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Para uma sociologia da literatura portuguesa
António José Saraiva (*)
I Muitos críticos portugueses se têm deixado impressionar pela separação e impermeabilidade, em Portugal, da literatura culta e da literatura popular; para falar com mais propriedade: do escritor e da massa da população. Os românticos fizeram desta questão um cavalo-de-batalha; e Garrett procurou, no Romanceiro e em outras obras, ressuscitar uma literatura popular, criar uma consciência literária nacional, étnica, folclórica. A língua escrita, nas mãos do mesmo Garrett, pretende aproximar-se do português falado, conservando, aliás, certo sabor quinhentista, dir-se-ia que para manter um carácter histórico, tradicional, superior à contingência do tempo. Nas Folhas Caídas a poesia é moldada em metros simples, frequentemente na tradicional redondilha.
Esta tentativa de Garrett achou continuidade na vasta obra de Teófilo Braga, que é o verdadeiro teorizador e crítico encartado do romantismo tal como Garrett o concebera. Todos sabem como o preconceito etnológico vicia a obra de Teófilo. Nos seus primeiros livros leva este preconceito a atitudes extravagantes, como a de condenar, em nome de uma tradição literária genuinamente nacional, toda a literatura latinizante e mais ou menos erudita, que a teria feito desaparecer quase sem vestígios. Esta conclusão do critério etnológico é caricatural e põe bem àmostra a sua inanidade e falta de fundamento. Toda a literatura portuguesa - notou Antero - é condenada, em massa, por esta noção de que há uma literatura genuinamente nacional e uma outra culta, clássica - e espúria. Aplicado à literatura portuguesa, o critério etnológico dá fracas provas.
E, por outro lado, é para considerar este caso interessante: o iniciador e patriarca deste folclorismo, o primeiro entusiasta da literatura nacional, popular, genuína e espontânea como as flores, é, afinal, um dos escritores mais cultos, mais clássicos, mais factícios, mais compostos, mais eruditos, mais produto do savoir faire literário de que há memória em Portugal. Garrett faz prosa falada com a mesma facilidade com que faz verso arcádico. Quando é preciso também faz linguagem quinhentista (no Frei Luís de Sousa), e com um êxito que tem entusiasmado os filólogos. Inclusivamente fez, também, inventou, até certo ponto, corrigiu e imitou romances populares, com aquele sentido de composição que era, juntamente com uma extraordinária plasticidade, um dos seus melhores dotes.
Contradição edificante. A valorização da literatura folclórica nacional é iniciada por um dos nossos mais clássicos e mais artificiosos escritores; e, colocada no plano da crítica erudita, conduz à eliminação, praticamente, de toda a literatura portuguesa cujo interesse não seja restritamente local.
Mas nem por isso deixa de ficar de pé aquele facto contra o qual os românticos lutaram sem resultado: a sequestração dos escritores em relação à massa da população; a impermeabilidade de duas literaturas: a literatura culta, de interesse universal (quando o tem), e uma literatura regional, quase inexistente, cuja vida não ultrapassa os limites do concelho ou da província. Garrett tentou universalizar certos temas da literatura local, como o de S. Frei Gil, à semelhança do que sucedera com a lenda do Dr. Fausto, universalizada por Goethe. Todos sabem como a tentativa se malogrou: o S. Frei Gil de Garrett não é mais que um fantoche convencional, pretensamenite macabro, produto de imitação. E, mais tarde, o S. Frei Gil de Eça não passa de um exercício de estilo.
E, malograda esta tentativa de Garrett, a literatura portuguesa prosseguiu aquele movimento que a conduzira já à literatura do classicismo. O escritor encerra-se cada vez mais no seu estreito círculo; restringe-se progressivamente o âmbito dos seus interesses; ganha importância cada vez maior o virtuosismo técnico. O espectáculo da nossa literatura do século XX lembra de certa maneira o do século XVI. Não é por acaso que sentimos muito próximo de nós (mais, por exemplo, que o de Garrett) o lirismo camoniano; ou que ganha sentido a dialéctica sentimental de Bernardim Ribeiro. O parentesco de Bernardim e Fernando Pessoa parece evidente a vários conhecedores, e é sabida a influência directa e forma! de Camões sobre Régio. O gongorismo - durante muito tempo uma incompreensível aberração - foi reabilitado no segundo quartel deste nosso século (1). E a poesia portuguesa atingiu hoje um alto grau de virtuosismo e vive - como se sabe - das predilecções de um grupo restrito de iniciados. Não é só a poesia, aliás, que nos oferece este espectáculo (2). Uma minúscula república das letras entretém a sua vida e as suas questões de filigrana longe dos barulhos da rua e dos problemas vitais e morais de toda a gente.
