A revolução de 1383 (*)

 

 

BorgesCoelho,1383-1

António Borges Coelho

 

 

 

1. MAL CAIU A TAMPA DO CAIXÃO...

 

O reinado de D. Fernando é uma constante de contradições, guerras, alvorotos, queixas, protestos a um lado; leis extraordinárias de fomento agrícola e marítimo ao outro.

 

Primeiro, a reunião armada em S. Domingos de mesteirais e peões lisboetas, «bem uns três mil» e o cepo para Fernão Vasques e os seus camaradas.

 

Nas cortes tempestuosas de 1371 e 1372, os povos erguem vozearia e clamor contra as prepotências do clero e dos nobres, arrogam-se o direito de proclamar a paz e a guerra (1), atrevem-se a recusar um pedido monetário do rei.

 

Depredação e tragédia assolam os campos do Alentejo e Lisboa. Castelhanos, portugueses renegados e os «aliados» ingleses rivalizam, em três guerras, no saque do camponês rico e do burguês das cidades. «[...] Assim que os castelhanos dum cabo e as gentes del rei D. Fernando do outro era dobrado fogo que gastava e destruía a terra.» (2).

 

Lisboa é abandonada à sua sorte duas vezes, mas, roubada embora, resiste pelos seus meios às investidas dos inimigos. Boa parte dos «aliados» ingleses serão abatidos nos matagais alentejanos.

 

É neste clima de guerra e revolução que D. Fernando promulga as Leis das Sesmarias e da Construção das Naus, promove o levantamento da cintura fernandina de muralhas, mas assina igualmente o tratado que coloca a independência de Portugal sob a espada do rei de Castela.

 

Os portugueses recusam aclamar o rei estrangeiro. Em Lisboa e Santarém os partidários de Beatriz gritam em vão no silêncio: «Arraial, arraial…», e, é significativo, mandam saber depois o que dizem as gentes na Rua Nova e na Rua dos Mercadores (3). No coração e nas praças das cidades e vilas, as bandeiras erguem-se verdadeiramente pela independência de Portugal!

 

Em suma, «mal caiu a tampa do caixão sobre o cadáver de D. Fernando, estalou a Revolução» (4).

 

2. O ALTO BURGUÊS DE LISBOA INICIA O MOVIMENTO (5)

 

O conde de Ourém, João Fernandes Andeiro, homem forte da nobreza e principal negociador dos tratados de entrega da independência portuguesa a Castela, é a eminência parda do regime. Com a morte do rei, o seu papel torna-se mais claro, exercendo as funções dum autêntico primeiro-ministro.

 

Vivia «em gram privança e gasalhado da Rainha, desembargando com ela todos os desembargos do reino» (6). Acompanhavam-no sempre muitos e bons fidalgos, além de trinta escudeiros seus de cote (7) e já antes da morte de D. Fernando «por azo dele (os fidalgos) haviam grandes desembargos del Rei e da Rainha» (8).

 

Pelo seu lado, o alto burguês de Lisboa organiza-se secretamente; tenta aliciar o conde de Barcelos, que hesita e acaba renunciando (por medo ou acalmado com as chorudas postas que recebe - extensos domínios na província, o próprio almirantado); finalmente escolhe para chefe nominal o filho bastardo de D. Pedro, D. João, Mestre de Avis, a quem tenta com a possibilidade do poder. E é contra a cabeça da hidra feudal, o conde João Fernandes Andeiro, que os revolucionários vão assestar o primeiro golpe esmagador.

 

A existência de um núcleo organizado é revelada por Fernão Lopes ao descrever os actos secretos e preparatórios da revolução: a abordagem secreta ao conde de Barcelos e ao Mestre de Avis; as muitas reuniões à parte em casa de Álvaro Pais, para planear o levantamento armado, nomeadamente a forma de mobilizar as gentes populares (9); os pensamentos do Mestre que, quando se dispunha a abandonar a partida, cuida em como esta coisa fora falada com tantos (10); e finalmente a corrida de Alvaro Pais e dos «seus aliados» a amotinar a cidade (11).

 

Esta organização mantém-se durante o período que antecede a constituição do «Governo Provisório». Assim, dias depois da morte do conde, «movuda tal discórdia no povo, como dissemos», trabalham-se «os seguidores della por levar adeamte sua oppeniom» (12). Depois, quando o Mestre abandona o projecto de fuga para Inglaterra, manda recado a Álvaro Pais e a «outros alguns da cidade que lhe sobresto haviam falado» (13). E é ainda tal organização que decide o envio da conciliatória embaixada à rainha, pois foi «posta em conselho perante aqueles com que razão tinha de o falar» (14).

 

A que classe social pertencem os conjurados? À alta burguesia lisboeta que tem por chefe Álvaro Pais (15).

 

«Soe às vezes os altos feitos aver começo per tais pessoas, cujo azo nenhum comum povo podia cuidar que por eles viesse» (16), assim começa Fernão Lopes a vincar a origem vilã do herói. Nas páginas 11, 50 e, novamente, na página 346, ao exaltar o nome dos fidalgos e cidadãos que acompanharam o Mestre, o cronista classifica-o inequivocamente como «cidadão», isto é, alto burguês. «Cidadãos» eram os honrados mercadores de Lisboa, Vasco Lourenço de Almada, João da Veiga, o Velho, Lopo Martins, etc., etc. (17). Fernão Lopes contribui também para definir o vocábulo ao designar Álvaro Pais como «homem honrado de boa fazenda» (18), isto é, vilão que se honrou com a fazenda. O facto de Pais ter ocupado cargos na chancelaria durante os reinados de D. Pedro e D. Fernando (burgueses e letrados galgavam agora os lugares cimeiros da administração pública) só atesta os seus extraordinários dotes de inteligência política.

 

O cronista esclarece mais que, ao ser aposentado com muita honra e competente pensão régia, era tal o prestígio e poder deste político na cidade de Lisboa que, em sua casa, se reuniam os vereadores da Câmara, ou seja, os dirigentes eleitos da burguesia lisboeta, quando por virtude da doença do seu chefe este não podia deslocar-se ao salão da Câmara (19). Tal honra só poderia ser concedida a um cidadão dos mais acaudalados e de excepcional prestígio, pois, nesta data, ainda a organização se não abastardara.

 

Podemos concluir, portanto, que na casa de Álvaro Pais se realizavam não só as reuniões onde se gizava o plano de liquidar o homem forte do regime e insurgir as gentes populares mas também reuniões sobre o governo dos negócios e o governo da cidade.

 

Mas o que acontece afinal no dia 6 de Dezembro?

