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A introdução do marxismo em Portugal 1850-1930
Alfredo Margarido (*)
Está ainda por fazer a história da maneira como foram introduzidas e divulgadas as ideias de Karl Marx ou, dito por outras palavras, estamos na impossibilidade de dizer quando e em que condições teóricas e práticas apareceu o marxismo corno corrente política autónoma. Sabemos contudo que a expansão dessas ideias, através dos livros, mas também das organizações operárias e intelectuais, teve de vencer a resistência das forças retrógradas, mas deve também dizer-se que ela foi dificultada pela resistência de outras correntes do pensamento e da prática socialista da época: prudonianos, furieristas, blanquistas, anarquistas, mazzinistas, bakuninistas, etc.. O maior obstáculo foram os adeptos de Proudhon, que ocupavam um lugar primordial na organização da resistência do proletariado na Europa, como também nos países marcados pelo desenvolvimento rápido do capitalismo industrial.
Trata-se de um problema fundamental, que só agora começa a ser abordado de maneira sistemática. Contudo, há já alguns anos que esta questão começara a ser abordada, se bem que nem sempre da maneira mais indicada, corno no caso de Louis Althusser ao afirmar que «a parte de longe mais importante do movimento operário adoptou como doutrina a teoria científica de Marx, para a aplicar com êxito na sua estratégia e na sua táctica, como nos seus meios e formas de organização e de luta. Esta adopção não se realizou sem dificuldades. Foram necessárias dezenas e dezenas de anos, de experiência e de sofrimentos, e também de lutas para que a história consagrasse esta adopção» (1). O que não explica a maneira como o marxismo se pôde transformar na única expressão teórica do comunismo, ao ponto de tornar o comunismo num resultado ou mesmo num apêndice do marxismo.
Mais: esta maneira de dizer as coisas pretende ocultar um facto importante, e mesmo fundamental: o proletariado, assim como o campesinato, dispunham de organizações autónomas antes de Marx e de Engels, e tais organizações tinham permitido o combate, com vitórias importantes do proletariado. Constata-se facilmente que a classe operária não esperou Marx para se organizar, nem para estruturar os princípios teóricos que lhe permitiram concentrar-se e mobilizar-se para o combate. Louis Althusser pretende esquecê-lo, ou pelo menos minimizá-lo, sem o conseguir, pois a verdade é que Marx só pode compreender-se integrado num movimento já poderoso, que permite reforçar elementos teóricos, ou propor análises novas, possivelmente mais fecundas.
Não será por isso inútil lembrar que Lucien Goldmann se interrogara também sobre esta questão: «é evidente que Marx designa ao proletariado um lugar revolucionário fundamental, mas que este pensamento seja, no momento em que nasceu em França, em Inglaterra, o pensamento do proletariado (porque, para Marx, e como tentei mostrá-lo em todas as minhas análises históricas, são sempre os grupos sociais que elaboram as grandes categorias), que as categorias do socialismo francês em geral desta época - a grande renascença do socialismo situa-se em França na primeira metade do século XIX - tenham sido elaboradas pelo proletariado, mas não tenho a certeza. Mas em todo o caso trata-se de um problema importante. Como nasceu o pensamento marxista, a partir de um pensamento que formou a ala esquerda do pensamento democrático burguês, dos neo-hegelianos da Alemanha e do socialismo democrático francês?» (2). O problema é enunciado com uma precisão que não existe no texto de Althusser, na medida em que Goldmann se interroga não sobre um simples modelo teórico, mas a partir de uma reflexão sobre a prática, que sempre o levou a separar-se das afirmações simplistas dos marxistas e dos comunistas marcados pelas dicotomias recebidas do estalinismo mais clássico.
O que não quer dizer que tenha dado uma resposta cabal. Pelo contrário, enunciado o problema, e tendo reconhecido a dificuldade da resposta, Goldmann procura evitar a dificuldade com uma pirueta: «ora o que importa é que este pensamento seja essencialmente dialéctico» (3), o que poderia querer dizer, mas não é certo, que a categoria principal de um pensamento verdadeiramente revolucionário reside na sua possibilidade dialéctica. Trata-se de uma maneira de dizer característica de Goldmann, tanto mais que reconhecemos a dupla lição de Hegel e de Lukács, mas ela não é suficiente para podermos encontrar a resposta que procuramos. Tanto mais que a questão que assim enunciamos não se refere apenas a um corpo de ideias separado da prática, mas deve sobretudo considerar os canais e os agentes da divulgação do marxismo: quem foram eles? representavam que classes ou interesses? quais as técnicas utilizadas para fazer de uma obra difícil uma referência necessária? como foram construídas as vulgatas e os catecismos que permitiram levar a grupos alheios ao marxismo original, um conhecimento mínimo do marxismo?
Existe actualmente a tentação de atribuir ao marxismo e aos marxistas a parte mais importante da acção do proletariado e do campesinato. Um certo número de historiadores e de organizações políticas, procuram descobrir a mola do marxismo em todas as acções importantes da classe operária, não hesitando perante os anacronismos. Ora convém distinguir as situações existentes, e constatar que, por vezes, as ideias e as obras de Marx e de Engels foram importadas, traduzidas, divulgadas, não por socialistas ou por «marxistas», mas pura e simplesmente por anarquistas. Tal foi o caso em Itália (4), e tal aconteceu também em Portugal. Quer dizer que pode ter acontecido - como aconteceu - que as ideias e as teses de Marx e de Engels tenham sido introduzidas sem dar aso à criação de partidos ou de grupos tendo como objectivo a prática de um qualquer marxismo. Também neste caso nos encontramos perante um problema de singular importância, para o qual ainda não existe resposta.
Sobretudo, convém mostrar que a classe operária foi capaz de agir sem ter de recorrer sistematicamente ao «marxismo», como parece sugerir Althusser. Neste caso, parece-me mais importante e mais sagaz a maneira como Goldmann aborda a questão, de maneira apenas interrogativa, pois não parece fácil, na situação actual dos nossos conhecimentos, explicar a maneira como apareceu o «marxismo» e como este pode impor-se a ponto de ocupar inteiramente o espaço teórico do proletariado e do socialismo. Na realidade, trata-se de saber como foi possível a um autor oriundo dos meios intelectuais mais selectivos e exigentes, transformar-se no ponto de referência principal, senão único, de todas as opções dos produtores. Convém dizer que não vou responder a estas questões, limitando-me a enunciá-las, pois o meu propósito é mais restritamente português. O que não me impedirá de enunciar algumas perguntas e de avançar algumas respostas.
Queria ainda dizer que semelhantes questões não estão ausentes do corpo teórico português, embora enunciadas de maneira apressada. Tal é o caso de César Oliveira ao procurar sintetizar a maneira como evoluiram as teorias socialistas entre nós: “um outro factor tem certa importância aqui: toda a produção teórica de raiz portuguesa (Antero, Fontana, Eduardo Maia, Gonçalves Viana, Silva Mendes, etc.) está muito mais próxima do anarquismo e do sindicalismo revolucionário do que do socialismo marxista” (5), o que se poderia explicar pelos «atractivos» imediatos do projecto anarquista, que veicularia uma linguagem que apela mais para a energia individual e utiliza às vezes o «miserabilismo» das classes trabalhadoras, mas recusa o recurso a um discurso «fechado» e complexo, da mesma maneira que não recorre a uma centralização da acção.
Parece-me que se trata, uma vez mais, de avalizar a oposição, mais engeliana do que marxista, entre os proletariados organizados e eficazes das nações industrializadas, que são as nações do norte, e os proletariados ainda marcados pelas relações com o campo, que caracterizam as regiões europeias do sul, e ainda mais particularmente a Itália. Mas César Oliveira parece-me esquecer um dado importante, e até o dado fundamental: mau grado o desconhecimento do marxismo, a classe operária portuguesa, como o campesinato, sobretudo a partir de 1910, foram capazes de agir e de se organizar, provando por via dessa prática, que o marxismo não constituía a única resposta teórica a uma situação política e económica ou mesmo cultural. O que reforça o que já dissemos a propósito da introdução do marxismo em Itália e em Portugal, muitas vezes realizado por intermédio de autores ou de organizações perfeitamente anarquistas.
Tudo isto traduz a grande complexidade da questão, a que se não pode responder de maneira sintética, porquanto se trata de desmontar o maquinismo da introdução do marxismo. Ora se a questão ainda não teve a resposta europeia que merece, é óbvio que ela só pode ser embrionária entre nós, na medida em que a nossa história social tem andado a reboque das várias propostas feitas no estrangeiro, por razões que nem sequer são da responsabilidade imediata, ou pelo menos única, dos historiadores. Por isso me limito a avançar algumas sugestões, a elaborar algumas perguntas e a procurar dar respostas que ainda não são definitivas. Melhor dito: algumas destas respostas são apenas indicativas, pois se trata de nos darmos os meios de ir mais longe e mais fundo, para sermos capazes de analisar a maneira como as ideias e as práticas socialistas, e não apenas marxistas, foram elaboradas entre nós.
Para poder analisar com rigor a maneira como o marxismo se serviu de certos utensílios privilegiados para se poder introduzir e sobretudo para poder assegurar a sua divulgação, pareceu-me útil reter um caso revelador: o dos resumos do Capital, e entre estes isolei o do francês Gabriel Déville, por ter sido o único escrito a pedido de Karl Marx, mas também por ter conhecido uma história atormentada, devido à intervenção de Engels, não apenas como gerente da herança de Marx, mas mais latamente como único guia do pensamento marxista. Se Marx disse algures que não era marxista, a verdade é que Engels o foi durante toda a sua vida, e ainda mais pesadamente após a morte de Marx. Por outro lado, ao acompanhar de perto a maneira como foi escrito e difundido o resumo de Gabriel Déville, quis sobretudo mostrar a tarefa difícil, ou pura e simplesmente impossível, dos militantes que tomaram sobre os ombros a responsabilidade de introduzir e de assegurar a expansão do marxismo.
Quero, porém, referir-me a um resumo publicado mais cedo, em Itália, e redigido por Carlo Cafiero, que militara algum tempo na Aliança, para se separar dos «marxistas» e aderir ao grupo de Bakunine. Esta atitude, que o levara a confiar a correspondência recebida de Engels aos bakuninistas, contribuira para o corte de relações entre Cafiero e Engels. Reconhecendo porém a importância da elaboração teórica de Marx, Cafiero lança-se na realização de um resumo que seria publicado em Itália em 1879. Cafiero envia-o então a Marx, acompanhado por uma carta datada de 23 de Julho:
«Prezadíssimo Senhor, Envio-lhe pelo mesmo correio dois exemplares da sua obra O Capital, que eu resumi de forma sucinta. Gostaria de lhos ter enviado mais cedo, mas só agora consegui alguns exemplares graças à gentileza de um amigo que com a sua intervenção conseguiu organizar a publicação do livro. Por outro lado, se tivesse podido fazer a publicação por minha conta, gostaria de lhe ter enviado antes o manuscrito para exame. Mas receando ver desaparecer uma ocasião favorável, apressei-me a consentir na publicação que me era proposta. Só agora me é possível dirigir-me a V. para lhe pedir que me diga se o meu estudo conseguiu compreender e exprimir o conceito exacto do autor! Peço-lhe, Senhor, que aceite a expressão do meu maior respeito e creia-me seu dedicadísssimo».
