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A revolução de 1383-1385 (*)
Álvaro Cunhal
A insurreição burguesa de 1383, acompanhada por amplas e profundas revoltas camponesas e «proletárias» que abalaram de alto a baixo a sociedade portuguesa, não triunfou apenas sobre a nobreza do país. Teve também de vencer a intervenção reaccionária castelhana, preparada e provocada por aquela. A revolução burguesa identificou-se com uma luta nacional pela independência. A vitória da nação portuguesa foi assim uma grande vitória das forças progressivas sobre as forças reaccionárias de Portugal e Espanha.
A revolução burguesa, luta nacional
Os historiadores burgueses têm apresentado sempre o casamento da filha única de D. Fernando com o rei de Castela, em 1382, como «erro» de um rei inconstante e imprevidente. A verdade é ter sido tal casamento uma manobra política da nobreza, manobra maduramente reflectida e de efeitos cuidadosamente previstos e desejados. Que não foi insensatez de um rei no leito de morte prova-o o facto de, já em 1376 e 1380, ter estado à beira de realizar-se o casamento da mesma infanta com príncipes castelhanos e de já então se prever explicitamente a sucessão de rei castelhano no trono de Portugal. Entregando Portugal ao vizinho castelhano, contra quem ainda há pouco guerreava, a nobreza julgava poder manter, à sombra dum Estado estrangeiro, a sua dominação, cujas bases oscilavam no país. Essa foi ideia amadurecida durante longos anos nas discussões dos Conselhos e nas conversações de luzidas embaixadas. Não foi velhacaria de uma mulher perversa, como pretendem alguns: «Mais que rainha, mãe desnaturada, mercadeja a filha subjugada, como quem vende escravos numa praça». Nem foi um «erro» do rei moribundo. Tal casamento foi um calculado acto político da nobreza.
Sentindo o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés, incapaz de suster com os seus recursos próprios o movimento revolucionário, a nobreza procura deliberadamente a entrada em acção contra a revolução ascendente do aparelho militar da aristocracia territorial de além fronteiras. Nessa sua política, a nobreza de então seguiu o caminho que sempre têm seguido as classes dominantes, quando sentem em perigo a sua existência. Ante a ameaça de serem desapossadas dos seus privilégios, as classes parasitárias preferiram sempre, a uma vitória das forças nacionais progressivas, a dominação do seu país por um Estado estrangeiro que abafe a revolução e lhes mantenha esses privilégios. Política de traição nacional - tal foi no século XIV a política da nobreza territorial contra o movimento revolucionário ascendente da burguesia, como hoje o é a política da burguesia monopolista contra o movimento ascendente do proletariado.
O recurso directo da nobreza a um Estado estrangeiro foi porém demasiado tardio. A crise revolucionária amadurecera. Quando, pela morte de D. Fernando, os nobres e seus lacaios aclamaram o rei castelhano casado com a infanta, a insurreição contra a aristocracia precipita-se, identificando-se com a luta pela independência da nação. Enquanto os nobres aclamam Castela, a burguesia, os artesãos e os camponeses aclamam Portugal - «Arreal, arreal, por Portugal».
Apregoando arreal por D. Beatriz, os nobres deram voz para o começo da insurreição burguesa, identificada com a luta nacional. Isso permitiu aos burgueses falarem como únicos representantes de toda a nação, alargarem o número dos seus aliados, darem um conteúdo político comum a movimentos sociais que tinham objectivos imediatos diferentes e assenhorearem-se por momentos do poder político.
Então como sempre, os patriotas dedicados foram os combatentes revolucionários e a traição ao país encontrou-se nas forças da reacção. A insurreição burguesa, acompanhada por extensos e violentos levantamentos camponeses, tomou assim, desde a primeira hora, uma orientação política geral, polarizando as aspirações da população laboriosa no objectivo da defesa da independência contra um Estado estrangeiro e contra a classe que de Portugal (a nobreza) provocara deliberadamente a sua intervenção. A luta pela independência não foi mais que um aspecto revestido pela revolução burguesa, dado o recurso da aristocracia ao auxílio estrangeiro. Por isso mesmo, a defesa vitoriosa da independência é o melhor certificado da vitória interna da burguesia contra a aristocracia reaccionária.
Ocultando o carácter de classe do movimento revolucionário e insurreccional dos fins do século XIV, os historiadores burgueses têm-se esforçado sistematicamente por apresentá-lo como uma luta comum de todas as classes. É tão grosseiro apresentar uma época de crise e de luta armada entre classes como um momento de particular colaboração e harmonia entre elas, que a mistificação se torna clara por si só. É no entanto útil examiná-la mais de perto, porque assim se evidenciam as limitações da «ciência» histórica burguesa em geral e as falsificações dos «historiadores», fascistas em particular.
O liberal Jaime Cortesão, embora aceitando que a revolução de 1383 foi «uma revolução social», afirma que ela «se apresenta como... o resultado da colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes» (1) pois «todas as classes, ainda que em diferentes graus, estavam interessadas no género de vida nacional» (2). Jaime Cortesão confunde assim a participação individual dos membros de uma classe na revolução de outra classe com a natureza de classe de uma revolução. Em todas as épocas de crise revolucionária há um sector das classes dominantes (particularmente entre os mais esclarecidos e os mais jovens) que toma o partido das classes revolucionárias, isto é, que toma partido contra a sua própria classe de origem. Tais atitudes individuais em nada modificam o carácter de classe da revolução, ou seja, em nada se altera o facto de haver classes que a fazem e outras que defendem contra ela os seus privilégios. É tão absurdo concluir da participação de nobres na revolução burguesa de 1383 que esta foi o resultado da colaboração, ainda que em proporções diferentes, de todas as classes, como seria absurdo concluir da participação de filhos das classes burguesas nas revoluções proletárias contemporâneas que estas são o produto da colaboração de todas as classes, incluindo a dos capitalistas e dos grandes senhores da terra. Houve nobres que acompanharam a revolução burguesa e a luta nacional. A nobreza não acompanhou nem «colaborou» pela simples razão que a revolução e a luta nacional se dirigiam contra ela.
A revolução de 1383, identificada com a luta nacional pela independência, dirigiu-se directa, clara e inequivocamente contra a nobreza territorial. Nessa luta nacional, a nobreza como classe colaborou, não com as forças populares e nacionais - com a burguesia, com os artesãos, com os camponeses, que contra ela se levantaram - mas sim com o Estado estrangeiro, cuja intervenção deliberadamente provocara.
A burguesia do nosso tempo, corno classe dominante e decadente, como classe privilegiada ameaçada por um movimento revolucionário das massas trabalhadoras, rejeita as tradições revolucionárias dos burgueses do século XIV e torna-se a herdeira das tradições dos nobres traidores de então. Hoje o herdeiro das tradições revolucionárias da burguesia não é a burguesia mas o proletariado. A burguesia representa nos nossos dias o que a nobreza representava nessa época: a classe dominante, exploradora e parasitária, capaz de vender a independência do país em troca de um auxílio estrangeiro para se manter no poder. Daqui resultam os esforços desesperados dos historiadores burgueses reaccionários para ocultar o verdadeiro papel da nobreza face à revolução e à luta nacional dos fins do século XIV.