Podem responder-me que este quadro é incompleto porque lhe falta o romance de Redol ou Soeiro Pereira Gomes. Mas este romance não acrescentaria grande coisa ao quadro; em primeiro lugar, porque se explica, como é sabido, pelo impulso do moderno romance brasileiro (Jorge Amado à cabeça) e tem, portanto, o seu centro de gravidade fora da acima mencionada republicazinha das letras; e, em segundo lugar, a verdade é que esse romance apresenta um carácter demasiado particular e não chega (ao contrário do que sucede com Jorge Amado) a alcançar interesse universal, ou sequer nacional. É uma reportagem excelente de certos aspectos da vida portuguesa: falta-lhe ainda a universalidade da verdadeira obra de arte (3).
II Ora, não é a primeira vez que se realiza este estado de coisas. Já a poesia do século XVI foi uma literatura para iniciados. Bernardim Ribeiro pertenceu também a uma republicazinha das letras, que deixou no Cancioneiro, de Resende, o seu testemunho colectivo. A corte e a sua vida mundana, as subtis intrigas amorosas de palácio, são o ambiente restrito onde o escritor colhe a sua experiência e encontra interlocutores. Tem sido muitas vezes notado o curioso facto de os Descobrimentos e conquistas ultramarinas quase não encontrarem repercussão entre os poetas do Cancioneiro Geral e seus sucessores. Não há qualquer ponto de contacto, por exemplo, entre Bernardim Ribeiro e os interesses sociais da sua época - e Bernardim é um caso atípico. Ora, este estranho caso só se explica se notarmos que o escritor, então como agora, vivia separado do público - melhor, movia-se dentro de um público especial, iniciado - e que entre esta aristocracia de letrados e os problemas de toda a gente não havia comunicação. Os vindouros hão-de notar, com a mesma estranheza, a ausência, na poesia portuguesa do século XX, de uma repercussão dos problemas nacionais contemporâneos.
Ao lado desta aristocracia há, entretanto, no século XVI, uma corrente de viajantes e cronistas que nos contam o que viram e ouviram nessa vida ruidosa, cujos ecos chegam amortecidos e ténues ao idílio sereno dos poetas líricos. Mas note-se: estes viajantes e cronistas, que às vezes são piratas, como Mendes Pinto, outros funcionários coloniais, como Gaspar Correia, soldados, como Couto, embarcadiços, como Vaz Caminha, não pertencem nem pensaram nunca pertencer à tal republicazinha das letras. É outro o público que os solicita a registarem a sua experiência pessoal num estilo que é às vezes expressivo, mas tosco e primitivo em comparação com o virtuosismo dos literatos propriamente ditos. Mais tarde, no século XIX, as expedições africanas deram origem a uma literatura do mesmo tipo (De Angola à Contracosta, por Capelo e Ivens, etc.), que, como sabemos, não pertence à «literatura» propriamente dita e cujo público não é o dos literatos. E num e noutro caso, no século XVI e no século XIX, também essa produção não deu de si mais que boas reportagens, sem atingir a universalidade da arte.
Agora note o leitor o seguinte. O nosso lirismo quinhentista representa uma tradição secular. Os problemas amorosos de Camões são precedidos dos de Bernardim, o qual se integra no Cancioneiro Geral e supõe o romance de cavalaria e o lirismo trovadoresco. Há um desenvolvimento coerente dos temas desde os trovadores a Camões. Camões aparece como alguma coisa de lógico em relação à literatura que precedeu: dir-se-ia que encontramos nesta sequência a literatura portuguesa genuína e tradicional. Isto ao contrário do que sucede com a literatura dos Descobrimentos, que é uma irrupção sem precedentes e sem consequentes.
E há uma coisa curiosa neste desenvolvimento lógico dos temas que vem desde os trovadores: é que ele se faz segundo uma lógica interna, como se estivesse preservado da acção de agentes externos, fechado num tubo de ensaio. Bernardim põe o problema da mudança e sua contradição com o amor - absoluto e, como tal, imutável. Camões põe-no de novo e resolve a contradição colocando o objecto do amor no mundo inteligível - na beleza, emanação divina -, imutável e absoluto. E, por outro lado, há um parentesco evidente entre Bernardim e os trovadores. Certos problemas psicológicos postos por D. Dinis serão mais tarde problemas de Avalor, herói da Menina e Moça. Quer isto dizer que há nesta corrente literária uma sequência interna e sem relação com os acontecimentos que agitaram a vida nacional - a conquista, as guerras da independência, a expansão. Na fluência fácil deste rio, Fernão Lopes surge como um caso imprevisto e excepcional e explica-se, segundo creio, por certas circunstâncias ocasionais. E também um caso sem precedentes e sem consequentes, porque Zurara, o cronista da aristocracia, o clerc de linguagem afectada, não é, evidentemente, o seu continuador.