Mau grado as péssimas relações entre Engels e Cafiero, mau grado o facto de este ter optado pelas hostes de Bakunine, Marx responde com rapidez e gentileza alguns dias depois:
29 de julho de 1879 41, Maitland Park Road London N.W.
«Caro Cidadão Os meus mais sinceros agradecimentos pelos 2 exemplares do seu trabalho! Recebi há pouco tempo dois trabalhos idênticos, um escrito em servo, o outro em inglês (publicado nos Estados Unidos), mas pecam tanto um como o outro porque querendo dar um resumo sucinto e popular do Capital, se ligaram ao mesmo tempo demasiado pedantemente a forma científica da elaboração. Parece-me que desta maneira eles falham mais ou menos o objectivo principal, o de impressionar o público, ao qual os resumos são destinados. Eis a grande superioridade do seu trabalho! Quanto ao conceito da coisa, não parece que me engane ao atribuir às considerações expostas no seu prefácio uma lacuna aparente, a saber a prova que as condições materiais necessárias à emancipação do proletariado são de uma maneira espontânea engendradas pela marcha da produção capitalista (e da luta de classes que chega em última instância à revolução social. O que distingue o socialismo crítico e revolucionário dos seus predecessores, é em minha opinião precisamente esta base materialista. Ela mostra que a certo grau de desenvolvimento histórico o animal havia de se transformar em homem). Quanto ao resto, sou da sua opinião - se bem interpretei o seu prefácio - que não é preciso sobrecarregar o espírito das pessoas que nos propomos educar. Nada o impede de voltar à carga em tempo oportuno para fazer ressaltar ainda mais esta base materialista do Capital. Renovando os meus agradecimentos, sou seu muito dedicado» (6).
Note-se a importância atribuída por Karl Marx aos resumos dos seus textos, pois só ela explica a longa carta escrita a Cafiero, mau grado as péssimas relações entre Engels e o italiano, que de resto derivam da polémica entre Bakunine e Marx. Ainda mais: a pouca força de penetração do marxismo durante este período, forçou Marx e Engela a aceitarem as múltiplas propostas de resumo e outras, feitas por militantes socialistas de todas as cores. Note-se porém que o país onde a divulgação do marxismo se processou mais rapidamente, foi a Itália, onde de resto apareceu um tradutor como Pasquale Martignetti, que não hesitou em aprender o alemão, para poder dedicar-se com mais afinco à tradução dos textos clássicos, se bem que nem sempre fosse bem acolhido por outros «marxistas» italianos, com foi o caso de Labriola (7).
No caso de Gabriel Déville, convém começar pelo autor do texto, pelo próprio texto e pelas relações de ambos com as origens do pensamento e da prática socialista. Gabriel Déville nasceu em Tarbes a 8 de Março de 1854, neto de deputado e sobrinho de um proscrito do 2 de Dezembro (8). Tendo feito os estudos secundários em Tarbes, matriculou-se depois na faculdade de Direito, para completar a licenciatura em Paris. Foi um dos elementos importantes dos grupos de jovens intelectuais que se reuniam aí por 1873 no Café Soufflet, e associou-se com alguns companheiros a Jules Guesde, enquanto outros se aliaram aos possibilistas e outros ainda aos anarquistas.
Déville formou com Guesde e Lafargue um trio fundamental na divulgação das ideias socialistas, se bem que tenha sido um péssimo orador, ao contrário de Guesde. Como escreve um historiador dessa época, estes três homens foram «pela palavra e pela escrita, notáveis propagandistas e vulgarizadores do marxismo» (9). O trabalho deste grupo, e sobretudo do Parti Ouvrier Français, formado em 1879, foi capital para a divulgação do marxismo, tendo publicado os textos mais importantes, ao mesmo tempo que dava a conhecer as teses fundamentais do marxismo: mecânica da mais-valia, luta de classes, necessidade histórica da revolução proletária.
O resumo de Déville desempenhou um papel importante nesta operação de divulgação, porquanto não eram muito numerosos os textos de Marx e de Engels então existentes em francês ou mesmo noutras línguas, e as tiragens não eram consideráveis. Situação claramente enunciada por Antonio Labriola que pôde escrever, já em 1899!, que «a leitura do que foi escrito pelos fundadores do socialismo científico, passou até agora por privilégio de iniciado!» (10). Isto mau grado os esforços de Marx, e sobretudo de Engels, para assegurar a divulgação dos textos. Assim se compreende também o interesse posto na elaboração e na difusão dos artigos de vulgarização, e também nos resumos de O Capital, obra teórica indispensável, mas de leitura reconhecidamente difícil.
Não consegui encontrar a correspondência eventualmente trocada entre Marx e Déville, que não foi incluída nas cartas sobre O Capital publicadas em francês (11), e que também não aparecem na edição alemã das Obras de Marx e Engels. Ora sabe-se, por aquilo que nos diz Déville neste resumo, mas também por uma afirmação de Laura Lafargue numa carta enviada a Engels em 1885 (12), que este foi levado a cabo «sob os auspícios» ou mesmo «a pedido» de Karl Marx. Apenas se conhece o rascunho de uma carta de Karl Marx a Gabriel Déville, datada de 23 de Janeiro de 1877, escrita portanto seis anos antes da publicação do resumo, e que anuncia questões de direitos editoriais, sem deixar de sublinhar a importância atribuída à publicação de um resumo das suas teorias:
23 de Janeiro de 1877 41, Maitland Park Road, NW Londres
Caro cidadão, Depois de ter recebido a sua amável carta de 15 de Dezembro, escrevi ao nosso amigo Hirsh (13) a respeito do seu projecto. Fi-lo por causa das minhas obrigações para com o senhor Lachâtre, o editor do Capital, que não me permitem aceitar o seu projecto sem ter obtido o seu acordo. Enviei-lhe há dias urna carta registada, porque a primeira deve ter sido interceptada como é frequente acontecer no império germano-prussiano. Enquanto espero a resposta do senhor Lachâtre, quero preveni-lo que, mesmo no caso do seu consentimento, o senhor A. Quêst seria muito capaz de sequestrar todos os exemplares do Capital. Dado que o senhor Lachâtre vive refugiado no estrangeiro, condenado por actividades «communardes» (14), o ministério Broglie confiou a administração da livraria do senhor Lachâtre ao cuidado do senhor Quêst que pertence à escória do partido conservador e que fez tudo para atrasar a impressão do meu livro e depois para prejudicar a distribuição. Mesmo com o consentimento do senhor Lachâtre, a quem estou ligado por um contrato particular, este senhor Quêst era capaz de lhe pregar uma partida. Lachâtre é inteiramente impotente face ao senhor Quêst, pois este sequestrador é o seu tutor legal. Nestas circunstâncias penso que seria conveniente adiar para mais tarde os extractos do Capital e publicar entretanto um estudo geral sobre a obra, se necessário em forma de pequena brochura, tanto mais útil quando o sr. Block (15) (no «Journal des Economistes») e o sr. Laveleye (16) (Na «Revue des Deux Mondes») deram ao público francês uma ideia muito errada do Capital. Eu e o sr. Hirsh estamos de acordo quanto a este ponto. Agradeço-lhe o seu livro que teve a amabilidade de me enviar; notável pelo estilo brilhante e pelo conhecimento profundo. Espero que o projecto que nos pôs em contacto seja o ponto de partida de uma correspondência futura. Seu, K.M.
O tom da carta é verdadeiramente cordial, retendo apenas Karl Marx as dificuldades criadas pelas condições materiais e políticas da época, deveras embaraçosas para os militantes franceses, ainda sujeitos à perseguição activíssima movida contra os responsáveis e os combatentes da Comuna. É contudo evidente que Marx atribuía uma importância considerável ao resumo do Capital, que lhe permitiria mostrar a falta de fundamento das críticas e dos comentários das grandes revistas burguesas da época. O projecto levou tempo a amadurecer e a terminar, por razões que não transparecem nos documentos que nos foi possível consultar, e só pôde ser publicado em 1883, após a morte de Karl Marx a 14 de Março. Marx ainda recebeu uma parte do manuscrito, mas não parece ter emitido uma opinião qualquer, e o texto foi depois submetido à leitura crítica de Friedrich Engels como mostra uma carta desse mesmo ano:
122, Regent's Park Road, NW Londres, 12 de Agosto de 1883
Caro cidadão Déville Recebi a sua carta e o seu manuscrito que agradeço. Vou sair de Londres na próxima semana e irei para uma estação balnear. Ali disporei de tempo livre para me ocupar do seu trabalho que lhe devolverei o mais rapidamente possível. O seu manuscrito chega num momento favorável. Acabei ontem precisamente a redacção final da 3.ª edição do Capital. Penso começar a redacção do 2.º tomo após o meu regresso dos banhos. O seu trabalho chega num momento em que disponho de algum tempo livre. Li a parte que tinha enviado a Marx há algum tempo; pareceu-me clara e correcta. Como se tratava da parte mais difícil da obra, não julgo que haja grandes problemas com as partes restantes. Muito amistosamente, F. Engels (17)
Após a morte de Marx, Engels assume a imensa tarefa de gerir O Capital, assim como os restantes manuscritos e trabalhos de Marx, nos quais a sua colaboração foi sempre intensa, se bem que nem sempre conhecida publicamente (18). Esta carta de 1883 é relativamente elogiosa, confirmando o facto de Dévilie ter enviado o seu manuscrito a Karl Marx, certamente porque este continuava a manifestar um certo interesse por este resumo. Podemos também pensar que a falta de qualquer censura, significa que estava de acordo, embora de maneira geral, com a forma como Déville organizara o trabalho. Observações importantes, quando se constata que nos anos subsequentes, Engels havia de variar nas suas opiniões quanto ao valor do trabalho de Déville, até chegar a condená-lo de forma algo radical, sobretudo nas cartas dirigidas a Laura Lafargue e a Karl Kautsky (19).
Numa carta a Laura Lafargue, datada de Outubro deste mesmo ano de 1833, Engels abandona pela primeira vez o tom relativamente neutro e ameno, ou até elogioso, para enumerar as múltiplas e graves falhas do texto:
«(...) o defeito deste trabalho reside no facto de numerosas partes serem assaz apressadas. É o que acontece sobretudo com as partes descritivas (em particular a manufactura e a grande indústria). Os argumentos não são tão evidentes como deviam. Não basta exprimi-los na medida do possível nos próprios termos de Marx; é impossível separá-los do contexto sem suscitar falsas interpretações, nem sem deixar um grande número de coisas numa obscuridade relativa. D(éville) faria bem se revisse completamente estes dois capítulos, completando-os com certas demonstrações existentes no original e sem as quais eles se tornaram demasiado abstractos e obscuros para leitores operários. Nas partes teóricas há também muitas inexactidões (algumas até, como a definição de mercadoria, são muito graves) e coisas feitas à pressa, mas trata-se de coisas que, na maior parte, não era difícil corrigir mais ou menos. Por outro lado, numerosos fragmentos, de grande interesse, e de uma grande importância para a ciência económica teórica, mas sem alcance imediato no que diz respeito às relações entre o Capital e o Trabalho, podiam ser postas de lado. Apontei até um ou dois (...) (20).