Os «historiadores» fascistas, com o propósito claro, não de esclarecer os factos históricos, mas de fabricar para esses factos «explicações» que melhor sirvam os interesses da camarilha governante e o seu domínio, perdem qualquer espécie de pudor e entram no caminho da pura mistificação. O professor universitário coimbrão Torquato de Sousa Soares apresenta nos seguintes termos a posição da nobreza na revolução de 1383:
«Naturalmente a nobreza territorial, mais exposta às delapidações da guerra e às represálias de um inimigo poderoso, reagiu com mais dificuldade, mas nem por isso se pode afirmar que se alheou do movimento.» (3)
E, noutro escrito, repete as palavras de Jaime Cortesão, sem citar a sua procedência.
«A vitória resultou da colaboração de todas as classes.»
Como se vê, segundo o sr. Soares, a nobreza teria sido a vítima «mais exposta» e mais directa dos intervencionistas castelhanos. É fantástico que se diga isto mas, como vemos, há um professor universitário que se atreve a dizê-lo, acrescentando que, como era mais perigoso para a nobreza lutar contra o inimigo, teria reagido com mais dificuldade (naturalmente!). Apesar de estar assim particularmente exposta ao inimigo, não se teria alheado da luta, antes teria acabado por combater contra os castelhanos. Desta forma, o sr. Soares, de uma penada, faz do criminoso a vítima e adultera, sem qualquer escrúpulo, todos os factos históricos conhecidos.
A verdade é que, tendo sido a nobreza que provocou a intervenção e invasão castelhana, casando Beatriz com o rei castelhano, apoiando a regência de Leonor Teles, solicitando directamente a invasão armada, ela não se alheara (naturalmente!) do movimento. Desde a primeira hora tomou (naturalmente) a defesa da causa de Castela, que era a sua própria causa, resistindo com fúria à revolução popular e nacional e passando-se, com armas, bagagens e... os castelos que pôde defender, para o campo do exército castelhano invasor. É esta a verdade. Nem sequer (como outros pretendem) teria sido característico na atitude da nobreza uma pretensa cobardia em contraste com o heroísmo do povo. Que não foi cobardia, mostraram-no aqueles fidalgos que defenderam com pertinácia os seus castelos, e aqueles outros que jogaram a vida ao conspirarem no campo do Mestre, e aqueles muitos que caíram em Aljubarrota sob a bandeira castelhana. Não foi por cobardia que os nobres tomaram o partido de Castela. Isso foi um acto deliberado, uma política de alianças de classe inserida na contra-revolução.
Mas o sr. Soares vai ainda mais longe. Desejoso de filiar o ideário fascista nos acontecimentos capitais da nossa história, vê em 1383, não uma luta contra o poder da aristocracia latifundiária, mas precisamente o invés: uma luta pelo fortalecimento desse poder, dada a sua visível fraqueza. Ouçamo-lo:
«Apesar de parecer, em dado momento, uma revolta de pobres contra ricos, de pebleus contra nobres, não é afinal senão a reacção contra a crise do poder central, que a regência de Leonor Teles, com a perspectiva da subordinação a Castela, tornaria insanável sem uma intervenção violenta. Portanto, luta pelo robustecimento da autoridade na base tradicional da organização do poder, isto é, na base de um poder monárquico autónomo em face da nação, para melhor a poder conduzir e servir.» (4)
1383 foi uma revolução; o sr. Soares diz: foi uma reacção. 1383 foi a luta da burguesia pela conquista do poder; o sr. Soares diz: foi o fortalecimento do poder existente, na sua base tradicional. Em 1383 verificou-se a designação revolucionária de um monarca pela burguesia e contra o desejo da nobreza; o sr. Soares diz: verificou-se a continuação e fortalecimento do poder monárquico autónomo. É assim que os fascistas fabricam a história.
Apresentando a grande luta nacional do século XIV como uma luta de todas as classes contra o estrangeiro, os historiadores burgueses dos nossos dias deturpam e escondem o seu carácter essencial: que essa luta nacional foi ao mesmo tempo e fundamentalmente uma revolução de classes contra outras classes, uma revolução da burguesia e seus aliados contra a nobreza territorial.
A arrumação das forças de classe
Mostrando o erro dos historiadores burgueses ao pretenderem que a luta nacional dos fins do século XIV foi obra da colaboração de todas as classes e mostrando que essa luta nacional foi um dos aspectos e uma das expressões de uma revolução social, deve considerar-se a posição e participação das várias classes na revolução.
O testemunho do genial escritor que foi Fernão Lopes não deixa qualquer margem a dúvidas de que a revolução de 1383 foi uma revolução profundamente popular que abarcou o país inteiro em levantamentos insurreccionais contra a ordem feudal. Fernão Lopes conta, numa linguagem viva que traz os acontecimentos até aos nossos dias, como o «povo miúdo» se ergueu para a luta, vencendo os treinados e orgulhosos militares aristocratas e tomando e fazendo ruir muitos dos seus castelos. Descreve-nos como, à revolução dos burgueses de Lisboa e Porto, conduzidos por aguerridos homens dos mesteres, responderam por todo o país os homens-bons e os camponeses sem terra. O honrado testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução e da posição das diversas classes sociais em 1383.
A revolução de 1383 confirma a apreciação de Marx e Engels, segundo a qual «no pano de fundo da luta entre burgueses citadinos e nobreza feudal, aparece o camponês rebelde e atrás dos camponeses os rudimentos revolucionários do proletariado moderno». E confirma ainda outro ensinamento dos grandes mestres do comunismo segundo o qual «em todos os grandes movimentos burgueses houve explosões independentes da classe que era a precursora, mais ou menos desenvolvida, do moderno proletariado». Em 1383 encontramos, com pano de fundo da luta dos comerciantes e artesãos contra a nobreza, os camponeses rebeldes, os homens-bons e, por detrás destes, os trabalhadores assalariados livres, trabalhadores sem terra e sem senhor, que Fernão Lopes imortalizou com o nome de «ventres ao sol». Lá encontramos as «explosões independentes» dos precursores do proletariado moderno, das quais nos ficou como documento mais circunstanciado a insurreição de Évora, dirigida por Gonçalves Eanes, cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate.
Em 1383 era detentora do poder a nobreza feudal constituída por grandes proprietários rurais. Quem lhe disputava o poder? Antes de mais, a burguesia comerciante, particularmente de Lisboa e Porto (grandes centros de actividade mercantil e marítima), interessada em vencer as peias levantadas ao comércio pela ordem feudal (produção natural, tributos, extorsões, insegurança de caminhos) e reclamando papel determinante na definição da política do reino. Em seguida, a burguesia rural para quem os grandes domínios feudais eram um limite forçado, obstando ao desenvolvimento da produção mercantil (terra e braços). Como aliado da burguesia comerciante e rural na luta contra os senhores feudais, encontramos os artesãos, os camponeses pobres e os proletários e semiproletários dos campos.
