Maio e a crise da civilização burguesa

Posfácio: Em que o autor explica o título da obra (*)

 

 

AJSAraiva.Maio1

António José Saraiva

 

 

Este livro é constituído por um «diário», por notas e por breves ensaios inspirados por aquilo que no título se designa por «crise da civilização burguesa». Digo «civilização burguesa», e não «burguesia», porque julgo tratar-se não da crise de uma classe social-económica designada por esse nome, mas da crise de uma civilização, de todos os grupos e classes de uma civilização que justamente me parece merecer o epíteto «burguesa».

 

Devo portanto explicar-me perante o leitor sobre o que neste livro se entende por «civilização burguesa». Aliás, não foi sobre esse tema que pretendi escrever. Pouco a pouco tornou-se-me claro que este conceito de «civilização burguesa» estava implícito naquilo que escrevia; de modo que esta explicação é de algum modo uma reflexão sobre o que se diz no livro, escrito em momentos diferentes e de uma forma dispersa.

 

Em geral, identifica-se «burguês» com «capitalista», «burguesia» com «classe capitalista». Ora, basta pôr lado a lado estas duas séries de expressões para se ver que elas não coincidem. Em poucas palavras, todo o capitalista é burguês, mas nem todo o burguês é capitalista (1).

 

O capitalista é por definição um indivíduo que vive do lucro do capital. O burguês pode ser isso, mas pode ser também um trabalhador por conta própria, ou mesmo um assalariado. O médico e o engenheiro em regime de profissão liberal, o modesto professor, geralmente pouco pecunioso que dá lições particulares ou em estabelecimento de ensino, são evidentemente burgueses, pela sua mentalidade e pelo seu estilo de vida, e é óbvio que não são capitalistas. Convém portanto saber em que é que consiste este serem «burgueses». Uma vista de olhos pelo que sabemos da história moderna ajuda-nos talvez a compreendê-lo.

 

Como se sabe, o Burguês define-se na Idade Média por oposição ao Fidalgo e ao Camponês. Vive dentro das muralhas do burgo, enquanto o Fidalgo vive no castelo e o Camponês no campo. Mas nem todo o que vive na Cidade é burguês. Este nome aplica-se especialmente a duas classes que animam a actividade urbana: o Artesão e o Mercador. A diferença entre uma e outra não é essencial: o Artesão negoceia a mercadoria que ele próprio fabrica na oficina de que é dono; o Mercador é o intermediário do que outros produzem. Mas o comércio exige nesta época uma especialização por vezes muito acentuada: era preciso procurar os sítios onde se produziam as diferentes qualidades de mercadorias, os meios de transporte, as rotas comerciais difíceis e arriscadas; o que também se pagava com o risco e a fadiga do corpo.

 

Nas assembleias políticas medievais que em Portugal se chamavam «cortes», os burgueses apresentam-se como o povo que trabalha e produz. Mas isso não basta para os definir, porque o camponês também trabalha. É essencial ter em conta que o produto do trabalho do burguês é propriedade dele. O burguês pode acumulá-lo, trocá-lo, capitalizá-lo. Não acontece o mesmo ao produto do trabalho do camponês, cujo excedente pertence ao senhor da terra, do mesmo modo que o mel produzido pelas abelhas pertence ao dono dos favos. E o senhor, que vive gratuitamente do trabalho alheio (e que por vezes até pilhava as cidades), ignorava, como o camponês, que o trabalho se pode capitalizar. É desta característica - a propriedade pessoal dos bens produzidos, a possibilidade de acumular os excedentes e os converter em capital - que resulta o ponto de vista próprio do burguês, artesão ou mercador, na sociedade medieval.

 

Além disso, a relação do burguês com a natureza é também diferente da dos outros grupos sociais medievais. O artesão transforma a matéria-prima, criando com ela objectos de uso e troca. A natureza aparece-lhe sob a forma de material transformável: é o cabedal que serve para fazer calçado, a lã que serve para tecer panos, etc.. É, por um lado, objecto manipulável, por outro, capital (é interessante que «cabedal» significa ao mesmo tempo a matéria-prima do sapateiro e capital no sentido de riqueza: «homem de grandes cabedais»). Quanto ao mercador, negociava a natureza já capitalizada, convertida em mercadoria. Esta relação com a natureza não é a do camponês, dependente dela como de um senhor caprichoso.

 

E em terceiro lugar a relação do artesão ou do mercador com os «outros» é uma relação mercantil ou de contrato, segundo a fórmula latina «Do ut des». Nada é gratuito - tudo se troca. O senhor rouba e dá magnificentemente; o camponês é obrigado a dar. Só o burguês compra e vende material pesando-o na balança, medindo-o com a vara e o côvado.

 

Por consequência desta situação, nasce a mentalidade burguesa (não confundir com ideologia). A importância do trabalho; o sentido da economia, não só do dinheiro (ou seu equivalente), mas também do esforço e do tempo (time is money); o hábito de contar, prever e planear; o sentimento de que há um encadeamento controlável de causas e efeitos; a confiança no poder da técnica e consequente relutância perante o maravilhoso; o gosto do método, da ordem, da regularidade, etc., distinguem o burguês perante o camponês e o fidalgo. A esta mentalidade corresponde uma moral cujo princípio fundamental é a liberdade individual de trabalhar e dispor do fruto do trabalho, tendo como único limite o reconhecimento de liberdade análoga para o vizinho. Esta liberdade implica a condenação do privilégio que torna possível a ociosidade pela apropriação do trabalho alheio. Por este lado, a moral burguesa é, tendencialmente, racional e igualitária. E é racional, também, na medida em que a vida é subordinada à produção e a capacidade de cada um se mede quantitativamente em bens. Não é uma liberdade gratuita e incomensurável, mas, pelo contrário, contabilizada e identificada com a necessidade. No que respeita às relações com o próximo (e o próximo só é concebido como outro burguês), o seu princípio básico é a ideia de reciprocidade, indispensável ao exercício da troca. Mesmo quando o burguês devora outro burguês, fá-lo segundo regras por força das quais ele próprio pode ser devorado.