 

Álvaro Pais com os seus aliados amotina o povo de Lisboa aos brados: «Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre, ca filho é del rei dom Pedro!» É com Álvaro Pais que está a força principal da gente insurgida. Quando o Mestre regressa em triunfo, as donas da cidade (não confundir com as raparigas e mulheres que acarretam carquejas), exclamam das janelas em altas vozes e chorando: «Bento seja Deus que vos guardou de tamanha treeiçom» (20). Isto é, as mulheres e filhos dos burgueses não se mostram apenas favoráveis ao Mestre, mas partilham a tese dos amotinados de que o Mestre se tinha salvo de uma grande traição.

 

Silvestre Esteves, procurador da cidade, alcaide substituto, homem honrado, cidadão (21), comanda o assalto à sé que vai terminar com a morte de Martinho, bispo castelhano, partidário do papa Clemente e um dos validos do rei D. Fernando. A multidão exigia em altas vozes o lançamento do bispo da torre a fundo. Silvestre Esteves estava acompanhado pelo concelho (22).

 

Finalmente Antão Vasques, cidadão (23), juiz do crime, o Antão Vasques que se tornará um dos chefes militares de epopeia, apregoa da parte do Mestre e não da rainha, como aquele queria, que ninguém fosse tão ousado que assaltasse a judiaria e os judeus (24).

 

A situação é definida com realismo e sabor por Leonor Teles, quando o Mestre (o alto burguês é alheio a tal iniciativa) ajoelha a pedir perdão: «Para que é ora tal pedir de perdom?... parece-me que sobejo é pedir homem o que tem.» (25)

 

Logicamente, o «Governo Provisório» é constituído quase só por elementos da alta burguesia: o enteado de Álvaro Pais, João das Regras; o mercador prazentim Persifal, tesoureiro-mor; Lopo Martins, o tal rendeiro dos direitos e rendas da portagem, do paço da madeira, da adega, do relego; o alto burguês portuense Martim da Maia, vedor da Fazenda.

 

Deste modo, o movimento é iniciado e dirigido desde os primeiros momentos pela burguesia lisboeta e o seu objectivo confessado é, procurando audaciosamente o concurso das camadas populares, não só liquidar o valido da rainha mas colocar no trono o dócil Mestre de Avis.

 

Sérgio salientou já suficientemente o «Acorramos ao Mestre, amigos, ca filho é del rei dom Pedro». Este brado explosivo ganha maior relevo se nos lembrarmos do «Arraial, arraial, cujo for o reino levá-lo-á». Antão Vasques secunda este brado ao apregoar a proibição do assalto à judiaria em nome do Mestre, chefe da revolução, e não em nome da rainha, chefe do Estado legal, digamos. A atitude de Antão Vasques leva o povo a exclamar: - «que estamos fazendo? Tomemos este homem por senhor e alcemo-lo por rei» (26). Domingues Pires das Eiras, alto burguês portuense, quando promete o apoio financeiro e material da cidade, salienta: «mormente ser ele filho del rei dom Pedro, como é» (27).

 

Mesmo quando se tenta a manobra de casar o Mestre com a rainha, o objectivo do casamento é ainda alçar o Mestre ao lugar de rei. Mais tarde, os procuradores de Lisboa vão às cortes de Coimbra, munidos de plenos poderes para eleger rei o Mestre de Avis. Um dos chefes lisboetas, João das Regras, desembaraçará o terreno político e ideológico que desfechará na eleição. A propaganda entre as massas da candidatura do Mestre atingira tal profundidade que, a acreditar em frei Pero, uma menina de colo ergueu-se «em cu três vezes» e gritou: - Arraial, arraial por D. João, Mestre de Avis, rei de Portugal... (28).

 

Evidentemente, afirmar que a burguesia organizou e dirigiu a revolução do 6 de Dezembro não equivale a negar o papel do povo miúdo. Ele é o mar que lava e purifica a praia revolucionária e a ela arroja os tesouros da coragem e da firmeza.

 

É o povo miúdo que engrossa de tal modo que não cabe nas ruas principais; é ele que põe em fuga os parciais do Andeiro e finalmente a rainha; é ele que se lamenta aos brados - «oó que mal fez! pois que matou o treedor do Conde que não matou logo a aleivosa com ele» (29); é das suas mulheres que Leonor quer um «tonel cheio de línguas»; é ele que amontoa a lenha e carqueja para incendiar o paço; é ele que chora com o prazer de encontrar vivo o seu herói; é ele que entra em greve insurreccional (30) e organiza uniões para a defesa da sua linha política.

 

O povo é a carne e o sangue de todas as revoluções. Em 1383 a direcção no cume não esteve nas suas mãos.

 

3. O EPISÓDIO DE S. DOMINGOS

 

Corno é possível sustentar a afirmação de que o movimento de 1383 foi inicialmente dirigido pela burguesia, se é o povo miúdo que elege o Mestre de Avis Regedor e Defensor do Reino? Não são os miúdos que empurram a burguesia «hesitante e acobardada» (31)? Não indica este episódio que inicialmente a revolução teve um cunho nitidamente popular (32), e só mais tarde tomou um carácter burguês?

 

Quem aliciou o Mestre de Avis? Álvaro Pais e os seus aliados. Qual o objectivo dos revolucionários burgueses, até quando tentam o casamento do Mestre com Leonor Teles? Fazer rei o chefe nominal do movimento. Quem comanda o povo amotinado e agita entre as massas o nome do filho mais novo do rei D. Pedro? Os cidadãos Álvaro Pais e Antão Vasques.

 

No entanto, quando os burgueses procuram congraçar Deus com o Diabo, isto é, o Mestre com a rainha Leonor, o povo lisboeta convoca um comício para o Mosteiro de S. Domingos e aí, passando por cima da decisão do conselho, elege o Mestre Regedor e Defensor do Reino. Depois, na reunião da Câmara, perante a hesitação dos mais altos burgueses, o tanoeiro Afonso Anes Penedo e os seus amigos impõem a eleição efectuada em S. Domingos.

 

Mas o que pretendem Afonso Anes Penedo e os seus amigos? Assumir a chefia dos acontecimentos? Não! O que o povo de Lisboa quer e obtém é que a burguesia assuma aberta e legalmente a responsabilidade dos acontecimentos que vinha dirigindo à boca calada.

 

«E foi assi scripto e assinado per suas mãos.» (33)

 

Por outro lado, este acontecimento mostra que o povo não aceita compromissos com a rainha e exige que se prossiga a revolução.