Parece pois que a arrumação das forças de classe em 1383 se apresenta com clareza: revolução burguesa dirigida contra a nobreza feudal, revolução secundada por revoltas camponesas e acompanhada, aqui e além, por levantamentos «proletários».
Entretanto, também aqui não há uma opinião unânime. Mesmo ensaístas defensores de que a revolução de 1383 foi uma revolução de classes supõem uma diferente arrumação das forças de classe.
A divergência não diz respeito ao papel da burguesia comercial. É geralmente aceite o papel decisivo que os grandes centros comerciais e marítimos do litoral, designadamente Lisboa e Porto, desempenharam na revolução, bem como o papel decisivo dos senhores do comércio marítimo. É verdade que, no momento da insurreição, os verdadeiros dirigentes, aqueles que vencem as indecisões dos ricos burgueses, são os artesãos. Mas, passado o momento insurrecional, os burgueses assumem posições superiores de direcção no Conselho do Mestre e em toda a condução da luta. A posição dos burgueses em relação ao financiamento ilustra bem a sua posição e atitude. Sempre tão relutantes em aceitar sacrifícios monetários, oferecem agora para a luta todos os seus haveres.
«O ouro, a prata e dinheiros e tudo quanto temos (disse, no Porto, Domingos Peres das Eiras), tudo faremos prestes para tal negócio (...) As naus e barcas e galés com todas as outras coisas que lhe fizerem mister, lhe ofereceremos de mui boa vontade. De farinhas, carnes e pescados e víveres que fizerem mister à frota, de tudo havereis abastamento.» (5)
Os burgueses, que haviam recusado, cerca de 1372, as sisas gerais pedidas por D. Fernando, concedem-nas agora por iniciativa própria (fazendo também pagar a nobreza habituada à isenção) e fá-lo-ão sucessivas vezes - em 1384, as 400.000 libras para despesas de guerra, nas Cortes de 1385, e ainda em 1387, 1389, 1398, etc.. Os burgueses pagavam porque a luta era a sua e seus os interesses defendidos pela revolução.
As concessões feitas nas Cortes de Coimbra à cidade de Lisboa, escolhida para capital, o alargamento do termo de Lisboa e Porto, as imediatas isenções de impostos concedidas aos comerciantes de Lisboa para a sua actividade mercantil em todo o reino logo que o cerco castelhano foi levantado, a fusão da missão diplomática com a missão comercial na primeira embaixada enviada a Inglaterra (no próprio mês da insurreição), a entrega de importantes lugares como os de corregedor de Lisboa, tesoureiro da moeda e almoxarife dos réditos reais a comerciantes - são provas evidentes do carácter burguês da revolução e do papel decisivo dos burgueses do comércio marítimo e designadamente de Lisboa, seu grande centro, berço da revolução, «madre e cabeça destes feitos».
Quando obrigada a abandonar Lisboa, a rainha teria dito «que mau fogo a queimasse e que ainda a visse destruída e arada toda a bois». Ao abandonar o cerco, a mesma praga teria rogado o rei de Castela: «O Lisboa! Lisboa! Tanta mercê me faça Deus que ainda te veja lavrada de ferros de arado!». Muito possivelmente nem uma nem outro disseram tais palavras, iguais no significado e na imagem e semelhantes na forma. Mas a própria atribuição de tais palavras revela com clareza o ódio, a raiva e o despeito dos nobres ante a burguesia vitoriosa na sua grande capital.
O papel das várias classes na insurreição dos campos não é tão evidente. Por isso Sérgio pôde defender que a burguesia rural (os homens-bons), longe de participar na revolução, combateu contra ela e foi por ela combatida. «A revolução dirigida pelos comerciantes dos portos contra a hegemonia política da fidalguia» teria sido apoiada por «um conflito social-económico (o da classe dos operários com a dos homens-bons dos concelhos que alinhavam ao lado dos aristocratas)» (6).
Com tal hipótese, António Sérgio perde a possibilidade de compreender todas as lutas sociais nos campos, os múltiplos fenómenos verificados na produção agrícola e nas relações de propriedade nos séculos XIII, XIV e XV e, por consequência, a própria génese, desenvolvimento e resultado da revolução de 1383-1385.
Como prova para demonstrar que a burguesia rural «alinhou com os aristocratas» e que «a revolução dos ricaços de Lisboa e Porto assentou numa vasta expropriação de bens, numa roubalheira aos homens da classe média» (7) levada a cabo pelas «gentes operárias» (!) e apoiada pelo governo de Lisboa, António Sérgio, depois de referir a luta dos burgueses contra os assalariados anterior à revolução, transcreve uma passagem de Fernão Lopes em que este diz que a revolução era dirigida pelos «meúdos contra os melhores e mais honrados que havia nos lugares dos quais muitos foram postos em grande cajom de morte e roubados de quanto haviam» (8). A. Sérgio afirma que esta expressão «os melhores e mais honrados» é sinónima de «classe média» ou «homens-bons», que a expressão «meúdos» é sinónima de «operários» e conclui triunfalmente sobre a posição das várias classes na revolução. Ora esta conclusão é demasiado precipitada.
Deve sublinhar-se, em primeiro lugar, que a expressão «os melhores e mais honrados» é utilizada por Fernão Lopes, em numerosas passagens das suas crónicas, para significar não a «classe média», não os vilãos ricos (como supõe sem hesitação ou dúvida A. Sérgio) mas... os nobres (Crónica de D. João I, LII, LXVIII, CLI, CLVI; 2.ª parte; IX. Crónica de D. Fernando, XXX, CLVII, etc.). E a expressão «os meúdos» ou «povo meúdo» é utilizada também em numerosas passagens não para designar «as gentes operárias» (como supõe sem hesitação ou dúvida A. Sérgio) mas para designar precisamente os… homens-bons. Designando, por exemplo, os participantes nas Cortes de Coimbra de 1385, fala-se em «outros fidalgos e povo miúdo» (9), indicando por «povo miúdo» os procuradores dos concelhos, isto é, comerciantes e os referidos «homens-bons». Nada autoriza pois a interpretar as expressões «os melhores e mais honrados» na citada passagem como significando a burguesia rural, nem a excluir esta da acção insurrecional pelo facto de ser quase sempre referenciado em tal acção o «povo miúdo».
Deve sublinhar-se, em segundo lugar, que, noutra passagem muito mais clara, Fernão Lopes aponta, como relação das forças de classe na revolução, de um lado, o lado de Castela, «os ricos e poderosos, assim alcaides de castelos como outros fidalgos» e do outro, do lado da revolução e de Portugal, «os povos todos» (10). E isto acaba por atirar por terra a interpretação de A. Sérgio, dando novas e boas razões para dar a passagem por ele citada precisamente o sentido contrário do que ele lhe atribui.
