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A contribuição de Marx à teoria e à metodologia das ciências (*)
Armando Castro
Introdução
Se os problemas escolhidos para a análise que se vai seguir não são de forma alguma abstrusos, nem oferecem entre os seus especialistas qualquer carácter inédito, não é menos exacto que se encontram, segundo supomos, muito longe das informações e das preocupações da generalidade de estudiosos e de todos quantos estão empenhados em apropriar-se da teoria marxista como arma fundamental de transformação revolucionária do mundo.
Na hipótese de esta maneira de ver ser exacta, é indispensável começar por enunciar e explicitar não só o alcance das questões ligadas aos fundamentos do conhecimento científico como também a importância prática que, por mais estranho que possa parecer, elas assumem.
Tal é a justificação de uma abordagem introdutória.
Importância da contribuição de Karl Marx à compreensão da teoria e da metodologia das ciências
Quando, por iniciativa da Universidade Popular do Porto, invocámos o património essencial fornecido pela obra científica, filosófica e prático-revolucionária desse gigante dos tempos contemporâneos falecido há um século que foi Karl Heinrich Marx, a própria variabilidade dos temas que já foram abordados, bem como dos que estão programados para os próximos meses, só por si dão a entender a riqueza vastíssima de um legado que juntamente com as contribuições de Frederic Engels e Vladimir Ilitch Lénine representam o núcleo que guia hoje milhões e milhões dú trabalhadores em todo o mundo.
E por certo não há da parte dos organizadores desta série de iniciativas e de quantos nela colaboram a pretensão de imaginar sequer que nas doze ou treze sessões previstas serão tocadas todas as facetas do marxismo.
Repetimos: a apropriação daquilo que se deve a Marx no campo da construção do saber científico, com diversos métodos essenciais que nela intervêm, enfileira entre as contribuições que não podemos abandonar tendo em conta a sua importância múltipla. Não se trata efectivamente de um mero exercício intelectual nem de uma recreação própria de um círculo restrito de estudiosos.
Ilustraremos alguns dos aspectos em que se pantenteia esta relevância.
I - No que respeita à compreensão dos elementos de índole teórica que Marx elaborou e aplicou, revelando a sua alta importância em muitos domínios, destacar-se-ão os seguintes:
1.º - Qualquer contribuição que faça avançar a autoconsciência teórica assume evidentemente um alcance que se não pode substimar, quer para o próprio trabalho de elaboração científica quer para a sua transmissão, porque facilitará a apreensão por parte de todos quantos quiserem dominá-la. E isto não é evidentemente válido apenas no campo da elaboração científica de Marx. Existe em qualquer trabalho científico, tanto faz que se trate do domínio em que Marx se situou como nos das Ciências Lógico-Dedutivas, das Ciências Físicas e das Ciências Biológicas.
2.º - Tendo em conta a necessidade decisiva de acompanhar as transformações rápidas da vida social da actualidade, se quisermos manter o contacto com a vida e possuir instrumentos de intervenção fecunda, então mais refulge a natureza estratégica cada vez mais premente fornecida por um entendimento - se possível ele próprio teórico - do trabalho teórico.
3.º - Ainda relacionado com este aspecto, a compreensão dos grandes instrumentos de conhecimento científico que Marx forjou e aplicou criadoramente ministra indicações seguras a fim de entendermos o significado do marxismo, além de abrirem muitas outras pistas, sem excepcionar inclusive as que respeitam ao esforço em acto para desenvolver a leitura científica do mundo.
4.º - É fácil verificar que nestas condições, pela sinples aplicação das indicações teóricas gerais, e sem considerar de momento sequer as que resultam do trabalho de Marx nas esferas concretas de diversas disciplinas, a rede de «leitura teórica da teoria» constitui só por si um poderoso elemento para entender e defender as bases científicas dessas disciplinas. É o que sucede especialmente na ciência geral das sociedades, a que Marx e Engels chamaram o materialismo histórico, com todas as bases que ela fornece a diversas disciplinas, nomeadamente à Sociologia e à Ciência Política, bem como nessas outras áreas disciplinares que são a História e a Economia.
É certo que dispomos hoje de uma massa enorme de estudos que se preocupam em mostrar e explicitar os eixos filosóficos do marxismo; são também vastíssimos os trabalhos voltados para o exame da ossatura interna das ciências em que Marx, Engels e Lénine trabalharam, ao lado de estudos que enquadram a sua radiografia através de indicações fornecidas pela filosofia contemporânea das ciências. A seu lado ergue-se ainda uma massa ingente de análises incidindo sobre a metodologia marxista (1).
Ser-nos-á no entanto permitido chamar a atenção para a circunstância de aqui se adoptar uma perspectiva diferente; ela é fornecida pelo nosso próprio esforço em desenvolvimento nos últimos anos, tendo em vista aproveitar as bases fornecidas pelos progressos pluridisciplinares contemporâneos, a fim de pôr de pé a própria ciência explicativa do conhecimento científico (2).
E acrescente-se a este propósito que não será interpretado com pretensiosismo intolerável invocar este trabalho, a fim de trazer um exemplo concreto do objectivo de desenvolvimento das bases teóricas provenientes em grande parte do marxismo, alargando-o, enriquecendo-o, precisando-o e rectificando mesmo aquilo que as exigências teóricas como tal aconselharem, graças à posse de meios teóricos e metodológicos posteriores a Marx, Engels e Lénine.
É claro que somente nos é dado usar este exemplo com o objectivo de desmontar a pretensão daqueles que dizem que seguir hoje o marxismo significa cair na mera glosa dogmática dos textos dos seus autores clássicos. É claro que saber se o objectivo científico foi atingido pertence às conclusões a que chega a respectiva crítica teórica e metodológica interna. No entanto, independentemente disso, ficará pelo menos um labor téorico guiado pela preocupação de aproveitar e forjar novos utensílios teóricos e metódicos, quer não só para desenvolver o património científico recebido, seja ele qual for, quer para construir interpretações científicas válidas face a novas realidades. E quando isto é levado a cabo sob as exigências endógenas do próprio saber científico nada tem, nem de perto nem de longe, com o revisionismo; este, determinando-se por posições ideológicas e políticas com o objectivo de corroer por dentro o marxismo, nega pela sua própria natureza a crítica teórico-metódica determinada pelos seus cânones, pelas regras da produção das ciências.
5.º - Deste conjunto de notas concluímos, portanto, que estudar a contribuição de Marx aos fundamentos das ciências e da sua metodologia não constitui uma actividade gratuita e nem sequer um exercício intelectual, com as vantagens possivelmente ténues que semelhante exercício comportaria. Pelo contrário, fornece mais um instrumento relevante, para «a crítica dos críticos» de Marx. Arma que é tanto mais importante quanto é certo que com frequência, sob uma camada de verniz verbal mais ou menos impressionante, se esconde uma autêntica indigência teórica e metodológica - as críticas clássicas à teoria económica do capitalismo que Marx ergueu em O Capital, na Introdução à Crítica da Economia Política, ou nos Grundrisse... disto constituem um claro exemplo...
6.º - Por isso podemos dar mais um passo e proclamar que entender as grandes bases estruturais internas do pensamento científico de Marx, salientando nomeadamente algumas das contribuições maiores a esse pensamento, representa igualmente um utensílio poderoso tanto para a leitura teórica do mundo como para a luta no sentido da sua transformação. Serve ainda como um meio insusceptível de demolição em que esbarra a poderosa e variada ofensiva ideológica burguesa contemporânea na frente intelectual e política, centrada antes de mais nada no combate ao marxismo.
Mais uma vez se verifica que «nada há de mais prático do que uma boa teoria»...
II - Por fim, ao fazermos na parte final deste exame uma referência a contribuições básicas de Marx no campo da metodologia das ciências, nem por isso se está a tratar de um problema menor. Em primeiro lugar, porque existe uma unidade incindível entre teoria e metodologia; em segundo lugar, porque entender claramente alguns dos métodos forjados pelo autor de O Capital é indispensável à apreensão da sua própria teorização. Há mesmo exemplos muito claros de críticas que caem como um castelo de cartas quando se dispõe destes esclarecimentos - curioso é que o próprio Marx mencionou casos desses, como sucede no posfácio à segunda edição alemã de O Capital.
Após estes esclarecimentos, que se espera tenham arredado preconceitos acerca de um pretenso cariz teoricista sem alcance prático do exame em que estamos envolvidos, uma vez que se espera ter-se mostrado com suficiente clareza que nos encontramos no epicentro da autoconsciência científica com as imensas implicações práticas que uma tal posição privilegiada comporta, convido-vos a acompanhar-me nesta importante excursão.
Natureza da contribuição epistemológica e metodológica de Marx
Seria vão procurar no legado de Marx um estudo sistemático sobre os fundamentos gerais das ciências ou mesmo acerca das construções disciplinares em que trabalhou, em especial a ciência geral das sociedades (Materialismo Histórico), a História, a Economia e a Política.
No entanto, e antes de mais nada, às suas aproximações subjaz a filosofia do materialismo dialéctico, que ele próprio, em colaboração com Engels, forjou; por outro lado, deparamos com indicações separadas sobre os instrumentos de leitura científica que pôs de pé e que aplicou, embora não redigisse também qualquer exposição sobre a filosofia das ciências.
A verdade é que, como se sabe perfeitamente, não teve tempo sequer para escrever uma exposição da dialéctica, ao contrário do projecto que acalentava nesse sentido, conforme confessava a Joseph Dietzgen em carta de 9 de Maio de 1868:
«Quando me tiver desembaraçado do meu fardo económico escreverei uma "Dialéctica". As leis correctas da dialéctica estão já contidas em Hegel, sob uma forma, é verdade, mística. Trata-se de a despojar desta forma.»