 

Estou descrevendo, de forma esquemática, não o contorno, que é variável, mas as directrizes constantes, as linhas de rumo do espírito burguês. Tudo se resume afinal na contabilização: a vida pessoal e colectiva é sujeita a regras estritas cuja eficiência se pode medir objectivamente em moeda. Mas, naturalmente, estas directrizes vão-se realizando dentro de circunstâncias e limites históricos. Vemo-lo, por exemplo, na liberdade de troca, que é limitada pelas corporações medievais, mas acabará por destruí-las. Vemo-lo na moral familiar. A família burguesa é uma «casa» no duplo sentido de «home» e de «empresa». Por um lado, racionaliza o consumo interno dos associados com vista à poupança, por outro lado, garante, pela herança, a perpetuação da empresa ao longo das gerações. As regras da moral familiar (incluindo a moral sexual) são por isso mais rígidas dentro da burguesia do que dentro de qualquer outro grupo social, e é justamente a rigidez de tais regras que gera a clandestinidade e a hipocrisia de que se reveste a sua inevitável violação. Mas esta concepção da família pode variar, e variou, se as modificações ambientes da empresa se modificarem.

 

No que se refere à religião, também a situação do burguês é mudável. O Cristianismo, nas entranhas do seu espírito, tal como o definiram Cristo e S. Paulo, é incompatível com a mentalidade burguesa, porque contém uma semente de desmesura mística inconciliável com a contabilização da vida: uma máxima evangélica diz que quem quer poupar a vida perde-a. Mas há também na doutrina cristã uma herança judaica muito mais orientada para a vida terrena, que se resume a um código moral de bem viver e de garantir a sobrevivência da comunidade. E introduziram-se nela elementos feiticistas do politeísmo pagão que serviam para relacionar a cidade com os seus protectores sobrenaturais. São estes elementos, alheios à essência do Cristianismo, os que vingam transitoriamente na cidade medieval: por um lado, os Dez Mandamentos, herança mosaica, que garantem a ordem citadina por outro lado, os santos padroeiros, a que as diversas corporações prestam na esperança de reciprocidade, o seu culto particular. É talvez significativo que uma das máximas evangélicas mais conhecidas seja o «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.» Este preceito dá sanção divina ao princípio da reciprocidade em que assentam, como vimos, as relações entre burgueses. Provàvelmente, o seu significado profundo foi desnaturado, porque a moral dos evangelhos e de S. Paulo não é a da concorrência entre indivíduos, mas a da comunhão no amor que transcende a individualidade. Esta desnaturação burguesa do Cristianismo foi, no entanto, uma situação transitória. A racionalização da vida e a capitalização da natureza encaminham o burguês para uma atitude cada vez mais oposta a qualquer religião de salvação. A Reforma, O deísmo, o materialismo filosófico, são fases sucessivas desta evolução.

 

Recordemos agora que nem tudo o que vivia na cidade era burguês. Havia também uma população adventícia e flutuante, sem casa nem ofício certo, que oferecia o corpo ao trabalho puramente braçal; era constituída em grande parte por retirantes do campo acossados pela fome. A sua condição era comparável à dos trabalhadores emigrantes nos países industrializados e também à daquele grupo a que se chamou lumpen-proletariat. Esta multidão não tinha estatuto nem poder próprio na cidade, onde era considerada hóspede. Outros marginais da cidade eram os Judeus, que, apesar de terem casa, ofício e empresa, estavam insulados pela fronteira religiosa, que os impedia de serem reconhecidos como burgueses pròpriamente ditos. E, por outro lado, há no campo um grupo que tende a aburguesar-se. Nem toda a terra era senhorial; havia formas de propriedade agrícola alodial cuja exploração tendia a obedecer a regras comparáveis às da empresa urbana. Estes proprietários ganham até certo ponto uma mentalidade burguesa, embora ficassem sempre condicionados pelas condições próprias do campo.

 

As actividades do grupo burguês diversificam-se com o tempo. Era-se burguês por família e criação. Muitos filhos de burgueses exerciam actividades que não eram industriais nem mercantis: encarreiravam-se no clero (que era aliás também uma forma de promoção da gente rural), na administração em crescimento rápido, no tabelionato, na procuradoria jurídica, na arte medicinal, etc.. Mas a criação de origem dava-lhes uma mesma mentalidade de base, e, de resto, certas profissões, como a medicina e o foro, exerciam-se (e exercem-se ainda) sob a forma de empresas artesanais, em que o capital e o trabalho não estão desunidos.

 

Mas já no burgo medieval este modelo de burguês, que nunca existiu em estado puro, entra em decomposição. Há o puro negócio de dinheiro, actividade que, segundo o próprio padrão burguês, se considerava abusiva e infamante, própria de Judeus (o Mercador de Veneza, de Shakespeare, mostra bem o sentimento da aristocracia urbana perante o usurário); há a arrematação da cobrança de impostos que também descontentava a maioria da burguesia; há o comércio por grosso interurbano ou internacional, que, no caso, nomeadamente, dos géneros de grande consumo, como os cereais, acarreta o ódio da população urbana contra os respectivos empresários. Há os intermediários entre a matéria-prima e o artesão, que (como no caso particularmente visível da tecelagem) degradam a condição deste último. O capital e o trabalho tendem a dissociar-se, o comércio escapa lentamente ao artesão. Seria interessante averiguar a reacção psicológica da célula urbana perante este processo; mas certas atitudes, como a de considerar o comércio de dinheiro e de cereais como actividades tipicamente judaicas ou ainda a condenação eclesiástica do juro, parecem mostrar que esta evolução era sentida como uma corrupção do modelo ideal da cidade.

 

Ao fim deste caminho encontra-se o quadro de que Marx pintou vivamente o esquema: o capital, isto é, os meios de produção e as matérias-primas, de um lado; o trabalho, cada vez mais desqualificado, do outro. A associação do capital e do trabalho (que aliás nunca foi completa) aparece como um paraíso perdido e inspira várias utopias, como a de Proudhon e a da doutrina social da Igreja.

 

Mas com esta evolução a mentalidade burguesa não desapareceu nem tão-pouco foi monopolizada pelo grupo capitalista. Subsistiu na chamada «classe média». Esta expressão predilecta dos historiadores liberais do século XIX (entre eles o nosso Herculano), designa os herdeiros do «terceiro estado», ou burguesia medieval. Situa-se essa camada entre a aristocracia (que agora também inclui o grande capitalista, o «barão» de Garrett) e o proletariado ou «quarto estado», multidão enigmática, destituída de direitos políticos, sindicais ou culturais. Constituem-no os que exercem profissões liberais, os pequenos e médios empresários do comércio, indústria e agricultura, os funcionários públicos, alguns artesãos privilegiados que escapavam à proletarização, técnicos de elevada qualificação, agentes superiores dos serviços, intelectuais, etc.. Como é óbvio, estas actividades desenvolvem-se dentro do sistema de relações mercantis, cada vez mais absorvente. Neste universo, a mentalidade burguesa não podia deixar de consolidar-se. A «classe média» mantém o espírito racionalista e tendencialmente irreligioso da primeira burguesia, o seu sentimento individualista, a sua confiança na técnica, a sua moral do trabalho e da reciprocidade, a sua austeridade, ou, para falar com mais propriedade, a sua parcimónia de costumes, o seu receio da dissipação. Por alguma razão a Igreja perdeu grande parte das suas posições na cidade e assentou arraiais no campo.