Numa outra carta, escrita quase imediatamente à que acabamos de citar, mas dirigida desta vez ao militante russo Lavrov, Engels é muito menos severo:
«Dévilie mandou-me o seu manuscrito para eu o rever. Como estava doente, limitei-me à parte teórica onde não havia grande coisa a rectificar. Todavia a parte descritiva foi feita muito à pressa; primeiro, e às vezes quase ininteligível para quem não leu o original, e depois anuncia com muita frequência conclusões de M(arx) sem hesitar em suprimir as condições taxativas em que essas conclusões são verdadeiras; o que dá às vezes uma impressão mais ou menos falsa. Chamei a sua atenção para isso, mas havia muita pressa em publicar o livro» (21).
Diga-se em abono da verdade e para compreendermos o processo tortuoso deste resumo, que Gabriel Déville fizera grande caso das observações de Engels, e procurara refazer o manuscrito, como diz Paul Lafargue no post-scriptum de uma carta enviada a Engels, e escrita na cadeia de Sainte Pélagie (22). Na realidade, o resumo de Gabriel Déville parece ter constituído a partir de uma data difícil de precisar, um objecto incómodo, uma espécie de enclave teórico, que os marxistas alemães, e sobretudo Engels, procuraram eliminar. Após a sua carta de Janeiro de 1886, Engels encara apenas uma solução: substituir o resumo francês de Déville por outro de elaboração inteiramente germânica. A questão tornou-se de resto mais aguda quando os marxistas alemães verificaram ser necessário publicar um resumo de O Capital para facilitar a difusão das ideias de Marx entre o proletariado alemão. Alguns militantes alemães parece terem encarado a possibilidade de utilizar o resumo de Déville, mas F. Engels reagiu com a violência do proprietário que vê um intruso entrar na sua horta, como mostra a sua carta de Janeiro de 1886 dirigida a Laura Lafargue:
«(...) recebi ontem um bilhete postal do Dr. Max Quarck informando-me que havendo necessidade de um bom resumo do Capital, ele tem a intenção de traduzir o de Déville: «o sr. Dévilie acaba de me dar, a meu pedido, a autorização exclusiva para traduzir o seu resumo em alemão» (23); o grande Quarck ofereceu-a a Meissner e pede-me para a honrar com um prefácio. Ora, se Déville agiu realmente assim, tenho de considerar que procedeu com muita ligeireza e até contrariamente a todas as obrigações internacionais existindo praticamente entre nós. Como raio se foi ele entender com um homem de quem não sabia coisa alguma? Este Quarck pertence a um punhado de jovens intelectuais que hesitam entre o nosso partido e o socialismo de cátedra, tendo o cuidado de se pôr ao abrigo dos riscos que comporta qualquer laço com o nosso partido, mas contando colher todos os benefícios que pode trazer semelhante laço».
O núcleo central da carta analisa mais directamente, e sem nenhuma complacência, o problema posto pelo resumo francês e pela sua circulação possível entre os intelectuais e o proletariado alemães:
«Em primeiro lugar, um resumo do Capital para uso dos nossos trabalhadores alemães deve ser feito a partir do original alemão e não a partir da edição francesa. Em segundo lugar, o livro de Déville é demasiado volumoso para os trabalhadores, e seria na tradução, sobretudo no que diz rerspeito à segunda metade, tão difícil como o original, visto ser composto, na medida do possível, de extractos traduzidos literalmente. Convém assaz bem para a França onde a maior parte dos termos não são palavras estrangeiras, e onde existe um grande público que não é especificamente operário e que deseja mau grado isso aceder facilmente a um certo conhecimento do assunto sem ler a obra completa. Esse público deve, na Alemanha, ler a obra original. Em terceiro lugar e sobretudo, se o livro de D(éville) for publicado em alemão, não vejo como me seria possível, dadas as minhas obrigações para com Mohr (24), aceitá-lo como um resumo fiel sem protestar. Não disse nada quando foi publicado simplesmente em francês, se bem que tivesse protestado nitidamente contra a totalidade da segunda parta da publicação. Mas se ele vier a ser apresentado ao público alemão, trata-se de outra história. Não posso consentir que Mohr seja desnaturado na Alemanha, e gravemente desnaturado, mesmo nas expressões. Se não tivesse havido esta pressa absurda da época, se se tivesse procedido à revisão que eu sugeria, a objecção não existiria hoje. O que posso dizer, é que reservo a minha inteira liberdade de acção no caso do livro ser publicado em alemão, e sou de resto obrigado a fazê-lo, dado que se espalhou o boato que eu o tinha confrontado com o manuscrito. Não posso perguntar agora a Kautsky quais são as suas intenções a respeito do livro de D(éville), porque toda a gente chegou para o jantar de domingo, e tenho de acabar. K(autsky) vai escrever pessoalmente. Tanto quanto sei, K(autsky) e B(ernstein) contam fazer um novo resumo, o que seria nitidamente a melhor coisa a fazer, e poderiam utilizar então a obra D(éville) citando-o com os seus agradecimentos» (25).
Parece evidente que o resumo de Dévilie foi sempre um espinho no pé teórico de Engels, que o suportou enquanto pôde, mas pensando sempre em vir a desembaraçar-se dele. Semelhante eliminação exigia no entanto alguma cautela, visto tratar-se de um resumo elaborado com o consentimento de Marx e tendo conseguido uma certa notoriedade, tanto mais que o seu autor era, na época, um militante conhecido do Parti Ouvrier francês, muito ligado a Guesde e a Lafargue. A atitude de Engels fora, a princípio, como já vimos, assaz morigerada, ou até moderadamente elogiosa, mas constata-se uma mudança à medida que o texto de Dévilie começa a ultrapassar as fronteiras francesas. Não deixa de ser curioso considerar os termos utilizados por Engels para comparar os estratos culturais e operários da França e da Alemanha, assim como a maneira como parece considerar que Marx pertence antes de mais à cultura alemã e apenas em segundo lugar ao proletariado europeu e internacional. Transparece, implícita, a necessidade de procurar o leitor «ideal», capaz de compreender a «essência» do marxismo para o transformar em comportamento prático e quotidiano.
Adopção de uma visão cultural nacionalista, penso eu, que pode ser facilmente explicada. Quando ainda jovens neo-hegelianos, Marx e Engels consideravam ser a eliminação do Estado o objectivo final de qualquer acção política. Mas ao mesmo tempo eram forçados a constatar o atraso da Alemanha no plano da organização do proletariado, o que era imputável ao número e ao peso das sobrevivências feudais. Situação que poderia ser facilmente corrigida, pensavam eles, pois a Alemanha poderia tomar a cabeça do movimento de libertação, logo que o seu proletariado fosse acordado e treinado para a acção. Se para realizar a filosofia se tornava necessário inflamar o proletariado, os trabalhadores alemães eram, necessariamente, na óptica de Marx e de Engels, os mais indicados para semelhante tarefa (26). Esta posição profética encontrou-se subitamente confirmada após 1886, quando Marx e Engels verificam que «o centro de gravidade do movimento operário passou (...) da França para a Alemanha, e basta comparar os movimentos nos dois países a partir de 1886, para constatar que a classe operária alemã é superior à classe operária francesa, tanto no que se refere à teoria como à organização» (27).
Se durante algum tempo a Alemanha parecera perder a capacidade de orientar a luta operária para o comunismo, e subsidiariamente para o marxismo, ela recupera rapidamente os seus direitos, confirmando o «nacionalismo» implícito tanto de Marx como de Engels (28). No caso do resumo, as múltiplas intervenções de Engels forçaram Kautsky e os outros marxistas alemães a renunciar à tradução de Gabriel Déville, para realizar um novo resumo, que possuía entre outras qualidades a de ser exclusivamente alemão. O que foi confirmado por Engels que escreveu para ele o prefácio que sempre recusara para as reedições de Déville. Atitude que poderia explicar, pelo menos em parte, a desaparição de Déville das publicações dos marxistas oficiais ou oficiosos (29).
É também reveladora a maneira como Engels reagiu, logo que os italianos lhe anunciaram a sua intenção de editar a tradução do resumo de Gabriel Déville. Poder-se-ia esperar, depois do que se leu, que Engels manifestaria uma oposição firme e definitiva a essa tradução, visto ter declarado que ela não servia o pensamento de Marx, antes o traindo de maneira grave e irrevogável. Ora bem, não é isso o que acontece; Engels admite facilmente a ideia da tradução, e não hesita em reconhecer qualidades ao resumo de Déville. Uma série de cartas entre Filippo Turati (30) e Engels, permite seguir a evolução da questão.
A primeira carta de Engels a Turati, de 6 de Junho de 189:3, reconhece as qualidades objectivas do resumo:
«Quanto ao resumo de Déville, revi a primeira parte, mas não a segunda metade, porque o editor tinha muita pressa. Foi por isso que às vezes Déville deu uma forma absoluta a teses de Marx que este enunciara como apenas relativas, como verdadeiras sob certas condições ou limitações. Mas é o único defeito que lhe encontro» (31).
Não se podia ser mais cordato, depois do que se escrevera quando se apresentara a hipótese da tradução para o alemão, e a resposta de Turati limita-se a lamentar que Engels não tivesse lido a totalidade do manuscrito:
«Déville autorizou-nos a publicar o seu resumo; vamos fazê-lo o mais depressa possível. É pena que a sua revisão se tenha limitado à primeira metade» (32).
Nenhuma cólera, nenhuma indignação, nem sequer quando Turati informa ter recebido a autorização de Déville que, manifestamente, se não dirigira a Engels para a obter. Esta mansuetude constitui naturalmente um problema, pois é difícil compreender a razão que levou Engels a mudar de atitude, tanto mais que Déville jamais seria traduzido em alemão Creio que esta situação só se pode explicar em termos de nacionalismo, ou até por uma teoria das diferenças entre as nações da Europa, tal como ela é assumida, e às vezes explicitada por Engels. Enquanto os povos do norte, e sobretudo os anglo-saxões, inventores da grande indústria, eram povos verdadeiramente civilizados, os povos do sul, e nomeadamente os do Mediterrâneo, estavam mais próximos da natureza, e eram por isso relativamente - e às vezes absolutamente - selvagens. Também neste caso, Engels mostra-se um perfeito leitor de Hegel, a ponto de assumir, praticamente sem restrições, a maneira como este divide os povos e as raças.
De resto, numa carta de 1872, dirigida a Theodor Cuno (33), Engels não escondeu a sua maneira de ver, protestando contra certas pretensões italianas, que não só não cabiam no quadro do «marxismo» que se ia desenvolvendo, sobretudo por sua obra e graça, como também não eram admissíveis tendo em vista as divisões culturais e raciais da Europa e, por extensão, do mundo:
«Os italianos devem seguir ainda durante algum tempo a escola da experiência, para compreender que um povo de camponeses atrasados, como eles, só pode tornar-se ridículo quando quer ensinar os trabalhadores dos grandes países industriais como é que se devem libertar» (34).