E certo que existem as contribuições fundamentais de Engels e de Lénine; porém, nem sequer as notas de Lénine a Hegel (os Cadernos Filosóficos) representam naturalmente um manual sistemático da filosofia materialista dialéctica, o que certamente não prejudica a sua imensa riqueza, quase o mesmo se podendo dizer de Materialismo e Empiriocriticismo.
Nestas condições ainda seria mais difícil topar com uma análise mais ou menos sistemática voltada para as bases filosóficas do conhecimento científico.
Se dermos mais um passo, verificamos ser óbvio que a passagem de uma interpretação sistemática de Filosofia das Ciências para um trabalho de construção ela própria científico-disciplinar do conhecimento científico era inimaginável no século passado quando os conhecimentos provenientes do sistema geral das ciências então existentes não tinham amadurecido suficientemente para a elaboração dessa ciência geral do conhecimento científico (a que chamo Epistemologia Geral), um esforço para que julgo, aliás, pela minha parte, estar a dar ao longo dos últimos anos a contribuição pessoalmente possível [veja-se a nota (2) no final do texto].
Sem entrar agora em mais esclarecimentos, bastará talvez avançar que a distinção entre a Filosofia das Ciências e a Ciência do Conhecimento Científico corresponde à distinção que, a propósito dos dois tipos de conhecimento que encontramos para qualquer outra realidade que esta actividade procura captar, nas suas relações e no seu movimento, ao mesmo tempo que a produção de um não elimina a do outro, antes se interinfluenciam, se relacionam no processo conjunto do desenvolvimento cognitivo acompanhados, naturalmente, dos quadros comuns e gerais a qualquer indivíduo, sem os quais esses ramos do saber não seriam viáveis - um «idiota» (literalmente, «sem ideias») não poderia ser filósofo ou cientista...
O campo da ciência geral do conhecimento científico distingue-se da explicação filosófica das ciências porque as ciências são disciplinas, isto é, têm um corpo delimitado (embora sempre susceptível de expansão), têm um objecto teórico próprio, enquanto o conhecimento filosófico enuncia e sistematiza relações estáveis (leis) e constrói categorias transdisciplinares, a que portanto nenhuma disciplina científica em concreto logra chegar.
Acresce que, sendo exacto que somente a partir dos progressos de múltiplas disciplinas, tanto psicológicas, sociais e históricas como ainda biológicas, que não vale a pena estar aqui a rememorar, é que se criaram condições para a construção da Epistemologia Geral, além desta existem os ramos da ciência do conhecimento científico, que dizem respeito a uma subárea do sistema geral das ciências como as ciências da natureza, as lógico-dedutivas, as ciências do homem. Mas estamos em condições de erguer outras - trata-se do estudo das leis específicas de uma disciplina em concreto, como a Física Mecânica, a Física das Altas Energias, a Biologia Molecular, a Economia, a História, a Sociologia, a Psicologia, etc.. Eis aqui os ramos que designo, respectivamente, por Epistemologias Regionais e por Epistemologias Disciplinares.
Estas indicações não parecerão deslocadas.
Permitem compreender que, por maioria de razão, Marx não escreveu também sistematicamente qualquer epistemologia regional, nomeadamente a Epistemologia das Ciências Sociais ou Ciência do Homem, como não nos deixou um texto sistemático acerca dos fundamentos específicos das Ciências da História ou da Economia.
Mas, à semelhança do que sucede com todos os casos em que se produz uma revolução científica (e às vezes nem tanto é preciso), torna-se indispensável que o investigador trabalhe como epistemólogo por sua conta, visto necessitar desse farol no campo delimitado do seu esforço teórico concreto. Encontramos isto desde Galileu, ao criticar, por exemplo, os quadros da filosofia aristotélica, até aos grandes físicos do século XX - Einstein, Bohr, Heisenberg, etc..
É por isso que, independentemente das explicitações do punho do próprio Marx, na sua investigação teve de construir categorias epistemológicas, quer dizer, foi indispensável descobrir e aplicar grandes conceitos teóricos, tanto de validade geral como no âmbito da Epistemologia das Ciências Sociais ou de cada uma daquelas em que trabalhou.
Na análise que se vai seguir somente se estudarão algumas categorias epistemológicas gerais descobertas por Marx na sua investigação, mas que, pressupondo-as, não teve de referenciar e de sistematizar na exposição. Se quiséssemos ir mais longe, também encontraríamos categorias de Epistemologia Regional e de Epistemologias Disciplinares. Será suficiente recordar o conceito de lei científica, em que Marx utilizou desde o conceito mais geral válido em todas as ciências até ao conceito da lei económica, com os seus particularismos próprios sob a base naturalmente das características comuns a todas as ciências?
Tudo isto, no entanto, não quer dizer que, aqui e ali, não venham à superfície indicações expressas sobre os conceitos epistemológicos que guiaram o seu labor teórico, sem excluir conceitos gerais, pois quanto a alguns disciplinares eles transpiram a cada passo do estudo concreto, como sucede especialmente em O Capital.
E o que se diz da dimensão epistemológica pode dizer-se quase nos mesmos termos a propósito das descobertas e aplicações na esfera dos métodos (3).
A herança epistemológica de Karl Marx
Compreender-se-á com facilidade que não é possível preceder ao exame das categorias epistemológicas gerais apreendidas e manuseadas pelo autor da Contribuição para a Crítica da Economia Política e de O Capital com uma exposição, mesmo extremamente resumida, das próprias categorias teorizadas. Embora essa teorização constitua evidentemente o farol das considerações que se vão seguir, não podemos antecedê-las de um resumo teórico de cada um desses pontos. Remeteremos apenas para os estudos já disponíveis.
Frisar-se-á novamente que não nos deteremos nas descobertas de Marx relativas a características de representações teóricas particulares numa disciplina concreta, mas sim em algumas das que são comuns ao conjunto das ciências da natureza e do homem, muito embora surjam no seu esforço teórico aplicado.
E como, além disso, não há a pretensão de proceder a um exame sistemático, elegeram-se quatro categorias fundamentais na elaboração do conhecimento científico.
Iniciar-se-á nestas condições o estudo por uma categoria epistemológica extremamente geral e que se manifesta numa oposição dual quando se tem em atenção o conhecimento científico: as categorias de aparência e de essência.
I - Essência e aparência
Partiremos destas indicações: não é preciso, por certo, larga preparação teórica para nos apercebermos de que naquilo a que chamamos o «conhecimento», quer dizer, a construção de representações mentais relacionadas entre si sobre qualquer aspecto da realidade sobre a qual incide essa representação, existe em cada época histórica um conjunto médio de conhecimentos construídos pelos seres humanos, sem curar agora de saber como é que cada indivíduo chega até aí. Na situação que qualquer adulto cognitivo normal médio conhece na sua actividade espontânea dos nossos dias (aliás a evolução a este respeito é muito lenta, por razões em grande medida sociais resultantes dos condicionalismos que têm dominado até hoje) ele dispõe assim de um quadro de «leitura» do mundo sem o qual não poderia agir, se encontraria paralisado... Mas também se reconhecerá que muitas dessas representações são enganadoras, como as que levaram durante milhares de anos a sustentar que o Sol girava em tomo da Terra. A este tipo de representações chamaremos a aparência, o fenomenal. Notemos desde já que isto não é uma «mera impressão subjectiva», pessoal, pois resulta da interconexão entre a nossa actividade e o meio externo: não dizia Copémico no século XVI que, para compreender os movimentos do Sol e da Terra, é preciso ter também em conta o movimento do corpo em que se situa o próprio observador, neste caso a Terra?
Ora, para captar as relações que por um lado são comuns a um conjunto de fenómenos que este conhecimento corrente ou aparente assinala, distinguindo-as de outras porventura igualmente assinaláveis pelo conhecimento humano médio espontâneo em diversos fenómenos sem poder separar as suas determinantes, e para ainda captar novos fenómenos que este tipo de conhecimento não pode representar, é preciso exactamente ultrapassar esta barreira psicológica, biológica, física e social. Este último aspecto pode antever-se da simples circunstância de até fins do século passado, começos do actual, poder aceitar-se que a velocidade da luz seria infinita, como proclamava a física clássica, mas que as próprias exigências de desenvolvimento social e tecnológico começaram a notar discrepâncias que viriam a ser integradas numa teoria mais desenvolvida elaborada por Einstein, mostrando que a luz viaja a uma velocidade finita (à roda de 300 000 Km/segundo); ora, se para viajar na Terra (ou nas suas comunicações via rádio) isto não é praticamente importante, já é fundamental na comunicação entre corpos celestes separados pelo menos por dezenas e dezenas de milhões de quilómetros...
Foi a filosofia do materialismo dialéctico que rejeitou as velhas concepções «essencialistas» e transformou as concepções de Hegel, acentuando que o conhecimento consiste num processo em que à esfera de adaptação média humana chamou a «aparência» e que a sua ultrapassagem (a que hoje muitos filósofos das ciências chamam o «corte» ou «ruptura» epistemológica passando ao conhecimento científico) implica atingir as «essências», quer dizer, as determinações comuns a feixes de fenómenos que mesmo quando conhecidos espontaneamente não é possível assinalar nas suas determinantes: por exemplo, resulta do conhecimento comum dizer que o céu é azul. Mas explicar as determinantes da cor do firmamento diurno, quando não existem nuvens, naturalmente, representou um esforço do conhecimento científico que, diga-se de passagem, causou não poucas dores de cabeça aos cientistas até se chegar ao enunciado do «efeito Raleigh» em 1871 e às descobertas posteriores, que só em 1927 permitiram encontrar essa «essência»; e como o conhecimento jamais é absoluto, abriram-se portas para novos desenvolvimentos da explicação teórica.