 

Que aconteceu, deste ponto de vista, aos camponeses e aos operários?

 

No campo acelerou-se, sobretudo depois da abolição do Antigo Regime, a burguesia rural, isto é, o grupo de proprietários que exploram a terra empresarialmente. Mas nas pequenas comunidades orientadas para a auto-subsistência da família e nos trabalhadores rurais de vário tipo ligados ao grande proprietário por laços patriarcais e económicos, que perpetuam até certo ponto a antiga servidão, permanece o espírito do camponês para quem a terra é sustento, mas não capital, e conserva algo de sagrado. Esta camada, e ainda, até certo ponto, a dos proprietários menos pobres, conserva valores tradicionais diferentes dos do burguês.

 

Quanto aos proletários da cidade, pode dizer-se que a sua massa é constituída no início da revolução industrial por duas camadas principais: os retirantes do campo em busca de trabalho industrial, por um lado, e os antigos artesãos transformados em trabalhadores à tarefa ou em simples operários de fábrica. Estes últimos conservam o essencial da mentalidade burguesa com as inevitáveis adaptações. Os retirantes desenraízam-se em relação ao meio de origem, perdem, em troca de nada, os seus valores camponeses tradicionais. São integrados no sistema urbano de relações mercantis, perante o qual estão desarmados económica e espiritualmente. Só lhes resta assimilarem a cultura dominante na cidade.

 

O progresso da industrialização intensifica o aculturamento, como dizem os etnólogos, a assimilação desta massa à cultura urbana. Os desenraizados enraízam-se, ou, melhor, enxertam-se na árvore da cultura burguesa, representada pelas «classes médias», ao mesmo tempo que adquirem direitos próprios dentro da cidade. A instrução primária obrigatória, desejada por alguns, temida por outros como instrumento de emancipação das classes trabalhadoras, serviu na realidade para as integrar mais perfeitamente na cultura dominante e dominadora: elas assimilaram não só os conhecimentos, mas também os valores. E a multiplicação e concentração dos meios de difusão da cultura acelerou este processo. Hoje, os mesmos programas de televisão podem ser vistos às mesmas horas na casa do operário e na do patrão.

 

Quer isto dizer que o operário nos países industrialmente adiantados é hoje burguês? Ainda não. Reservamos em geral o nome de burguesia àquela camada de raiz mais antiga que, por razões de fortuna e de meio familiar, mantém uma posição social (mas nem sempre económica), mais favorecida: além dos capitalistas pròpriamente ditos e outros proprietários, aqueles que os teóricos liberais designavam por «classe média», como vimos. Mas a fronteira entre a classe média e a classe operária é cada vez mais incerta nos países adiantados industrialmente. É difícil por vezes determinar onde acaba o operário especializado e onde começa o engenheiro; ou, por exemplo, determinar a gaveta onde se deve arrumar a dactilógrafa. Só o mero trabalhador braçal, o argelino, o português e, ultimamente, o negro desgraçados, que acarretam pedra para os prédios de Paris, tem uma condição bem clara, a que pode ainda aplicar-se a definição marxiana de proletariado. Mas o trabalho braçal tende a desaparecer com o avanço da industrialização, ou, antes, a ser transferido para as zonas não industrializadas do mundo - mas essa é outra história. É substituído pelo trabalho dito cerebral.

 

Pode portanto dizer-se, em resumo, que a «classe média» tende, nos países ditos civilizados, a confundir-se com Toda-a-Gente. Em lugar de camadas distintas, socialmente diferenciadas, está em vias de se formar uma massa única e homogénea que se apresenta com uma forma oval, tendo nos pólos, cada vez mais arredondados, o grande capitalista e o trabalhador braçal; e o ovo não se pode pôr de pé porque o seu peso está concentrado à volta do centro.

 

A grande massa da classe média, igual a Toda-a-Gente, é hoje constituída, na sua maioria, por assalariados, em resultado do processo a que Marx chamou de «proletarização», mas cujas consequências culturais e sociais não são, a meu ver, as que ele previu (2). O próprio capitalista perde a situação e a função que desempenhava, se por «capitalista» entendermos o proprietário do capital. O seu papel é cada vez mais parasitário, como o dos reis nas monarquias modernas: continua a receber os juros do capital, mas cada vez menos dirige a empresa. Desenvolve-se a profissão de dirigente de empresa, de técnico da administração e investimento do capital, exercida por profissionais assalariados, que pertencem também à «classe média». Entre ele e o operário há uma diferença quantitativa de salário, mas não uma posição diferente quanto à situação dentro do esquema das relações de produção. Tanto um como outro são servidores do Capital, que é coisa diferente do Capitalista.

 

Ora este processo geral de assalariamento da burguesia, que a aproxima da classe operária, acarreta consequências culturais consideráveis. O sentimento da classe média em relação aos meios de produção, isto é, ao Capital, não pode ser o mesmo do dos artesãos e mercadores do burgo medieval. O burguês do nosso tempo serve o capital, não o possui. A sua situação depende da garantia e montante do salário, e por isso de certas qualidades, como a qualificação técnica, a capacidade de se sujeitar a uma disciplina exterior, etc.; e não já da capacidade de decisão, do espírito de iniciativa, da arte com que maneja os bens próprios. Conta muito menos consigo do que com uma espécie de providência, não já natural e aleatória (como era a do camponês), mas social e planificada, que lhe assegura o sustento, o trabalho, a educação, a reforma, a saúde, a criação dos filhos, que o assiste mesmo no desemprego, que elimina o risco e o imprevisto. Nos países burgueses de governo dito «socialista», como a Inglaterra ou a Suécia, essa providência tende a confundir-se com o Estado; noutros, em que predomina o liberalismo económico, como os E. U. A., ela é assumida pelas grandíssimas empresas ou por companhias privadas de seguro. Mas o resultado é o mesmo do ponto de vista psicológico e sociológico: uma espécie de colectivização que transfere para a providência social a responsabilidade do destino pessoal. Não é só o modo de produção que se torna social, como notava Marx, é também o modo de subsistência. Por isso, o burguês de hoje, contràriamente ao antigo, não tem qualquer relutância em relação à estatização dos meios de produção, também chamada nacionalização ou colectivização. Basta considerar que essa estatização se realizou em países tipicamente burgueses, e que o continuaram a ser, como a Inglaterra e a Suécia, e está em vias de se realizar noutros do mesmo género.