Deve sublinhar-se, emterceiro lugar, que, nos casos de insurreição local que o cronista mais pormenorizadamente descreveu (Beja, «Crónica de D. Joao I», XLII; Estremoz, id. XLIII; Évora, XLIV; Portalegre, XLIII; e Penela, 2.a parte, XXI), de nenhum deles podemos inferir que a «classe média» (a «pequena burguesia», os «homens-bons», a burguesia rural) acompanhou a nobreza, tomando o partido de Castela. Mesmo no caso de Évora, em que se diz que mercadores, um escrivão e um «midideiro» aderem ao campo da rainha, se afirma ao mesmo tempo que se levantaram pelo Mestre «o povo da cidade» e «um dos grandes que aí havia» (XLIV). Não seria absurdo concluir desse caso singular terem estado pela revolução os nobres e o «povo miúdo» e contra ela os mercadores, os escrivãos e ...os «midideiros»? Mas afinal quem e contra quem se travava o combate?
Bastaria a análise dos antagonismos e lutas de classe em toda a primeira dinastia e do seu agravamento nos séculos XIII e XIV, e particularmente no reinado de D. Fernando, para nos convencer da posição determinante da burguesia rural na revolução de 1383, e do absurdo da hipótese de A. Sérgio. As crónicas de Fernão Lopes confirmam essa posição dos homens-bons. Há porém um documento, decisivo e sob muitos aspectos notável, que não tem merecido atenção aos historiadores burgueses e que prova que, após a revolução, os homens-bons continuam à frente dos seus concelhos, numa posição fortalecida, e apoiados pelos artesãos, camponeses pobres e assalariados rurais.
Trata-se de relatos da viagem ao Alentejo, em Fevereiro de 1384, de Afonso Eanes, enviado do Mestre. Fernão Lopes não dá nota do acontecimento. Afonso Eanes chegou a Montemor-o-Novo a 21 de Fevereiro. Aí o receberam os burgueses, o «cabeça dos alfaiates», o «cabeça dos sapateiros», o «cabeça dos braceiros». Reuniu-se uma assembleia a quem Afonso Eanes comunicou a mensagem do Mestre e o pedido de auxílio e sisas gerais. Isto foi concedido por todos os presentes, excluindo-se das sisas por clara influência dos camponeses pobres eassalariados, os mantimentos de valor inferior a 5 soldos. Em 25 de Fevereiro, Afonso Eanes estava em Évora, cidade onde fora particularmente violenta a insurreição popular e onde se verificara uma «explosão independente» dos antepassados dos proletários modernos. Com quem reúne e trata então o enviado do Mestre? Ele reúne e trata com cidadãos, fidalgos eo «caudilho» dos meãos e menores da cidade (11). Depois da sua exposição, retirou-se para o claustro municipal e aí reunem à parte «o regedor, o juiz eparte dos homens-bons». São estes que discutem edeliberam, que concedem as sisas gerais, e só depois vem perguntar «aos outros menores» se aprovam a decisão. Este documento mostra que os homens-bons, a classe média, após a tomada do castelo, em2 de Janeiro, em vez de perseguida eexpropriada pela revolução, fortalecera com ela a sua posição, aliada e unida aos artesãos e camponeses pobres esemterra.
Os artesãos representaram destacado papel na revolução, tal como vinham representando nas lutas da segunda metadedo século XIV. Enquanto a luta se desenvolveu nas Cortes, no terreno da legalidade, nas reclamações respeitosas, na pressão económica, os ricos comerciantes do litoral são, sem contestação, os porta-vozes das forças antifeudais ascendentes. Mas, quando os conflitos se agudizam e à reclamação se sucede o motim, a revolta, depois a insurreição, são os artesãos que tomam decididamente a direcção do combate.
São os artesãos que erguem a bandeira dos interesses nacionais e burgueses quando do casamento de D. Fernando com Leonor Teles. É artesão o seu chefe e herói, o alfaiate Fernão Vasques, eleito pelo povo «por seu capitão e propoedor», que, com seus companheiros, pagou com a vida a rara coragem. São artesãos os mais enérgicos combatentes dos levantamentos contra a aclamação de D. Beatriz. São artesãos o chefe popular de Santarém, o peliteiro Domingues Anes, e um dos chefes populares de Évora, o alfaiate Vicente Anes que dirigem as revoltas locais. São artesãos aqueles que, ante as vacilações e falta de combatividade dos burgueses ricos nos momentos decisivos, tomam a iniciativa e o comando e evitam o fracasso da revolta. São artesãos os que empurram os burgueses do Porto para as ruas, forçando-os, sob ameaça de morte, a tomar abertamente partido. São artesãos os homens que tomam Lisboa em 1383 - o que leva os nobres a dizer não ser «coisa para ir adiante», «tal sandice qual levantaram dois sapateiros e dois alfaiates, jurando tomar o Mestre por senhor». São artesãos os que obrigam o Mestre a tornar-se «Regedor e Defensor» do reino, e os indecisos burgueses a pronunciarem-se contra o rei castelhano, apoio da aristocracia.
Na Assembleia popular da igreja de S. Domingos, ao passo que o Mestre balbucia a sua indecisão e receio, o tanoeiro Afonso Eanes Penedo assume a direcção da luta. E, no dia seguinte, no município de Lisboa, quando os ricos burgueses manifestam ainda dúvidas e hesitações, é de novo Afonso Eanes Penedo que, de espada em punho e apoiado pelos artesãos, impõe decisões revolucionárias:
«Quereis ou não outorgar o que vos dizem? Se dizeis que não, eu vos digo que em tudo isto não aventuro mais do que esta garganta e quem não for connosco, pagá-lo-á com a sua antes que daqui parta.» (12)
Da determinante participação na vitória os artesãos obtiveram algumas importantes vantagens. Logo que nomearam o Mestre «Regedor e Defensor» do reino, passaram a intervir na direcção dos negócios públicos. E, se não obtérn lugar algum no Conselho, a que ascendem licenciados e mercadores, a sua opinião e voto passaram a ser indispensáveis na administração municipal. Em muitos momentos decisivos, os artesãos encabeçaram a luta e dirigiram efectivamente o movimento da burguesia. Entregue a si própria no decisivo momento da sublevação, a burguesia comerciante e rural teria sido vencida. Ela lutava pelo que ambicionava ganhar, mas temia o que pudesse perder. Quanto aos artesãos, seus aliados, Afonso Penedo definiu as raízes da sua combatividade: «Em esta coisa não tenho mais aventurado que esta garganta».
Ha quem conclua, por ver a activa participação dos artesãos na direcção do movimento e a pressão directa dos artesãos sobre os burgueses para obrigá-los a agir, não se tratar, em 1383, de uma revolução burguesa. E há quem, ao invés, por atribuir à revolução o carácter de burguesa, procure (por julgar ser condição essencial) atribuir toda a direcção aos próprios burgueses. Estas duas divergentes opiniões não têm em conta o ensinamento da história que nos diz poder o movimento de uma classe ser dirigido por outra. Nem a direcção dos artesãos, num ou noutro caso, numa ou noutra fase da revolução, rouba a esta o carácter burguês nem o caracter burguês da revolução exige que, em cada caso, a direcção pertença aos próprios burgueses.
Conquistas da população trabalhadora dos campos
Em que medida souberam e puderam as populações trabalhadoras dos campos alcançar satisfação das suas reivindicações?