Este mesmo desenvolvimento lógico (passe a palavra) é o que, pela progressiva esquematização dos temas - formalizando-os, elevando-os ao plano da pura expressão sem expressionado, reduzindo as coisas a um jogo formal, dentro de uma redoma de vidro -, conduz à prosa do século XVII e à poesia cultista. O poeta é agora tanto maior quanto mais insignificante é o assunto. O assunto zero é o limite para que tende esta arte, porque aí se veria a virtuose de forma pura. Assim se teria realizado (no éter!) o ideal de uma restrita sociedade de conhecedores preciosamente abrigados do contágio das emoções impetuosas de uma multidão ondeante. O preciosismo tem o seu meio social adequado.
III Mas a partir do século XVIII o espectáculo é outro. Não assistimos mais àquela sequência de temas em desenvolvimento, mas, pelo contrario, a uma série de estratificações paralelas e como que eruptivas. Verney é a primeira irrupção trazendo de fora alimento e vitalidade a uma nova literatura (porque a antiga morrera na carcaça do formalismo); o romantismo de Garrett e Herculano, entrado com a emigração, é a segunda camada, que se esgota no formalismo ultra-romântico e à qual sucede, vinda de fora também, sob a inspiração da moderna escola histórica, a geração de 70. A de 90, que a si própria se chamou «nacionalista», coincide com o formalismo de Eça de Queirós na última fase da sua obra, com o garrettismo tradicionalista e paisagístico de Ramalho, e corta a continuidade do impulso da geração precedente. A geração de 1915 (os futuristas) é ainda uma nova estratificação.
Em lugar de uma sequência de temas, encontramos, pois, inconsequências. Parece que falta a esta actividade literária uma base larga e segura, ou a mola interior. Há cortes sucessivos, rupturas de equilíbrio, de geração para geração. Isto parece vir de que o escritor não se apoia numa massa que pela sua ponderação lhe dê um centro de gravidade, num público médio, estável e amplo. Pelo contrário, as republicazinhas das letras viram como cataventos aos sopros vindos de fora. Cada autor europeu em moda conquista uma pequena aristocracia inconsistente e sem raízes colectivas, impõe uma escola.
A evolução individual de certos escritores fornecer-nos-ia dados interessantes sobre este problema da relação do escritor com o seu meio. É significativa, por exemplo, a história de Eça de Queirós. Ele começa a série dos seus romances por um estudo da burguesia provinciana. Mas, segundo ele próprio declara numa carta, esse romance é «mais adivinhado que observado». O contacto do escritor com o meio que descreve é muito superficial; a sua experiência pessoal da vida portuguesa não ia muito além do Chiado. O pior é que as condições em que o escritor viveu parecem agravar esta situação. A partir de certa data vemo-lo queixar-se, na Correspondência, de que a ausência da Pátria o obrigava a trabalhar de cor e a considerar como provável a sua evolução para o conto fantástico (o que vem, efectivamente, a suceder nas Últimas Páginas). Eça tinha a noção, como se vê, das próprias limitações; mas o facto significativo de ele ter começado a sua obra, por um livro de fantasia pura ou estilo puro - as Prosas Bárbaras - faz-nos desconfiar de que as desculpas que apresenta não são realmente mais que desculpas. Numa evolução constante, ele foi restringindo o meio social a que a sua obra se refere e acabou, fazendo exercícios de estilo, caminhando para uma nova espécie de gongorismo. O Crime do Padre Amaro; Os Maias—romance da alta burguesia do Chiado, do Grémio Literário e da Havanesa; A Ilustre Casa de Ramires - onde a vida de um fidalgo solitário e desenraizado na sua própria terra tem por contraponto a evocação fantástica de uma Idade Média romântica; Correspondência de Fradique Mendes - personagem impossível e inverosímil no meio social português, descentrada, sem terra e sem problemas humanos propriamente ditos; A Cidade e as Serras - bocado da terra portuguesa gozado por um parisiense impermeável aos problemas sociais e económicos dessa mesma terra, que para ele não passa de um espectáculo agradável e pitoresco; Últimas Páginas, são os marcos principais desta evolução implacável. O escritor vai-se progressivamente insulando e o círculo dos seus interesses reduzindo. Pode dizer-se que nas suas últimas obras ele não corresponde a qualquer movimento sério de opinião e que os seus interesses morais são consideravelmente restritos. E, no fundo, a fase propagandista da sua obra não é mais talvez que um figurino adoptado por algum tempo e que não corresponde realmente às tendências profundas do escritor nem à sua equação com o agregado colectivo de que faz parte. Eça de Queirós é transitoriamente empolgado por uma ideologia de élite, contra a qual reagiu um estado de coisas que permanecia intacto e inerte: uma educação e um determinismo social preexistentes.