Este «essencialismo», que sob o ponto de vista filosófico foi criadoramente desenvolvido por Lénine nos seus comentários à Lógica de Hegel, nada tem com o essencialismo da filososfia idealista tradicional que entendia as «essências» como algo puramente ideal. Não se trata aqui de questões do «ser» mas do conhecimento, muito embora nele haja de aceitar uma unidade incindível entre o sujeito com a sua actividade (a sua consciência) e a realidade com a qual está em inter-relação e cuja subjectividade constitui, aliás, o produto de uma evolução material histórica...
Não podemos ir além destas notas que, todavia, estudamos sistematicamente numa perspectiva que procuramos estruturar segundo uma explicação ela própria científica; remetemos por isso para esse estudo, a fim de desenvolver as bases explicativas daquilo que aqui se deixa simplesmente enunciado (4).
Acrescentemos unicamente que, com os gigantescos progressos científicos das últimas dezenas de anos levando à penetração em «essências» sucessivas cada vez mais complexas, as teorias actuais se colocam em muitos casos a uma distância enorme das representações do conhecimento corrente; foi afinal isto mesmo que, no fundo, Bernard Shaw quis assinalar quando escreveu que «a proporção do maravilhoso em relação ao que imediatamente constitui uma afirmação crível é na última edição da Enciclopédia Britânica enormemente maior do que na Bíblia...»; e isto foi dito nos começos do nosso século...
Se nos debruçarmos sobre a produção científica de Marx, encontramos esta marca profunda que as leituras imediatizantes, muitas vezes desde inaceitáveis pressupostos empiristas e positivistas, não conseguem entender. Servem assim de base a críticas que deslizam sobre a superfície dessa formidável couraça epistemológica, ainda que naturalmente se não trate nem se pudesse tratar de uma couraça rígida, inflexível.
Com efeito, todo o trabalho de construção do conhecimento, sem exceptuar o de índole corrente, pré-científica, é extremamente complexo, nela intervindo numerosos elementos interconectados desde as informações sensoriais e perceptivas, que já são elas próprias complexas, mas constituindo «as nossas janelas para o mundo», até às abstracções, generalizações, códigos de leitura (codificação) e descodificação dos dados recolhidos, relacionações inconscientes ou não de índole lógica, etc.; mas na passagem do conhecimento corrente ao científico é ainda indispensável perfurar o muro da adaptação biológica-psicológica e social que esse tipo de cognição traduz [e que não é, como vimos, meramente subjectiva (5), antes resultando da unidade incindível da actividade do sujeito com o real externo e as interrelações entre ambos]. É indispensável vencer essa aparência (Schein), depurando e utilizando processos próprios para abrirmos às relações internas que até então estavam ocultas ao nosso entendimento.
E o que é curioso é que a generalidade das críticas a Marx, porque não o podem entender, assentam em concepções pré-científicas para negar aquilo que as ultrapassa. Afinal, negam este conhecimento dentro de uma unidade entre ambos...
Consideremos a ciência económica. Marx sublinhou que a realidade imediata, aparente, sob o modo de produção capitalista é que tudo surge como um imenso amontoado de mercadorias. A passagem à leitura científica, à «essência», exige que sejam elaboradas leis que correspondam às características íntimas; ao mesmo tempo aparentemente, trocando-se essas mercadorias segundo relações de valores equivalentes, não poderia haver o lucro capitalista. Passar à «essência» significou descobrir as leis de produção capitalista e, antes de mais nada, a lei basilar desse modo de produção, a lei da mais-valia, resultante e dialecticamente interligada com a lei do valor de troca. Outra aparência enganadora que Marx desmontou com a explicação científica está em parecer que o centro da actividade económica se encontra nas relações sociais de distribuição quando, na verdade, se acha nas relações de produção; é nesta esfera que se gera o valor de troca e o excedente de que a classe capitalista se apropria, a mais-valia - ela não nasce na circulação; outra aparência ainda respeita ao lucro comercial puro que parece enganosamente criar-se na actividade de circulação do capital mercantil, etc. (6).
Eis a forma criadora, cientificamente concreta, segundo a qual Marx aplicou estas categorias fundamentais de «aparência» e de «essência».
Porém, além disso, aqui ou ali, em diversas exposições, chama de passagem a atenção para este carácter de ultrapassagem de um muro gnosiológico que encontramos no conhecimento científico.
Recordemos algumas.
Desde muito cedo, como é compreensível, Karl Marx se preocupou com a compreensão dos traços específicos do conhecimento científico, passo indispensável ao progresso na autoconsciência do labor intelectual que em solidariedade inquebrantável com a sua actividade prática revolucionária iria constituir a sua vida e a razão de ser da sua vida. Por isso, já no Manuscrito de 1843, o jovem Marx, com 25 anos de idade, se preocupava com estas questões (7).
Mas se avançarmos encontramos na sua obra de maturidade teórica este traço específico fundamental do conhecimento científico que é apontado, embora através de referências circunstanciais.
Por volta de 1865 escrevia:
«As verdades científicas são sempre paradoxais se raciocinarmos fundando-nos na experiência quotidiana, a qual não apreende senão a aparência enganadora das coisas.» (8). Nada mais claro.
Já tivemos ocasião para ilustrar isto mesmo através de duas passagens de O Capital, tiradas do livro III.
Numa delas escreve:
«Como o leitor verificou à sua própria custa, a análise das relações internas reais do processo de produção capitalista é muito complicada, exigindo um trabalho minucioso. Se fazer obra científica é reduzir o movimento visível, apenas aparente ao movimento interno real, é evidente que nas cabeças dos agentes de produção e de circulação capitalista nascem necessariamente concepções acerca das leis da produção que se afastam completamente dessas leis, não sendo mais do que o reflexo do movimento aparente na sua consciência.»
Vários capítulos mais adiante insiste no aspecto que importa aqui destacar:
«A economia política vulgar limita-se, de facto, a transpor para o plano doutrinal, a sistematizar as representações dos agentes de produção, prisioneiros das relações de produção burguesas, e a fazer a apologia dessas ideias. Não nos podemos por isso admirar pelo facto de ela se sentir completamente à vontade precisamente nesta aparência alienada, fenómeno evidentemente absurdo e perfeitamente contraditório - de resto toda a ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisas se confundissem» (9).
Também ao distinguir trabalho e força de trabalho, Marx sublinha que tanto é irracional falar do valor do trabalho como falar do valor da terra, mas que estas expressões irracionais «têm contudo a fonte nas próprias relações de produção de que elas reflectem as formas fenomenais [isto é, as aparências]. Sabe-se, de resto, que em todas as ciências, até à economia política, é preciso distinguir entre as aparências das coisas e a sua realidade» (10).
Se é evidente que a disponibilidade de elementos fundamentais relativos à estrutura do conhecimento científico se não reduz a esta categoria de «essência» contraposta à de «fenómeno» ou «aparência», não é menos certo que ela ocupa um lugar de charneira, constituindo uma condição indispensável ao salto para este tipo de cognição; ao mesmo tempo, no seu próprio desenvolvimento, é indispensável mobilizá-la, sobretudo quando se trata de lograr novos saltos no interior de uma ciência já constituída.
Estes aspectos estão claramente presentes em outra categoria epistemológica que Marx elaborou e que, sempre de uma posição antiempirista, aplicou sistematicamente e que vamos referir de seguida - a categoria da lei científica.
II - Lei científica
Aqui, mais uma vez, não encontramos na obra de Marx um tratamento directo tendo em vista explicar a natureza das leis científicas. Aquilo que nos legou foi o estudo sistemático, sobretudo das leis económicas na sua teorização do capitalismo, tendo em O Capital a expressão mais acabada.
Porém, a fim de considerar essas leis, assim como aquelas que juntamente com Engels descobriu relativas ao movimento geral das sociedades e a que chamaram Materialismo Histórico, foi indispensável dispor do conceito mais geral de lei em ciência.
É claro, evidentemente, que as leis que regem o movimento e transformação das sociedades em geral, as leis históricas que consideram esse movimento nas diversas colectividades em concreto ao longo do eixo do tempo na medida do seu movimento (história), no seu arranjo de tipo sincrónico (sociologia), na economia e em qualquer outra ciência do homem, bem como nas diversas ciências da natureza, oferecem certos particularismos de caso para caso. No entanto, em todas elas são comuns características que permitem reconhecer aquilo que se designa desta maneira.
Nesta referência abreviada, radiografando as leis concretas descobertas e enunciadas por Marx em domínios científicos determinados, só prestaremos atenção à peculiaridade fundamental da lei científica, que aliás também de passagem Marx assinalou em diversos pontos, à semelhança do que já vimos ter sucedido com a categoria epistemológica de «essência».
Observemos, antes de mais nada, que qualquer indivíduo sem preparação científica utiliza leis no seu sentido mais geral, bastando chamar a atenção para enunciados do conhecimento corrente que toda e qualquer pessoa possui e utiliza quotidianamente, pois, de contrário, não poderia viver, e que têm indubitavelmente o carácter de leis. Trata-se de todas as representações intelectuais que traduzam relações que se verificam desde que existam certas condições. É assim que qualquer pessoa - a menos que seja suicida - sabe que, lançando-se da altura de algumas dezenas de metros, encontrará a morte... Que se a queda se der em condições de se verificar da altura de dois ou três metros tem possibilidades de se não esmagar, mas que, a partir de determinada altura (condição objectiva), as probabilidades da morte tornam-se praticamente totais.
Quando falamos em lei estamos a indicar o conhecimento de determinada relação constante entre fenómenos.
Mas isto não é a lei científica. A ela anda associado o conceito de «essência», no sentido de que só estamos perante um enunciado deste género quando exprima relações constantes (como a lei do conhecimento corrente), mas que, além disso, vá para além desse nível de adaptação média humana corrente. Quer dizer, a lei científica exprime uma relação que é constante dentro do condicionalismo que contempla, porque se esse condicionalismo se alterar ela já não actua como, por exemplo, no lançamento de uma grande altitude com um pára-quedas. Mas reporta-se, além disso, a uma relação constante interna, que subjaz à expressão imediata pertença do conhecimento corrente.