 

Finalmente, os mesteirais e povo miúdo alcançam, é verdade, a criação da Casa dos Vinte e Quatro e até participam no governo da cidade (34), em assuntos relacionados com o movimento ou, melhor dito, com a sua colaboração no movimento. No entanto, e este facto é concludente, nenhum representante dos mesteirais ou povo miúdo ascende ao «Governo Provisório» que sai da reunião da Câmara, precisamente da tal reunião onde Afonso Anes Penedo desembainha a espada e a garganta.

 

Assim, a direcção da revolução continua nas mãos da burguesia e tal direcção não lhe é disputada. As organizações populares velam, sim, para que a revolução burguesa chegue às suas últimas consequências, para que o amor da bolsa não empane no alto burguês o amor pela liberdade e o poder.

 

Ainda: no comício de S. Domingos não estavam todos os honrados da cidade, o que significa, pelos vistos, que estavam alguns (35). E quando o Mestre, desmoralizado e fraco, quer fugir para Inglaterra, não são apenas os pequenos, «mas eram assim os grandes como os pequenos abalados com medrosos pensamentos» (36).

 

Os acontecimentos do Porto confirmam esta interpretação.

 

Quando o povo miúdo mata o burguês Álvaro da Veiga, porque o faz? Porque se recusara tirar as castanhas do lume, porque recusara percorrer as ruas da cidade com o pendão do Mestre à frente, ou seja, porque se recusara a tomar a chefia declarada da revolução no Porto. O povo não desiste. E em vez de escolher qualquer mesteiral ou trabalhador ordena que seja «um bom-homem», Afonso Anes Paateiro, que se adiantou logo a correr a cidade com o pendão dos revolucionários (37).

 

A «aristocracia das cidades» não era, apesar das suas vacilações, «um grupo de pequeno peso, amedrontado e empurrado pela massa dos miúdos» (38). Se assim fosse nunca teria feito a revolução.

 

Nos capítulos anteriores sentimos pulsar a pujança económica, militar e política da burguesia. Dois cercos a Lisboa foram gorados pelas próprias armas da cidade. O burguês planeia, dirige, desencadeia as manifestações de 6 de Dezembro. Sairá vitorioso, depois de anos de luta e vigília armada, de uma revolução e da guerra que a acompanha.

 

Querem exemplos pessoais de maior coragem que a de Gil Fernandes, de Antão Vasques, de João Vasques de Almada ou a desse mercador do Porto «muito atrevudo no mar», João Ramalho, que vai Cascais-Lisboa e torna, num bote, de noite e pelo meio da esquadra castelhana que cercava a cidade?

 

Querem coragem política mais saliente do que a de Álvaro Pais ao aconselhar o Mestre:

 

«Senhor, fazee per esta guisa: Daae aquello que vosso nom he, e prometee o que nom teemdes, e perdoaae a quem vos errou, e seervos ha mui grande ajuda pera tall negoçio em quall sooes posto.» (39)

 

4. O MOVIMENTO CORRE CONTRA A NOBREZA FEUDAL

 

Nos paços da rainha, chefe do Estado legal, é morto o principal conselheiro e valido, o conde João Fernande Andeiro. A multidão pretende mesmo, passando por cima dos dirigentes, liquidar no local o próprio chefe do Estado.

 

Surpreendida com a amplitude do movimento, Leonor Teles abandona Lisboa, onde lhe falta segurança, e refugia-se sucessivamente em Alenquer e Santarém. Tenta regrupar os partidários. Impotente para sufocar a rebelião que alastra, pede depois, contra os tratados, o auxílio militar do rei de Castela.

 

Lisboa havia de ser destruída e arada a bois; mandaria encher um tonel com as línguas das suas mulheres.

 

No entanto, os grandes senhores vão caindo sob o ferro dos vilões: D. Martinho, bispo de Lisboa; o almirante Pessanha; Nuno Rodrigues de Vasconcelos; o conde de Penela, degolado com o ferro do vilão Caspirre; a abadessa de Évora; Pai Rodrigues; Cogominho; e, quando chegar Aljubarrota, os cadáveres dos condes de Barcelos, de Pedro Álvares Pereira, Gonçalo Vasques de Azevedo vão juntar-se aos cadáveres dos seus pares.

 

Ao abdicar da Regência, com a consequente passagem da chefia da nobreza e do Estado para o rei de Castela, Leonor Teles aliena mais simpatizantes do seu partido. Tenta depois o assassínio do rei, seu genro, o que lhe acarreta a prisão no mosteiro castelhano de Tordesilhas.

 

Entre outros, dois momentos narrados por Fernão Lopes põem a nu o carácter social da guerra da independência, quando «Castela era contra Portugal e Portugal contra si mesmo» (40).

 

Ao saber da fome que lavrava em Elvas, o rei invasor foi sujeitá-la a cerco. Inútil. Os cercados chegam ao desaforo de assaltar e introduzir na vila os víveres e armas destinadas ao arraial castelhano. O rei, raivoso e impotente, faz decepar um prisioneiro que manda para a vila com os cotos ao peito. Na represália, Gil Fernandes põe no cepo dois fidalgos aprisionados e envia-os também com os cotos sangrentos e um letreiro: Se mais vilões decepar... Uma das vítimas objecta que não está certo decepar dois fidalgos por um vilão. Gil Fernandes responde que não está ali a pesar dívidas de fidalguia (41).

 

Agora estamos no rescaldo de Aljubarrota. O rei João de Castela chega a Santarém de noite, a tremer com sezões, e chorando a derrota. Já no castelo, anda entre tochas acesas e aos brados:

 

«- Ó Deus, que mau rei e sem ventura!

«E movendo-se só contra uma parede deu com as mãos nas faces e quedas as palmas no rosto, pós a cabeça na parede e chorando dizia assim:

«- Ó bons vassalos amigos, que mau rei e mau parceiro tivestes em mim, que vos trouxe todos a matar e não vos pude acorrer nem ser bom!»

Tentam confortá-lo os cortesãos, lembram-lhe o exemplo do pai que, vencido, acabara por vencer.