IV Põe-se, todavia, um problema: como se explica este contraste entre o que podemos chamar a primeira e a segunda fases da literatura portuguesa, a saber: a tradição constante e persistente que vai do século XIII ao século XVII e a inconsequência desnorteada das várias escolas e grupos nos séculos XIX e XX? Como podia o mesmo condicionamento social dar de si estes dois produtos opostos?
Devo recordar aqui um facto importante, não tanto de natureza social como política: até Verney e os árcades, a literatura portuguesa é uma província da literatura peninsular. Não se pode compreender o Cancioneiro Geral sem o Cancioneiro de Biena, nem Gil Vicente sem Encina, nem Camões sem Garcilaso, etc.. A cultura dos letrados e das cortes portuguesas era então peninsular, e os nossos escritores eram bilingues. Ora, foi este facto que, se não estou em erro, assegurou entre nós a persistência de uma tradição lírica.
Com efeito, o lirismo trovadoresco, que teve o seu principal centro no Noroeste da Península, espalhou-se pelas cortes de Espanha. Era um lirismo especialmente propício à vida de salão e de corte. Aí se cruzou com as primeiras sementes do novo estilo vindo de Itália, cruzamento fácil, porque tanto Petrarca como os sucessores dos trovadores galaico-portugueses provinham, pelo menos parcialmente, do lirismo provençal e tinham temas comuns. Isto passava-se nas cortes da Península, onde os poetas exaltavam o amor do infeliz Macias.
Entretanto, em Portugal chegava-se a um momento crítico. A guerra da independência, colocando face a face a velha aristocracia do sangue e os burgueses das grandes cidades, originou a derrocada dos antigos quadros sociais e deu acesso a uma nova aristocracia de interesses económicos e morais inteiramente novos. Fernão Lopes é o cronista da nova aristocracia, que ainda então se não constituíra em classe fechada, mas estava presa à revolução colectiva que lhe dera o acesso ao poder. Durante um momento parece que a nação ganha voz e consciência literária nas obras do cronista. Há entre ele e o «povo» a quem se dirige um sincronismo muito claro. E aquela amaneirada poesia de sala, a linguagem cheia de jogos e subtilezas que se falava na corte de D. Dinis, ou os amores perfeitos dos cavaleiros andantes que entretêm a corte de D. Fernando, andam emigrados pelas cortes de Castela e Aragão. Na corte de D. Duarte, uma literatura grave, máscula e prosaica, acompanha as crónicas de Fernão Lopes. Também os costumes são outros: a gravidade conjugal sucede aos devaneios de D. Dinis e aos amores romanescos de D. Pedro e de D. Fernando.
Mas, passado o momento crítico, as coisas voltam ao antigo equilíbrio. A antiga aristocracia, em grande parte restabelecida, assimila os elementos novos, e, de resto, o equilíbrio social não foi, de facto, modificado. O abalo foi passageiro. O antigo tipo de literato, insulado, académico, dialecta, regressa à corte portuguesa, e a velha tradição lírica dos trovadores, momentaneamente emigrada, volta à casa paterna. Agora é nas cortes de Castela que se situam os verdadeiros focos da cultura peninsular; lá se continuou a tradição lírica; o castelhano é a língua literária por excelência e todos os nossos escritores a falam. Está em Castela o centro de gravidade dos nossos letrados. Eles limitam-se, portanto, a continuar uma tradição lírica, que realmente não se interrompeu e a que uma grande massa de escritores peninsulares dá estabilidade. Daí aquela coerência, a que já me referi, no desenvolvimento ininterrupto dos temas do século XIII ao século XVII.