Qualquer indivíduo sabe, por exemplo, que perante diversos pêndulos de comprimentos diferentes, se verificam ritmos de oscilação que variam de caso para caso - isto é uma lei do conhecimento corrente. Para se passar à relação interna constante foi preciso saltar-se para a física mecânica galileana e encontrar a lei científica que está por debaixo desta variabilidade de fenómeno para fenómeno, quer dizer, dos tempos individuais de oscilação de cada um desses pêndulos. Essa lei diz que o período de oscilação de um pêndulo simples é proporcional à raiz quadrada do seu comprimento. As condições aqui proclamadas são internas no sentido de que estão presentes em todos os pêndulos, seja qual for o seu comprimento, embora se reflictam em fenómenos que variam de caso para caso, constituindo a «aparência»; esta, como se vê, também não é ilusória, pois os ritmos variáveis de oscilação dos pêndulos concretos são uma realidade; faltava no entanto descobrir as condições comuns a todos eles, igualmente concretas, mas de um concreto que se liga de maneira objectiva à oscilação de cada um deles: aparência e essência são objectivas, interligam-se, embora só as relações internas permitam encontrar as determinantes comuns e gerais de um conjunto de fenómenos na sua variabilidade imediata. A teoria física contemporânea do «Caos» permitiu por seu turno novo avanço científico.
É claro que só recordamos aqui aspectos muito gerais das características das leis científicas, as quais, aliás, dentro desta característica mais genérica, oferecem nos enunciados de cada ciência traços próprios diversos e mesmo dentro de uma mesma disciplina. Já tivemos, aliás, ocasião de estudar tudo isto sistematicamente numa obra publicada há anos (11). E como as leis das sociedades oferecem certas características próprias que as distinguem das leis físicas ou biológicas (o mesmo sucedendo, aliás, entre estas), compreende-se quão difícil foi compreender a sua natureza e características em qualquer disciplina, atingindo o máximo, sem dúvida, no estudo dos fenómenos sociais, visto serem bem mais complexos do que os fenómenos que operam na natureza.
A falta de compreensão de todos estes aspectos tem estado igualmente na origem de inúmeras críticas a Marx, que, logo à partida, não conseguem apropriar-se da natureza científica da exposição criticada.
Para terminar estas indicações introdutórias, recordaríamos que Marx não só teve de elaborar o conceito de lei científica para descobrir aquelas que enunciou (como a lei das relações entre as forças produtivas e as relações de produção, as leis económicas fundamentais do capitalismo, a do valor, da mais-valia e tantas outras), como ainda foi forçado a descobrir e enunciar leis com certas estruturas particulares, como sucede com a lei da queda tendencial da taxa de lucro. De acordo com as indicações já avançadas no estudo teórico geral das leis científicas, e recordadas a propósito desta última lei do sistema capitalista nas nossas Lições de Economia (12), se qualquer lei exprime uma relação estável, necessária e interna entre fenómenos, muitas vezes essa «necessidade» abre caminho entre fenómenos contrários que não permitem que ela se complete em tempos constanles e uniformes. Situações destas observam-se na natureza; são, no entanto, muito mais frequentes na vida social, sem negar a existência de outros tipos de leis neste domínio; é que aqui quem intervém na necessidade objectiva imposta pelas condições sociais são as classes e os indivíduos, portadores de interesses e objectivos divergentes e contraditórios.
Mas, para seguirmos a contribuição teórica de Marx neste campo, teríamos de acompanhar toda a sua obra, visto a cada passo se referir a leis tendo na base a sua correspondente concepção teórica.
Recordaríamos que, por exemplo, num estudo recente acerca do conceito de lei económica em O Capital, o seu autor necessitou de mais de 400 páginas para desenvolver o estudo e que em anexo recolheu todas as referências a leis económicas nesta grande obra; estão aí referidas nada menos nada mais do que 236 passagens de O Capital... (13)
Contentemo-nos em registar uma passagem em que Marx transmite precisamente um conceito teórico revelador da natureza mais íntima da lei científica:
«Da mesma maneira que todos os fenómenos se apresentam ao contrário na concorrência e, portanto, na consciência dos agentes que nela participam, da mesma maneira, esta lei - quero falar desta conexão interna e necessária entre duas coisas que se contradizem na aparência...» (Le Capital, Ed. Sociales, Livro III, I, vol. VI, p. 238.)
Eis aqui uma bela caracterização sintética: a lei científica exprime uma conexão interna e necessária entre coisas (entre fenómenos).
III – Totalidade
De entre as descobertas de Marx que constituem outros tantos pivots que intervêm na estrutura interna do conhecimento científico destacaríamos ainda a de totalidade (teórica).
Importa no entanto deixar a prevenção de que, ao contrário do que sucedeu com as duas categorias epistemológicas já examinadas, aqui nem sequer encontramos quaisquer referências à totalidade (teórica) considerada em si mesma. Em compensação, Marx exemplifica-a da melhor maneira possível na sua elaboração científica, quer se trate da Economia, quer da ciência geral das sociedades (Materialismo Histórico), quer da História. Tanto basta para comprovar que soube descobrir - para aplicar - este elemento central de qualquer elaboração teórica.
De resto, se fizermos girar o ângulo de observação para um plano mais geral, quer dizer, para o plano filosófico, é evidente que refulge com uma clareza meridiana a totalidade (no conhecimento filosófico) que surge, por conseguinte, como uma autêntica macrocategoria-do-conhecimento. A maneira mais directa como ela se expressa na filosofia marxista reside na unidade inteiriça e inquebrantável de todas as suas partes componentes e na unidade interna de cada uma delas; na interpretação geral do mundo a unidade entre teoria e prática representa a sua pedra angular e que a própria vida de Kar Marx ilustra gritantemente, como criador de conhecimentos filosóficos e científicos e como revolucionário, intervindo na luta pela organização da classe trabalhadora, pelo reforço da sua consciência de classe, combatendo as ideologias reformistas e lutando em tantas outras frentes: «até aqui os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo» (14). A interpretação geral do mundo do marxismo é igualmente uma totalidade orgânica insusceptível de amputação. Ela mergulha na interligação dialéctica activa entre a natureza e a sociedade, entre o que é regido pelas leis físicas e biológicas e aquilo que é o produto de homem autoconstruindo a sua especificidade, bem como em tantas outras dimensões.
Porém, aqui não nos movemos no plano do conhecimento filosófico mas do conhecimento científico, para cuja distinção já se tentaram fornecer algumas indicações fundamentais. Por isso passamos adiante sem chamar a atenção para as diversas características da categoria filosófica marxista de totalidade e sem tão-pouco penetrar na distinção entre a concepção de total e de totalidade em Hegel e em Marx.
Vamos passar adiante e registar algumas indicações acerca do papel crucial de que se reveste em qualquer ciência a categoria de totalidade, documentando-a com indicações extraídas das disciplinas que o autor de O Capital nos legou, como a Economia, a Ciência Geral das Sociedades (Materialismo Histórico) e a História.
E mais uma vez importa insistir em que se não trata de qualquer questão esotérica, de um problema esquisito que só interessaria a um punhado de especialistas.
Compreender a natureza e a estrutura de uma totalidade teórica é indispensável tanto no trabalho de construção de uma ciência como para a sua compreensão. Mais ainda: muitas críticas e inúmeras incompreensões acerca da explicação científica das sociedades e suas transformações elaboradas por Marx, Engels e Lénine explicam-se pela falta de entendimento da estrutura de uma totalidade teórica. Grande parte da montanha de escritos analíticos e críticos sobre o marxismo enfermam deste mal. Explicam até influências negativas do marxismo, como sucede com os autores que reduzem as bases do movimento social, e um economicismo mais ou menos estreito ou até a um reducionismo ainda mais profundo, ao tentarem explicar de uma maneira directa, mecânica e simplista uma dada evolução social pelas forças produtivas tomadas isoladamente na sua mera expressão técnico-material.
No outro pólo encontramos as críticas pretendendo que se não pode explicar a base da vida colectiva pelas condições económicas; acusam Marx de ter procedido a uma absolutização inaceitável das determinantes económicas, apesar das prevenções dos próprios fundadores do marxismo contra semelhante absolutização. No plano filosófico, como sabemos, L. Althusser, por exemplo, para ultrapassar a questão, propôs a categoria de «sobredeterminação».
No espaço do conhecimento científico as dificuldades são precisamente vencidas com a categoria de totalidade no interior do objecto teórico.
Não podemos, naturalmente, nesta exposição panorâmica extremamente rápida deixar aqui nada mais do que uma simples indicação.
Recordaremos até que na actualidade, graças à conjugação de esforços tanto de filósofos das ciências e de epistemólogos como de trabalhadores científicos disciplinares, se avançou sensivelmente neste campo.
A totalidade teórica organiza e enuncia um sistema de relações entre representações (cujo centro são as leis), permitindo chegar à explicação de um conjunto de relações com propriedades próprias e diferentes das que se reconhecem nos seus elementos interligados.
No plano científico as mais variadas disciplinas operam com conjuntos de relações enunciando propriedades que são diferentes das que reinam nos elementos assim relacionados; esses conjuntos designam-se por estruturas; encontramo-las na Matemática, na Lógica, na Física, na Biologia, nas Ciências do Homem. A ligação entre estruturas com suas leis específicas exprime-se nos sistemas teóricos. E hoje está até em construção uma disciplina a que os seus investigadores dão o nome de Teoria Geral dos Sistemas (15).
Tudo isto a propósito da interorganização sistemática global que encontramos no trabalho científico de Marx.