Da ideia (já atrás analisada) de que a classe dos homens-bons esteve com Castela contra a revolução, António Sérgio deduz que «a revolução dos ricaços de Lisboa e Porto assentou numa vasta expropriação de bens, numa roubalheira aos homens da classe média» (13), levada a cabo pelo que chama as «gentes operárias», isto é, pelos mais pequenos cultivadores e jornaleiros.
«Em todos os sítios em que lhes foi possivel (escreve), os "miúdos" alçaram-se pelo partido do Mestre, trataram de roubar os da classe média, de se vingarem de 30 anos de longa luta económica, de assaltar os castelos, de se apoderarem deles. Foi assim que se adquiriram os vários lugares do reino, que apoiaram a causa da revolução joanina e a soldadesca entusiástica que combateu por ela. Tratava-se de assegurar o que se havia roubado.» (14)
Pelo que atrás foi dito acerca da posição dos homens-bons na revolução, vê-se ser pura fantasia considerar como aspecto fundamental da revolução nos campos a expropriação da burguesia rural pelos assalariados. A verdade é que o antagonismo de interesses entre a «classe média» e assalariados deu lugar (durante a revolução) à aliança de toda a população trabalhadora dos campos (assalariados e homens-bons) contra a nobreza feudal, contra os grandes senhores da terra. Ao contrário do que A. Sérgio supõe, a classe média não foi vítima das expropriações. Na medida em que se pode falar de expropriações, a «classe média» foi, não expropriada, mas expropriadora.
O absurdo da ideia de A. Sérgio ganha ainda aspectos mais gritantes, ao considerar que a burguesia comercial-marítima e o seu governo, o governo do Mestre, apoiou a vingança e saque das «gentes operárias» contra a «classe média dos proprietários», com o fim de atingir o poder da aristocracia. Dessa atitude das «gentes operárias», diz A. Sérgio:
«se serviu a burguesia comercial-marítima contra a hegemonia política dos aristocratas, que tinha por base a propriedade rústica e o direito senhorial da Idade Média» (15).
Mesmo sem atender a que os factos históricos mostram que os homens-bons (a «classe média») não foram nem «roubados» nem saqueados pelas «gentes operárias», a opinião de A. Sérgio cai por si... e com graça. Admitir que a burguesia comercial-marítima, para atingir a base económica dos aristocratas, apoiou as expropriacões feitas à burguesia rural (a «classe média») é o mesmo que admitir que um camponês, para abater o porco, corta o pescoço ao galo. Dificilmente se pode ser um bom estratega dos dias de hoje se se atribui tão espantosa estratégia aos revolucionários do passado.
Por tudo quanto se disse já acerca do papel da burguesia na revolução e acerca das posições por ela mantidas nos concelhos (mesmo onde foram mais violentas as «explosões independentes» dos proletários, como em Évora) se mostra que uma tal «roubalheira» e «saque» são pura imaginação. E, pelo que se dirá acerca de Nun'Álvares como «fronteiro» de Entre Tejo e Guadiana e da sua expedição ao Alentejo, se verá que a burguesia comercial-marítima, muito longe de apoiar o saque e roubalheira da «classe média» pelos camponeses pobres e jornaleiros, entrou em compromissos corn a nobreza territorial corn o fim de sufocar as revoltas camponesas.
Sob o ponto de vista económico e postas de lado fantasias sem qualquer base, quais foram os benefícios para as classes trabalhadoras dos campos?
Em primeiro lugar, os pequenos cultivadores e jornaleiros, em virtude da sua luta em aliança corn os homens-bons contra os grandes senhores feudais, obtiveram uma trégua nas medidas de compulsão ao trabalho e de estabelecimento de taxas de salários pelos homens-bons, ponto central das suas lutas anteriores contra a burguesia rural. De facto, no princípio do reinado de D. João I, foi expressamente proibido aos concelhos (isto é, aos homens-bons) fixar taxas de salários e foi proibido tirar os filhos aos pais lavradores para servir por soldada em terra alheia.
Este o primeiro êxito alcançado na revolução pelos estratos inferiores da população trabalhadora dos campos.
Em segundo lugar, ao abrigo da lei das sesmarias, os homens-bons, tendo fortalecido as suas posições com a revolução, ao mesmo tempo que se enfraqueciam as da nobreza, continuaram, e com mais intensidade, a tomar terras incultas aos grandes senhores. Nos princípios do reinado de D. João I, continuam os sesmeiros a ser designados pelos homens-bons dos concelhos e continua a ser de um ano o prazo dentro do qual os senhores devem arrotear as terras incultas para que estas não sejam cedidas de sesmaria. Vitoriosos os vilãos na revolução e exilados muitos senhores da terra, multiplicam-se os casos em que os primeiros tomam de sesmaria terras aos últimos.
Este o segundo êxito alcançado na revolução pela população trabalhadora dos campos.
Em terceiro lugar, em paga dos serviços prestados, muitos homens-bons receberam terras reais e terras expropriadas a nobres partidários de Castela. A «classe média» em vez de vítima da «roubalheira» e «saque» pelas «gentes operárias», também se banqueteou inicialmente à mesa das expropriações. Os burgueses mais importantes tornaram-se senhores de terras, ascendendo à aristocracia e passando a defender os seus novos privilégios de classe.
Este terceiro êxito beneficia, pelo facto da revolução, as camadas superiores da burguesia rural e comerciante.
Em quarto lugar, com a revolução, todas as classes tributárias dos campos viram diminuídas as prestações pecuniárias fixas. As decisões das Cortes e dos governos de não permitirem a actualização das rendas e tributos em dinheiro, apesar de sucessivas desvalorizações da moeda, corresponderam a uma efectiva diminuição dos encargos pecuniários e portanto a uma vitória das classes trabalhadoras dos campos contra os senhores feudais.
Os foros, as rendas e os tributos em dinheiro eram pagos em libras, em soldos e em dinheiros. Libras, soldos e dinheiros não eram unidade monetária com qualquer conteúdo metálico fixo. O dinheiro era a duodécima parte do soldo. O soldo a vigésima parte da libra. E a libra uma fracção, convencionalmente fixada pelo governo, do marco de prata, correspondente este a 8 onças (229,5 gramas) e, em princípio, com onze partes de metal fino e uma de metal de liga. A desvalorização da moeda operava-se pelo aumento do número de libras contidas no marco de prata. No tempo de D. Afonso III, o marco de prata tinha 12 libras; no de D. Dinis, 14; no de D. Afonso IV, 18; no de D. Pedro I, 19; no de D. Fernando, 15; e no de D. João I, de desvalorização em devalorização, o marco de prata chegou a valer quase... 30 000 libras! Desta forma, não havendo actualização ajustada das rendas, foros e tributos em dinheiro, e continuando a ser pagas não em marcos de prata, mas em libras e suas fracções, as classes tributárias dos campos viam consideravelmente reduzidos os seus encargos pecuniários fixos.