«[...] quando isto ouviu, a modo de escárnio, começou a dizer:

«-[...] Pensais vós que não sei eu que a muitos reis e senhores aconteceu já isto que ora a mim veio? […] E se vós dizeis que outro tanto aconteceu a meu padre, verdade é que assim foi. Mas rogo-vos que me digais de que homens e gentes foi o meu pai vencido. [...] Foi-o do Príncipe de Gales. [...] Foi-o de ingleses que são a frol da cavalaria do mundo. E eu de quem fui vencido e desbaratado? Fui-o do Mestre de Avis de Portugal que nunca em sua vida fez feito que montasse cousa que para dizer seja. E de que gentes fui eu vencido? Fui-o de chamorros que ainda que me Deus tanta mercê fizesse que os todos tivesse atados em cordas e os degolasse por minha mão, minha desonra não ficaria vingada(42)

 

Sim, esta não é uma guerra de cavalaria, uma guerra entre parceiros fidalgos. Nuno Álvares Pereira preferia morrer combatendo nas «fraldas» do tão nobre rei castelhano que serem depois, ele e os seus, «apanhados de lugar em lugar como perdigotos e enforcados uns e uns pelos sobreiros» (43).

 

Cada vila, mas sobretudo o Alentejo, Lisboa, Aljubarrota, serão o sangrento sudário da derrota feudal. Na convulsão desaparecem cabeças, tesouros, condados - o de Viana, o de Seia e o de Neiva e os três restantes (Ourém, Barcelos e Arraiolos), juntam-se na mesma cabeça.

 

Qual foi o problema central que arrastou por tantos anos o tratado de paz com Castela? Seria um problema de fronteiras? Seria um litígio entre os países? Não! Foi o problema da restituição ou não das terras e bens aos nobres portugueses que tinham levantado o ferro contra os vilões e contra Portugal (44).

 

O tratado de paz oficializa o estado de coisas estabelecido pela revolução: os partidários de Beatriz, ainda fugidos em Castela, têm de contentar-se com uma indemnização em dinheiro para os compensar da expropriação dos seus bens patrimoniais (45).

 

5. A BURGUESIA DIRIGE A REVOLUÇÃO NOS CAMPOS

 

Quando o povo armado irrompeu nas ruas de Lisboa, já as classes haviam tomado as suas posições e Gil Fernandes fora libertado pela malta das vinhas. E ao brado de Álvaro Pais, os povos da província levantam-se resolutamente contra a nobreza feudal e seus partidários que eram simultaneamente os partidários da rainha Leonor e do rei castelhano.

 

As cidades e castelos do Porto, Évora, Beja, Elvas, Portalegre, Estremoz, a maioria das vilas alentejanas e todo o Algarve caem rapidamente nas mãos dos sublevados.

 

Em Beja, justiçam um dos mais altos representantes da hierarquia feudal, o almirante Pessanha, senhor de Odemira. Em Estremoz, Moor Lourenço, a adela Margarida Anes e outras mulheres matam o fidalgo Nuno Rodrigues de Vasconcelos que dissera mal do Mestre e era castelhano.

 

Os capitães da primeira hora são Afonso Anes Paateiro, um «bom-homem», Domingos Pires das Eiras, e Martim da Maia, futuro vedor da fazenda, no Porto; em Évora, os «grandes» Diego Lopes e Fernão Gonçalves; em Beja, Gonçalo Nunes, um bom escudeiro que não era dos grandes nem dos mais pequenos; em Elvas, Gil Fernandes, homem de quem Nuno Álvares «mais preçava o corpo só que quantos com ele vinham»; em Vila Viçosa, Álvaro Gonçalves Coitado, abastado proprietário que, além dos bens na vila, possuía uma quinta perto de Benavente para onde enviava, depois de uma razia por Castela, 24 éguas.

 

Nomes episódicos? António Sérgio afirma que a classe média dos concelhos, devorada por uma vasta roubalheira, alinhou com a rainha (46). Ao que nos parece, os factos não se coadunam com esta interpretação.

 

Quando se sabe em Beja que o almirante vai a caminho de Odemira para alçar a vila, cortam-lhe o passo cinquenta cavaleiros e perto de cem besteiros. Numa entrada por Castela, avançam cem cavaleiros de Elvas, quatrocentos homens de pé (47). Ou seja, em Beja e Elvas, centros nevrálgicos, continuavam a viver e a comandar, pelo menos, respectivamente, cinquenta e cem cavaleiros ou, mais precisamente, cinquenta e cem proprietários suficientemente ricos para se furtarem aos encargos de trabalharem por conta de outrem e simultaneamente com direito a utilizar trabalho assalariado nas suas terras.

 

Quando tomam o castelo, são os homens do concelho de Estremoz que mandam derribar as portas da torre e do castelo que davam para a vila. É ainda o concelho de Évora que escreve ao Mestre a colocar-se sob a sua bandeira. Para reempossar o traidor Vasco Porcalho no comando de Vila Viçosa, o Mestre escreve uma carta a Álvaro Gonçalves e ao concelho da vila. Quem entrega ao Mestre Montemor-o-Novo? São os homens-bons. Perante o ataque infrutífero ao castelo de Alenquer, fogem todos os melhores da vila com mulheres e filhos e o pouco que podem levar, ficando apenas os pobres (48). Na campanha efectuada em Entre Douro e Minho, os homens-bons e os melhores têm papel decisivo na entrega de Cerveira, Caminha, Monção, Guimarães, Viana do Castelo, Braga, Ponte de Lima. À partida, Nuno Álvares não levava mais de cento e cinquenta escudeiros encavalgados. Oito léguas percorridas, perto de Darque, levava já quatrocentas lanças encavalgadas com bacinetes levantados.

 

Mas, e as vilas que tomam o partido Leonor-Castela?

 

Olhem para Santarém: Sujeitam a vila dois mil homens da guarnição castelhana, amesendando-se nas casas dos habitantes, roubando-lhes víveres e haveres, quando não as mulheres e as filhas. No entanto, gado e pão da vila e das lezírias escorrem clandestinamente para Lisboa. Escudeiros de Gonçalo Vasques de Azevedo, arriscando os bens e as vidas, escolhem o Messias de Lisboa. Depois, quando baixa o pó de Aljubarrota, ninguém consegue segurar mais tempo o povo que liberta a vila e fulmina justiça e vingança contra os opressores da véspera.

 

Mas os mercadores de Évora que abraçaram o partido da rainha? E os «melhores e mais honrados», roubados pela arraia-miúda?

 

Nunca afirmámos que todos os burgueses, rurais ou não, sustentaram o pendão do Mestre, nem tão-pouco que os ventres ao sol não aproveitassem todas as oportunidades para a conquista de bens ao luar. O que se afirma é que a classe, no seu conjunto, no essencial de homens e interesses, tomou, logo de início, melhor ou pior, o comando. O que se afirma é que os principais acontecimentos se desenrolaram sob a chefia dos seus capitães.