Não há nenhuma ternura, nem sequer urna tentativa de compreender e de explicar os italianos, como também não encontramos nenhum esforço para apreender a diferença existente entre os povos europeus, que legitimam as elaborações teóricas e as práticas autónomas. Para Engels havia um centro, essencialmente constituído pelo pensamento de Marx e pelo seu, embora este esteja sempre disfarçado, como o recheio num perú, no de Marx. Toda e qualquer tentativa de formulação autónoma, lhe merece as mais ásperas censuras, visto se tratar de formas não ortodoxas e por consequência erróneas, ou até pior. Mas interessa sobretudo reter, no caso vertente, a maneira como são condenados os italianos, que procuram pensar e agir de maneira independente, que Engels não pode nem reconhecer nem aceitar, em nome da superioridade dos povos «avançados», que são os dos «grandes países industriais».
Semelhante dicotomia ainda não desapareceu da estrutura do nosso pensamento, e não será difícil reconhecer que a oposição entre civilizados e selvagens, que contém outra, entre industrializados e camponeses, precede e explica as que nos são mais directamente contemporâneas, opondo os «povos desenvolvidos» aos povos «sub-desenvolvidos» ou os «terceiro-mundistas» aos não terceiro-mundistas. Ou seja: a maneira como Hegel, sistematizando as teorias do século XVI, divide o mundo entre os povos com História e povos sem História, mantém-se intacta no interior do marxismo-engeliano, e ainda não desapareceu, a ponto de a vermos reaparecer nas costuras do tecido teórico do marxismo.
Os resumos de O Capital constituíram e continuam a constituir um instrumento de divulgação dos temas fundamentais do marxismo. Os autores dos resumos sempre procuraram matar dois coelhos com uma cajadada, pois se pretende opor um dique suficientemente robusto às deformações dos autores e da imprensa burguesa, ao mesmo tempo que se quer facilitar o acesso da classe operária, e até de uma parte não dispicienda da burguesia, a uma obra teórica que, sendo embora de leitura difícil, constitui a base da teoria, e às vezes da acção política do proletariado.
O resumo de Déville foi o primeiro a obter um êxito importante, passando a constituir durante muito tempo uma referência necessária no que diz respeito à divulgação do marxismo. As indicações quanto às edições feitas em francês são relativamente imprecisas, e o mesmo se verifica no que se refere às tiragens. Sabemos de maneira exacta que a primeira edição foi publicada em 1883 (35); mas não temos a certeza da data das duas edições subsequentes: aparentemente 1886 (36) e 1897 (37).
A tarefa é um pouco simplificada (embora com algumas inevitáveis imprecisões) pelas notas manuscritas de Gabriel Déville em exemplares existentes na Biblioteca Nacional de Paris. Assim, no rosto da edição de 1886, Déville anotou: «2.° milhar (primeiro na Flammarion)», o que nos permite constatar que as tiragens eram relativamente reduzidas, como de resto acontecia com praticamente todos os textos marxistas. Depois, num exemplar da reedição de 1928, que seria o 12.º milhar, Déville trata longamente das várias edições e reimpressões sempre feitas pelo mesmo editor:
«Sem ter guardado notas para os recibos, parece-me que deve ter havido vários entre 1887 e 1907. Seja como for passei os seguintes recibos: em 2 de Setembro de 1907 (e esse dizia que estava (38) no 6.º milhar) e 21 de Novembro de 1917 para mil cada um, depois em Outubro de 1919, em 4 de Março de 1920, em 30 de Junho de 1921, em 18 de Maio de 1922, para 1.5000 de cada vez; em 12 de Fevereiro de 1926, em 29 de Fevereiro de 1928 para 1.000. Enfim 1.200 para 1.000 em Maio de 1930 (39) em Novembro de 1932, 1.200 para 1.000; em Maio de 1933, 3.000 para 2.500; em Maio de 1935 2.400 para 2.000» (40).
A sua divulgação noutras línguas além do francês foi também relativamente importante, tendo sido traduzido, em espanhol em 1887 (41), em italiano em 1893 (42) em inglês, nos Estados Unidos, em 1900 (43), mas também em russo, sendo uma das edições destinada à Ucrânia, em 1900 e possivelmente em 1901 (44), e enfim em português em 1912 (45).
Não disponho de muitos dados para descrever com pormenor o acolhimento dado a este resumo, mas parece-me que as indicações referentes às edições e às reimpressões, assim como as traduções, provam ter ele encontrado uma certa audiência, tendo sido até durante algum tempo a sombra e o reflexo do Capital de Marx, a ponto de se poder falar do Capital de Déville (46).
O resumo de Gabriel Dévilie não foi porém o único publicado na Europa, e a multiplicidade dos textos desta natureza, confirma a necessidade de uma apresentação simultaneamente sintética e sistemática do texto teórico fundamental do marxismo, sendo geralmente aceite que a leitura de Marx não é uma tarefa fácil e exige um trabalho profundo. Retenhamos, para completar esta notícia, os resumos de Most, de 1873 (47), de Cafiero, de 1879 (48), cuja versão francesa, com um prefácio de James Guillaume data de 1910 (49); de Nieuwenhuis, de 1879 (50); de Kautsky, de 1887, com o prefácio de F. Engels datado de 1886 (51), e enfim o de Paul Lafargue, de 1894 (52).
Antes de entrar propriamente no exame dos vários textos socialistas portugueses, parece-me conveniente, ia dizer necessário, definir as condições da sociedade portuguesa, pois só estas permitem explicar um certo número de factos ligados à expansão do socialismo, e dos seus teóricos. Sem querer avançar muito neste campo difícil, limitar-me-ei a indicar alguns elementos fundamentais deste processo sócio-político, que nos dá a possibilidade de compreender a maneira muito particular que presidiu à introdução e à divulgação do socialismo.
As diversas correntes socialistas portuguesas, sucessivas ou concomitantes - socialistas do Estado, libertários, sindicalistas, a que depois se juntaram os comunistas após o fim da primeira guerra mundial - devem ser analisadas em dois planos indissociáveis: a elaboração teórica, algumas vezes dependente de militantes estrangeiros, e sempre enxertada nos textos elaborados algures na Europa, e as condições do sistema social português. Se era possível importar ideias e glosá-las, ou mesmo adaptá-las, era mais difícil, ou até impossível, encontrar-lhes o suporte físico capaz de as transferir do discurso relativamente frio dos textos, para a prática cálida da vida.
Ora a vida portuguesa caracterizava-se ainda, pela grande oposição entre a cidade e o campo, entre a indústria, raras vezes a grande indústria, e a estrutura rural. Enquanto a primeira procedia à acumulação primitiva, conforme os modelos conhecidos, o mesmo não acontecia no campo onde persistiam (e persistem), formas estruturais de tipo autárquico, que nem a política económica de Costa Cabral, nem as intervenções mais técnicas de Fontes Pereira de Meio, conseguiram abalar de forma definitiva. Decerto se assistiu à desestruturação de muitos clãs, mas a família extensa, algumas vezes endogâmica, manteve-se durante muito tempo, como pôde constatar ainda nos anos 30 Paul Descamps, no único ensaio que procurou sistematizar as formas de organização do campo português (53).
Panorama agravado pela situação cultural, pois como diz Emílio Costa, uma das dificuldades da divulgação das ideias marxistas consistiu na «extrema ignorância da população do último quartel do século passado», reforçada pela quase inexistência de um proletariado fabril «que é o melhor terreno para a propaganda socialista» (54). Se as edições dos teóricos marxistas eram já extremamente reduzidas nos países de população letrada e urbanizada, elas eram praticamente impossíveis entre nós.
Questão fulcral, como é também a relação estabelecida entre o proletariado industrial e o campesinato. Marx escreveu na primeira edição americana do 18 Brumário algumas linhas que desapareceram nas edições europeias subsequentes, e que se referem à necessidade da ligação entre o proletariado e o campesinato: «ao abandonar a sua esperança na restauração napoleónica, o camponês francês separou-se também da fé na parcela de terra, e o edifício estatal assente nesta parcela esboroou-se e a revolução proletária encontrou o coro sem o qual o seu canto solitário há-de tornar-se em todas as nações camponesas um canto mortuário» (55). Dito por outras palavras: a revolução proletária só é possível quando o Estado romper os laços que atam o camponês ao seu pedaço de terra, e só nessas condições o seu êxito está assegurado. Ora nenhum governo português impôs essa separação radical, mesmo se a penetração capitalista no campo se fez e faz sentir de maneira muito áspera.
O ideal dos trabalhadores portugueses, mesmo daqueles que trabalhavam na grande indústria, foi sempre o trabalho independente dos artesãos, ou até dos pequenos comerciantes ou industriais. «Trabalhar por conta própria», «ser o seu próprio patrão», era não só o sinal do êxito, mas a certeza de fugir ao domínio excessivo, algumas vezes brutal, dos patrões. Muitos militantes sindicalistas revolucionários ou anarquistas, operários nas empresas corticeiras, foram vítimas desta ilusão de independência, num período já avançado da concentração industrial, em pura perda. Pode talvez dizer-se que se tratava da tentativa de fuga ao duro trabalho industrial, que se manteve durante muito tempo no horizonte teórico e na prática dos trabalhadores. O que explica que estes se organizassem durante muito tempo em associações de classe, e não em sindicatos. Não se trata apenas de uma diferença de terminologia, mas de uma divergência profunda nas opções políticas, como havemos de ver.
Não se trata pois de retomar a argumentação rançosa e racista, opondo os «países europeus do Norte, industrializadores, relativamente disciplinados e arrogantes», aos do sul, «agrários, politicamente imaturos e pobres» (56). Mas se repudiamos semelhante maneira de dizer, isso não significa que se deva esconder que a acumulação primitiva se processa com ritmos diferentes, e que a situação portuguesa não era (nem é) a mesma da Inglaterra, e que o «cheiro a cotim» que caracterizava Manchester, não se encontrava em Lisboa, nem sequer no Porto, apesar do rápido desenvolvimento da indústria têxtil nas regiões do norte.
Se é absurdo pretender explicar as diferenças estruturais recorrendo a explicações de clima ou de raça, é também absurdo pretender que os diferentes países viveram ou vivem o mesmo ritmo de evolução tecnológica. Portugal é um país europeu (57), com um atraso importante em relação aos países avançados, que exportam o modelo industrial dominante, como a Inglaterra primeiro, seguida pela Alemanha, a França, ou mesmo a Rússia. Esta constatação deve ser acompanhada de outra: a organização da classe operária, como a do campesinato, não podia ter a mesma qualidade entre nós e na Europa industrial, isto independentemente das elaborações teóricas de uma parte da classe operária, e também da burguesia possidente.
Semelhante situação serve para explicar, ao menos em parte, a grande voga do pensamento de Proudhon não só na classe operária, mas também nos meios intelectuais. Pode de facto dizer-se que a prática socialista portuguesa considerava acima de tudo os valores morais, condenando a propriedade em nome da justiça, como o fazia Proudhon. Daí a sua denúncia da propriedade como fonte de rendimento sem trabalho, quer se tratasse de aluguer, da renda, do lucro ou do juro. Aceitava-se e sublinhava-se assim o facto de a propriedade ser um roubo, quando a estrutura social se recusava a considerar a noção de produção social colectiva.