E é preciso ainda anotar esta história com um facto importante. Este contacto com a literatura castelhana é um contacto de corte a corte. A literatura castelhana tem uma dupla face: a aristocrática (Santillana, Juan de Mena, Gôngora, Calderón) e a popular (comédias populares, romance picaresco). Ambas se encontram na obra de Cervantes. Nós mantivemos contacto apenas com a face cortesanesca e aristocrática, isto é, o lirismo de Santillana, Manrique, Mena, Garcilaso, Gôngora, exactamente porque a nossa cultura literária era uma cultura de corte. A assimilação do teatro de tipos e caricatura (Gil Vicente) é ocasional e sem continuidade.
A existência, portanto, de uma corte como ambiente de letrados (desde D. Sancho I a D. Manuel I, com o intervalo dos reis burgueses D. João I e D. Duarte), por um lado, e, por outro, a inserção no todo homogéneo da literatura peninsular, parecem-me a explicação da aparente genuinidade e da coerência real da nossa literatura até ao século XVIII, no desenvolvimento das suas formas e temas. Em contraposição, a partir de Verney, não encontramos mais aquela cultura de corte, de que o Cancioneiro Geral nos deixou um tão significativo documento. A genus vatum dispersa-se por Coimbra, Lisboa e Porto e, sem raízes na vida colectiva, vai lançar as âncoras dos seus barcos viajeiros na Inglaterra, na França e na Alemanha.
V Ora, sucedeu que esta mesma observação que estou fazendo foi também feita a certa altura, já depois de Garrett, precisamente por um grupo de neogarrettianos, que a si próprios se intitularam nacionalistas: Alberto de Oliveira, Agostinho de Campos, Júlio Dantas, Malheiro Dias, Correia de Oliveira, Antero de Figueiredo, Lopes Vieira.
Estes homens disseram um dia: «Para que estamos a procurar fora da pátria os temas, as ideias e os modelos? Nacionalizemos a literatura, busquemos na nossa própria terra e na nossa própria história as fontes de inspiração.» Era isto no tempo em que o garrettismo paisagístico de Ramalho triunfava sobre o pensamento reformador que dera origem às Farpas e o parisiense Jacinto vinha visitar as suas quintas de Portugal e as achava deliciosas.
E curioso registar de que maneira esta geração foi burlada pelo condicionalismo social a que nos vimos referindo. Com efeito, em que consistiu o nacionalismo literário? Numa coisa inesperada, senhores: na evocação de um século XVIII galante e punhos de renda, em personagens e fatos de opereta (O Amor em Portugal no Século XVIII; A Paixão de Maria do Céu), na recordação de figuras e amores lendários (Inês de Castro, D. Sebastião), para deliciar os ócios de eruditos e desocupados leitores, na admiração das belezas da paisagem portuguesa por dedicados veraneantes como Jacinto, na reconstrução de castelos caídos para embelezar as colinas. Assim, nacionalismo tornou-se sinónimo de turismo, para este grupo de 1890.
Ora, que há de comum entre estes turistas e os problemas e sentimentos reais da massa do País? Que é que tem que ver o camponês com o senhor letrado que geme nos choupais de Coimbra as tristezas de Constança (esposa de D. Pedro I)? Ou com aqueloutro que pára admirando o pitoresco dos farrapos de um indivíduo que anda a tratar da sua vida como pode? Ou ainda com aquele poeta que canta em estrofes entusiásticas a resignação da boa gente que lhe trata das vinhas e dos olivais? Evidentemente que não há nada em comum entre poetas como Lopes Vieira, romancistas como Malheiro Dias e os problemas propriamente chamados nacionais.
O curioso é o lema de nacionalismo literário que esta geração se atribui a si própria como se a vida nacional e os problemas nacionais fossem de facto a sua preocupação. «País lilás, desterro azul», essa é a verdadeira pátria dos turistas, que, como Dante, desfrutam o Inferno a bordo dos seus confortáveis barcos. Falta-lhes o que Dante tinha: a emoção humana diante do espectáculo, porque para estes o espectáculo é divertido.
Verificamos, portanto, este paradoxo: a escola ou geração literária que entendeu prescindir do contacto com a cultura estrangeira e recorrer aos temas nacionais isolou-se da vida colectiva nacional a um ponto que a geração precedente nunca tinha conhecido.
VI Parece, portanto, verificar-se como lei da actividade literária portuguesa a existência de uma restrita élite de letrados debatendo internamente os seus problemas ou interesses mentais especiais e desligados da vida colectiva comum. Condições políticas diferentes agindo sobre esta estrutura social ora centralizam na corte dos reis os homens de letras, ora os dispersam em grupos, insulados como ilhas num mar. Julgo que as características dominantes da nossa história literária resultam claramente deste condicionalismo.