 

Não negamos também a eclosão e vigor das insurreições camponesas verificadas em algumas vilas. Certas perplexidades, sobretudo entre os mais honrados, as perplexidades dos homens-bons de Montemor, resultam precisamente da espinha que a burguesia trazia entalada na garganta - o medo dos que pegavam do outro lado da corda.

 

As tradições feudais explicam a deserção de alguns destes melhores e honrados: ao acostarem-se ao senhor, isto é, ao tornarem-se membros da sua milícia particular, ficavam vinculados ao destino do seu chefe. Significativamente, um dos mercadores trânsfugas de Évora era dívido de Leonor Teles, pois casara com uma das suas donzelas.

 

Por outro lado, os grandes de Évora e Beja, ao serem expulsos pelos pequenos, que fazem eles? Passam-se com armas e bagagens para a rainha? Não! Pedem a intervenção do Mestre.

 

Mas o jogo aconselhado por Álvaro Pais, o dai o que vosso não é, o perdoai a quem vos não errou? Não indica isto que se organizou uma verdadeira caçada («parecia que lidavam pela fé»), uma razia em grande escala da «classe média dos concelhos»?

 

Não se nega que os partidários de Leonor Teles vissem os seus bens expropriados e que «quantos eram pela rainha má morte tinha logo prestes». Que

 

«[...] como um falava: E foão deles é, não havia cousa que lhe desse vida, nem justiça que o livrasse de suas mãos; isto era especialmente contra os melhores e mais honrados que havia nos lugares; dos quais muitos foram postos em grande cajom de morte e roubados de quanto haviam.

«E deles com medo fugiam para as vilas que tinham voz por el-rei de Castela; outros se iam para fora do reino, deixando seus bens e tudo quanto haviam, os quais o Mestre logo dava a quem lhe pedia; e os miúdos corriam após eles e buscavam-nos e prendiam-nos tão de vontade que parecia que lidavam pela Fé.» (49)

 

O que se nega é que, no conjunto, a burguesia rural se identificasse com o partido da rainha e que essa classe fosse alvo de uma expropriação em massa e, muito menos, saísse enfraquecida ou debilitada do conflito.

 

As palavras de ordem de Álvaro Pais não visavam a colectivização da propriedade rural, nem tão-pouco a redistribuição da terra em courelas, nem em suma qualquer mudança radical na nova estrutura social burguesa que triunfava, mas tão só atrair à revolução, interessar nela, com os bens do partido feudal, os quadros mais capazes e dinâmicos.

 

Muitas fortunas mudaram de mãos, muitos joões sem terra ascenderam à propriedade, mas o sistema mantém-se e sai mesmo reforçado. Alguns burgueses alçados a capitães, anunciarão já o grupo dos que «mais podem» (50), grandes proprietários de quintãs e herdades, armados e revestidos de roupagens feudais, e que vão desempenhar um papel de primeiro plano durante todo o século XV.

 

Citaremos um número para se avaliar dos progressos e da solidez que a revolução tinha proporcionado a esta classe. Nos Atoleiros, os cavaleiros vilões não passavam de trezentos. Quando o infante D. Dinis invade a Beira, as tropas alentejanas, que vão ao seu encontro, contavam já 1200 lanças.

 

O segundo braço que ampara o vacilante trono do Mestre, que arranca a vitória dos Atoleiros e contribui poderosamente - eu diria decisivamente - para o desfecho de Aljubarrota é este exército de Entre Tejo e Guadiana, constituído por foreiros e assalariados, pelos cavaleiros de quantia - oficiais de armas da burguesia. Fernão Lopes destaca claramente a contribuição deste exército para a vitória do movimento, conservando-nos até os nomes mais representativos que o chefiavam e eram em cada concelho os líderes da burguesia rural: Esteves Anes Mãgaãncha, Pero Rodrigues, Gonçalves da Arca e tantos outros.

 

Mas estamos efectivamente perante um exército da burguesia?

 

Burgueses eram os seus capitães; burguesa a sua causa; burguês o dinheiro que o sustentava e lhe comprava as armas. Em Coimbra, por exemplo, são os mercadores que financiam o regresso ao Alentejo deste exército mal vestido e mal armado que abre bocas de espanto ao senhor de Coimbra. São os burgueses de Lisboa, Porto e todo o reino que põem à sua disposição dinheiro e mercadorias. Vila Nova de Portugal afirma, em 1793 (51), que o governo de D. João, ao retirar às terras doadas a obrigatoriedade do serviço militar, serviço que é pago em dinheiro pela Coroa (as contias), faz do exército um exército burguês e aplica uma tremenda machadada na estrutura feudal. E se já antes da revolução o serviço militar era pago simultaneamente em dinheiro e em terra, agora a novidade está na extensão do pagamento às próprias tropas vilãs.

 

Em suma, se simbolizarmos a revolução numa imagem de madona medieval, num dos seus braços, o braço direito, pinta Lopes os cidadãos e os altos burgueses do comércio marítimo, escrevendo ali a palavra Lisboa; no outro braço, pinta Nuno Álvares e os seus companheiros de armas que percorreram o País a espalhar o evangelho português (52).

 

6. A INSURREIÇÃO DE ASSALARIADOS AGRÍCOLAS E MESTEIRAIS

 

Os povos miúdos suportavam uma dupla opressão: a da nobreza, que os ferreava com a servidão, os foros, os dízimos, as alcavalas, as masmorras e o cepo; e a da burguesia, que os forçava a trabalhar por salários baixos e tabelados.

 

Assim derrotado o poder senhorial em Évora, o povo desdenhou os capitães burgueses da primeira hora e estes tiveram de acolher-se junto do Mestre. Os novos capitães são agora cabreiros e alfaiates, Gonçalo Eanes e Vicente Anes.

 

O mesmo acontece em Beja e em outros lugares.

 

Alguns grossos burgueses, os partidários da rainha, seus dívidos e parentes, todos os que se haviam comprometido nas guerras de D. Fernando, passaram o seu mau bocado.

 

A insurreição camponesa, vigorosa em Évora, Beja e outras vilas alentejanas, nunca chegou a pôr em grave perigo a revolução burguesa, nem a desacatar a chefia suprema do Mestre e consequentemente da burguesia lisboeta. Mesmo quando expulsa os mais ricos, a arraia-miúda fá-lo a pretexto de que se amam o serviço do Mestre, que o vão servir para Lisboa.

 

O «Governo Provisório» não pactuou com a insurreição dos ventres ao sol e enviou ao Alentejo uma hoste comandada pelos burgueses expulsos de Évora, Beja e outros lugares, sob o comando supremo de Nuno Álvares Pereira. Na hoste se integraram também quarenta bons escudeiros de Lisboa, entre eles os honrados João Vasques de Almada e Pedro Eanes Lobato, que se tornariam das figuras mais proeminentes de todo o reinado de D. João.

