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O congresso da Internacional na Haia (*)
Antero de Quental
No n.° 26 [do jornal ‘O Pensamento Social’] daremos aos nossos leitores notícias circunstanciadas do que se passou no recente congresso da Associação Internacional dos Trabalhdores, e das decisões por ele tomadas. A imprensa burguesa, com a ignorância real ou afectada que mostra em tudo quanto diz respeito ao movimento socialista, não só interpretou erradamente os factos (o que é natural, visto o seu espírito reaccionário não lhe permitir compreendê-los), mas deturpou sistematicamente esses mesmos factos, confundindo a capricho as opiniões individuais com os votos colectivos, e transformando os incidentes naturais da discussão em confusa discórdia de elementos contraditórios e inconciliáveis. O seu fim é representar o congresso da Internacional como um aborto, como a redução ao absurdo do socialismo, pela contradição e intransigência dos seus próprios representantes. A burguesia, cada vez mais distanciada da realidade contemporânea, mostra ainda nisto a sua decadência: incapaz de estudar e compreender, prefere sonhar, e acredita piamente nos sonhos que a sua ininteligência lhe sugere. Pois sonhe embora, se isso lhe pode adoçar as amarguras da última hora. Os factos seguirão todavia o seu curso natural, obedecendo às leis necessárias da evolução humana, e não às ilusões interessadas que a incapacidade, o medo ou um errado cálculo inspiram aos profetas de um mundo condenado, e que já agora morrerá na impenitência final.
Que no congresso se discutiu muito e se opinou diversamente, e se acentuaram várias correntes dentro do movimento socialista, é um facto, mas é exactamente este facto que prova a vitalidade e extensão desse movimento, porque mostra que a sua unidade não é artificial, mecânica e uniforme, mas sim, como a de todas as coisas naturalmente organizadas, um resultado da harmonia de vários elementos que, embora individualmente distintos, se completam uns pelos outros e concorrem em várias medidas para um comum resultado. Se a Internacional fosse uma associação secreta, uma seita, como têm sido as ligas revolucionárias da burguesia, jacobinos, mazzinistas, etc., esta diversidade seria certamente um sintoma de morte. Mas como a Internacional não é uma seita, uma criação artificial, fora da corrente real dos factos, mas sim a simples e espontânea organização das forças do proletariado, aquela diversidade de tendências, que os políticos do constitucionalismo não sabem compreender, é pelo contrário o maior sintoma de vida, porque mostra a abundância de elementos livres e vivos que cada dia mais vão dando ao proletariado a feição de um organismo complexo, tendo no seu seio todas as aptidões e tendências, sem as quais não há verdadeira sociedade, mas apenas agregação mecânica. O proletariado tende a ser uma sociedade, eis o facto capital; e no dia em que o for, o velho mundo, não tendo já razão de ser, desaparecerá naturalmente. Que a Associação Internacional dos Trabalhadores, preexistência dessa futura sociedade, comece já hoje a mostrar a complexa variedade de elementos, sem a qual essa sociedade não poderá nunca subsistir, é isso o que a crítica banal do jornalismo burguês pode, se lhe apraz, considerar como um sintoma de desorganização, mas é isso exactamente o que aos olhos da crítica filosófica positiva dá ao último congresso da Haia um alto valor e uma verdadeira significação histórica.
A prova palpável do que afirmamos é a realidade prática das medidas adoptadas pelo congresso, e a unidade de espírito e de direcção que, no meio da variedade de tendências, caracteriza as suas decisões. Longe de ser estéril, a última reunião dos delegados do proletariado cosmopolita tem tamanho alcance que se pode com verdade dizer que depois do congresso de Genebra em 1866 (em que a Internacional se constituiu) é este o mais importante de todos quantos tem celebrado a Associação. Porquê? Porque, depois da constituição da Internacional, é este o segundo passo decisivo dado pelo proletariado no sentido da sua organização e da acção prática e imediata do socialismo dentro do mundo contemporâneo. Práticas e imediatas são com efeito as medidas tomadas no congresso; prática e imediata é a acção que, segundo elas, cabe de ora em diante à internacional. Não é uma seita a Internacional (já o dissemos, mas convém repeti-lo sempre), uma seita guiada por várias teorias, uma reunião de utopistas preocupados com a descoberta de um sistema abstracto, marchando à conquista do ideal por caminhos desconhecidos. Não é isso: é simplesmente o exército dos trabalhadores organizados segundo as indicações que a luta de todos os dias lhe fornece, segundo um critério que sai das mesmas condições da realidade. E esse exército não procura a realização de uma utopia, mas uma coisa prática, a emancipação que não é um sistema mais ou menos provável, mas um grande fenómeno histórico, inegável e incontestável.