 

Mas este processo de assalariamento não altera o sistema das relações mercantis, nem a dominação do Capital. Pelo contrário, torna esse sistema mais rigoroso, reduz ainda mais o factor pessoal e arbitrário na administração do Capital. Em termos de longa duração, o tecnocrata assalariado é mais eficiente que o antigo capitão de indústria. Introduz na empresa urna racionalização rigorosa, segundo esquemas ditos «científicos», onde o velho proprietário e antes dele o velho artesão se contentavam com uma racionalização aproximativa. Em virtude deste processo, o assalariado é sujeito a uma cronometragem do tempo, a urna economia de movimentos, a uma disciplina de trabalho que eram desconhecidos na antiga empresa. A sua vida é pautada de maneira ainda mais imperiosa pela produção. E isso acentua nele o princípio essencial da mentalidade burguesa, que é a contabilização da vida.

 

E quanto ao colectivismo de que atrás falámos, é preciso notar que ele não anula nem substitui o individualismo burguês. Não altera substancialmente as relações entre as pessoas, mas apenas a atitude de cada pessoa perante o Capital, relação cada vez mais anónima, impessoal, massiva, passiva. Mas dentro da massa cada um continua só. O que há, na realidade, é uma colectividade de solidões. A diferença entre o artesão antigo e o assalariado moderno é que aquele se sacrificava para possuir um utensílio com que fabricasse mais mercadorias, ao passo que este se endivida para comprar a sua habitação, a sua televisão, o seu carro. Pouco lhe importa que lhe sejam distribuídos pelo Estado ou pela firma Ford, contanto que lhes chame seus. O que pode dizer-se é que o individualismo se tornou negativo e ficou insulação. A sua imagem mais impressionante são as multidões de carros na estrada em que cada um, ao seu volante, defendido contra o sol, a chuva, o atrito do chão, fechado hermèticamente no seu espaço, só comunica com os sinais mecânicos.

 

*

 

Nestas circunstâncias, pode falar-se de urna cultura «operária» oposta à cultura «burguesa»? A resposta está dada.

 

Uma vez que a maior parte dos burgueses são hoje assalariados, não se pode já definir a «burguesia», economìsticamente, pelo lugar que ocupa nas relações de produção. Hoje o burguês define-se pela mentalidade - por aquela mentalidade contabilizadora e tecnológica que atrás tentámos descrever.

 

O «operário» é, como a maior parte dos burgueses, um assalariado. A única diferença é que estes predominam no trabalho dito intelectual e nos serviços; ao passo que aquele trabalha na indústria e executa as tarefas ditas «manuais». Não é uma oposição entre dois pólos, mas um lugar diferente na mesma escala. A diferença esbate-se à medida que o trabalho manual tende a ser executado pelas máquinas.

 

A verdadeira oposição não é entre Operário e Burguês, mas entre Proletário e Proprietário-Capitalista. Mas com a retirada deste último para uma ociosidade parasitária (que levará inevitàvelmente ao seu desaparecimento), a oposição tende a tornar-se Capital (impessoal) e Assalariados. No termo do processo, os dois pólos opostos serão o Capital e a Gente, o Capital e os Homens, o Capital e a Vida. Mas essa é outra história, ou antes: essa é a verdadeira história, a questão essencial de que nos aproximamos julgando seguir outros caminhos.

 

Burguesia é, portanto, uma mentalidade correspondente às relações mercantis e ao progresso tecnológico que dominam a civilização burguesa. Entre o Operário e o que habitualmente chamamos Burguês há diferenças quanto aos hábitos, ao estilo de vida, que se transmitem por hereditariedade. Mas há uma mentalidade comum imposta pelo mesmo sistema, e até uma atitude semelhante perante o Capital, resultante da condição de assalariado. E, na medida em que se instrui e se consciencializa, o operário só pode assimilar mais profundamente essa mentalidade - a única que existe nas sociedades industriais.

 

No entanto, há quem sustente que a classe operária tem a sua ideologia e, portanto, a sua cultura própria. O marxismo, dizem, é a ideologia da classe operária. Haveria que responder, em primeiro lugar, que uma ideologia é coisa diferente de uma mentalidade. Mas essa questão fica para outro livro. O que importa agora é notar que aquela afirmação é perfeitamente dogmática e mostra que a função do dogma é contrapor-se à realidade experimentável. A observação mostra que nos países industriais mais desenvolvidos e onde a classe operária é mais numerosa (Inglaterra, América do Norte) a ideologia marxista é perfeitamente desconhecida da classe operária e que mesmo num país onde o Partido Comunista é particularmente forte o número de operários que lêem o jornal diário do mesmo partido (L'Humanité) é reduzidíssimo. A esta objecção responde-se que os partidos marxistas é que representam efectivamente o espírito da classe operária, muito melhor do que a sua massa não consciencializada. É natural que esses partidos o digam porque esse é o próprio fundamento da sua existência. Mas esta afirmação equivale a dizer que a classe operária deve ou devia ser marxista, o que, além de introduzir nesta questão um elemento bem pouco objectivo e científico (o «dever ser» é uma categoria moral e de raiz subjectiva), constitui o reconhecimento a contrario de que efectivamente ela o não é.

 

Estas considerações pertencem, no entanto, a uma zona superficial do problema. O essencial, a meu ver, é que, contràriamente ao que geralmente se diz, a doutrina marxista não é exterior, e muito menos oposta à mentalidade burguesa. Ela nasce dentro da cultura burguesa e as suas teses são consequência do ponto de vista burguês que privilegia os factores económicos e mensuráveis da vida. Todos conhecem o famoso texto em que Lenine, resumindo Kautsky, indica três fontes essenciais da doutrina de Marx. o materialismo filosófico francês do século XVIII, a economia política inglesa e o idealismo dialéctico de Hegel. Destas três fontes só provàvelmente o idealismo dialéctico não é típico da mentalidade burguesa, Pois provém, conjuntamente, da escolástica e mística cristãs e da filosofia grega. É a tensão religiosa latente na dialéctica hegeliana (e talvez também o messianismo judaico) o que dá à doutrina de Marx, sobretudo até 1845, o seu dinamismo escatológico orientado para a realização do Espírito na Terra. Mas uma espécie de necessidade mecânica, exterior à subjectividade humana (o papel decisivo, por exemplo, atribuído à baixa da taxa de lucro, ou ainda a teoria das crises cíclicas), acaba por prevalecer em O Capital. Podemos acrescentar às fontes indicadas por Kautsky outras igualmente burguesas, como a teoria da luta de classes como motor da História, desenvolvida pelos historiadores românticos do «terceiro estado».