Nas vésperas das Cortes de Coimbra de 1385, como a moeda tivesse já sofrido duas desvalorizações e a libra tivesse já menos de metade do metal fino do que no tempo de D. Fernando, exigiram os grandes senhores (nobreza e clero) que se estabelecesse o pagamento dos foros, rendas e tributos na moeda antiga ou em metal precioso e reclamaram as classes tributárias - os homens-bons e os trabalhadores agrícolas em geral - o pagamento na moeda nova. As Cortes de Coimbra de 1385, acedendo às reclamações populares, determinaram implicitamente a diminuição dos encargos pecuniários das classes trabalhadoras dos campos, assestando um grande golpe nos direitos e proventos dos senhores feudais. Conforme cita Costa Lobo, o clero de Braga, queixando-se ao Papa, contava que, quando dantes as herdades da Igreja davam «cem libras de moeda antiga, que eram quatro marcos de prata a 25 libras», agora, com o pagamento em libras da nova moeda, davam apenas «pouco mais de marco e meio de prata». Isto significa que a burguesia rural e os camponeses em geral viram aliviados para menos de metade os seus encargos pecuniários.
É este o quarto êxito alcançado na revolução pela população trabalhadora dos campos.
Tais foram os benefícios fundamentais de natureza económica colhidos na revolução pelas classes que nos campos se levantaram contra a nobreza feudal.
As cortes de 1385
A vitória não se decidiu definitivamente na insurreição de 1383. A intervenção militar de Castela, preparada, solicitada e provocada pela nobreza, invocando o rei de Castela a legítima sucessão ao trono, complicou extraordinariamente os problemas políticos e militares que se colocavam perante a burguesia. Designadamente: primeiro, o de encontrar uma saída política juridicamente fundamentada para a insurreição e para a consequente quebra dos tradicionais direitos da monarquia; e segundo, o de organizar as suas forças armadas e conduzir a sua táctica nas condicões novas criadas pela insurreição popular, pela derrota da nobreza feudal portuguesa que constituía o essencial da força militar portuguesa tradicional, e pela intervenção dos senhores feudais estrangeiros.
A solucão militar deu-a a criação de um novo exército, um exército «popular», comandado por militares de carreira. A solução política foi encontrada nas Cortes de Coimbra de 1385 com a eleição de um novo rei e o início de uma nova dinastia, a par da formação de um governo com forte representação burguesa.
Mais de cinquenta concelhos estiveram representados nas Cortes de Coimbra. Aí estiveram os comerciantes do litoral, esses que haviam arrancado ao governo de D. Fernando as leis de fomento do comércio e da navegação; e aí estava também a burguesia rural, essa mesma que arrancara ao governo de D. Fernando a lei das sesmarias, dirigida contra os grandes senhores da terra. Não é do acaso ser do Alentejo uma vintena dos cinquenta concelhos que Fernão Lopes indica terem estado representados. Era do Alentejo que a vastidão dos incultos e terras mal aproveitadas mais acendiam as reclamações dos vilãos; e, afora os grandes portos, fôra aí que a insurreição burguesa, secundada pelas revoltas dos «ventres ao sol», conseguira vitórias mais radicais. Acudindo às Cortes, a burguesia rural tentava ainda obter a efectivação plena da lei das sesmarias. Entretanto, a expedição repressiva de Nun'Álvares ao Alentejo, de que adiante se falará, começava já dando os seus frutos, que se reflectem no facto de alguns concelhos alentejanos serem representados por elemento das classes privilegiadas.
Também os nobres estiveram nas Cortes. Uns ousando defender o domínio da nobreza ao preço da sujeição a Castela. Nun'Álvares, procurando roubar às Cortes o seu alto significado político, procurando diminuir e desvalorizar as imposições dos burgueses e aconselhando, como processo para obter uma decisão favorável à eleição do Mestre como rei, não a discussão, nem o voto, nem as resoluções e compromissos - meios estes a atestarem a vitória burguesa sobre os senhores feudais - mas sim um meio caracterizadamente aristocrático - a acção da sua espada calando a opinião dos opositores: «e, se vós quiserdes, eu vos despacharei do seu estorvo».
A grande voz em Coimbra não foi porém a Nun'Álvares, nem a de qualquer outro nobre, nem a de altos prelados, nem a do Mestre; a grande voz foi a de um legista, um intelectual da burguesia, um «chamorro» - João das Regras.
Coube a João das Regras encontrar e expôr nas Cortes de Coimbra de 1385 uma base jurídica em que assentasse a sucessão do Mestre de Aviz a D. Fernando. São célebres os seus argumentos, excluindo um a um os possíveis pretendentes ao trono e concluindo pela legitimidade de D. João. Entretanto é evidente que não foram os argumentos de João das Regras que decidiram a questão dinástica. Todas as grandes revoluções sabem encontrar uma legitimação jurídica, pois o direito nasce da sociedade e a sociedade da acção dos homens. Não são as leis que fazem o poder, mas o poder que faz as leis. Assim sucedeu também em 1383-1385.
Nas Cortes de 1385, pela sua composição - ampla participação das classes populares e posição favorável ao Mestre, com compromisso anterior, da maioria dos representantes da nobreza - estava de antemão resolvido que D. João seria rei e não o castelhano nem qualquer dos possíveis pretendentes que ao lado do castelhano combatiam. Seria um absurdo que o novo regime surgido da insurreição, com dois anos de vida, em guerra vitoriosa com Castela, preparasse e convocasse umas Cortes para aí ver aprovado o triunfo do inimigo. Se os argumentos de João das Regras não tivessem sido aceites pelos nobres legitimistas, os senhores do novo regime teriam acabado por seguir o oferecimento de Nun'Álvares de despachar o Mestre de seu estorvo... A justificação jurídica teve o mérito de alargar o campo dos que apoiavam a revolução burguesa e de arrancar ao inimigo a bandeira da legalidade, do direito e da tradição.
As Cortes de 1385 foram, na sua época, um parlamento revolucionário. Aparecem por um momento na história portuguesa como uma expressão da vontade nacional soberana. Realizadas já depois do esmagamento dos focos de rebelião camponesa e proletária, as decisões das Cortes de 1385 marcam, na sua multiplicidade e autoridade, a decisiva influência burguesa na direcção da politica central.
Em plena guerra civil e em vésperas de nova invasão, os burgueses decidem por instantes dos destinos do país. Se dantes iam às Cortes para solicitar ou, quando muito, aconselhar, agora ordenam. Se dantes iam às Cortes a chamada do rei, agora estão aí para o nomear: «nomeamos e escolhemos, na melhor maneira que pode ser este D. João por rei e senhor» e «outorgamos-lhe que se chame rei». Não se limitam a traçar linhas gerais da política: indicam a composição social do Conselho do rei, onde asseguram uma maioria burguesa: a par de dois prelados e quatro fidalgos, impõem quatro letrados e quatro cidadãos (representando estes últimos Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, e devendo o de Lisboa ser escolhido pela própria cidade). Se, catorze anos antes, D. Fernando pudera recusar a convocação de Cortes de 3 em 3 anos, agora os burgueses impõem a sua convocacão anual. Os burgueses procuram assegurar-se de uma intervenção activa em toda a governacão e resolvem que, de futuro, não se lancem tributos, sisas ou pedidos, nem se decida da paz ou da guerra, sem o assentimento dos povos. De boa vontade os burgueses contribuem agora para as despesas da guerra, comprometendo-se a entregar ao rei 400 000 libras, são eles os primeiros a financiá-la, pagando soldo às tropas, comprando fidalgos, armas e combatentes ingleses. E, traduzindo bem a adoracão da classe vencedora por um novo Deus, usarão, encastoados em prata e pendurados ao pescoço, os primeiros reais cunhados pelo governo.