 

A missão deste exército é revelada pelos poderes extraordinários de que vai revestido: faculdade de doar bens, dinheiros, acrescentamentos, receber menagens dos castelos e fazer justiça. Isto é, por um lado, expropriação dos partidários da rainha e suster o perigo castelhano; pelo outro, debelar a insurreição dos pequenos e o restabelecimento dos burgueses no governo municipal.

 

O incidente de Vila Viçosa com Vasco Porcalho mostra como os burgueses não pactuavam com a insurreição popular. Este Porcalho, capitão da vila, fora preso por conluio com o rei de Castela. E quando o povo bradava:

 

«- Morra o traidor com quantos tem!, dizendo que lhe pusessem o fogo, fizeram-nos estar quedos(53).

 

Aos Álvaros Coitados não convinha que a revolução degenerasse em jacquerie.

 

Nuno Álvares desiste do cerco posto a Vila Viçosa para não perecerem alguns bons que com ele andavam, «desi para acudir a outras cousas que pela comarca recreciam, a que cumpria tornar por serviço do Mestre» (54). Que coisas recresceriam pela comarca?

 

A insurreição camponesa deu os seus frutos. De 1383 a 1391, ou seja, pelo espaço de oito anos, os trabalhadores agrícolas conseguem despedaçar a tabela dos salários e, por todo o reinado de D. João, os burgueses vão ver-se em palpos-de-aranha para conter as «uniões» e o vigor das massas revolucionárias camponesas.

 

7. NUNO ÁLVARES PEREIRA

 

Contrariamente a muitos autores, defendemos que Nuno Álvares Pereira não é para Fernão Lopes o herói querido de dentro; herói sim, mas incómodo e de que se aproveita para inculcar conselhos e exemplos aos príncipes do seu tempo.

 

Compare-se o fogo que anima a prosa do cronista nos principais episódios da revolução, compare-se a ternura com que lamenta a morte do «bom» Rui Pereira, por exemplo, com o estilo baço de martirológio ao cantar as virtudes do Condestável.

 

As reservas postas por Fernão Lopes são demasiado evidentes. O tema era de tal modo perturbador que dedica um capítulo «às razões do autor antes que fale dos feitos de Nuno Álvares». Afirma que usará o modo de alguns pregadores que enxertam no sermão a vida do pregado e no fim concluem o seu tema.

 

«[...] fugir nom podemos aos que em rreprehender tomam deleitaçom. [...]

«Porque alguns sem limpo desejo, podem dizer, que nos ho louvamos mais do que seus feitos merecem [...] que este segre nom pode aver tali, que de mingua alguüa possa careçer. [...]

«Ou taaes dirom per ventuira, que seu louvor he menos que deve [...] prasmandonos de ousada presumpçom de querer poer em escripto, o que ja compridamente nom podemos.

«Outros querram dar per comto tamtas boas cousas, feitas per alguü de menos autoridade e homrra, dando rrazões pera os iguallar a este de mais gramde estado(55)

 

E noutro passo... «nem podia alguém em elle poer prasmo que nom fosse avudo por melicioso» (56). É igualmente digno de meditação o elogio com que encerra o capítulo. Louvando as virtudes do herói, escreve:

 

«Potuit enim facere mallum et non fecit» (Pôde, no entanto, fazer o mal e não o fez) (57).

 

Nuno Álvares Pereira é, simultaneamente, o general de maior patente da revolução e o reagrupador dentro dela das forças da nobreza.

 

Quando vai colocar-se sob a bandeira do Mestre e passa em Alenquer, alguém sugere à rainha a prisão do jovem, enquanto outros contestam:

 

«Não haveis por que o mandar prender, posto que ele vá para Lisboa, pois não sabeis a intenção que leva; ca porventura ele vai com tal vontade e desejo, que de lá vos poderá tão bem e melhor servir, que se vir aqui para nós.» (58)

 

A suspeita da burguesia espreita Nuno Álvares desde os primeiros passos. O governo, com João das Regras à frente, resolve torpedear todas as propostas de Nuno. Quando é indigitado pelo Mestre para a chefia do exército que parte para o Alentejo, o conselho não considera Nuno capaz da empresa, pois o comandante devia ser um «homem avisado, sabedor da guerra e demais tinha os seus irmãos com os inimigos» (59). Finalmente, concordam com a chefia de Nuno Álvares, mas juntam ao exército quarenta escudeiros dos bons da cidade, «não por segurança do Mestre, como alguns escrevem» [...] (60). Na véspera da Batalha dos Atoleiros, uma parte importante do seu exército esteve para abandoná-lo porque não tinha confiança na sinceridade do seu capitão.

 

No entanto, Nuno Álvares não regateou a vida nas batalhas da revolução. Os seus desígnios é que não coincidiam frequentemente com os interesses da burguesia. Não cessa de reagrupar, de atrair à bandeira do Mestre os altos representantes da nobreza feudal.

 

Quem convence o alcaide do castelo de Lisboa a não oferecer resistência? Quem salva e protege a condessa em Coimbra, depois de esta lhe ter armado uma cilada, descoberta pelo povo? Quem procura convencer afincadamente Gonçalo Vasques de Azevedo sobre as vantagens e o futuro da causa do Mestre? Quem é que declara a Gil Fernandes que «mais preçava seu corpo só que quantos com ele vinham»? Quem exclama para o fidalgo de Portel, partidário do rei de Castela que «ao deixar o certo pelo incerto lhe parecia não houvera bom conselho»? Quem recebe «quase metade» de Portugal, quer de juro e herdade quer em préstamo? Quem é que pretende reanimar a velha estrutura social, distribuindo terras aos seus capitães, numa base de dependência feudal, com obrigatoriedade de serviço militar? Quem apresenta nas cortes, em nome da classe, os capítulos dos fidalgos? Quem protege o Álvaro Gonçalves Camelo, prior do Hospital?

 

Não é por isso de admirar que sejam frequentes os choques entre Nuno Álvares e os dirigentes burgueses.

 

Um episódio significativo ocorreu em Elvas com Gil Fernandes. Segundo uns, Nuno Álvares entrou na vila porque lhe chegara recado de que alguns bons do lugar se queriam alçar pelo rei de Castela. Este argumento serviu de pretexto a Nuno para expulsar da cidade e remeter para o Mestre Gil Fernandes, Martim Rodrigues e outros bons do lugar. Outras vozes afirmam que o objectivo de Nuno é casar seu irmão Fernão Pereira com a filha de Gonçalo Martins, alcaide de Elvas, deposto à força nas primeiras jornadas da revolução e, consequentemente, passar a chefia militar da vila para as mãos dóceis de seu irmão.