Uma dessas características diz respeito aos géneros literários: ausência de teatro, pobreza de romance, abundância e profundeza do lirismo individual. Por outras palavras: atrofia daqueles géneros que dependem intensamente de um público largo, hipertrofia daqueloutros que supõem o indivíduo isolado.
Outra das características a que me refiro é a própria tendência fundamental da literatura portuguesa: o classicismo, se por esta palavra entendermos perfeição formal e estilística. Já nos trovadores é bem clara a nitidez dialéctica da linguagem, a selecção vocabular, a transparência da frase, em suma, o domínio da expressão, que caracteriza também a prosa (já muito culta, a meu ver) das primeiras traduções da matéria de Bretanha. Camões é um clássico, também no sentido estilístico. A perfeição formal é o único interesse dos prosadores monásticos do século XVII. Garrett é um artista inultrapassado na factura do verso e da prosa. Eça de Queirós é outro grande manejador da língua. E frequentemente este esmero da expressão, requintando-a, dá de si um estilo à procura de assunto, como se verifica particularmente em Fialho e em certas páginas de Aquilino Ribeiro. O escritor português apresenta-se ao público em trajo de cerimónia, bem engravatado, com os punhos compostos. Isto não revela só o aristocracismo dos habitantes da república das letras, mas também a falta de tensão psicológica e o culto lazarento de quem não tem muita pressa e se entretém polindo, cunhando com esmero a mercadoria, que de facto não tem grande freguesia. É o vagar cerimonioso e cortês próprio dos homens de uma ilha pequenina, de gente estabelecida e bem educada, que nenhuma agitação de fora consegue perturbar.
Bem sei que me podem responder com o exemplo de Camilo. E realmente vale a pena considerar o exemplo deste grande escritor malogrado. O malogro de Camilo só se explica por condições sociais adversas. Certas páginas das Novelas do Minho (a primeira parte, por exemplo, da Maria Moisés) revelam um escritor penetrável ao meio, com o interesse centrado na própria vida ambiente; e o seu estilo é sóbrio. Mas o drama de Camilo foi ter toda a sua vida de sujeitar-se ao convencionalismo sentimental de certos meios literários, ou semiliterários. Faltou-lhe o apoio de uma crítica larga e sobejou-lhe o encorajamento da sensibilidade literata em moda. Por isso o que há de autêntico na sua obra - um certo realismo que não é de escola, o sentimento épico da vida do camponês na sua miséria e na sua força natural, alguma coisa, leitor, que eu neste momento não posso definir exactamente - tudo isto que se nos revela a espaços - ficou sepultado debaixo de montes de sensibilidade convencional e postiça pedida pela burguesia literata do Porto (sobretudo).
E os seus engravatados sucessores na republicazinha puderam com certo motivo meter a ridículo este homem que um meio hostil contorceu e deformou.
VII Agora um esclarecimento pacato a algum leiltor mais atento.
Talvez esse leitor tenha sorrido desta minha preocupação de que o escritor há-de preocupar-se com problemas do seu país ou do seu meio. Deixemos o escritor em paz, no sossego do seu trabalho. Cada homem faz nessa vida a tarefa que lhe compete, e seria triste obrigar uma pessoa, só porque escreve, a intervir na política ou a estudar economia. O escritor, escrevendo, cumpre a sua obrigação para com a vida.
Muito bem, leitor. Simplesmente isso que tu podes ter pensado é que não vem nada a propósito deste arrazoado. Absolutamente nada.
Repara, com efeito, que eu considerei o escritor como um produto de um estado de coisas que condiciona a sua vida e a sua arte. Não lhe atirei responsabilidades. Simplesmente sugeri que esse estado de coisas restringe os seus temas, limita-o nos seus interesses. A sua arte seria outra se o seu condicionamento fosse diverso. O escritor português é levado ao ensimesmamento e à sobrestimação do estilo. Ele não tem culpa disto, porque é a vítima das circunstâncias. E obrigá-lo, para romper este círculo de ferro, a estudar economia política, seria a pior e a mais inútil das crueldades.
Mas dir-me-ão - V. parece tomar partido nesta questão. Diz que o escritor é «vítima», sugere que a sua arte é prejudicada pelo condicionalismo social. Ora, porque não há-de reconhecer o valor de um lirismo ensimesmado? Não falamos já nesta questão de estilo parasitário, porque V. pode ter razões fortes para pensar que um estilo que ganhou valor autónomo em relação à coisa expressionada deixou de desempenhar a sua função natural. Mas donde vem essa sua atitude depreciativa em relação ao lirismo?