Uma das preocupações das Cortes foi assegurar, pelas suas medidas, a continuação vitoriosa da guerra. Tal guerra era justamente compreendida como uma causa interessando as classes populares e particularmente a burguesia. E, na verdade, pela sua natureza de guerra nacional contra a nobreza e seus associados castelhanos, e pelas novas soluções tácticas encontradas no terreno militar, tal guerra era bem uma guerra revolucionária da burguesia apoiada e secundada pelas massas trabalhadoras dos campos.
A insurreição e a vitória militar
Tendo eclodido vitoriosamente em Lisboa, a insurreição de Dezembro de 1383 foi secundada no Porto, em quase todo o Alentejo, em parte das Beiras e em pontos dispersos pelo país. «Alçam-se vilas contra os alcaides dos castelos pelo reino. Levantam-se uniões de uns contra os outros. Fazem-se muitas outras coisas em uma vazão, de guiza que umas torvam as outras a se não poderem contar nos dias que aconteceram» (16). Que melhor imagem para mostrar a extensão e simultaneidade do movimento? Confiada nas guarnicões que comandava e nos castelos que possuía, a nobreza julgara poder triunfar com a ajuda estrangeira. Animava-a o desdém que os militares profissionais sempre sentiram pelo povo desarmado. E o certo é que então, como numerosas vezes ao longo da história sucedeu em grandes revoluções, o aparelho militar estatal foi vencido pelas massas populares sublevadas, unidas e prontas a jogar a vida para vencer. Se em muitas cidades e vilas os nobres conseguiram conservar as guarnições e os castelos, em muitas outras não lhes valeram os muros e torres, nem as armas, nem a arte. «Os povos miúdos, mal armados e sem capitães, com os ventres ao sol, antes do meio-dia os filhavam por força». Uma vez tomados, os castelos, instrumento e símbolo do despotismo feudal, eram abertos para o lado dos lugares ou cidades, desmantelados ou mesmo arrazados. Muitos dos grandes senhores, escapando a uma execução sumária, fugiam ante a vaga da revolta. Por toda a parte o povo tomava conta do poder civil e militar e, contra os senhores feudais, impunha a ordem revolucionária. Ninguém ousava então contradizer os vencedores «porque sabia que, como falasse, morte má tinha logo prestes, sem lhe nenhum poder ser bom».
A insurreição alterou radicalmente o panorama militar do país. A derrota da nobreza foi a derrota da cavalaria, arma predominante e decisiva das forças armadas feudais. Da vitória da plebe e da derrota da nobreza emergiu o papel determinante da infantaria nas forças armadas da revolução.
A táctica militar «pé terra» não foi uma descoberta de generais nobres, como alguns já têm pretendido, mas criação espontânea das massas populares e dos seus dirigentes, correspondendo a factores objectivos e da natureza de classe tanto da revolução como da guerra.
A táctica «pé terra», na sua expressão essencial, foi adoptada e seguida com êxito desde a primeira hora pelos combatentes do povo. Quando o conde de Viana saiu com quarenta de cavalo do castelo de Penela «para tomar mantimentos contra a vontade dos seus donos», «juntaram-se contra ele os das aldeias e comarca derredor para lhes defender, todos pé terra». «E emborilhando-se eles com eles, remessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em terra; e foi urn vilão rijamente que chamavam d'alcunha Cazpirre e cortou-lhe a cabeça e assim morreu. E os seus, como o viram morto, fugiram todos e os da vila tomaram logo voz por Portugal» (17). A quem o mérito da táctica de «pé terra»? Aos nobres ou aos vilãos? A Nun'Álvares ou a Cazpirre?
Entre os muitos aspectos da revolução de 1383-1385 insuficientemente estudados, o militar não é o que deve merecer menor atenção. É frequente gabar-se o espírito abnegado dos guerreiros nobres, esquecendo-se que, pelos seus serviços militares, era normal esses abnegados guerreiros receberem bom pagamento e (conforme cantava o Conde Gil Peres) negarem-se a ir combater, se este faltava:
«Quite-mh a mim meu senhor E dê-m'um born fiador por mha soldada, e hirey eu, se el for, na cavalgada. ………………………………… E, sse non, ficao-m'ey eu na mha pousada.»
Ainda se ensina às crianças que os maiores feitos de Aljubarrota pertencem à aristocrática Ala dos Namorados e ainda o sr. Rocha Martins, embora agradecendo a vitória a peonagem, agradece sobretudo aos «abençoados vales».
Se o significado político geral da táctica adoptada e da vitória militar tem já sido compreendido e sublinhado, o mesmo não sucede quanto à organização e direcção das forças militares e ao papel e aos méritos dos comandantes nobres dos exércitos burgueses.
Se, na insurreição, burgueses e artesãos tinham dirigido a luta armada, depois, para a condução da guerra, entregaram grande parte da direcção militar aos militares profissionais, designadamente aqueles nobres que haviam tomado partido pelo Mestre. Estes viriam a desempenhar um duplo e contraditório papel: por um lado, contribuir para a vitória militar contra Castela e, implicitamente, para a vitória militar da burguesia sobre a nobreza feudal a que eles próprios pertenciam; por outro lado, sufocar as revoltas camponesas e a revolução burguesa nos campos e conservar para a aristocracia postos de mando no novo aparelho do Estado. Isto explica a esmagadora derrota da nobreza; e explica também a rigidez com que a nobreza se recompôs dos golpes sofridos, reorganizou suas forças e passou à contra-ofensiva. Não podendo ou julgando não poder dispensar o comando de militares profissionais, os burgueses forjaram uma arma de duplo gume, favorecendo o êxito imediato e comprometendo o êxito futuro.
O próprio sistema de pagamento das tropas facilitou este papel reaccionário dos militares de carreira. Enquanto os vilãos serviam e pagavam, os aristocratas serviam e eram pagos. E, quando o pagamento de quantias em dinheiro e terras não atingia quanto pretendiam, pagavam-se por suas mãos, roubando mantimentos ou ocupando militarmente e instalando-se gratuita e brutalmente nas povoações. O pagamento dos serviços militares dos nobres representou desta forma a manutenção da sua arrogância, do seu desafôro e do seu poderio contra os burgueses e contra o povo em geral.
Entretanto o que é característico das forças militares saídas da revolução não é o comando de senhores feudais. O que é característico é a sua composição de classe plebeia, as raízes plebeias da sua táctica, a natureza plebeia da sua luta e das suas vitórias.