Serve para mostrar que a análise crítica, necessária inclusive para desenvolver criadoramente a herança científica do marxismo, exige que compreendamos que uma ciência tem de organizar um conjunto de ligações entre os diversos planos dos seus enunciados segundo uma dada ordem, que represente a ordem real nos seus parâmetros básicos (16).
É claro que isto permite também compreender o lugar das determinações económicas no processo de movimento da vida social sem cair num reducionismo economicista. Não se nega o papel activo de todo e qualquer plano da vida colectiva, do político como do cultural, do ideológico como do sociológico mais diverso e suas interinfluências recíprocas. O que aponta é para o necessário carácter organizativo da explicação teórica de harmonia com uma relação interna de ordem. Escreveu Marx na Introdução à Crítica da Economia Política que «em todas as formas de sociedade são determinadas relações de produção as que impõem às demais o seu lugar e a sua importância», com isto pressupondo exactamente a totalidade histórica em que concretamente coexistem em regra vários modos de produção, sendo, porém, um deles o dominante segundo um complexo de relações em que um deles se impõe aos restantes. Não podemos pois interpretar a história sem a categoria de totalidade. Por exemplo, o sector capitalista coexiste hoje em Portugal com a pequena produção mercantil, com o sector cooperativo, etc.. No entanto, ninguém deixará de reconhecer que eles estão interligados numa totalidade em que a dominância pertence às relações capitalistas...
Este ponto crucial da teoria marxista fora já pressentido por György Lukács quando escreveu - por certo tendo em vista acentuar impressivamente este aspecto - que: «Não é o predomínio dos motivos económicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, é o ponto de vista da totalidade» (17).
Não podemos colocar em termos de valorização explicativa relativa a actividade económica na história e a totalidade porque se trata, sem dúvida, de planos diferentes, ao contrário do que a afirmação de Lukás implica. Na verdade, a referência à actividade económica diz respeito aos processos objectivos em acção na vida colectiva, enquanto a totalidade se refere às interligações dos diversos planos de que essa actividade constitui uma parcela. Mas é exacto, sem dúvida, que a incidência das condições sociais em que os homens produzem e distribuem os bens materiais apoiados num sistema de serviços ligados a essas actividades só pode entender-se no interior do processo total que precisamente a representação científica interpreta.
Não será possível ir além destes tópicos, pois trata-se de uma questão que só por si demandaria um volume para ser devidamente examinada.
Passaremos, por isso, à última das quatro grandes categorias teóricas gerais elaboradas por Marx que nos propusemos abordar.
IV - Modo de produção, categoria epistemológica geral
Não se enveredará pelo desenvolvimento explicativo da categoria de modo de produção como eixo fundamental no processo global da teorização da vida social empreendida por Karl Marx.
Aliás, em outras intervenções, incluindo quanto à da História no sistema das Ciências Sociais, houve que assinalar este elemento fundamental de explicação, tanto na ciência geral das sociedades e na História como na actividade económica sob o sistema capitalista, isto é, no modo de produção capitalista.
Recordou-se que «modo de produção condensa num enlace sistemático de ordem teórica interna um conjunto de leis fundamentais e específicas de uma sociedade humana em determinada etapa da sua vida histórica».
«Em sentido estrito exprime "a combinação específica entre o conjunto das relações sociais em que intervém o produtor com os meios de produção constituídos pelos instrumentos de trabalho, o objecto sobre o qual eles incidem e a capacidade humana do seu aproveitamento (as qualidades técnicas, psicológicas, bem como o conjunto das relações de propriedade, abrangendo o não produtor directo e as relações sociais de apropriação histórica real de que este aproveita). Em sentido lato cobre a totalidade social em que as regulações acabadas de referir (económicas) são parte de um conjunto global em que participam as actividades políticas, ideológicas, culturais e todas as demais manifestações da consciência social".»
«Porém, tendo em conta que o papel activo hierarquicamente determinante, de entre todas as determinantes no processo social, cabe prioritariamente a largo prazo às actividades económicas, frequentemente usa-se a categoria modo de produção limitada a esta dimensão da totalidade social, sem com isto se cair na negação de funções específicas e determinantes dos demais planos; tanto mais que a vida social se define pela combinação de todos eles.»
«No modo de produção encontram-se portanto as leis próprias de cada tipo de organização social da humanidade como suas leis diferenciais, como leis próprias desse estádio. Nas sociedades divididas em classes essas leis manifestam-se nas relações de produção e nas relações de distribuição dos bens produzidos entre as diversas classes; no seu centro encontra-se a lei reguladora da apropriação da parte da produção entregue pela classe produtiva à classe privilegiada, seja o excedente estrito sobre o autoconsumo do produtor, ele próprio reduzido a propriedade plena do senhor (escravismo), seja o excedente sobre um autoconsumo histórico mínimo do produtor a partir da divisão entre ele e o senhor do controlo dos meios de produção materiais (e é a renda feudal vigente no modo de produção feudal), seja o excedente do valor da produção que vai para além da parte destinada a pagar a força de trabalho - e é a mais-valia sob o capitalismo.»
Mas não se recordaram estas rápidas características da teoria do modo de produção e dos modos de produção históricos (gerais) para desenvolver uma análise dentro desta perspectiva.
Aquilo que se pretende é passar da referência a estes produtos teóricos concretos marxistas à definição da sua natureza e importância no conhecimento científico tomado na sua generalidade.
Aliás, esta abordagem, em que proclamamos que modo de produção não é nem um conceito exclusivamente marxista nem tão-pouco um conceito unicamente aplicável à teorização da vida social do homem, tem sido por nós desenvolvida há uns dez anos.
Afirmamos realmente que só razões muito particulares, algumas das quais se assinalarão adiante, justificam que isto não tenha sido ainda reconhecido, não tenha sido reconhecido que a categoria modo de produção, entendida na sua expressão conceitual, enuncia um conjunto de leis sistematizadas que regulam o desenvolvimento e transformação próprios de um dado sector da realidade, tanto faz que seja social como natural.
Quer dizer, modo de produção - independentemente da concretização do sistema de leis coordenadas específicas mais gerais de cada sector teorizado - nem é uma categoria exclusiva da elaboração marxista nem constitui uma categoria restrita às ciências do homem.
É, no fundo, um soco epistemológico básico das ciências sociais e das ciências da natureza (18).
Trata-se de uma categoria teórica abstracta, sem a qual não se pode erguer uma disciplina científica.
Se Marx forjou este elemento científico nas disciplinas em que trabalhou, tal resultou da necessidade de passar a uma construção científica desenvolvida. Chamemos-lhe «modo de produção» ou adoptemos outra designação, do que se trata é da necessidade de descobrir e de enunciar as leis e as categorias mais gerais que regulam e explicam o movimento e transformação da esfera da realidade social, física ou biológica que se teoriza.
Quando, por exemplo, a Física das Altas Energias, ou tantos outros ramos que incidem sobre a estrutura da matéria, estudam a combinação e transformação das partículas atómicas, aquilo que procuram, e que num caminho extremamente complicado os investigadores vão atingindo, são as leis do «modo de produção da matéria», empregando até o método que recorre a vários tipos de aceleradores de partículas. E o caso - entre tantos outros - da interacção de leptões (electrões, muões e neutrinos), do aniquilamento de electrões e de positrões com produção de hardões de grande energia, de pares de leptões, etc..
Aliás, os especialistas usam até a palavra «produção», a fim de designar as transformações em que essas partículas surgem...
Na Biologia Molecular e na Bioquímica, graças às investigações desenvolvidas nos últimos trinta anos, tem-se avançado espectacularmente na formulação das leis que regem o «modo de produção da vida». Diz-se até que a célula de um organismo vivo constitui uma autêntica «fábrica dispondo de duas cadeias de produção: a síntese das macromoléculas e a das pequenas moléculas»; estas são sintetizadas pelo recurso a uma fonte extracelular de carbono e de energia através de complexas enzimas (metabolismo intermediário), ao passo que o ácido desoxirribonucleico (ADN), o ácido ribonucleico (ARN) e proteínas desempenham funções complicadas em que a macromolécula de ADN cumpre a função de regulação cibernética da reprodução e o ácido ARN a de «2.º mensageiro», reforçando o controlo, a fim de evitar erros de cópia...
Seja qual for a direcção da construção científica para que nos voltemos, encontramos no centro de uma teoria científica, naquilo a que poderemos chamar o seu «núcleo duro», um conjunto de leis inter-relacionadas que traduzem relações estáveis com os seus condicionalismos próprios que estão na base do aparecimento dos fenómenos naturais ou humano-sociais - tanto faz que se trate de elementos da estrutura nuclear da matéria como dos climas, de fenómenos meteorológicos ou geológicos, como de fenómenos biológicos; refere-se tanto à produção e reprodução das células vivas como à produção e reprodução dos sistemas sociais.
Não é realmente separável do trabalho científico a elaboração de conjuntos de enunciados que exprimam as relações geradoras dos fenómenos que se estudam, reguladoras da sua estabilidade relativa, das suas transformações genéticas, transformacionais, dialécticas.
Por isso se compreende que, para erguer o majestoso edifício das ciências sociais que Marx elaborou, tivesse sido indispensável encontrar essas relações sociais expressas naquelas que estabelecem as condições de estabilidade e de dinâmica transformacional da existência social do homem. Marx chamou a este sistema basilar de ordem teórica «modo de produção»; a designação pode estender-se aos domínios da natureza, sejam eles quais forem, tanto mais que o termo produção não tem de designar a actividade volitiva e dirigida a fins que é específica do homem (19).
Poderíamos, por fim, interrogarmo-nos acerca dos motivos que explicam que até hoje não tenha sido detectado o carácter epistemológico geral da categoria «modo de produção» elaborada por Marx.
Tal circunstância tem por certo causas múltiplas.