Como Proudhon, a grande maioria, ou até a totalidade dos socialistas portugueses, pretendia quase exclusivamente eliminar o «lado mau» do capitalismo, mas não destruí-lo, e semelhante óptica adaptava-se perfeitamente à situação portuguesa, visto faltar ao proletariado português uma sólida base organizacional. O proletariado possuía apenas organizações defensivas - associações de classe, mútuas, cooperativas, etc. - quando seria necessário dispor de suportes mais ricamente apetrechados para combater os excessos do jovem, mas já feroz, capitalismo português. Decerto as greves existiam, mesmo se proibidas pela legislação, mas elas não podiam mobilizar completamente o proletariado, dada a ausência de uma base organizacional total e flexível.
Compreende-se também melhor a falta de audiência encontrada pelos princípios teóricos de Marx, dado que este propôs sempre a necessidade da organização da classe operária, não propriamente no quadro do partido, tal como ele será mais tarde constituído por Lenine, mas tendo em vista o projecto político autónomo dos produtores. Convém por isso anunciar aqui os pontos teóricos comuns a Marx e à Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.), mesmo se sem grande exame, para melhor compreensão das dificuldades de aceitação desse pensamento radical, numa formação social onde as sobrevivências feudais ou para-feudais eram terrivelmente numerosas (58).
Enquanto Proudhon e os seus discípulos e seguidores menosprezavam a conquista do poder político, os comunistas consideravam ser essa uma tarefa prioritária. Para Proudhon as reformas sociais arrastariam consigo a transformação do poder político enquanto para Marx, Engels e a 1.ª Internacional, só a tomada do poder político permitiria impor as mudanças indispensáveis. Veja-se, por exemplo, esta passagem característica da Resolução adoptada pela Conferência da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) de Londres, em 1871:
«...Tendo em vista as considerações dos Estatutos originais, onde se diz: «A emancipação económica dos trabalhadores é o grande objectivo ao qual deve ser subordinado qualquer movimento político como meio»; «Tendo em vista o «Adresse» inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864) que diz: «A conquista do poder político tornou-se então a primeira obrigação da classe operária»; «Tendo em vista a Resolução do Congresso de Lausana (1867) a este propósito: «a emancipação dos trabalhadores é inseparável da sua emancipação política; «Tendo em vista além disso: «Que, contra este poder colectivo das forças possidentes, o proletariado só pode agir como classe constituindo-se ele próprio em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes possidentes; «Que esta constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e do seu objectivo supremo: a abolição das classes; «Que a coalizão das forças operárias já obtida pelas lutas económicas deve também servir de alavanca nas mãos desta classe na sua luta contra o poder político dos seus exploradores; «A Conferência lembra aos membros da Internacional: «Que no estado militante da classe operária, o seu movimento económico e a sua acção política estão indissoluvelmente ligados» (59).
A situação teórica parece assim completamente esclarecida, mas devem sublinhar-se as diferenças de orientação política em cada caso específico, cuja importância é fundamental para explicar os muitos becos sem saída a que foram levados dirigentes, organizações e militantes. De resto, o proletariado português manteve-se relativamente fiel às «associações de classe», repudiando os sindicatos, ou não compreendendo a sua finalidade e comprometendo assim a base mesma do seu combate.
Alguns autores pretendem que a situação não traduz nenhuma anomalia, pois se trataria pura e simplesmente de urna maneira portuguesa de designar as instituições criadas pelo proletariado para se concentrar e lutar eficazmente contra o patronato. Convém ser mais prudente nas afirmações, pois a verdade é que se não conhecia, sequer, o sentido do conceito de «sindicato», na óptica do proletariado. Assim, em 1887, Oliveira Martins podia definir o sindicato como uma associação de capitalistas, insidiosa e poderosa: «o sindicato insinuou-se por toda a parte, desde a choupana até ao palácio; por toda a parte, em todos os cérebros tilinta vibrante a esperança esgazeada de enriquecer, o furor raivoso de gozar; e por toda a parte se vêem as gentes de joelhos, implorantes, quando passa, grandioso e magnífico, o deus-do-dia, aquela personagem que, já na era de João de Barros, com o seu passo miudinho confiscava o produto do trabalho alheio» (60). Assim se denuncia a essência do sindicato, que se baseia na usura, e que constituía um dos elementos mais em vista da vida económica nacional, entendida do ponto de vista da burguesia.
A confirmar esta maneira de ver as coisas, temos a definição do sindicato dada por um dicionário importante, alguns anos depois (1891): «Grupo de capitalistas que se associam para sustentar a alta de acções da sociedade em que estão interessados, ou fazer que estas se não depreciem; ou para explorar uma empresa, ou tornarem-na viável ao lançarem-na na praça; ou para provocarem ou sustentarem a alta ou a baixa de títulos, ou para qualquer outro fim comercial, ou de bolsa» (61). Nem a mais leve referência às organizações do proletariado, o que mostra a ausência de trabalho teórico sobre esta questão. Ora Marx sublinhara a importância decisiva das trade-unions britânicas na sua polémica com Proudhon: a sua luta é acompanhada por lutas políticas dos operários, «que constituem agora um grande partido político sob a designação de Cartistas» (62).
Contudo o proletariado português só tardiamente compreendeu a função real dos sindicatos. Aparentemente a divulgação dos sindicatos só começou em 1906, e Alexandre Vieira sublinhou o papel importante de César dos Santos, que permanecera alguns anos em França, mesmo se o seu sindicalismo era de «tendência reformista, o mesmo preconizado por Keuffer, ao tempo secretário-geral da Federação dos Trabalhadores do Livro de França». Para melhor assegurar a propaganda e a difusão do sindicalismo, Vieira e alguns companheiros criaram o diário A Greve em 1908: «propunha-se o novo diário (...) divulgar os princípios sindicalistas», mas o resultado parece ter sido francamente medíocre: «Assim, só no ano seguinte se faria uma eficaz divulgação do sindicalismo graças às brochuras publicadas pela Livraria Aillaud e admiravelmente traduzidas por Emílio Costa, seguidas, no fim do mesmo ano, pela realização do «Congresso Sindical e Cooperativista» efectuado na Caixa Económica Operária e, em 1911, do aparecimento do semanário O Sindicalista (...) jornal a princípio dirigido por António Evaristo e depois por (Alexandre Vieira)» (63).
As provas estão pois à vista: o proletariado português, e ainda mais o campesinato, não consideraram a necessidade de uma associação dispondo da latitude dos sindicatos. Aparentemente, mantinha-se fiel às «associações de classe», mas mesmo essa fidelidade parece ter sido duramente abalada pela propaganda republicana e uma grande parte do proletariado desertou-as para ir engrossar as organizações clandestinas republicanas, com prejuízo evidente dos problemas de classe (64). Creio que se pode, em vista dos documentos e dos testemunhos, concluir pela ausência de toda e qualquer lição «marxista», ao invés do que se tem querido afirmar. A lição concludente assim organizada, deve pôr termo a um certo número de afirmações, que pretendem fazer dos «aliancistas» portugueses marxistas bem treinados e melhor teorizados. Ora a verdade é muito diferente, e vamos de resto tentar explicitá-la, ao estudar os autores que analisaram a obra de Marx e naturalmente também a de Proudhon.
A história social portuguesa esteve, durante muitos anos, sujeita a uma dupla manipulação: por um lado a deformação ideológica da burguesia, reforçada após 1926 pela censura minuciosa da ditadura militar. A revisão desta história começou contudo há já alguns anos, e funda-se hoje em documentos ou textos de grande importância, que permitiram repor uma parte da verdade.
Descobriu-se então, com um entusiasmo talvez excessivo, que os teóricos socialistas tinham começado a ser lidos e discutidos em Portugal anteriormente a 1870, que fora durante muito tempo o marco limiário da introdução do socialismo entre nós. Ganhou então novo vulto o professor portuense Amorim Viana. Pacientemente, Victor de Sá carreou os materiais dispersos que permitem definir mais completamente o que já fora avançado por Sampaio Bruno nos artigos ou nos livros consagrados ao seu mestre tripeiro. Mas se Amorim Viana conhecia uma parte importante da actividade de Proudhon, tal não significa que estivesse a par da polémica levantada pela construção do socialismo científico. Victor de Sá tem razão em se mostrar surpreendido perante a ausência de referências à resposta de Karl Marx ao livro de Proudhon.
Podem aventar-se argumentos para justificar a ignorância de Amorim Viana, mas quando se considera que não se trata de um polígrafo vulgar, um curioso entalado entre as exigências administrativas de um lugar de secretário do governo civil e a escrita, mas de um docente de matemática da Universisidade do Porto, as explicações são mais dificeis de aceitar. Semelhante desconhecimento, ou descaso, são suficientes para indicar o carácter relativamente literário, ou antes filosófico, da discussão, que assenta mais na filantropia do que no reconhecimento da autonomia política e económica do proletariado, e ainda menos na luta de classes (65). Quer dizer que se não pode explicar a ausência de referências a Karl Marx dizendo que «todo esse barulho» (o da polémica) se passava para «além dos Pirinéus» (66). Se não há referência a Marx é porque se considera apenas o autor Proudhon, mas não a grave questão teórica e prática suscitada pela publicação do seu trabalho e pela resposta de Marx. Isolando Proudhon, Amorim Viana recusava automaticamente o fundo da polémica, reduzindo do mesmo passo a importância do problema abordado.
Se considerarmos os termos utilizados por Amorim Viana para enunciar a questão, compreendemos sem dificuldade que o seu interesse pelos trabalhadores se limita a postular uma sociedade igualitária, sem no entanto ousar pôr em causa o Estado-emanação dos «capitalistas» e também do «capitalista ocioso» de que ele fala algures; o que lhe evita o trabalho de atacar também a propriedade privada, fundamento da sociedade burguesa. Por isso ele afirma a relação íntima existente entre o comunismo e a propriedade: «o comunismo e a propriedade, isto é, o Estado e a família, são igualmente necessários, e os espíritos eminentes do tempo presente reconhecem a necessidade de os conciliar um com outro na organização social» (67). O capital não é condenado, mas apenas o «capitalista ocioso», como o fizera antes Proudhon, o que prova que esta escrita não sai dos quadros tradicionais da burguesia, condenando porém os excessos de certos capitalistas. Simultaneamente, defesa da propriedade privada, indispensável sustentáculo da família, e portanto da ordem vigente. Sem que isso impeça o reconhecimento da necessidade inadiável de corrigir os «defeitos» mais clamorosos de um sistema que devia durar.