 

Na evolução, ou, para falar com mais propriedade, involução da doutrina marxiana que leva ao marxismo ideológico, e em particular ao estalinismo, o dinamismo hegeliano perde terreno em benefício do materialismo filosófico e (pseudo) cientista. Este materialismo, que se diz «dialéctico», apresentou-se como doutrina antiburguesa, quando é afinal a conclusão lógica da incompatibilidade essencial entre a mentalidade burguesa, racionalista, planificadora tecnológica, e o transcendentalismo cristão. Também se apresentou a valorização do trabalho técnico transformador como apanágio da classe operária, quando na realidade essa valorização é uma atitude típica, singularizante da burguesia desde os tempos em que os artesãos governavam as cidades. Alguns doutrinários marxistas tiveram consciência desta dificuldade e sustentaram, como Friedmann (na célebre La Crise du Progrès) que a burguesia tinha perdido esse seu espírito progressista, o qual fora retomado pela classe operária, representada pela U. R. S. S.; mas o avanço tecnológico dos Americanos, que o desembarque na Lua tornou bem patente, mostrou o que havia de gratuito nestas congeminações.

 

É justamente porque não há incompatibilidade entre o espírito burguês e o método marxista, que este foi perfeitamente assimilado pelos teóricos burgueses. Não há hoje uma análise séria de uma dada situação histórica que não tenha em conta a chamada «proporção das forças» (em francês «rapport des forces»), isto é, a relação estratégica dos diversos grupos sociais-económicos no momento e local considerados, sendo que nessa análise os factores económicos são considerados determinantes. Este género de pesquisa, de que Marx deu o primeiro modelo no seu estudo A Luta de Classes em França, faz-se hoje correntemente em qualquer estabelecimento científico de bom nível, em qualquer país burguês. Isto não quer dizer, é claro, que a doutrina social-económica burguesa tenha adoptado como único modelo o método marxiano. Outros pensadores lhe deram a sua contribuição, valorizando factores que Marx deixou em segundo plano, em especial os especificamente sociológicos e psicológicos. Isso só enriqueceu nos países burgueses mais «adiantados» a pesquisa no campo das ciências humanas, dando-lhes até um avanço que alguns países de ideologia marxista oficializada procuram hoje recuperar.

 

A burguesia, evidentemente, apropriou de Marx o método, mas não o propósito, que visa à desalienação pela abolição do sistema de relações mercantis. Ela não concebe outras relações senão estas. Mas resta saber se outras são possíveis para quem equaciona a realidade em termos quantitativos e economísticos. Nenhuma sociedade dita «socialista» conseguiu até hoje abolir as relações de mercado, que se disfarçam, por vezes, sob a aparência de distribuição por via estatal. O aforismo latino «Do ut des» continua em vigor.

 

E como poderia haver incompatibilidade entre o método científico marxiano e a mentalidade burguesa, se a Burguesia é a primeira classe da história a pensar em termos de capital e trabalho e a quantificar a realidade humana?

 

Caberia aqui objectar que os militantes dos partidos marxistas de tipo leninista (quer de doutrina estalinista, quer trotsquista) têm um comportamento social próprio, que não se parece com o vulgarmente burguês e que implica uma moral também própria. Mas essa é outra questão, porque, por um lado, grande parte desses militantes não são operários e, por outro lado, como vimos, a grande maioria dos operários (mesmo nos países ditos «socialistas») não milita nessas organizações. Na realidade, elas põem problemas que não cabem neste estudo. Lembremos só que se trata de organizações de tipo eclesial, de que encontramos outros exemplos ao longo da história (3).

 

De modo que, mesmo que aceitássemos, de graça, a afirmação de que o marxismo é a ideologia da classe operária, isso só confirmaria que a classe operária assimilou a mentalidade burguesa. E quanto à proposta marxiana da colectivização dos meios de produção como processo de pôr termo à alienação nos países industrializados, já vimos que ela é perfeitamente aceitável pela burguesia colectivizada desses mesmos países, e até já parcialmente se realizou nalguns deles. O que de modo algum significa que a alienação tenha acabado, mas simplesmente que o processo proposto por Marx para o alcançar nos não leva lá.

 

*

 

Pergunto agora: há hoje no mundo uma cultura que não seja burguesa? Há, mas ùnicamente fora dos países industrialmente avançados. É a antiquíssima cultura camponesa, que desapareceu inteiramente na Norte-América e quase inteiramente na Europa e no Japão, mas que conserva a sua vitalidade na Sul-América e em quase toda a Ásia. De tal modo que o mundo se pode dividir hoje em duas civilizações: a burguesa e a camponesa. A civilização camponesa é actualmente o único foco de resistência ao aburguesamento geral do mundo.

 

Só tendo em conta esta realidade compreenderemos as revoluções contemporâneas, de que aprendemos nos compêndios e catecismos vários uma imagem fantasista. A primeira delas foi a revolução russa de 1917, apresentada geralmente como uma revolução do proletariado. Na Rússia dessa época os núcleos de proletariado industrial constituíam ilhéus insignificantes num vasto oceano de camponeses mal saídos da servidão; e as forças de choque comandadas por Trotsky teriam sido fàcilmente dizimadas se o primeiro governo soviético não tivesse sabido fazer pender para o seu lado o campesinato insurreccionado, prometendo-lhe a posse da terra. Quem finalmente decide da sorte do golpe de Leninegrado é a enorme jacquerie, que abala a Rússia inteira, e os soldados-camponeses, que desertam da frente, com as armas, para voltar à terra. Mas os camponeses não escreveram a história, e os historiadores oficiais do P. C. atribuíram-lhes um papel de segundo plano, porque, segundo o esquema de Marx, a classe «revolucionária» é o proletariado industrial. Para explicar o desencadeamento da revolução num País industrialmente muito atrasado os ideólogos improvisaram a teoria do «elo mais fraco do capitalismo» (a Rússia) por onde teria começado a romper-se a cadeia do sistema. Isto não é uma teoria, mas uma figura de retórica, que serviu apenas para aguentar uma ilusão. O sistema ficou, apesar de o «elo» se partir. A revolução de Outubro foi, em relação à Europa burguesa, uma catástrofe marginal, porque a Rússia de 1917 não era um país burguês, mas camponês (e continua hoje a sê-lo parcialmente). Mas, como Lenine vislumbrou, já no fim da vida, ao dar-se conta de que a conjuntura da revolução europeia tinha passado, a revolução de Outubro desencadeou o ciclo das insurreições camponesas, ainda em curso, as quais, conforme os casos, foram mais ou menos consumadas: na Índia, na China, em Cuba, na Argélia, no Vietname. Na medida em que se industrializou, a U. R. S. S. dessolidarizou-se deste processo e foi polarizada pela civilização burguesa. Não é outro o significado do divórcio entre ela e a China.