No que respeita à incompreensão da sua índole geral, válida, inclusive, para as ciências explicativas dos fenómenos da natureza, talvez se possa até invocar a tendência subjacente para restringir o significado de produção ao domínio das actividades dominadas pela vontade, pela orientação, tendendo a atingir dados objectivos pré-representados e abrangendo até possivelmente esquemas conscientes, sendo tudo isto eminente atributo da conduta humana.
Porém, as razões principais não residirão certamente nesta amputação semântica.
São de ordem intelectual e sobretudo ideológica.
Por um lado, resultam de um insuficiente domínio de indicações acerca da teoria do conhecimento científico.
Por outro lado, esta categoria da estrutura geral do conhecimento científico, moldada numa disciplina, apareceu no campo da vida humano-social, e foi exactamente concretizada e enunciada numa teorização em que se incluem as leis do modo de produção capitalista; uma vez que essas leis têm ainda no seu centro o enunciado do segredo da exploração capitalista e a inter-relacionação desta lei específica fundamental do sistema com os demais planos da vida social sob este tipo de organização da vida colectiva dos homens, resulta que tais leis não podem ser aceites pelas ideologias que defendem o sistema, em especial a sua manifestação dominante.
Daí que, por arrastamento, se assista à negação do próprio conceito de modo de produção: quando se fala nele como que instintivamente se estende um dedo acusador, proclamando-se que isso é marxismo no sentido de tradução ideológica do mundo, e não de leitura epistemológica. E isto sem invocar sequer a análise do sistema de leis que dão conteúdo a essa categoria na leitura teórica do marxismo... Aliás, já apontámos o carácter anticientífico da tentativa da sua substituição pelo conceito de «ciclo histórico» (20).
Concentramos as referências apenas nestas quatro categorias do conhecimento científico, das quais as três primeiras intervêm na definição estrutural de traços particulares deste género de cognição e a última respeita já à sua organização num corpo definido, isto é, numa disciplina; todavia, se não são certamente os únicos produtos do labor de Marx nesta dimensão, enfileiram, sem dúvida alguma, entre as mais significativas. Mais significativas porque fornecem quadros basilares de orientação do trabalho de construção teórica. Simultaneamente, como se acentuou repetidamente, compreendê-las e dominá- las propicia elementos nada desprezíveis de compreensão da obra científica de Marx. Ao mesmo tempo constituem armas poderosas na luta contra as críticas ao marxismo dirigidas desde posições não científicas, desde objectivos político-ideológicos. E isto é tanto mais relevante quanto é certo que naturalmente entre os inimigos do marxismo se adopta correntemente uma atitude crítica que se esforça por coonestar esses ataques invocando precisamente as regras do trabalho científico.
Embora o estudo aqui desenvolvido não pudesse atingir a vastidão possível, que aliás a importância da matéria aconselharia, devido aos limites de tempo inevitavelmente impostos, haverá pelo menos que fazer uma referência a outra dimensão da enorme contribuição intelectual de Karl Marx, dimensão que naturalmente se não pode dissociar da esfera que se acabou de considerar.
Infelizmente já não temos tempo para isso porque esse exame exigiria pelo menos uma exposição de dimensão semelhante à que se acabou de efectuar.
Seja no entanto ao menos permitido apontá-la.
A herança metodológica de Marx
I - Aspectos gerais
Se não podemos analisar com um nível de desenvolvimento semelhante ao levado até aqui a contribuição criadora de Marx no domínio dos métodos científicos, importa pelo menos deixar uma referência a essa contribuição.
É que, para além do interesse que esta dimensão do trabalho científico representa só por si, acontece ainda que entre estrutura do conhecimento científico (Epistemologia) e métodos existe evidentemente uma ligação indissolúvel.
Se toda a actividade humana exige o emprego de meios de acção, no campo cognitivo é óbvio que importa necessariamente construir e lançar pontes entre a actividade do sujeito e a realidade que se pretende conhecer. A própria etimologia da palavra método dá-o a entender: do grego meth = fim, meta + odos = caminho, via, quer dizer, «caminho para um fim».
Deste modo, no campo estrito do conhecimento (que é o campo da nossa observação), tanto existem métodos para elaborar o conhecimento corrente, como para construir o conhecimento filosófico, como ainda para elaborar o conhecimento científico. Estamos, evidentemente, a considerar este último.
Aquilo que o método, no fim de contas, exprime é a relação entre o sujeito e o objecto tendo na sua base a existência de uma unidade gnosiológica e ontológica em que a própria actividade subjectiva na construção teórica participa da objectividade, tanto pela sua origem material como pela expressão dessa materialidade (não lembrava Engels que a base da unidade do mundo é a sua materialidade?).
Sem essa unidade o conhecimento com um conteúdo de representações traduzindo com aproximação (e aproximação que historicamente é crescente) as propriedades e relações do meio que lhe é (relativamente) externo seria impossível, ao mesmo tempo que igualmente não poderia representar um processo da adaptação a esse meio.
Por outro lado, no desenvolvimento do esforço de construção das ciências, de qualquer ciência, não é possível utilizar unicamente um método, tanto mais que existem alguns que constituem elementos indispensáveis a qualquer elaboração deste género. Dada disciplina utiliza sempre um conjunto concatenado de métodos; e cada disciplina possui um sistema de métodos que tem de apresentar determinados particularismos, ainda que proventura admitíssemos em mais do que uma ciência exactamente a utilização das mesmas vias metódicas - o que sucederia então é que as organizariam de maneiras diversas. Estas notas são suficientes para antevermos a vastidão da problemática que confrontaríamos na hipótese de se desejar expor sistematicamente a contribuição de Marx neste domínio. É que efectivamente não se poderia limitar a proclamar e a caracterizar os diversos métodos forjados pelo autor de O Capital, tendo ainda de explicitar a sua «sistémica», quer dizer, a natureza das conexões estabelecidas entre eles, bem como entre esses métodos inéditos e outros já conhecidos, que evidentemente também Marx manuseou.
Ao sistema de método considerado assim na sua organização relacional chama-se frequentemente metodologia. Contudo, este termo pode ainda designar a explicação teórica dos métodos e dos sistemas de métodos, isto é, a teoria dos sistemas de métodos...
Na breve referência que se vai seguir, limitada a uma mera enumeração de métodos descobertos e utilizados por Marx no seu gigantesco esforço de construção científica, será fácil de discernir o sentido do emprego do vocábulo metodologia.
Acresce, finalmente, que qualquer metodologia utiliza vários tipos de vias de elaboração teórica. Seria quase inimaginável enumerar todos os métodos concretos manuseados pela concepção científica marxista, ainda que limitada à elaboração dos fundadores do marxismo-leninismo.
Por isso mesmo, havendo que distinguir métodos gerais de métodos regionais e de métodos particulares, a referência que se vai seguir limita-se aos primeiros, quer dizer, aos métodos susceptíveis de utilização universal em qualquer ciência do homem e da natureza. Deixaremos de lado os métodos válidos num círculo mais restrito como, por exemplo, nas ciências do homem, nas ciências da natureza, ou nas ciências lógico-dedutivas (métodos regionais); por maioria de razão nem sequer se recordarão métodos aplicados e/ou apenas aplicáveis a uma determinada disciplina científica.
II - Métodos gerais criados, desenvolvidos e aplicados por Marx
Terminaremos com a simples enumeração de métodos gerais forjados e utilizados por Marx, em particular na sua teorização geral da vida social, da economia, da história e da política.
III - Método dialéctico
Permite e é indispensável, a fim de estudar os fenómenos concretos no seu automovimento, no seu devir, encontrando as suas contradições internas. Com o método dialéctico, fugindo-se à visão simplista dos esquemas preconcebidos, como o da conhecida tríade «tese-antítese-síntese», o investigador tem de se debruçar sobre os aspectos, as relações e as formas de mediação operando no fenómeno estudado, e encontrar a expressão da sua necessidade, quer dizer, o lugar que ocupa na cadeia geral do desenvolvimento da realidade, como acentuou Lénine.
A este propósito Marx acentuava no posfácio à segunda edição de O Capital em 1873 que:
«O método dialéctico não só difere na sua base do método hegeliano como é mesmo o seu preciso oposto. Para Hegel o movimento do pensamento, que personifica com o nome de ideia, é o demiurgo da realidade, a qual não passa da forma fenomenal da ideia. Para mim, ao contrário, o movimento do pensamento não é senão o reflexo do movimento real, transposto e transferido para o cérebro do homem.»
Poderiam invocar-se muitos exemplos de aplicação deste método e dos resultados com ele obtidos na estruturação explicativa do movimento histórico, do movimento na sociedade capitalista e, em particular, do seu sistema económico, tal como Marx a elaborou.
IV - Método de subida do abstracto ao concreto (de pensamento)
No plano cognitivo o concreto é sempre um produto do pensamento, embora elaborado a partir das informações colhidas (e elaboradas, inclusive, ao nível sensorial-perceptivo).
A incompreensão deste método que Marx usou largamente, e a que se refere até directamente em muitas passagens das suas exposições, constitui uma das limitações fundamentais à compreensão das concepções científicas marxistas, dando também o flanco a críticas sem sentido. Recordamos, por exemplo, a denúncia do erro de começar pela análise da população que Marx avança na Contribuição para a Crítica da Economia Política, uma vez que na teorização não se pode partir da população em geral, mas construir a teoria da estrutura de classes da população, que representa uma abstracção indispensável para se subir a um concreto (teórico) mais desenvolvido, no qual podem intervir outras abstracções teóricas dentro do concreto que é, como diz Marx, «uma síntese de múltiplas determinações».
O abstracto teórico é uma etapa do desenvolvimento teórico; e o concreto de pensamento é um resultado por sua vez mola de arranque para novo desenvolvimento teórico, etc.. Mesmo na passagem de uma disciplina como é a ciência geral das sociedades (Materialismo Histórico) para a ciência de uma sociedade concreta no seu desenvolvimento (História), e desta ao enriquecimento daquele e assim sucessivamente, emprega-se este método, do mesmo modo que tem de se utilizar no interior de cada uma. Escreveu Marx que «o método de elevação do abstracto ao concreto não é para o pensamento senão a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto pensado...» (Contribuição para a Crítica da Economia Política, introdução geral).