Ao mesmo tempo, Amorim Viana condena o interesse dedicado à economia, afirmando de maneira peremptória: «todos os princípios da economia se acham formulados na escrituração, toda a ciência económica sabe-a e emprega-a o guarda-livros» (68). O que me leva a dizer que Amorim Viana talvez não desconhecesse Karl Marx, mas não o considerava um autor necessário, visto se tratar de alguém que privilegiava a economia, reino estreito e exclusivo dos contabilistas, que não mereciam as honras da cidade, dedicados aos secos e molhados dos armazéns da rua das Flores. Trata-se por enquanto de uma hipótese, mas o silêncio feito sobre Marx parece-me demasiado absoluto para se justificar apenas pela ignorância. Mas devemos reconhecer também que Amorim Viana é o primeiro autor português a optar abertamente por Proudhon, desconhecendo, esquecendo ou recusando Karl Marx. Como se trata de uma opção que há-de manter-se na estrutura portuguesa, na teoria como na prática, convém retê-la e dar-lhe a importância que merece.
A primeira referência a Karl Marx não tardará a aparecer, mas pouco importante, apenas para reforçar a crítica de Proudhon, integrada num texto também polémico, em 1852, do então estudante de direito Oliveira Pinto. O autor cita também o artigo de Amorim Viana, que lhe parece demasiado violento, e escrito num tom de acrimónia desnecessária. A parte mais importante do artigo procura demonstrar, sem jamais o conseguir, a fraqueza da teoria do valor de Proudhon.
Para o fazer, e após grandes e graves considerações teóricas, que não nos interessam aqui e agora, Oliveira Pinto recorre à crítica de Marx na Misère de Ia Philosophie: «como muito judiciosamente nota Karl Marx: desde que o homem reconhece colaboradores em funções diversas, reconhece a divisão do trabalho; reconhecendo esta, reconhece uma ordem de produção baseada sobre ela, reconhece a troca e, por isso, o valor de troca». Digamos que Oliveira Pinto isola com alguma felicidade o ponto crucial de todas as formações sociais: o momento da aparição da divisão sexual e social do trabalho, que implica também hierarquias, tanto na organização social, como na valorização dos produtos.
Pareceria, depois desta longa citação, que aliás continua, que Oliveira Pinto compreenderá não só os dois tipos de valor, mas também a relação estrutural mantida com as diferentes formações sociais. Poder-se-ia também admitir que ele pudera isolar a função e a importância da teoria da mais-valia, fundamental para definir as formações sociais marcadas pelo valor de troca, e naturalmente pelo comércio. Na realidade, e devemos considerá-lo com surpresa, Oliveira Pinto não compreendeu o pensamento de Marx, a ponto de procurar esvaziar do seu conteúdo a relação dialéctica existente entre os dois tipos de valor.
«Porém tudo isto é assim no caso de se admitir a distinção entre o valor de utilidade e o valor de troca. Mas eu nego esta distinção (...). Admito só o valor de troca, e privando assim a antinomia dum dos seus termos, torno impossível a existência do movimento dialéctico na ideia de valor, base de toda a economia política» (69).
A maneira de dizer é expeditiva, e por isso mesmo assaz caricatural. Mas Oliveira Pinto, mau grado esta maneira abrupta de polemizar, procurou fornecer os elementos necessários à compreensão do seu raciocínio. A sua recusa do valor de uso não era apenas o resultado de um movimento de humor, mas a consequência de uma opção que o autor procurou legitimar: «para que exista utilidade basta que o homem tenha necessidades e a natureza lhe proporcione meio de as satisfazer. Somente o valor de troca, o verdadeiro valor não pode existir sem as relações sociais da divisão do trabalho e do comércio» (70).
A argumentação pode até parecer astuciosa, quando na realidade é simplista. Para Oliveira Pinto (71) haveria «necessidades naturais» capazes de serem satisfeitas «naturalmente», independentemente das «relações sociais da divisão do trabalho e do comércio». Decerto Oliveira Pinto não podia ir além dos conhecimentos e dos preconceitos da sua época, que explicam parcialmente a existência e a importância deste homem «natural», cujas necessidades podiam ser automaticamente satisfeitas pela natureza. Na verdade, a sua argumentação é brusca, o seu estilo polémico inaceitável.
Nitidamente, Oliveira Pinto não compreendeu Marx, e parece que a situação cultural portuguesa não dava aso a superar os termos estreitos desta discussão. É o que se pode deduzir da maneira como Amorim Viana «desconhece» Karl Marx, ou da forma como Oliveira Pinto procura eliminar a relação dialéctica entre o valor de uso e o valor de troca, única maneira de explicar a transformação das formações sociais, assim como a presença e a função da mais-valia, sem a qual a acumulação capitalista não seria possível. É curioso de resto constatar que Oliveira Pinto recorre apenas a Marx para o transformar em vara de marmeleiro para sovar Proudhon, sem se dar conta que não conhecendo a flexibilidade do marmeleiro se arriscava a ser vítima de um efeito de vai-e-vem, o que lhe aconteceu de facto. Por outro lado, Oliveira Pinto não faz a mínima referência nem ao proletariado nem ao campesinato, e a sua polémica apresenta-se como uma discussão académica, sem qualquer relação com a prática portuguesa, tanto dos trabalhadores como da burguesia.
Era ainda muito cedo para a entrada de Karl Marx na cena portuguesa, e a curta referência de Oliveira Pinto não traduz um avanço do conhecimento das questões ligadas ao socialismo científico, mesmo se o esforço de análise pode ser levado a crédito do jovem coimbrão. Crédito realmente minúsculo, mas convém referi-lo, tão refractários se mostraram os socialistas e até os comunistas portugueses à leitura de Marx.
O silêncio foi quase total, tanto no que se refere a Proudhon como sobretudo no que diz respeito a Marx, durante o longo período de 1852 a 1870. Neste ano o mundo cultural português, ou ainda mais limitadamente, o mundo cultural lisboeta, foi abalado pelas Conferências do Casino, onde a geração que depois viria a ser a «geração de 70», se propôs analisar alguns dos mitos sociais do seu tempo, com o escândalo correspondente, que impôs a demissão do governo de Ávila e Bolama. Proudhon recupera então a sua autoridade, mas só uma conferência, a de Batalha Reis, devia analisar também as ideias de Marx e de Engels (72).
É surpreendente constatar que se a apresentação de Proudhon feita por Amorim Viana fora entretanto completamente esquecida, o mesmo acontecera com a apresentação polémica de Karl Marx por Oliveira Pinto. Victor de Sá lamenta o facto, que lhe parece dificilmente explicável. Penso, pelo contrário, que ele pode ser facilmente integrado ao processo cultural da época, que não utiliza estes autores para fundar e desenvolver uma atitude política, mas pura e simplesmente para tecer comentários estritamente literários. Anteriormente a 1870, e antes da Comuna e do seu eco poderoso entre nós, os autores do socialismo eram uma curiosidade, objecto de comentários nas revistas «sábias», mas incapazes de servir a uma reflexão sobre a situação portuguesa.
Não entrarei porém nos pormenores de uma história largamente tratada por um grande número de autores. Queria apenas sublinhar a importância da Comuna na evolução do proletariado português, e também a importância do afrontamento que opôs os militantes operários, nas várias associações existentes, aos ideólogos oriundos da burguesia. Parece-me que Carlos da Fonseca viu perfeitamente a importância da situação, ao salientar a existência de um conflito entre os dirigentes da classe operária, e os teóricos da burguesia, momentaneamente associados à classe operária. As expulsões de José Fontana (73) e de Carrilho Videira (74), bem como as repreensões a Antero de Quental (75) e a Eduardo Maia (76), no período em que o secretário da Secção Portuguesa da A.I.T. era o operário Nobre França (77), revelam a importância do acontecimento (78).
Julgo porém ser necessário aprofundar a questão, pois não me parece terem sido postos a claro os termos específicos do conflito. É relativamente fácil, e admira que isso não tenha sido feito antes, o que prova apenas a sobrecarga ideológica da nossa história contemporânea, definir a existência de um conflito entre os militantes dos dois bordos. Mas já é mais difícil isolar e analisar as razões que o provocaram, e o tornaram irremediável. Também se compreende rapidamente a possibilidade de um desfasamento profundo entre os proletários de Lisboa e os teóricos da burguesia, mesmo se estes tinham dado um passo para se aproximar dos primeiros. Os objectivos, como as formas de combate, não eram contudo os mesmos, o que é nimiamente demonstrado por Eça de Queiroz no belo artigo necrológico (ou até hagiológico) consagrado a Antero de Quental em 1286:
“Era, como ele dizia, «um pequeno Lassalle». E, como Lassalle, já invadido por um vago mal estar, no meio da popularidade que o começava a cercar - e a sufocar”. A comparação com Lassalie é feita pelo próprio Antero e esclarece a sua posição particular, dadas as ligações estabelecidas entre Lassalle e Bismarck, entre o teórico da revolução e o dirigente político responsável pela unificação da Alemanha e pelo seu programa imperialista. Mas Eça prossegue e esclarece ainda melhor a situação: “Como direi? O artista, o fidalgo, o filósofo, que em Antero coexistiam, não se entenderam bem com a plebe operária» (79). Esclarecimento rude, que não deixa a mínima dúvida quanto à distância que separava a «plebe», a massa anónima, às vezes ignóbil, do «artista», do «fidalgo» e do «filósofo». O que não escapou certamente às narinas atentas da plebe, que preferiu separar-se desses teóricos da burguesia, de preferência a deixar-se asfixiar por eles.
Contudo, a demora destes teóricos nas organizações operárias traduziu-se por um atraso importante, visto se tratar de ideólogos incapazes de pensar a revolução e ainda menos de organizar os quadros indispensáveis. Se, num ponto ou noutro, Antero aflora a questão da organização do proletariado, é sempre em termos difusos, e que se prestam pouco ou nada a uma utilização prática. «O socialismo não sai de uma escola ou de uma seita: sai do mais fundo da consciência humana, afeiçoada por três mil anos de progresso. Não é uma experiência, é um resultado» (80). Nestas fórmulas, que possuem o encanto perigoso da falsa precisão, há pura e simplesmente a evacuação da posição privilegiada do proletariado, substituído pela noção abstracta e anhistórica da «consciência humana». Situação que se repete em outros autores e pode explicar o silêncio de Antero face a Marx, mau grado a sua passagem por Paris, num momento em que Marx era já o chefe reconhecido do «partido Marx» (81).
De resto a ausência, ou a recusa da obra de Karl Marx ou de F. Engels, bem como dos comunistas, é inteiramente confirmada pela obra de Oliveira Martins, senão pela sua prática, e mais particulamente nos dois livros consagrados às questões do socialismo, encarado de um ponto de vista «científico»: Teoria do Socialismo - evolução política e económica das sociedades na Europa e Portugal e o Socialismo. Exame constitucional da sociedade portuguesa e a sua reorganização pelo socialismo, ambos publicados em 1873 e escritos durante o período em que foi administrador de minas em Espanha. Nestes dois textos não há praticamente referências a Marx, ou mais simplesmente análises das opções comunistas, tal como elas podiam ser vistas através do Manifesto Comunista e da acção da Aliança, que Oliveira Martins conhecia, tendo militado ao lado de Antero de Quental e de José Fontana. Quer dizer que, neste caso, a questão não é de pura e simples ignorância, como sucedeu com outros próceres portugueses, mas antes de recusa deliberada de considerar a importância teórica e prática dos elementos teóricos propostos por Marx, Engels, ou Bakunine.