Ora é isto exactamente (isto que constitui o pensamento e a organização da Internacional, mas que ainda se não definira completamente), é isto o que se tornou patente com as decisões tomadas no congresso da Haia. Essas realizações podem reduzir-se a quatro, que todas acentuam este carácter de acção imediata e positiva que cada vez mais tem de ser o espírito da Internacional, porque é o espírito do grande movimento socialista contemporâneo e a sua feição histórica. Examinemos esses quatro pontos.
1.º - Recusando, por um lado, toda a solidariedade e união com a Aliança da Democracia Socialista, associação secreta, tendente a dominar e dirigir o movimento operário no sentido da realização dum programa particular, concebido sistematicamente e a priori, e, por outro lado, desaprovando as propostas e manifestações dos representantes do elemento jacobino da Comuna de Paris, que cuidam resolver o que há de mais complexo, as questões sociais, com os meios sumários da insurreição e da ditadura revolucionária, o Congresso afirmou uma coisa essencial: que o proletariado saiu definitivamente do campo vago das hipóteses, abandonando para sempre o espírito de seita, e se coloca resolutamente no terreno dos factos reais, mirando não a realizar tal ou tal sistema ideal, mas a conquistar a sua emancipação em face dos seus inimigos actuais, o capital, a propriedade e a autoridade, e medindo-se com eles com armas iguais, isto é, dando à luta uma feição ao mesmo tempo económica, política e moral, estendendo-a a todos os lados do mundo social, em vez de a concentrar num só ponto particular, onde a vitória, quando fosse possível, seria em todo o caso incompleta e efémera. Nada de seitas e nada de jacobinismo: isto é, nada de tradição revolucionária da burguesia: um espírito novo, equidistante entre a barricada e a propaganda sentimental, um método adequado aos factos e uma acção igual e proporcional com eles - tal é, segundo o Congresso, o que deve caracterizar o movimento socialista, e o que realmente o caracteriza, se considerarmos que o congresso da Internacional é a expressão mais exacta do pensamento popular.
2.º - Voltando às memoráveis resoluções sobre a organização do proletariado cosmopolita como um partido político, distinto essencialmente de todos os partidos burgueses e a eles oposto, a Internacional faz sair as plebes modernas do estado inorgânico em que têm existido, e constitui-as como um elemento positivo, com um valor determinado, uma atitude precisa e uma acção definida no meio da sociedade contemporânea. O proletariado passa a ter uma existência histórica: toma no Forum o seu assento, um lugar seu, donde fala, vota e se afirma em cada dia e hora em face dos seus inimigos. Não é um bando que irrompe de vez em quando tumultuariamente no meio da vida social: é um elemento constante dessa vida, uma força efectiva; e para logo, com esse órgão novo, novas funções entrarão na existência das sociedades modernas. O proletariado é também legislador - até que venha a ser o único legislador, absorvendo em si todas as classes, fundindo na sua unidade todos os antagonismos dum mundo inferiormente constituído e que tem de desaparecer. A constituição política do proletariado é um verdadeiro acontecimento histórico, porque é na política que todos os elementos humanos afirmam a sua acção histórica. Quando a política das sociedades modernas for a política do proletariado, a revolução social estará ipso facto consumada. Eis o que significa a resolução tomada no congresso da Haia.
3.° - Mantendo o Conselho Geral e ampliando os Estatutos da Associação no sentido de definir as atribuições desse Conselho e de lhe dar uma acção correspondente ao desenvolvimento crescente das forças da Internacional e ao trabalho cada vez mais largo que tem de executar, o Congresso seguiu com um tacto perfeito a linha exacta e justa entre as tendências autoritárias daqueles que quiserem constituir uma verdadeira ditadura no seio da Internacional, e as tendências desorganizadoras doutros, que, em nome da autonomia dos grupos locais, quebrariam entre esses mesmos grupos todos os laços de solidariedade e unidade de direcção. A maneira como o congresso resolveu esta difícil questão é não só política e conciliadora, mas é mais do que isso, é um exemplo prático da verdadeira compreensão do princípio federativo.