 

Podemos, desta forma, supor que as transformações ditas revolucionárias só ocorreram até hoje naqueles países em que se apoiaram numa cultura, numa mentalidade, numa civilização radicalmente diferentes daquela que foi impugnada e vencida. Na China, Xan Cai Xeque era aliado do capitalismo ocidental colonizador e representava a proposta da europeização económica e cultural; na Argélia, o grupo de Ben Bella apoiou-se nas massas muçulmanas tradicionalistas contra o Europeu; em Cuba, Fidel Castro segurou-se à raiz cultural hispânica, para combater a invasão cultural anglo-saxónica identificada com um regime de violência colonialista, e esse foi o significado profundo do lema «Patria o muerte». No Vietname, o modelo «socialista» revigorou a comunidade aldeã, raiz da resistência ao ianque, grande, louro, bruto, que prostitui com os seus dólares uma velha civilização orgulhosa. Em todos estes casos, a raiz nacional e a raiz camponesa se confundem e o socialismo é uma forma que vem purificar e dar uma razão de ser à tradição pré-capitalista. E talvez também seja de registar que nos Estados Unidos da América a principal força impugnadora do sistema vem dos Negros, que, por virtude de uma segregação racial já centenária, conservaram uma personalidade cultural distinta.

 

Tudo isto nos leva a atribuir ao factor Cultura uma importância que o marxismo lhe recusa pelo simples facto de o considerar como uma «supraestrutura» ou um «epifenómeno». Só há verdadeira crise revolucionária lá onde há duas culturas que se combatem. Se não fosse a minha relutância pelas fórmulas publicitárias (especialmente as da moda) e o meu receio de ser arrumado numa classificação ideológica, diria que toda a verdadeira revolução é cultural.

 

Perante as insurreições camponesas, a nossa atitude de burgueses e europeus (expressões que quase coincidem) é de perplexidade. Por um lado, admiramos os guerreiros vietnameses que, caminhando a pé, com um saco de arroz às costas, paralisam a cavalaria montada em helicópteros dos homens mais tecnicizados e mais bem alimentados do mundo. E também sentimos que a justiça está do lado do povo, que quer viver na sua terra o seu modo de vida. E, além disso, gozamos a satisfação de ver humilhado o povo mais poderoso da Terra, que mais ou menos secretamente admiramos e invejamos. Mas, por outro lado, sentimos confusamente que esta derrota dos E. U. A. é a derrota de uma civilização e põe em causa a nossa concepção de «Progresso». É mais um episódio do lento envolvimento da Cidade pelo Campo, segundo o antiquíssimo modelo da guerra camponesa, recentemente teorizado por Mao Tsé-Tung. E ao espírito de qualquer pessoa não analfabeta ocorre o paralelo das invasões bárbaras que desmembraram o Império Romano.

 

Para a nossa concepção de «Progresso», a vitória do Camponês é o retrocesso a uma fase «ultrapassada» da marcha da Civilização. Esta noção de «ultrapassagem», tão em moda na geringonça tecnocrática e ideológica, parece supor que há uma via única para aquela marcha, a que conduziu do artesanato medieval aos computadores em que tanto os tecnocratas americanos como os russos põem hoje as suas melhores esperanças. É interessante a este respeito o livro A Civilização na Encruzilhada, elaborado por uma equipa dirigida por Richta, no qual se expõe e justifica a proposta dos homens da Primavera de Praga. A julgarmos por este livro, o «socialismo de rosto humano» não é outra coisa senão uma utilização racional da automatização do trabalho e a adaptação educacional dos homens à manipulação dos autómatos. «Marx», lê-se na edição francesa deste livro (Paris, 1969, p. 305), «n'atendait pas la libération de Ia société et de l'homme d'ailleurs que de Ia réunion de Ia classe ouvrière et de la science.» Como se a importância económica e social da ciência (aplicada) não fosse justamente uma crença burguesa, e como se o interesse da burguesia assalariada fosse diferente do do proletariado! A proposta de Richta é bem típica da civilização burguesa: avançar mais ainda no caminho até hoje seguido do «Progresso», pelo desenvolvimento da tecnologia, cuidando que por aí é possível resolver o problema da felicidade humana. Desde a época das cidades medievais, a mentalidade burguesa não conseguiu sair destes carris, mesmo quando ela encarnou em homens tão generosos como foram os vencidos de Praga.

 

Ora o que está hoje justamente em causa é se tudo cabe no desenvolvimento tecnológico; se o «Progresso», tal como a Burguesia sempre o concebeu, não deixa de fora uma parte essencial das virtualidades humanas, nas relações dos homens com eles mesmos, com os outros homens e com aquilo que se significa pela palavra «Natureza». Se o dito «Progresso» não tem consistido em recalcar, em benefício de uma única dimensão, outras dimensões humanas, repelidas para o subconsciente ou para a clandestinidade. Se, afinal, narrar a história do Homem consiste apenas em contar - à maneira de Condorcet ou de Gordon Childe - como ele criou utensílios e máquinas cada vez mais perfeitas e racionalizou progressivamente o conhecimento da Natureza. Perguntas sacrílegas, porque o «Progresso», entendido daquela maneira, é hoje a única religião do mundo «civilizado», o Deus, a forma de transcendência que substituiu as religiões monoteístas. Tocar nele é tocar no feitiço fundamental da Burguesia, em todas as suas variantes liberais ou marxistas E todavia são essas as perguntas verdadeiramente actuais.