Mais do que isso: não só não há ignorância, mas Oliveira Martins vai mais longe do que os seus colegas da burguesia, ao revelar as razões pelas quais recusa abrir crédito às novas organizações revolucionárias e aos seus teóricos. A primeira passagem importante diz respeito à Conferência da Haia, que terminara pela expulsão de Bakunine. Referência inteiramente, absolutamente, apaixonadamente, irracionalmente anti-comunista: «diremos uma palavra só do idealismo místico comunista de Bakunine e da Aliança, que o Congresso da Haia expulsou o ano passado do movimento realista da Internacional? Não, essas ideias são monstruosas, são anormais no mundo moderno; vêm do mundo eslavo primitivo, quase selvagem, com Bakunine, ou da tradição inanimada, que já morreu na própria Itália, do messianismo latino, com Mazzini» (82). Não se pode ser mais claro, nem menos didáctico ou sequer coerente: a recusa de discutir as bases teóricas e a prática dos comunistas e dos aliancistas não podia contribuir para um melhor conhecimento das opções do socialismo, traduzindo antes o terror pávido, do burguês perante os lobos esfaimados descendo, com olhos coruscantes e dentes afiados, das estepes eslavas...
Ou seja, Oliveira Martins, como já acontecera com os seus predecessores neste terreno inquietante da teoria e da prática do socialismo ou do comunismo, considera apenas o que lê nos livros, incapaz de articular as teorias com a prática, com as condições específicas do Portugal seu contemporâneo. Quer dizer que tudo o que escreve sobre o socialismo de um ponto de vista caricaturalmente científico, se mantém no domínio das generalidades, que é antes o terreno próprio da filosofia, sem procurar articular-se com o que havia de específico na prática portuguesa, o que lhe permitiria enfim uma reflexão autónoma. A ciência era então apenas o alibi que lhe permitia escrever sobre o socialismo, sem jamais se comprometer com a prática socialista, mesmo se alguma vez se pretendeu militante socialista e republicano, e mesmo se Antero de Quental pode ter afirmado que Oliveira Martins era mais um socialista do que um escritor.
Já se vê que não se podia esperar de Oliveira Martins um esforço de explicação, quando ele recusava mais directamente o simples dever de bem informar os leitores dos seus livros. O pequeno-burguês um pouco self-made-man, ousa às vezes enfiar a cabeça na janela de guilhotina da teoria e tem medo. De resto, os seus conhecimentos são quase sempre imprecisos, como se pode ver nas poucas páginas dedicadas a Marx e à Internacional nas Cartas de Inglaterra, em que coloca no mesmo plano «a organização da Internacional, a publicação do evangelho operário, o Das Kapital, de Karl Marx e a adesão dos operários e radicais franceses à nova seita» (83), não hesitando em desfazer-se de todas as considerações cronológicas, no entanto fundamentais para seguir de perto a maneira como o proletariado se ia organizando, independentemente das obras teóricas, tanto de Marx como dos demais autores. É de resto este um elemento que convém reter: a classe operária soube e pôde organizar-se de maneira autónoma, a partir da sua própria experiência. Os trabalhos teóricos agem portanto menos na relação com o proletariado e o campesinato, do que na mobilização dos intelectuais e das burocracias dos partidos ou das organizações sindicais.
Acrescente-se que, em algumas linhas, Oliveira Martins procura sintetizar a contribuição de Marx, retendo sobretudo a teoria da mais-valia, sem querer considerar nenhum outro elemento. O que lhe serve para mostrar que o capital não passa, portanto, «de um furúnculo, vício mantido pelos erros e cegueira da história, e absurdo perante a crítica económica» (84), o que não mostra propriamente um bom conhecirnento de Marx. Mas trata-se de cartas escritas ao correr da pena, e não vale a pena estar a dissecar as imprecisões, tanto mais que estas já tinham sido apontadas por Afonso Costa na sua tese de doutoramento (85). Também Antonio Sergio se mostrara perplexo perante a posição de Oliveira Martins, dizendo de maneira discreta no prefácio ao Portugal e o Socialismo: «no Portugal do seu tempo, não fica sendo o correspondente do que foi na Inglaterra um Owen, do que depois (foi) na França um Jaurès, do que foi, no geral, Carlos Marx (...) (86). Decerto, mas Sérgio vai longe na extrapolação, ao querer comparar Oliveira Martins, homem dos compromissos com a burguesia e/ou o poder, com os homens que tinham recusado todo e qualquer compromisso, para serem apenas militantes. E podia talvez considerar-se que Sérgio comete um abuso, na medida em que esta deslocação da personagem de Oliveira Martins para um terreno que nunca foi o seu, podia deixar pressentir a existência de urna ruptura na intelligentsia portuguesa, em tudo comparável à que se verificara em França, na Alemannha, ou na Inglaterra, para não falar na Itália, onde a questão se apresentava de outra maneira, que não era apenas «messiânica», como Oliveira Martins deixa entender ao colar urna etiqueta falsa no dorso teórico de Mazzini.
Por outro lado, a leitura de Sérgio revela-se insuficiente, porquanto despreza o parágrafo que já citáramos e comentámos, e que contém não só uma hipótese de explicação, mas uma explicitação, pois mostra uma posição sem ambiguidades, que a prática de Oliveira Martins, que havia de vir a ser ministro da Fazenda, embora passageiramente, confirmaria de maneira cabal. Não há portanto incoerência, mas apenas um percurso claramente burguês, que levará Oliveira Martins a aceitar, primeiro a deputação e depois as responsabilidades ministeriais, que ele teria querido mais amplas e decisivas. A burguesia nunca o reconheceu inteiramente, e isso explica o seu desencanto, mesmo se este não é suficiente para compreender a tuberculose que o matou aos 49 anos.
O segundo ponto que tudo explica e tudo torna claro, aparece na condenação franca da luta de classes, ou até da própria existência das classes, como estrutura necessária do capitalismo. Por isso Oliveira Martins afirma que a «Revolução não pode ser um verbo de destruição e luta, porque é a luz da ciência e da paz», recusando-se implicitamente a passar deste enunciado geral, que tinha pouco a ver com Portugal, que acabara apenas de superar as vicissitudes das guerras civis, à análise das condições específicas dos trabalhadores portugueses, única maneira de decidir da existência ou da ausência das classes e da luta que elas inelutavelmente carreiam. Coerente com o seu ideário falsamente pacifista, Oliveira Martrins pregava então urna revolução que recusando o «predomínio das classes fabris», devia assentar no «concurso fértil dos operários e dos camponeses com a pequena burguesia, lojistas, foreiros, rendeiros, pequenos proprietários agrícolas, industriais, com os operários da ciência, médicos, legistas, matemáticos, arquitectos, engenheiros, publicistas, etc.». Amálgama insidiosa, que procurava diluir as diferenças realmente existentes entre estes tipos de trabalhadores.
Na realidade, como seria possível a Oliveira Martins ou a qualquer observador minimamente interessado confundir o estatuto do operário têxtil, com o «operário da ciência», portador dos diplomas universitários portugueses ou estrangeiros? É óbvio que semelhante confusão só podia ser avançada e integrada numa argumentação «revolucionária» sui-generis, que quisesse antes de mais recusar as condições da diferença, quer dizer as condições reais de domínio e de exploração do homem pelo homem. Creio, de resto, que a estrutura do discurso de Oliveira Martins deixa perpassar a real hipocrisia do propósito, porquanto o leitor pode saber quem são os operários conotados pela expressão operários, mas quando se trata dos «operários científicos», a conotação torna-se imprecisa e é preciso explicar as várias actividades englobadas por semelhante designação. Os primeiros são verdadeiramente operários, fabris ou não, enquanto os segundos só são «operários» quando tal convém ao adversário da revolução que foi Oliveira Martins.:.
Mau grado a confusão, Oliveira Martins esperava cortar com esta «revolução», «o nó da aliança apertado entre o Estado e o Capital; de aniquilar a oligarquia banco-burocrática, de demitir os condottiere da política, de delimitar, legislar, organizar as funções e direitos públicos e privados; - e de por estes meios encaminhar a sociedade na estrada que leva à Justiça, à Liberdade, ao Direito, e ao Trabalho» (87). Confesso que este encaminhar - sublinhado por Oliveira Martins - que me lembra o carreiro levando os bois a golpes de aguilhada, presos ao jugo e à carga, me encanta! Pois não se vê aparecer a função dos que devem «caminhar», intelectuais e outros, conjunta e separada dos que devem ser «encaminhados»? E sobretudo, não estamos perante o receio da violência libertadora, que deve ser recusada a todo e qualquer processo revolucionário? E não seria a possível hegemonia da classe operária e do campesinato, que assustava o bom burguês Oliveira Martins? Seja como for, o seu socialismo é uma mera análise pretensamente científica, mesmo se não tenho tempo de dissecar aqui todos os seus pontos teóricos; tal socialismo é destinado a demonstrar que uma formação social só pode ser transformada pela via da colaboração activa e permanente das classes, sem jamais pôr radicalmente em causa a hierarquia das funções e das especializações.
Eis o ponto fulcral desta demonstração, que pretendia ser científica, mas se limitava a veicular uma certa ideologia de classe, facilmente perceptível quando evitamos a armadilha da palavxa «científica», para nos interessarmos pelo que, neste discurso, pode ser infraccional e excessivo. Trata-se de um método de análise que me parece fecundo, na medida em que se procura isolar a lacuna que, no discurso, revela as opções reais do autor, e que só podem transcrever e assumir as suas posições de classe. Oliveira Martins é um autor que não foge a esta regra analítica e por isso as passagens que retenho me parecem não só reveladoras, mas suficientes para provar a sua posição de classe, e o seu repúdio real de uma solução efectiva e abertamente socialista. O que também ajuda a explicar, do mesmo passo, a sua recusa dos socialistas e dos comunistas mais radicais, para reter apenas a lição de Proudhon, interpretado ainda por cima de maneira edulcorante.
Quer dizer que Oliveira Martins, como o seu mestre Proudhon, compreendeu perfeitamente que os homens fabricam tecidos de algodão e tecidos de lã, mas, como o seu mestre Proudhon, foi incapaz de compreender que os homens produzem também, conforme as suas capacidades, as relações sociais graças às quais produzem os tecidos de lã ou de algodão. Tendo recusado a explicação dada por Marx, Oliveira Martins não pode compreender que o «operário» do têxtil não produz as mesmas relações sociais que o «operário» da medicina, e que esta dupla produção cria não apenas campos de actividade diferente, não só formas discursivas diferentes, mas sobretudo opostas e frequentemente irreconciliáveis. Por isso a sua «teoria do socialismo» é apenas um mau trabalho de digestão de outros documentos e reflexões mais originais, mas insuficientes para descrever a situação portuguesa. Tudo isto força a concluir que Oliveira Martins só pode ser considerado «socialista» no quadro de uma análise meramente literária, que recuse ao mesmo tempo considerar as condições políticas, tanto as teóricas como sobretudo as práticas.