Aceito a discussão. Vejamos, pois.
Em primeiro lugar, eu não deprecio o lirismo, o que seria absurdo. Mas parto deste critério, que me parece incontestável: toda a actividade pensante ou artística resulta de uma equação: do nosso eu com as coisas, do nosso eu com os eus dos outros. O indivíduo define-se em função do meio físico e social; o subjectivo é função do objectivo: são dois termos que não se compreendem um sem o outro. Ora, em virtude daquela constante a que podemos chamar «lei da insulação», o escritor português tende a restringir o mundo objectivo em função do qual o seu eu se define. Dir-se-ia (se essa expressão fosse possível) que a sua equação tende a reduzir-se a um termo único: o termo subjectivo. Mas, chegado a este ponto, não há equação, nem pensamento, nem subjectivo; há apenas nada dentro da carcaça da literatura que é o estilo parasitário. Assim se explica o gongorismo. Se não estou em erro, é neste sentido que tende a encaminhar-se a nossa actividade literária, e por isso atribuo tanta importância a esta questão da relação do escritor com o meio social. Quanto mais amplo este meio, tanto mais rico, concreto, variado o eu e a poesia do escritor; quanto mais restrito o meio, tanto mais subtil e formal aquela. O escritor português equaciona com um meio reduzido em extremo. A sua experiência objectiva é mínima. Daí vem, ao mesmo tempo, a hipertrofia do lirismo e a tendência formalista.
E como pode esperar-se uma literatura nacional se o escritor está insulado no seu próprio país? Quando vive numa estufa convencional de temas importados, estilizados, literatificados - no país lilás do desterro azul?
A republicazinha das letras arrisca-se a ficar entregue aos seus inocentes devaneios, enquanto nós vamos viver a nossa vida e pensar nos nossos problemas. Requiescat in pace (4).
(*) António José Saraiva (1917-1993), nasceu em Leiria, onde passou toda a sua infância. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa onde se doutorou em Filologia Românica em 1942, com a tese ‘Gil Vicente e o fim do teatro medieval’. É ainda estudante que conheceu Óscar Lopes, com quem manteve sempre uma profícua relação inteletual, de que resultaria, em co-autoria, a magnífica ‘História da Literatura Portuguesa’. Por pura rebeldia, foi afastado do ensino universitário, tendo passado a lecionar no ensino secundário (Liceu Passos Manuel em Lisboa e Liceu de Viana do Castelo). Envolveu-se então em actividades de oposição à ditadura salazarista e militou no Partido Comunista Português (PCP). Em 1949, por ocasião da campanha presidencial de Norton de Matos, sofre uma prisão e é proibido de ensinar, de todo, sobrevivendo a partir daí com as suas publicações e a sua colaboração em jornais e revistas. Inicia então o seu projeto de uma monumental ‘História da cultura em Portugal’, que viria a incluir também ‘Para a história da cultura em Portugal’ e ‘A cultura em Portugal: teoria e história’. Em 1960 parte para o exílio em França, onde foi bolseiro do Collège de France e acabaria colocado no Centre National de Recherches Scientifiques de Paris, na secção de História Moderna. Realiza duas viagens à União Soviética no início dos anos 1960, na sequência das quais se afasta do PCP. Entusiasmou-se com a revolta de Maio de 1968, do que resultou o seu livro ‘Maio ou a crise da civilização burguesa’, que causou uma enorme polémica em Portugal e marcou a sua viragem no sentido de um marxismo libertário. Lecionou durante alguns anos na Universidade de Amsterdão. Com a revolução de Abril de 1974 volta a Portugal, sendo admitido como professor catedrático na Faculdade de Letras de Lisboa e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. No final dos anos 1970 criou e dirigiu a revista ‘Raiz e Utopia’. A sua obra é uma referência incontornável na área da história da cultura e da história da literatura portuguesas. Para além das obras já citadas, merecem ainda detaque ‘As ideias de Eça de Queirós’ (1946), ‘Herculano e o liberalismo em Portugal’ (1949), ‘Fernão Mendes Pinto’ (1956), ‘Luís de Camões’ (1960), ‘Inquisição e Cristãos-Novos’ (1969), ‘Ser ou Não Ser Arte’ (1974), ‘Filhos de Saturno: escritos sobre o tempo que passa’ (1980), ‘Iniciação na literatura portuguesa’ (1985), ‘O Crepúsculo da Idade Média em Portugal’ (1990), ‘A Tertúlia Ocidental’ (1990), ‘Estudos sobre a Arte d'Os Lusíadas’ (1992). O pequeno ensaio que aqui apresentamos foi publicado inicialmente na revista do Ateneu Comercial de Lisboa, ‘O Acelista’, n.ºs 1 e 2, Julho e Agosto de 1945, sendo depois incluído em ‘Para a história da cultura em Portugal’, sendo-lhe acrescentadas novas notas na 4ª edição deste livro, em 1978. É muito significativo, não só como uma das suas primeiras incursões na história da literatura portuguesa, mas também como percursor do que viria a ser a polémica forma-conteúdo, que lavraria no interior do movimento neo-realista (na páginas da revista ‘Vértice’), alguns anos mais tarde, em 1952-54. Como é sabido, António José Saraiva, apoiado por Álvaro Cunhal, assumiu nesta polémica o papel de defensor da ortodoxia zhdanovista. Todavia, se é indiscutível a influência tutelar, nesta polémica, da “luta contra o formalismo” decretada pelo comité central do Partido Comunista da União Soviética, em fevereiro de 1948, vê-se por aqui que a posição assumida por Saraiva tinha antecedentes inteletuais absolutamente independentes.