 

O episódio não se saldou favoravelmente a Nuno Álvares, pois quando o rei de Castela cercou a vila já Gil Fernandes reassumira o comando militar das tropas e da vila de Elvas.

 

Femão Lopes coloca por vezes o general em situação embaraçosa. Quando Nuno Álvares é nomeado fronteiro para a comarca de Entre Tejo e Guadiana, João das Regras e os seus amigos argumentam que, em seu lugar, devia ir um «homem avisado, sabedor da guerra». Isto é, os dirigentes lisboetas não o têm nessa conta.

 

O próprio cronista, num dos capítulos laudatórios, confirma, com palavras suas, a inexperiência de Nuno Álvares:

 

[...] «partindo de Lisboa com tamanho carrego (a Frontaria de Entre Tejo e Odiana), mormente em guerra tão acesa per tantas partes, sendo-lhe estranhas e fora de usança as sagaçarias a tal negócio pertemcentes» (61), fez seu conselheiro-mor Pedro Eanes Lobato, burguês lisboeta, futuro regedor da Casa do Cível.

 

A tão falada táctica «pé terra», usada nos Atoleiros, tem de estar ligada ao conselho da hoste e à escassez dos meios militares, a não ser que, só de atravessar o Alentejo, Nuno Álvares ganhasse subitamente uma experiência e uma iluminação geniais. Os vilões de Penela que saíram ao encontro do conde de Viana, que os roubava, e escaramuçaram com ele pé terra e o venceram, não tinham nenhum capitão para lhes ensinar a nova táctica.

 

Em Aljubarrota, as recentes escavações que puseram a nu os fossos e armadilhas destruíram o mito de um comandante agraciado com o favor celeste. A superioridade portuguesa estava na justiça da sua causa, em estar a defender a sua terra e os seus bens, no uso de uma táctica militar revolucionária, enriquecida com a experiência militar dos ingleses, alguns dos quais pelejaram e morreram nos campos de Aljubarrota.

 

Aliás, Nuno Álvares, não nas palavras - o cronista põe-no a defender em voz alta a táctica revolucionária - é frequentemente um capitão cavaleiresco. Prefere morrer nas fraldas de um nobre rei, desafia à trombeta os adversários para torneios de cavalaria e, em Valverde, quando se desenrolam já os primeiros combates, as suas tropas estão sem comando e ele, atrás de uns rochedos, a implorar o favor divino. Esta atitude poderá emoldurar com uma auréola de santidade a cabeça do herói, mas, sob o ponto de vista militar, é desastrada e o cronista parece ter disso uma ideia clara.

 

A fama militar de Nuno Álvares está ligada às vitoriosas campanhas do seu exército, aos oficiais burgueses que o comandavam, à «manha» camponesa do seu exército de camponeses, embora como comandante supremo partilhe larga e merecidamente da sua glória.

 

Em toda a campanha inicial no Alentejo, o exército comporta-se com a intuição, o saber, o sacrifício, de um verdadeiro exército revolucionário. Quanto ao diálogo sobre táctica militar que Lopes põe nas bocas do Mestre e do conde, este notabilíssimo diálogo põe a nu, independentemente dos homens que o simbolizam, o duelo travado entre duas tácticas: a da guerra revolucionária e a outra, a da velha nobreza senhorial.

 

Comparemos seguidamente os «raides» operados em Castela pelos chefes da burguesia, Gil Fernandes, Antão Vasques e outros, e as surtidas ou entradas chefiadas por Nuno Álvares.

 

Gil Fernandes arremete por Castela com cem homens de cavalo e quatrocentos homens de pé. O gado roubado é tanto que todos podem tomar dele e comer.

 

Antão Vasques parte de Serpa com o mesmo número de homens e recolhe na empresa quatro mil vacas, cinco mil ovelhas, mil porcos, dez prisioneiros, um dos quais havia de pagar cem mil reais de prata.

 

E Nuno Álvares? Nas incursões por Castela refreia o assalto e a depredação, enquanto o exército sedento e indignado exclama: se pretendia apenas honra e glória e não ganho, bem se agarrava depois às postas do reino que pedir sabia (62). Por ter furtado um cálice de uma igreja, o conde mandou queimar vivo um bom escudeiro, Gonçalo Gil de Veiros, e só os afincados rogos de todos os capitães e cavaleiros da hoste lhe conseguiram salvar a vida, já quando estava a fogueira acesa.

 

Eis aqui um problema intrincado para filósofos, para a ética e a economia. Qual a atitude mais progressiva, a atitude dos burgueses ou a do conde?

 

Lopes diz que «a esperança do trigoso galardão os grandes trabalhos faz parecer pequenos». Por outro lado, muitos nobres ao proibirem o saque ou mostrarem perante ele as lamentações de Zurara, têm medo é que estas riquezas vão emancipar novos vilões ou aumentar a sua força e poder.

 

Nuno Álvares Pereira ocupa de direito um lugar destacado entre as magnas figuras do seu tempo. Não faltam factos a aureolarem o seu retrato de autenticidade, grandeza, coragem, fidelidade.

 

«Avia compaixom dos pobres e mimguados, nom os deixando padecer injuria; e a sua larga mão sempre era prestes a dar, onde quer que humanal honra ou spiritual proveito conseguia seu dom.» «Aos muitos pequenos era tão doce como parvoo.» (63)

 

Cremos que ele viveu o seu papel de protector de noivas e mendigos, que partilhou abnegadamente a fome do seu exército. Uma vez, com uma grandeza de legenda, manda distribuir trigo aos refugiados castelhanos que se acolhem a Portugal, açulados pela fome. Noutro passo, cavalga um cego na sua montada e leva-a pela rédea. Este jovem que a ambição do poder e da glória, a amizade ao Mestre e o amor à sua terra levam às fileiras da revolução, procura impedir a todo o custo a ruína do velho mundo feudal, mas perante o galope dos ginetes burgueses, Nuno Álvares Pereira é bem o homem que leva a montada pela rédea com um cego montado na garupa.

 

Sim, houve homens de menos autoridade e honra que igualaram este de maior estado. A revolução teve heróis tanto ou mais significativos: Álvaro Pais, o principal cérebro do movimento; Gil Fernandes de Elvas, o capitão alentejano sem par; Antão Vasques, herói de Aljubarrota, capitão de epopeia; João das Regras e João Afonso, com Álvaro Pais, dirigentes políticos dos maiores que Portugal contou; João Vasques de Almada, etc., etc..