 

A civilização burguesa já só nos oferece a perspectiva de haver cada vez mais máquinas para fabricar mais objectos e distribuir mais moeda para os comprar; cada vez mais rapidez para percorrer rectilineamente a distância entre dois sítios cada vez mais iguais; cada vez mais precisão nos gestos e no tempo das pessoas para poderem engrenar com as máquinas; cada vez mais igualdade entre indivíduos condicionados em série; cada vez menos imprevisto, menos gritos, menos lágrimas. E também cada vez mais psiquiatras para «normalizar» os homens rebeldes à norma uniforme. Estes homens, cada vez mais padronizados, fazem cada vez mais o que os economistas, os estatísticos, os sociólogos, os psicólogos, os especialistas de marketing, esperam que eles façam. O sujeito, que outrora só se media com a divindade incomensurável, tende a coincidir com o objecto do conhecimento e da manipulação. Ó maravilhas da Ciência! Como foi isto possível? Será que finalmente a subjectividade foi abolida pelo conhecimento? Não, o que se passou foi outra coisa. É que os homens, nos países civilizados, resolveram imitar a imagem deles mesmos que os cientistas e os técnicos lhes ensinaram. Até o amor se «faz» [sic] segundo o que vem escrito nos livros, «cientificamente». Desta forma acontece que, em lugar de ser o Sujeito que se manifesta objectivamente, é o Objecto que impõe a sua regra ao Sujeito, e a psiquiatria não existe senão para obrigar o sujeito rebelde a conformar-se com a sua imagem «objectiva». Será esta ilusão, universalizada nos países «desenvolvidos», que leva o Sr. Michel Foucault a falar da «morte do homem»? Estará ele convencido de que o homem se tornou quantidade mensurável num sistema de relações matemáticas, por ter deixado de ser qualidade irredutível, fonte de vida brotando sempre nova e imprevista de uma profundeza sem fim? Se assim é, a sua tese é a constatação do beco sem saída a que chegou a civilização burguesa. A morte do homem é a morte da subjectividade dentro do casulo que ela mesma teceu. Só que não sabemos de todo em todo se desse casulo romperá a borboleta para urna segunda vida.

 

Por isso há quem veja nas revoluções camponesas uma perspectiva de esperança. Mas cabe perguntar se o regresso à civilização camponesa não será apenas recomeçar o ciclo; se aquela civilização terá outra ambição que não seja apropriar-se do tesouro acumulado pela tecnologia nascida da civilização burguesa. Isto, na hipótese duvidosa de, na luta entre as duas, a civilização camponesa ser capaz de levar a melhor, ou, por outras palavras, de ser possível na época em que vivemos a destruição do «Império» pelos «Bárbaros».

 

Nesta dúvida, é preciso considerar outra hipótese: que dentro da nossa civilização burguesa hiperindustrializada iremos encontrar o novo espírito que nos permitirá sair do beco. Por outras palavras, que das entranhas dessa civilização poderá ressurgir o sujeito vivo e incomensurável que ela reduziu a objecto conhecido. Não pelo processo da suposta luta de classes, em virtude das razões já largamente desenvolvidas atrás. Quem não vê que a classe operária americana, a mais numerosa e organizada do mundo, é quem menos contesta a civilização burguesa? E quem acredita que a pressão dos sindicatos, ou mesmo as greves «selvagens», levem a outra coisa que não seja a distribuição mais igualitária dos benefícios da mesmíssima civilização?

 

Só por outra via se pode esperar uma transformação da civilização e da vida. Só de uma semente nova que os sindicatos, os partidos, as instituições, as ideologias estabelecidas, não conhecem. Ela germina na arte, nas formas profundas, intersubjectivas, não racionalizadas das relações entre as pessoas. Não nos traz um melhoramento, um acréscimo, um progresso em relação ao que está, mas outra coisa que ignoramos, ou de que nos tínhamos esquecido. Está no miolo de manifestações que nos parecem aberrantes porque estão fora daquela realidade contabilizável que o Burguês de qualquer classe se habituou a considerar como a única que existe. Por isso o marxismo, que teve a ambição de apreender «cientificamente» o contorno do objecto-homem, sem deixar ficar nada de fora, nunca poderá entendê-la, a não ser que consiga regressar ao impulso trans-racional donde partiu o sistema de Marx: a recusa da alienação.

 

A semente de que falo é a subjectividade, que ficou à margem do Progresso, mas que aflora na história de maneira incompreensível para os historiadores burgueses. É dela que nascem experiências místicas de várias religiões; aventuras absurdas do ponto de vista burguês, como a de Francisco de Assis ou a de Ghandi; revoltas como a de Tolstoi. É ela que se manifesta na criação artística, que transcende sempre a consciência do artista e que em vão o cientismo burguês quis explicar pela teoria da Raça-Meio-Momento, ou pela das supraestruturas, ou por outras igualmente ridículas. É por ela que se explica, por exemplo, no seio do império Romano, a expansão irresistível do Cristianismo primitivo - o que se situava, por princípio, à margem de toda a problemática política, social e científica.

 

Esta hipótese leva-nos a uma afirmação que a mentalidade burguesa, quer na versão marxista, quer na liberal, não pode deixar de considerar infantil: é que a transformação do mundo - se é que ele é transformável - será obra de uma mudança espiritual. O que significa que não resultará nem do progresso da tecnologia, nem do conhecimento científico do homem pelo homem, nem da evolução das relações de produção, nem da melhor repartição dos bens produzidos, nem da planificação prospectiva do ano dois mil, nem de qualquer utilização dos factores em que o homem é quantificado e considerado como objecto ou matéria fabricável. Espinosa distinguia a Natureza naturada, aquela que se converteu em matéria, e a Natureza naturante, aquela que se cria a si mesma e que por isso o mesmo filósofo identificava com Deus. Podemos analogamente distinguir o homem hominizado, que é finito e conhecido, do homem hominizante, que é infinito e se cria a si mesmo. Na nossa civilização o primeiro está enterrado sob a sua própria criatura, que é o segundo. A civilização burguesa é a civilização do homem finito produzido, e só pode caminhar no sentido de tapar todas as brechas por onde a infinitude de homem, a subjectividade, possa manifestar-se.