_____________ NOTAS:
(1) Reabilitado em Espanha e, consequentemente, em Portugal.
(2) Até que ponto os poetas da novíssima geração desactualizaram esta afirmação? Não basta, para isso, a sua simples existência: será preciso que revelem pelo menos um grande poeta - que resista ao tempo ou alcance um largo público.
Pessoa, sendo um dos grandes poetas portugueses, é o expoente de uma época da poesia portuguesa.
(3) [Acrescentada pelo autor em 1978]
«(...) a universalidade da verdadeira obra de arte (...)».
O autor não pensa que esteja empregando uma mera palavra ou conjunto de sílabas, como tantas outras que enchem os parágrafos de alguns críticos literários. A arte - como qualquer actividade pensante ou relacionadora - é um esforço para universalizar o contingente e o avulso. Neste sentido, obra de arte contrasta com documento.
O documento regista o facto irreproduzível, determinado por tal encruzamento de circunstâncias que só se verificou uma vez, facto que em si próprio não tem significação alguma, mas que a adquire quando ajuda a definir uma lei, integrando-se numa construção qualquer.
Esta ordenação, que dá aos factos um significado, criam-na a actividade científica e a artística. Um arquivo de documentos sem a actividade pensante que os relacione vale exactamente o mesmo que um cesto de papéis. Só da actividade pensante, estruturadora, organizadora do sujeito, pode resultar a obra de arte ou de ciência. A obra de arte supõe mais que uma máquina fotográfica: supõe um fotógrafo, isto é, um sujeito que dê sentido às coisas, que as relacione e as experimente, e supõe a construção, em que as coisas, ligadas como contas dispersas que chegam a formar um colar, ganham um sentido e uma configuração. Por isso penso que pode haver excelentes reportagens-documentos sem que daí resultem obras de arte de valor apreciável. Quanto à distinção entre actividade artística e científica, é outra ordem de assuntos.
(4) [Acrescentada pelo autor em 1978]
Com a perspectiva do tempo (já lá vão mais de 30 anos desde a publicação do presente ensaio) a visão de conjunto da literatura portuguesa altera-se sensivelmente.
Por um lado, é facto que, perdida no século XVIII a ligação da cultura portuguesa com a Península Ibérica, lhe faltou o centro de gravidade e que ela passou a nutrir-se de sucessivas penetrações europeias. Mas na segunda metade do século XIX, com o romance de Eça, Camilo, Júlio Dinis, ela criou uma tradição própria na prosa, que se foi adensando até formar um caudal propriamente nacional, tornando-se com isso menos dependente da cultura francesa. Nos finais do século XIX e princípios do século XX, o mesmo aconteceu na poesia, com Cesário Verde, António Nobre e sobretudo Fernando Pessoa. Há portanto hoje um centro de gravidade literário-cultural português, como não existia na primeira metade do século XIX, e portanto uma certa continuidade.
Por outro lado, estudos efectuados posteriormente a este ensaio não permitem já dizer que Fernão Lopes «surge como um caso imprevisto e excepcional». O grande cronista refez segundo hoje se pensa, na Crónica de 1419, textos históricos e histórico-lendários anteriores; conheceu as narrativas históricas dos Livros de Linhagens e a Crónica Geral de Espanha, de 1344. Talvez possa considerar-se o último elo de uma sequência que vem provavelmente do século XIII.
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