V – Métodos de investigação e de exposição
A distinção entre estes métodos e a sua unidade dialéctica foram também descobertos e aplicados por Marx. Ao mesmo tempo, sucede aqui precisamente o que acontece com os métodos já mencionados no que diz respeito à necessidade da sua compreensão para captar a própria teoria marxista e para liquidar críticas que arrancam precisamente da sua ignorância... como o próprio Marx acentuou a críticos do seu tempo: «O processo de exposição deve distinguir-se formalmente do processo de investigação. Cabe à investigação apropriar-se da matéria em todos os seus pormenores, analisar as suas diversas formas de desenvolvimento e descobrir a sua ligação íntima. Realizada esta tarefa, mas apenas então, pode o movimento real ser exposto no seu conjunto.» (No posfácio à segunda edição alemã de O Capital.)
Significa isto que o investigador percorre um caminho metodológico até construir a teoria, por vezes com ziguezagues, pondo hipóteses, verificando umas, rejeitando outras, emergindo novas no decurso da pesquisa. Mas, na exposição científica, tanto faz que se trate de fenómenos da natureza como sociais, não vai certamente expor tudo isto. Vai apresentar o todo teórico na sua unidade interna logicamente desenvolvida, cujo fio condutor é a necessidade interna que traduz exactamente o seu carácter científico.
VI - Método do ponto de partida
Como expressão decorrente do método de exposição, Marx mostra que neste método não se pode arrancar de um aspecto teórico qualquer. Tem de se partir do elemento mais geral (e teoricamente mais pobre) que ocupe um lugar de arranque no desenvolvimento da necessidade interna.
Basta recordar o conhecido exemplo fornecido por O Capital, onde Marx começa exactamente pela análise da mercadoria. Este ponto de partida não foi arbitrário e só por si fornece indicações teóricas decisivas para a compreensão da teoria económica marxista.
Permitir-me-ia recordar a construção teórica que elaborei há anos, da teoria do modo de produção feudal a partir do estudo da sociedade medieval portuguesa, no qual considero aqui serem os «domínios» feudais-senhoriais o ponto de partida da teorização.
VII - Métodos histórico e lógico
Encontramos também na obra de Marx um exemplo altamente desenvolvido da aplicação destes dois métodos. Com efeito, o método histórico segue a realidade no desenvolvimento cronológico das suas diversas etapas, o que não quer dizer de forma alguma que constitua um método empírico. Significa que arranca de uma abstracção como que de primeiro grau, permitindo passar à formulação de leis gerais e abstractas e destas novamente a um enriquecimento concreto (de pensamento) mais elevado. Disse-se já que o método lógico é o método histórico essencializado, depurado.
O Capital ministra um bom exemplo do uso combinado destes dois métodos, na medida em que Marx utiliza a economia concreta capitalista mais desenvolvida do seu tempo (a inglesa), analisando-a nos processos do seu movimento (o método histórico) para chegar à elaboração da teoria geral do modo de produção capitalista pela utilização do método lógico.
Mas estes métodos são universais, aplicando-se também nas ciências da natureza; basta recordar a Astrofísica, em que do método histórico, análise, por exemplo, dos processos de formação das estrelas a partir de gás cósmico e da evolução dos diversos tipos de corpos estelares (método histórico), se passa à elaboração das leis astrofísicas gerais e abstractas que regem esses processos (método lógico) (21).
VIII - Outros métodos
Não poderemos ir mais longe. Frise-se, no entanto, que certamente as referências aqui registadas tão perfunctoriamente estão longe de esgotar a contribuição metodológica de Marx ao conhecimento científico.
Poderíamos, por exemplo, recordar que ao lado do método de explicação do superior pelo inferior, já utilizado por numerosos investigadores (a que hoje chamaríamos talvez com mais propriedade o método genético), Marx chamou a atenção e utilizou o método de explicação do inferior pelo superior, uma espécie de método genético ao invés. Frisou-o quando, por exemplo, escreveu que «a anatomia do homem é a chave da compreensão da anatomia do macaco»; com isto quis significar poderem existir situações em que somente quando a realidade atinge um certo nível de desenvolvimento é possível (ou é mais fácil) explicar os estádios iniciais do seu desenvolvimento. Este método é certamente de particular relevância no domínio das ciências do homem, dado o carácter particularmente complexo da vida social.
Poder-se-ia - e talvez se devesse - ir bem mais longe do que fomos nesta intervenção; ela liga-se à própria frente de luta pela apropriação teórica do mundo em que a contribuição de Karl Marx continua a ser uma mola fundamental que importa preservar dos ataques críticos anticientíficos e simultaneamente desenvolver criticamente.
Mesmo no plano geral da conquista teórica do mundo - uma batalha sempre renovada e que nunca terá fim - representa um dos alicerces do combate contra a redução do entendimento do objecto científico a uma mera fenomenoteca.
(*) Intervenção na sessão promovida pela Universidade Popular do Porto integrada no ciclo «O Marxismo no Limiar do Ano 2000» e realizada em 9 de Junho de 1983.
_______________ NOTAS:
(1) Haveríamos de gastar páginas e páginas se pretendêssemos tão-somente recordar um núcleo representativo dos estudos dirigidos à observação do património científico de Marx apoiado em indicações fornecidas pela filosofia das ciências desde uma perspectiva ela própria materialista dialéctica.
Essa larguíssima recensão multiplicar-se-ia talvez várias vezes se lhe acrescentássemos os estudos preocupados em descobrir e fundamentar as linhas endógenas das disciplinas concretas em que mais se projectou o labor de Karl Marx, diremos, em primeiro lugar, da ciência geral das sociedades, da economia, da história, mas também as suas contribuições no domínio da teoria económica das formações sociais históricas, da sociologia, da política (como ciência ou «politologia» na expressão adoptada nos nossos dias por alguns autores).
Esta situação, de resto, só por si dá a entender a importância que assume em todas as direcções o estudo analítico e crítico dos fundamentos do legado científico de Marx.
Sem com estas referências se pretender eliminar aquilo que é central em Marx, o revolucionário, transformando-o em mais um autor académico, mas porque toda esta referência se cinge à sua contribuição aos próprios fundamentos do conhecimento e da metodologia das ciências; procurando-se ainda tão-somente exemplificar com estudos dirigidos a este continente sem considerar sequer áreas conexas como as da história das ciências e da sociologia das ciências, basta recordar a vastidão dos estudos já existentes nos países socialistas (ainda que infelizmente não dominemos pessoalmente o conjunto dessa bibliografia, com excepção de um título ou outro que furou a barreira política, social e até linguística com que deparamos), de que poderíamos trazer à colação a obra editada em 1967 em Montevideu, Algunas Leyes del Conocimiento Científico, sob os auspícios da Academia das Ciências da URSS e em que colaboraram vários especialistas.
Já nos é mais fácil anotar trabalhos deste género publicados no mundo ocidental e que, aliás, Ernest Kaiser recenseava o ano passado em artigo inserto na revista norte-americana Science & Society (vol. XLVI, n.º 3, Fall, 1982, pp. 230-234, «Marxism and Science: An essay-review»). Predominando as referências a obras de autores de língua inglesa, aí figura, todavia, o livro de Marcel Prenant, Biologie et marxisme, 1938; Haldane, The Marxist Philosophy and the Sciences, 1939; J. D. Bernal, Marx and Science, 1952; Loren R. Graham, Science and Philosophy in the Soviet Union, 1972, sem esquecer uma série de livros de Himan Levy, como A Philosophy for a Modern Man, 1938, e Modern Science, 1939.
Destacar-se-ia em seguida uma série de estudos resultantes de congressos e outras reuniões a propósito de efemérides ligadas a Karl Marx. Se no nosso país, além das iniciativas em curso este ano sob os auspícios do Partido Comunista Português e da Universidade Popular do Porto, só temos notícia do «Colóquio Interdisciplinar sobre Marx - Economia e Filosofia», curiosa e significativamente da responsabilidade da Faculdade de Filosofia de Braga cuja direcção pertence à Companhia de Jesus revelando a sua sensibilidade crítica para com o marxismo (o colóquio teve lugar em fins de 1981 e as contribuições foram publicadas em dois números da Revista Portuguesa de Filosofia), já em 1967, quando passava o centenário da publicação do primeiro volume de O Capital, houve no Ocidente sessões deste género. Por exemplo, em França, a reunião levada a cabo de 11 a 20 de Julho de 1967 e cujos resultados foram publicados no livro Le Centenaire du «Capital» - exposés et entretiens sur le marxisme, Ed. Mouton, Paris, La Haye, 1969.
Ou então - outro exemplo -, aproveitando a circunstância de em 1968 se volverem cento e cinquenta anos sobre o seu nascimento, foi organizado um simpósio sobre os auspícios da UNESCO - «The Role of Karl Marx in the Development of Contemporary Scientific Thought» organized under the auspices of Unesco by the International Council of Philosophy and Humanistic Studies and the «Intemational Social Sciences Council», Paris, 8, 9, 10 may 1968». O livro com essas intervenções foi editado em Paris - The Hage pela Mouton e intitula-se Marx and Contemporary Scientific Thought. Estão aí, de entre os vários tipos de problemas abordados, alguns de carácter epistemológico geral (pp. 155, 168, 556), epistemo-regionais sobre as ciências do homem e epistemo-disciplinares, como acerca da Sociologia e da Economia.