 

É muito interessante a este respeito assinalar uma declaração recente de um chefe de governo estrangeiro: «La société nouveile c'est la société de consommation plus un supplément d'âme.» Isto foi dito com toda a seriedade. Só falta à sociedade de consumo, para ser perfeita, um suplementozinho de alma! Juntemos-lhe esse condimento e teremos a «sociedade nova». Esta frase mostra como na concepção burguesa até a «alma» é um produto comparável a uma especiaria que se pode ir buscar a um armazém em doses «suplementares» para dar um arzinho de graça à sociedade industrial. Afinal, também a alma está ao dispor do tecnocrata: é só ele lembrar-se de que isso faz falta. Digamos que o tecnocrata inclui na planificação um bocadinho de literatura, uma pitada de música, uma dosezinha de artes decorativas, tudo bem contado e pesado para não estragar o equilíbrio. E assim tudo ficará em boa ordem. «Quem não admirará os progressos do nosso século?», como dizia o gramofone do conto de Eça. Mas o homem de Estado em questão nada disse, de novo. Não era já indiscretamente evidente que a publicidade se ocupa com solicitude da alma da gente, com o seu estendal de cores, sorrisos, embalagens, ditos espirituosos e até rimados, músicas de fundo, como se quisesse levar-nos ao Paraíso pelo caminho mais doce?

 

Como quer que seja, com este «suplemento de alma» pretendem os planificadores tapar o último buraco por onde o homem existe sem ser como consumidor ou produtor. É uma forma de lhe expropriar a alma própriamente dita para fazer também com ela alguma coisa de útil e rentável. Os tecnocratas sonham capitalizar tudo, e já o José Estaline dizia que «o homem é o capital mais precioso» [sic].

 

Quanto mais perfeita for a planificação em função da produção, quanto mais o tempo for ritmado pelo cronómetro, quanto mais o biológico ficar subordinado ao mecânico e a actividade ao Capital, quanto mais o «objectivo» se sobrepuser ao «subjectivo», tanto mais forte será a reacção do Sujeito, aparentemente mumificado. Porque me parece impossível que ele não ressuscite, nu e livre como Adão. Na chamada «contestação» que se processa sob formas contraditórias, ilusórias e até muitas vezes alienadas, vejo o prenúncio desse apocalipse, lento ou catastrófico, mas criador. Sem ele não haveria crise da civilização burguesa, mas apenas um envilecimento triste, uma imobilização em estátuas de Loth do que ainda resta de vivo.

 

Maio de 68 em Paris foi uma premonição. Instituições e políticos de vários horizontes quiseram canalizar para o seu moinho este dilúvio - tão breve! - de alegria criadora. Os marxistas não ortodoxos, em lugar de aprenderem com ele humildemente, andaram a pregar aos peixes as suas teorias ressabiadas. Os ortodoxos quiseram ensinar-lhe o «verdadeiro caminho» por onde ele devia correr. Do lado oposto concluiu-se pela necessidade de colher nele, mas em dose moderada, o tal suplementozinho de alma. O resultado conjugado destes esforços e também da inércia natural das sociedades foi a espécie de pântano que sucedeu às águas espumantes a que Homero chamaria «vinhosas» pelo espírito de vida que traziam em si. O cadáver de Maio são as manifestações «gauchistas», premeditadas, arregimentadas, munidas de cacete, orientadas por doutores em «estratégia» e «táctica», teimosamente isoladas do meio juvenil.

 

Maio morreu, como morrem as estações. O que ficou foi a sua imitação. Foi um momento, não uma religião ou um partido. Passou. Mas como passa a vida: para recomeçar (4). E, segundo julgo, crescer em ondas que farão um mar sem margens. As ideologias não resistirão mais que castelos de areia. E talvez então se torne visível o que hoje aos nossos olhos é enigmàticamente opaco.

 

É essa opacidade que me fez acabar esta introdução em estilo metafórico. Faltam-me outras palavras, porque não sei o que vai acontecer. Só pressinto, como um bicho, que a meteorologia está mudando. Ou que, algures, um afloramento de alma faz ondear a crosta da nossa civilização burguesa: é a única certeza que tenho.

 

Lisboa-Paris, Abril de 1970.

 

 

(*) Este texto é, de certo modo, o adeus ao marxismo de António José Saraiva, inebriado pela experiência do maio de 68 em Paris. Saíu pelo lado da Escola de Frankfurt, de que sofreu patente influência, nomeadamente de Herbert Marcuse. Mas dá um passo mais adiante, num sentido francamente libertário, que o aproxima de figuras como Murray Bookchin, Paul Goodman ou Ivan Illich. Com este ideário, de regresso a Portugal após a revolução de abril, fundará a revista Raiz e Utopia. Mantendo a ambição de superação da civilização burguesa, recusa a existência de um sujeito revolucionário socialmente identificável. Esta obra, que inclui ainda um “diário” dos acontecimentos de maio, teve um grande impacto no seu tempo, gerando acesa polémica. Entre os seus desafiadores estiveram Mário de Sottomayor Cardia, José Pacheco Pereira, Jofre Amaral Nogueira, Zeferino Coelho e Daniel G. Paulo. Nem que fosse apenas por isso, pertence à história das ideias marxistas em Portugal.

 

AJSaraiva.Maio2

 

_______________

NOTAS:

 

(1) Na edição inglesa de 1888 do Manifesto, Engels acrescentou uma nota em que define a «burguesia» como a «classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção e explorando o trabalho assalariado». É significativo que quarenta anos depois da 1.ª edição ele se tenha visto obrigado a dar esta definição: é que a palavra «burguesia» tendia já então a ter outro sentido.

 

(2) O processo de assalariamento da burguesia é, na realidade, mais complexo do que aqui se sugere e do que o imaginou Marx. São numerosos, nos países industrializados, os assalariados (incluindo os operários da indústria) que fazem poupança e a investem de variadas formas, tais como acções de grandes empresas, pequenas propriedades imobiliárias de rendimento, participação em pequenos negócios, empréstimos ao Estado, etc.. Mas o rendimento principal destes ínfimos capitalistas continua a ser o salário. E, por outro lado, cria-se a situação, paradoxal mas típica, de a administração destes capitais escapar aos respectivos proprietários para cair nos gerentes-funcionários do capital.

 

(3) Ver o interessante estudo de Annie Kriegel, Les Communistes français, Paris, Éditions du Seuil, 1968.

 

(4) Na realidade, apesar dos esforços conjugados do establishement e do P. C. para o desacreditar ou o recuperar, o movimento de Maio trouxe alterações profundas e irreversíveis a uma instituição básica em França, a Universidade. O velho princípio da Sorbonne, segundo o qual para formar o homem é preciso matar a criança, ainda não foi destronado, mas já não é possível enunciá-lo com a convicção com que o fizeram Emitio Durkheim e os inumeráveis profs. que durante quase um século modelaram gerações de estudantes passivos.