 

A tese mística não explica cabalmente a retirada de Nuno Álvares para o seu convento do Carmo. Nessa retirada tem de ver-se também o reconhecimento, ou, pelo menos, a expressão de uma derrota política.

 

E, no entanto, será por trás da sua casa, a futura casa de Bragança, e por trás dos fidalgos da Beira que a nobreza se reagrupará para as ofensivas dos reinados seguintes.

 

 

 

 

(*) O presente texto contitui o capítulo II da obra homónima de 1965, de acordo com a sua 5ª edição revista e aumentada, Caminho, 1981. Foi escrito e publicado enquanto o autor era ainda estudante de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa, mas depois da sua longa experiência prisional e do convívio com Álvaro Cunhal no forte de Peniche. Esta obra é normalmente associado a ‘As Lutas de Classes em Portugal nos fins da Idade Média’ de Cunhal e tiveram mesmo uma edição conjunta em Espanha: Álvaro Cunhal e António Borges Coelho, La Lucha de Clases en Portugal y la Revolución de 1383, Madrid, Akal Editor, 1976. Todavia, se os dois autores convergem na qualificação destes eventos históricos como uma revolução burguesa (a primeira no mundo de carácter nacional), divergem em várias questões secundárias, nomeadamente na apreciação da figura de Nun’Álvares Pereira, que é julgado com muito mais aspereza por Cunhal.

 

BorgesCoelho, 1383-2

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NOTAS:

 

(1) Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal, vol. III, p. 167.

 

(2) Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, Livraria Civilização, vol. II, p. 57.

 

(3) Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, pp. 191 e 194.

 

(4) Oliveira Martins, História de Portugal, p. 146.

 

(5) Quanto a nós, António Sérgio fez prova bastante de que o movimento de 1383 foi inequivocamente de carácter burguês. Depois dele, Joel Serrão (O Carácter Social da Revolução de 1383), e António José Saraiva (História da Cultura em Portugal), entenderam que, na primeira fase, o movimento teve uma inspiração popular.

 

(6) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Livraria Civilização, vol. I, p. 16.

 

(7) Idem, ibidem, vol. I, p. 18.

 

(8) Idem, ibidem, vol. I, p. 5.

 

(9) Idem, ibidem, vol. I, p. 17.

 

(10) Idem, ibidem, vol. I, p. 18.

 

(11) Fernão Lopes, ob. cit., vol. I, p. 24.

 

(12) Idem, ibidem, vol. I, p. 37.

 

(13) Idem, ibidem, vol. X, p. 50.

 

(14) Idem, ibidem, vol. I, p. 50.

 

(15) Sobre este tema, é fundamental ler António Sérgio, prefácio à Crónica de D. João I.

 

(16) Fernão Lopes, ibidem, vol. I, p. 11.

 

(17) Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, Suplemento ao vol. I, pp. 413, 444 e 438, e Fernão Lopes, ibidem, vol. I, p. 347.

 

(18) Fernão Lopes, ibidem, vol. I, p. 11.

 

(19) Idem, ibidem, vol. I, p. 11.

 

(20) Fernão Lopes, ibidem, vol. I, p. 26.

 

(21) Idem, ibidem, vol. I, p. 347.

 

(22) Idem, ibidem, vol. I, p. 29.

 

(23) Idem, ibidem, vol. I, p. 346.

 

(24) Idem, ibidem, vol. I, p. 35.

 

(25) Idem, ibidem, vol. I, p. 32.

 

(26) Idem, ibidem, vol. I, p. 35.

 

(27) Idem, ibidem, vol. I, p. 238.

 

(28) Fernão Lopes, ibidem, vol. II, p. 125.

 

(29) Idem, ibidem, vol. I, p. 26.

 

(30) Idem, ibidem, vol. I, p. 33. «Cada um dava folgança a seu ofício e toda sua ocupação era juntar-se em magotes a falar na morte do Conde e cousas que haviam acontecido.»

 

(31) António José Saraiva, História da Cultura em Portugal, vol. I, p. 500.

 

(32) Joel Serrão, O Carácter Social da Revolução de 1383, pp. 39 e outras.

 

(33) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, p. 54.

 

(34) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, p. 55. «E foi logo ordenado na cidade que vinte e quatro homens, dois de cada mester, tivessem carrego de estar na Câmara, para toda cousa que se houvesse de ordenar por regimento e serviço do Mestre, fose com seu acordo deles.»

 

(35) Idem, ibidem, vol. I, p. 53.

 

(36) Idem, ibidem, vol. I, p. 40.

 

(37) Idem, ibidem, vol. I, p. 93.

 

(38) António José Saraiva, ob. cit., vol. I, p. 500.

 

(39) Fernão Lopes, ibidem, vol. I, p. 56.

 

(40) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, p. 51.

 

(41) Idem, ibidem, vol. II, pp. 57 e segs..

 

(42) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. II, p. 108.

 

(43) Idem, ibidem, vol. I, p. 290.

 

(44) Idem, ibidem, vol. lI, p. 408. «E na parte do perdaom dos portugueses pois que a paz doutra guisa dar não queriam.»

 

(45) Idem, ibidem, vol. lI, pp. 439 e 441.

 

(46) António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I, pp. XVIII e XXI.

 

(47) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, pp. 85 e 206.

 

(48) Idem, ibidem, vol. I, p. 211.

 

(49) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, vol. I, p. 94.

 

(50) Ver o nosso artigo «Terras Virgens no Atlântico», in Seara Nova n.° 1410, Abril de 1963.

 

(51) António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I, p. XL.

 

(52) Fernão Lopes, ibidem, vol. I, pp. 339-340.

 

(53) Fernão Lopes, ibidem, vol I, p 187.

 

(54) Idem, ibidem, vol. I, p. 386.

 

(55) Fernão Lopes, ibidem, vol. X, p. 64.

 

(56) Idem, ibidem, vol. I, p. 426.

 

(57) Idem, ibidem, vol. II, p. 451.

 

(58) Idem, ibidem, vol. i, p. 76.

 

(59) Idem, ibidem, vol. X, p. 166.

 

(60) Idem, ibidem, vol. X, p. 167.

 

(61) Fernão Lopes, ibidem, vol. II, p. 447.

 

(62) Fernão Lopes, ibidem, vol. II, p. 332.

 

(63) Idem, ibidem, vol. I, p. 426.