A federação, com efeito, se não admite a autoridade e a direcção imposta, na ordem das funções colectivas, nem por isso anula essas funções colectivas como incompatíveis com a liberdade dos grupos e dos indivíduos: subordina-lhas e torna-as dependentes dela, e é exactamente por isso que lhes pode dar um desenvolvimento larguíssimo, porque elas não são a antítese da liberdade, mas apenas uma das suas formas e manifestações. Se no regímen da autoridade decresce a liberdade na razão directa do aumento das atribuições do centro director, pelo contrário, no regímen da federação, o aumento dessas atribuições significa um desenvolvimento paralelo na energia da liberdade, que as cria e mantém. O voto do congresso, a respeito do conselho geral e das suas funções, não só constitui mais solidamente a organização interior da Internacional, mas fornece também um exemplo da compreensão da ideia federativa, cuja medida exacta só a prática pode determinar. Quem viu na discussão, que este problema provocou no seio do congresso, uma prova de fraqueza, mostra desconhecer completamente o valor e alcance das ideias de organização social levantadas pelo socialismo: e quem, como os jornais burgueses, apenas viu em tudo isto uma miserável questão de pessoas e de ambições rivais, mostra que o exemplo dos partidos e parlamentos burgueses lhe entorpecem a inteligência até à cegueira moral. Que as paixões agitaram os homens, é não só crível mas provável: mas esses homens apaixonados representavam ideias, e esse é que é para nós (e será para a história) o facto importante. Esta discussão foi uma discussão de princípios, e por ela os princípios adquiriram um novo vigor, definindo-se praticamente. A luta económica e política do proletariado contra o capital e a autoridade perderia toda a significação se não fosse organizada segundo uma forma correlativa à ideia que preside a essa insurreição libertadora, isto é, segundo uma norma de justa e rigorosa proporção. Dentro dos limites dessa norma está a decisão do congresso: o futuro se encarregará de lhe evidenciar todo o alcance.
4.º - A resolução unânime a respeito da formação das uniões internacionais de ofícios é mais um passo, e um grande passo, dado no sentido da organização económica dos trabalhadores, já para as necessidades da luta de hoje, já para preparar os elementos constitutivos do mundo económico do futuro, o mundo da solidariedade e da justa retribuição do trabalho. Uma vez formadas as uniões, o capital achará por toda a parte diante de si urna barreira inflexível. A reforma das condições industriais será então uma necessidade para os próprios capitalistas, reclamada por eles mais do que por ninguém, e essa reforma poderá então ser tal que importe toda uma revolução económica, porque não pode ser menos do que a liquidação social. É escusado demonstrar este ponto. Os leitores deste jornal sabem perfeitamente que o movimento das greves será sempre contraproducente (em relação ao fim último do movimento, já se vê) enquanto a solidariedade económica de todos os trabalhadores do mundo lhe não der uma base positiva, isto é, enquanto, por um lado, se não opuser por toda a parte e com força igual a um inimigo em toda a parte presente, e, por outro lado, não for acompanhado por uma determinação exacta do valor do trabalho nas condições várias dos diversos países e pelo seu equilíbrio normal, o que só é realizável constituindo-se os trabalhadores de cada profissão, em todo o mundo civilizado, como uma corporação única e solidária. Para alcançar este fim é que existe a Internacional, e a resolução do congresso é mais um passo que a tal fim nos levará.
Tal é a significação do congresso da Haia. No trabalho de organização do proletariado, na sua afirmação como classe, com um pensamento, um fim e uma acção próprias, na sua definição social dentro do mundo contemporâneo, as recentes decisões tomadas pelos representantes do socialismo internacional significam um progresso, já na compreensão da ideia, já nos meios de a realizar. O socialismo diz ao mundo velho: existo! e provar-te-ei que existo medindo-me contigo em toda a parte e por todas as formas, fazendo-me como tu ubíquo, proclamando em face de ti a minha ideia em todas as manifestações da tua vida, política, económica, moral, e esta presença universal do socialismo será em toda a parte mais do que a reclamação platónica do futuro, será a realização gradual, mas constante e inevitável, dele.
(*) Este artigo foi publicado no nº 25 do semanário ‘O Pensamento Social’, de Outubro de 1872. Apesar de não assinado, é indubitavelmente da autoria de Antero, quanto mais não fosse por existir sobre isso o testemunho directo muito claro e inequívoco de Nobre França. |
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