência, que ficaria justamente célebre, é um manifesto que resume bem a sua cosmovisão e o sentido do seu apostolado cívico.
____________ NOTAS:
(1) Nota inserta na 2.ª edição desta conferência, em cadernos da «Seara Nova», 1939.
(2) Estávamos, nessa altura, em 1933. O cinismo campeava já, mas não tinha sido ainda arvorado em método político. Largo caminho andado nestes seis anos. (Nota da 2.ª edição, 1939).
(3) Não se advoga aqui o anti-individualismo; condena-se a realização individualista actual, a qual permite e facilita que as mais fortes organizações de reacção internacional - finança, comércio de armamentos, tráfico de carne branca, etc. - se acobertem à sua obra, impondo quando é preciso formas de restrição das liberdades públicas mais puras e mais características do verdadeiro individualismo.
(4) O aparecimento da burguesia deve na realidade reportar-se a alguns séculos antes, à formação dos primeiros grupos urbanos e ao despontar da indústria e das relações comerciais. Se aqui me refiro ao século XV, é para marcar a época a partir da qual é o seu peso crescente na vida social que vai constituir o factor dominante da evolução da civilização ocidental.
(5) Não se julgue haver entre o ritmo das descobertas e do desenvolvimento das ciências de observação, por um lado, e o acréscimo de poder da burguesia, por outro, uma simples relação de causa e efeito, em qualquer dos sentidos. Há entre um e outro fenómeno um complexo de relações de acção recíproca - as necessidades da vida social impulsionando o movimento cientifico e este por sua vez facilitando o progresso social e fazendo criar novas necessidades. Isto parece, e é de facto, um lugar-comum, uma banalidade. Mas o que é mais estranho é a frequência com que aparecem pessoas a defender a «independência do Espírito em relação à matéria» e ideias como esta - que o progresso científico se faz ao acaso do aparecimento de homens geniais!
(6) O mesmo fenómeno se deu fora da França nos restantes países de civilização burguesa.
(7) Houve, no entanto, uma certa altura em que ser nacionalista significava defender os interesses de certas potências estrangeiras; não me parece que o progresso seja grande...
(8) Estas palavras foram escritas em 1933. Se o fossem agora é evidente que outros e mais dramáticos exemplos teriam sido escolhidos. Onde está a elite cultural alemã? Einstein? Freud? Onde está a elite que dirigiu o corpo hoje esfacelado da Checoslováquia? e a da Espanha (Nota da 2.ª edição, 1939).
(9) Fala-se, evidentemente, do tipo médio da classe superior num ou noutro caso. Se nos reportarmos às classes inferiores, não sei se haverá grande diferença entre a condição de um negro das plantações de algodão e a de um escravo grego, fosse ele escravo de um Aristóteles...
(10) V. atrás, a distinção entre civilização e cultura.
(11) A questão está imperfeitamente posta. Em termos de maior rigor deve-se pô-la assim: - é possível haver um grande estadista duma classe, em período de declínio dessa classe?
(12) Na Austria passou-se mais tarde o mesmo. Só os operários de Viena tentaram romper a certa altura a elegância das atitudes. Mas foram metidos na «ordem» a tiros de canhão.
(13) Esta análise precisava de ser completada por virtude da perspectiva da participação da U. R. S. S. nesse sistema defensivo; mas este problema, só por si, necessitava dum estudo é parte.
(14) Coisa paradoxal, mas verdadeira - Hitler é, ao mesmo tempo, o homem que mais tem trabalhado para precipitar o fim da Europa capitalista.
(15) Leia-se: a alta finança inglesa.
(16) Leia-se: o nacional-socialismo alemão.
(17) !!!
(18) Todas?! até que fronteira?
(19) Devemos entender que as acções anteriores da Alemanha (Espanha, Checoslováqula) foram justas e favorecidas por negociações amigáveis?
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