(2) O nosso trabalho invocado no texto concentra-se, antes de mais nada, na obra em publicação, Teoria do Conhecimento Científico, Ed. Limiar, Porto, vols. 1 e 2, incidindo sobre a teorização do conhecimento humano corrente (1975 e 1978); inicia-se depois a teorização geral do conhecimento científico (ainda em desenvolvimento), vol. 3, 1980, vol. 4, 1982. vol. 5.º, 1987. A estas questões é dedicada também parte dos textos constantes de Problemas de Conhecimento do Conhecimento, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1981.
Acrescentaríamos (já numa perspectiva em grande medida de filosofia das ciências) os capítulos relativamente vastos constantes da obra A Evolução Económica de Portugal dos Séculos XII a XV vol. VI, Portugália Editora, Lisboa, 1967, capítulos XXV, («Princípios gnosiológicos gerais»), XXVI («Epistemologia geral das ciências»), XXVII («Epistemologia das ciências sociais e, em particular, da economia política e da história») e vol. VII, Lisboa, Portugália, 1968, capítulo XXVIII («Alguns aspectos fundamentais de metodologia das ciências»), e mesmo o capítulo XXIX («História económica e teoria económica das formações sociais históricas»).
(3) É imensa a bibliografia internacional sobre os fundamentos filosóficos da obra científica de Marx, bem como acerca da estrutura epistemológica do seu trabalho histórico, económico, no domínio da ciência geral das sociedades, da política teoricamente interpretada, da sociologia e em outras esferas, o mesmo ou quase se podendo acrescentar acerca da estrutura do seu labor metodológico.
Como mero exemplo, recordamos a exposição integrada neste ciclo, promovido também pela Universidade Popular do Porto, sob o título «Marx - fundador da Ciência da História».
(4) O sistema de explicação que propomos quanto à distinção científica entre «aparência» e «essência», com as respectivas leis, pode encontrar-se na obra Teoria do Conhecimento Científico, Ed. Limiar, Porto. No vol. 2 (de 1978), pp. 70-80 e 135, e notas do apêndice n.ºs XXIV a XXV, onde também se considera a concepção filosófica idealista ligada ao termo «essência». No vol. 3 essa teorização é levada a cabo numa tentativa sistemática e global (1980), pp. 125 a 135; e 135-182, notas XXI a XXXIX; para a sua caracterização e interligações, pp. 140-141 e 156-157; no que diz respeito à dinâmica das «essências» expressa na passagem a essências cada vez mais profundas, pp. 167 e segs.; quanto à análise do aparecimento de novos fenómenos dentro do campo do conhecimento científico já constituído, pp. 163, 164-166 e 172-173 e nota XXXVIII. No vol. 4 (de 1982), pp. 94-95; 98-101; 147-148, nota CV.
Na perspectiva filosófica (e para a sua distinção da perspectiva científica, cada uma com o seu campo de validade cognitiva própria), pode consultar-se a nossa síntese, «Epistemologia como filosofia das ciências e como disciplina científica», no livro Problemas de Conhecimento do Conhecimento, Lisboa, 1980, Ed. Assírio & Alvim, pp. 41-54; nessa perspectiva, a obra fundamental é por certo a de Lénine, nos chamados Cadernos Filosóficos, na parte de comentário crítico a Hegel; na edição francesa que utilizamos, Ed. Sociales, Paris, 1955, destacaríamos em particular pp. 75; 107-110, 120, 123, 139, 163 e 220.
(5) Como já foi notado, além da representação idealista objectiva hegeliana da correlação dialéctica entre aparência e essência, o próprio idealismo subjectivo que perfilhava Kant pôde, como sublinhou Lénine, tirar à dialéctica a aparência de arbitrário, destacando a objectividade da aparência (Die Objektivität des Scheins); de resto, acrescentou Lénine, «a aparência é o reflexo da essência em si mesmo» (Cahiers Philosophiques, cit., pp. 80 e 110). Veja-se ainda, por exemplo, Jean-Pierre Cotten, «Peut-on "isoler” Ia dialectique (lois, catégories et pratique sociale)?» in Sur Ia dialectique, CERM, Éd. Sociales, 1977, pp. 128 e segs..
(6) No curso da Universidade Popular do Porto que tivemos a cargo há dois anos, e cujo texto se encontra publicado (Lições de Economia, Ed. Caminho, Lisboa, colecção, Biblioteca Universidade Popular, n.º 1, 1982), adoptou-se como uma das linhas centrais da exposição esta mesma distinção epistemológica fundamental. Vejam-se, por exemplo, pp. 24-26 e 71, 87, 95, 103-104 e 137, entre outras.
(7) Como escreveu Nicolai Lápine ao estudar a obra do jovem Marx, no Manuscrito de 1843 encontra-se a concepção de ser «o objectivo de todo o verdadeiro conhecimento científico revelar concretamente a génese das contradições realmente existentes no seu próprio objecto para compreender a sua lógica interna» (Nicolai Lápine, O Jovem Marx, Ed. Caminho, 1983, p. 186).
(8) Karl Marx, Travail salarié et capital suvi de salaire prix et profit, Éd Sociales, 1968, p. 89.
(9) Passagens mais amplamente transcritas na nossa Teoria do Conhecimento Científico, vol. 3, cit. nota XXIII. Encontram-se, respectivamente, no livro III, Capítulo XVIII (vol. VI das Éditions Sociales, p. 322, e vol. VIII, p. 196).
(10) Mencionado por Gérard Duménil, Le concept de loi économique dans «Le- Capital», Ed. Maspero, Paris, 1978, p. 267, obra onde, aliás, se podem colher diversas indicações a este respeito.
(11) O nosso estudo referido no texto acerca do conceito de lei cientifica bem como sobre alguns dos seus principais tipos, consta da obra A Evolução Económica de Portugal dos Séculos XII a XV, vol. VI, Portugália Editora, Lisboa, 1967, capítulo XXVI, n.ºs 6 e 7, pp. 271 a 350 e 528 a 534.
(12) Ed. Caminho, colecção Biblioteca Universidade Popular, Lisboa, 1983, pp. 172-173.
(13) Gérard Duménil, Le concept de Ioi économique dans «Le Capital», Ed. Maspero, Paris, 1978, cit..
(14) Karl Marx, 11.ª tese sobre Feuerbach.
(15) Entre os impulsionadores da Teoria Geral dos Sistemas ou Teoria dos Sistemas Gerais encontra-se o biólogo Ludwig von Bertalanffy e o número dos seus especialistas tem crescido largamente, havendo até organizações científicas dedicadas a este novo ramo. Não podemos alargar esta indicação. Registar-se-iam unicamente dois pontos. Um deles é que estes teóricos acentuam a existência de sistemas gerais na vida social, como, por exemplo, o próprio Bertalanffy, tanto na sua General System Theory de 1969, como em outros trabalhos, de que recordaríamos o estudo «General system theory - a critical review» na obra colectiva Modern Systems Research for the Behavorial Scientist, Chicago, 1968, pp. 26-30, a propósito da História.
A segunda observação reside em que, podendo reconhecer-se algo paradoxalmente que a totalidade é «mais do que os seus elementos separados» (diríamos, talvez melhor, que é diferente) também, como em estilo de provocação intelectual afirmou Edgar Morin, «o todo é menos do que as partes», se com isto quisermos acentuar que na totalidade desaparecem certas qualidades de cada uma das partes que o compõem (Morin, La méthode - I - La nature de Ia nature, Ed. du Seuil, 1977, pp. 112-115 e 128-129).
(16) Trata-se daquilo que no meu trabalho de construção científica do conhecimento científico designo por «hierarquia epistemológica» dos objectos científicos.
(17) G. Lukács, Histoire et conscience de classe, p. 47.
(18) Seja permitido recordar que, além da teorização social e histórica, tanto abstracta como aplicada (histórica), em que temos trabalhado a categoria modo de produção, vimos sublinhando a natureza da sua estrutura epistemológica em sucessivas referências: A Economia Portuguesa do Século XX (1900-1925), Ed. 70, Lisboa, 1.ª ed., 1973, pp. 17-37 (e sobretudo pp. 26-27 e 28) e 189-194 da 3.ª edição (1979); História Económica de Portugal, vol. 1 (introdução), Ed. Caminho, Lisboa, 1.ª ed., 1978, 2.ª ed., 1980, pp. 42 a 50, 147 a 150 e 169 a 171, notas 43 e 50 do apêndice, onde se assinala em particular a natureza epistemológica do modo de produção; estudo para a edição de colaboração colectiva dedicada a Marx sob o título A Contribuição de Karl Marx à Teorização Geral do Conhecimento Científico, Santiago de Compostela, Galiza (no prelo).
(19) Noutro estudo sobre a contribuição de Karl Marx para a epistemologia invocamos o testemunho trazido a outro propósito por Edgar Morin quando acentua que produção significa qualquer interacção criadora, acrescentando: «[...] Deste modo as estrelas e os seres vivos [...] produzem o ser e a existência a partir de materiais brutos.» (In La méthode - La nature de la nature, Ed. du Seuil, Paris, 1977, p. 158.).
Não precisaríamos, porém, de recorrer a este testemunho filosófico, visto que, conforme se acentuou no texto, encontramos o uso do vocábulo neste sentido por parte dos próprios cientistas, incluindo físicos nucleares e biólogos. E poderíamos acrescentar muitos outros como, por exemplo, por parte dos especialistas de Astrofísica.
(20) Armando Castro, História Económica de Portugal, Ed. Caminho, Lisboa, 1980, 2ª ed., pp. 284-285.
(21) Num livro publicado em 1968 tentámos uma síntese geral da teoria metodológica, ainda que sob a perspectiva das ciências sociais ou do homem. Confrontar A Evolução Económica de Portugal dos Séculos XII a XV, Lisboa, Portugália Editora, vol. VIl, capítulo XXVIII, pp. 19 a 127 e 437 a 441, capítulo com o título «Alguns aspectos fundamentais de metodologia da ciência».
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