Conforme ficou imperecivelmente registado por Fernão Lopes, o inimigo derrotado nao viu na sua frente, como vencedores, os nobres que estavam com o Mestre, a tão cantada Ala dos Namorados. Sentiu bem ter sido derrotado pelos vilãos. Ele lamenta-se pela derrota e, mais do que pela derrota, pelo facto de os triunfadores terem sido, não nobres e cavaleiros, mas «chamorros», vilãos, essa massa explorada e aviltada, reduzida à miséria pela exploração e opressão feudais.
«E se vós dizeis que outro tanto e tal aconteceu a meu pai (teria dito o rei de Castela depois de Aljubarrota) verdade é que assim foi. Mas [...] de que gentes foi o meu padre vencido? foi-o de ingleses que são o frol da cavalaria do mundo, em tanto que vencido por eles não deixava de ficar honrado [...]. E de que gentes fui eu vencido? Fui-o de chamorros que ainda que me Deus tanta mercê fizesse que a todos tivesse atados em cordas e os degolasse por minha mão, minha desonra não seria vingada» (18).
Mais que a derrota em si, afligia os nobres vencidos a classe dos seus vencedores. Em outras guerras estavam em jogo as pessoas que deviam mandar, não a classe a que tais pessoas deviam pertencer. Esta era uma guerra de novas características, a guerra da ordem feudal contra forças sociais ascendentes e rebeladas. Como poderiam os nobres ser derrotados por homens «provemente e mal amanhados, ca o que tinha cota não tinha coudel, e o que tinha panceira não tinha barcelotes, e muitos deles com bacinetes sem caras, assim que todas as suas armas, sendo repartidas como cumpria, não armariam o terço da gente, em tanto que dizem aqueles que os viram que não pareciam os nossos acerca deles senão urn pouco d'escarneo de ver» (19)? Não é verdade que a covilheira de el-rei de Castela defumava os fidalgos com defumaduras «para perderdes os maus cheiros destes chamorros, das casas onde vivem e aldeias onde moram» (20)? Como poderia a aristocracia conformar-se corn tão grande derrota infligida pelos vilãos?
Desde que a nobreza fora vencida na insurreição, o novo Estado deixou de contar corn a cavalaria como força fundamental do seu exército. Doravante, na guerra contra Castela, defrontar-se-ão sempre e sistematicamente a cavalaria castelhana contra a infantaria dos portugueses, mostrando-se assim, no próprio terreno militar, que a guerra não era senão nova fase da luta política dos burgueses artesãos e camponeses contra a nobreza feudal. A própria táctica de «pé terra», que derrotou os castelhanos em sucessivas batalhas (Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota), ficaria sendo significativo atestado da composição e da natureza de classe do novo exército português.
Ern Portugal, como em outros países, o aperfeiçoamento da arma de infantaria foi um produto das necessidades da burguesia ascendente fazer frente, no campo da luta armada, às forças do Estado feudal, a cavalaria. Já em 1302, na célebre batalha de Courtrai, a cavalaria de Filipe-o-Belo conheceu duramente os méritos da infantaria burguesa dos flamengos. Em Azincourt (1415), os senhores feudais franceses virão a sofrer na carne a nova táctica burguesa posta em prática pelos guerreiros da Inglaterra. Em Portugal, o desenvolvimento das forças militares da burguesia acompanhou o desenvolvimento da importância económica da burguesia e da sua luta contra a ordem feudal. Nos princípios do século XIII, na batalha de Navas, já se mostrou o valor da peonagem dos concelhos. E a importância que tinham os besteiros nas forças armadas portuguesas, quando se verificava que, em vários países, os senhores feudais restringiam ou dissolviam os corpos de besteiros, acusava o papel crescente do elemento popular, designadamente dos mesteirais, criando condições favoráveis para o embate contra a cavalaria aristocrática que se veio a dar na revolução do século XIV.
Em Aljubarrota, enquanto nas hostes castelhanas predominava a cavalaria (20 000 cavaleiros em 30 0000 combatentes), nas hostes portuguesas predominava a infantaria (2000 lanças, 800 besteiros, 4000 peões). Tanto pela composição das forças em presença, como pelo desenrolar da luta, segundo os relatos que nos ficaram, se pode dizer que Aljubarrota foi uma vitória da peonagem burguesa contra a cavalaria aristocrática, foi a batalha dos burgueses, artesãos e camponeses revolucionários de Portugal contra a nobreza reaccionária conluiada de Portugal e Castela. O carácter de luta pela independência nacional, originado pela intervenção castelhana na revolução portuguesa, dá a esta batalha particular significado para a nação portuguesa. Mas não só isso. Aljubarrota é um elevado momento na luta de classes na Península e urn triunfo das forças progressistas contra as forças reaccionárias.
(*) Trata-se do capítulo III de ‘As lutas de classes em Portugal nos finais da Idade Média’, conforme a 2.ª edição, revista e aumentada, de 1980, da Editorial Estampa. Esta obra foi concebida na Penitenciária de Lisboa a partir de 1950. Foi discutida no forte de Peniche, entre camaradas, tendo exercido uma grande influência na decisão de António Borges Coelho de optar pela carreira de historiador. Circulou de forma restrita, na clandestinidade, em versão datilografada. Teve uma primeira edição em França, em 1967, pelo Centre d’Études e Recherches Marxistes (CERM). Em Portugal seria publicada apenas em 1975. A lição que Álvaro Cunhal pretende reter e realçar desta longínqua revolução “burguesa” - cuja precocidade é, ela própria, um motivo de orgulho patriótico - é a defesa do nacionalismo. As classes sociais ascendentes (a burguesia ontem, o proletariado hoje) são aquelas que sustentam a independência nacional, contra a política de traição a que as classes privilegiadas não hesitam em recorrer, sempre que vêm a sua dominação ameaçada. É um tema recorrente dentro do discurso político do PCP, que aqui procura uma nova base de sustentação dentro de uma concepção linear e mecanicista do materialismo histórico. Há também a polémica historiográfica com António Sérgio, com uma clara leitura política contemporânea aos dois autores (aliás, assinalada expressamente, com algum bom humor) dentro do jogo de posicionamentos no seio da oposição democrática.
___________ NOTAS:
(1) Jaime Cortesão, História do Regime Republicano em Portugal, fasc. 3, Lisboa, 1930, p. 85.
(2) Ibid.
(3) Torquato de Sousa Soares, in Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, t. V, p. 401, obs. LX.
(4) Ibid., t. III, pp. 369-37, obs. LX.
(5) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. CXXII.
(6) António Sérgio, Prefácio à Crónica de D. João I, p. XII.
(7) Ibid., p. XVIII.
(8) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. XLVI.
(9) Ibid., cap. CLXXXII.
(10) Ibid., cap. LXXXVIII.
(11) Cit. Gama Barros, op. cit., pp. 417 e segs..
(12) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. XXVI.
(13) António Sérgio, op. cit., p. XVIII, Ensaios, t. VI, Lisboa, 1946, p. 167.
(14) Ibid., pp. XIX-XX.
(15) Ibid., pp. X-XXI.
(16) Fernão Lopes, Crónica de D. João I, cap. XXIX.
(17) Fernão Lopes, Crónica de D. João I.
(18) Ibid.
(19) Ibid.
(20) Ibid.
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