Quer isto dizer que a ausência de Marx nas elaborações teóricas, nos comentários informativos, nos programas das casas editoras, nos artigos dos jornais, não é nada despicienda, pois torna claras as opções de uns e de outros, e revela a situação teórica e prática da organização do proletariado. Diga-se o que se disser, é em torno das polémicas travadas por Marx com Proudhon primeiro, com Bakunine depois, que se definem as formas de combate adoptadas pelo proletariado, não apenas na Europa, mas no mundo inteiro. Sem querer e sem poder fazer uma história sistemática deste problema e deste período, quero todavia apontar a ausência de obras de Marx neste momento importantíssimo da classe operaria portuguesa. Isto mau grado a passagem de Lafargue por Lisboa, em 1872, e a existência de uma correspondência entre os dirigentes de Lisboa e alguns responsáveis ou organizações estrangeiras (88).
De facto, apesar da pressão dos responsáveis da 1.ª Internacional, foram publicados poucos textos aliancistas ou marxistas em Portugal, durante o século XIX, sendo os primeiros tradução de artigos de divulgação de Paul Lafargue: «A Internacional», no número 1 de O Pensamento Social, aparecido em Fevereiro de 1872, seguido por «A Luta de Classes», no número 10 do mesmo jornal, que também publicou o «Manifesto inaugural» nos números 44-46. Este número publicou também O Manifesto do Partido Comunista traduzido do espanhol. O Manifesto conhecerá uma segunda edição em 1887, em A Voz do Operário, e uma terceira no Protesto Operário. A última publicação sairá em 1892, no Eco Socialista, do Porto (89).
É certo que mau grado estes factos, as organizações portuguesas confiaram sempre a sua representação a militantes identificados a Marx, mas ainda não foi perfeitamente explicada a razão desta maneira de agir. Estes votos, aliados à correspondência com Marx e Engels, levaram muitos a referir-se a um conflito entre os «marxistas» e os «bakuninistas», assim como com os «possibilistas». Parecem-me excessivas estas designações, pois me parece já evidente que não existiu entre nós nenhum trabalho teórico capaz de criar uma corrente verdadeiramente marxista. No que se refere à organização dos trabalhadores, o descaso pelos sindicatos, confirma também, se ainda fosse necessário, a ausência, ou então a extrema fragilidade, da lição marxista. O que nos convida a reexaminar a questão, e a procurar dar-lhe uma nova articulação, mais de acordo com os documentos que dispomos, actualmente (90).
A primeira referência pública a Marx verificou-se em Coimbra, em 7 de Novembro de 1874, numa conferência recitada (sic) no Instituto de Coimbra por José Frederico Laranjo (91). Desta vez, não se trata de uma polémica, nem tão pouco de um ataque a Marx, mas da primeira tentativa de explicação da sua posição teórica, baseada na leitura de O Capital, muitas vezes citado. Laranjo retém sobretudo as três fases da história da indústria, cuja evolução a leva a submeter-se ao capital, «que lhe dá impulso, recolhe os produtos, e os apresenta ao consumo», provocando a divisão do trabalho e a perda concomitante dos «instrumentos de trabalho pelos produtores».
Numa segunda parte, Laranjo analisa o duplo papel da máquina, «que Karl Marx compreendeu muito bem», pois se as máquinas torturam, também redimem. Acima de tudo, Laranjo retém o teor da polémica que opusera Proudhon a Marx, tomando o partido de Marx:
«Na Inglaterra, as greves têm regularmente dado lugar à aplicação e à invenção de novas máquinas. Os operários fazem uma greve? Os empresários respondiam com a invenção duma máquina que os inutilizava. Proudhon brada aos trabalhadores - Não façais greves. Karl Marx replica - Greves, sempre greves. Respondem-vos com máquinas? Estão abrindo o seu túmulo. São as máquinas que hão-de destruir a forma actual da sociedade» (92).
Deve contudo observar-se que esta análise não considera os trabalhadores como agentes activos, agentes únicos, da revolução transformadora. A transformação futura da sociedade aparece corno ocorrendo mecânicamente, como consequência directa da própria ganância dos capitalistas, que iriam acumulando inelutavelmente os materiais capazes de condenar a sociedade capitalista à decomposição total. Laranjo não explica ou não compreende a função da mais-valia, da mesma maneira que não parece ter lido o Manifesto do Partido Comunista. Na realidade, a sua conferência expõe correctamente, embora sem ousadias, alguns pontos teóricos da obra de Marx, sem conseguir, contudo, integrá-los na prática social portuguesa. O que parece dever compreender-se no quadro sócio-político que já esboçámos.
Depois desta conferência, constata-se mais um hiato no conhecimento e na discussão dos dados marxistas. Só em 1893 Sampaio Bruno retomará o exame e a discussão das bases teóricas de Marx, de um ponto de vista polémico, como de resto era já hábito na formação social portuguesa. Mas pode também afirmar-se sem qualquer receio de engano que, o primeiro leitor sistemático de Marx foi Sampaio Bruno, sobretudo graças à experiência do exílio, em Espanha e em França, que lhe permitiu até adquirir em Madrid a tradução espanhola de Déville (93). Possivelmente, embora avance esta sugestão sem provas, o seu conhecimento do alemão contribuiu também para uma melhor compreensão de Marx.
A parte mais substancial das considerações de Bruno sobre Marx aparece no ensaio dedicado a Bebel (94) que, na realidade, é praticamente dedicado a Marx e ao marxismo, graças a uma elipse típica da escrita, senão do pensamento, de Bruno. O seu primeiro comentário é dedicado às origens semitas de grande número de socialistas europeus, o que mostra a existência, possivelmente momentânea, de uma corrente nitidamente anti-semita na vida portuguesa (95). O segundo explica a impenetrabilidade da escrita de Marx, sobretudo para os leitores portugueses que, por isso, desconhecem inteiramente o seu pensamento (96). Devo acrescentar que o estilo de Marx foi um verdadeiro pesadelo para Bruno, que só o achava aceitável na versão dada por Gabriel Déville.
Bruno não esquece de mostrar a maneira como evoluira o pensamento de Marx e de Engels, sublinhando que a teoria da «reorganização social», fora primitivamente exposta num «manifesto datado de Londres, que tivera pouco curso», mas que propusera à consideração das gentes o nascimento do «partido comunista», pois os «marxistas» nunca tinham aceitado - e não pareciam dispostos a aceitar, no momento em que Bruno escrevia - de bom grado a designação de «colectivismo», ao qual preferiam a de «comunistas científicos» (97).
Retenhamos os dois eixos importantes utilizados por Bruno para atacar as teorias de Marx, o primeiro dos quais é a taxa da mais-valia, descoberta fundamental de Marx, arrumada em duas linhas: «todavia, a descoberta de Marx não tem senão uma importâicia de ordem moral e jurídica» (98), tanto mais que essa taxa não lhe parece nada ilegítima, mas excessiva. Daí o seu comentário crítico: «pela minha mísera banda, não me prendo por agora, com o lado estritamente económico da polémica. Farei simplesmente notar que o abusivo excesso de trabalho sobre o salário representa, no mesquinho condicionamento moral da actual normalidade social, o serviço prestado pelo capital ao trabalho em o tornar efectivo. Assim, a dificuldade desloca-se e a questão toma um aspecto diverso» (99). Não se pode duvidar, com efeito, do aspecto diverso assim dado à questão, mas temos de convir que se trata de uma mania bizarra dos autores portugueses de querer deslocar a questão, de preferência a analisá-la. Ao que acrescentarei mais um comentário: é deveras singular constatar a incapacidade dos autores portugueses para compreender os «socialistas científicos».
Bruno reteve a lição de Amorim Viana e de Proudhon, e não hesitou em condenar Marx sem remissão, em nome do saber antigo, que recusa a intervenção, expontânea ou organizada, da classe operária, nisso se mostrando bem solidário do seu amigo, conterrâneo e correligionário Bazílio Telles (100). Para condenar a «doutrina marxiana», Bruno afirmou em primeiro lugar que ela não se coadunava com uma acção prática, visto ser «um processus histórico que segue a sua marcha» (101), para sublinhar que só no «proudhonesco, aristotélico meio termo» se encontra a solução: «o homem nem é fatal como o grave inerte; nem é livre, conforme o anjo das suas quimeras. Tem uma liberdade condicionada, como a do pássaro na gaiola. Portanto, pode intervir nos acidentes duma evolução, cujo conjunto lhe escape à influência» (102), o que, levado ao seu extremo limite, consiste em dizer que a classe operária não pode dispor de uma organização autónoma, legitimando a posteriori, a ausência de referências de Bruno aos operários e aos camponeses.
Bruno empenha-se em querer demonstrar a ausência de racionalidade das teses de Marx, escrevendo que «coagulação do trabalho, trabalho-trabalho, e trabalho-capital são independentes» (103). Cada um destes termos teria uma existência autónoma, e a inter-dependência estabelecida e demonstrada por Marx seria apenas um sofisma, incapaz de descrever a realidade dos maquinismos sociais. A origem pequeno-burguesa de Bruno revela-se nitidamente, e o republicano-liberal, defensor das liberdades formais assume a sua verdadeira estatura, em detrimento de uma mais lata compreensão dos fenómenos sociais. Ao fenómeno social total (desculpe-se o anacronismo), Bruno prefere a decomposição, e a independência relativa de cada um dos participantes no processo social. O que lhe permitirá, evidentemente, explicar a função particular, única e insubstituível do capital na sociedade capitalista.
Bruno insiste, explicando as invenções científicas e as suas aplicações técnicas como resultado da «curiosidade científica»: com efeito, na evolução dos modos de produção (e, portanto, do arranjo político-económico conexo) a passagem do regime cooperativo ao estádio da grande fábrica foi determinado por quê? Por uma causa intercorrente, embaraçadora mas, nas suas origens, estranha ao sistema mesmo do processo industrial. Isto é, a curiosidade científica, que, por um motivo apenas didáctico, procura dar emprego à força do vapor de água (104). Para Bruno era evidente a existência de um hiato entre a «curiosidade científica» e a utilização sistemática das máquinas a vapor pela grande indústria.
Nenhuma pergunta, quanto ao momento da descoberta, nem quanto ao facto de o vapor de água ser conhecido desde a invenção do fogo pelo homem, e da invenção concomitante dos vasos destinados ao cozimento dos alimentos.
O que lhe permite recusar, mostrando-se nisso um relativamente bom leitor dos autores alemães, a coesão e a autonomia, do discurso social, isolando a ciência como um espaço neutro, onde o Espírito (quem não reconhece a sombra pertinaz de Hegel?) seria a entidade única. O que o impede de compreender não só a relação directa entre a investigação, as preocupações teóricas de Marx e as aplicações práticas por via do «sindicalismo» ou então do «partido do proletariado». Como grande número de proudhonianos, Bruno prevê a redução do proletariado, como consequência da substituição da «consciência na manufactura pelo automatismo» (105). O que lhe permite concluir com um parágrafo onde aparecem os seus demónios proudhonianos, apertadamente unidos ao discurso possibilista:
«Francamente, pesa-me, como a todo o entendimento comesinho e terra-a-terra, que se passe um tempo precioso no exame e na propaganda de doutrinas de carácter tão complexo, de feitio tão completamente integral que, salvo fanatismo, se não podem supor aproveitáveis em benefícios próximos. Principalmente, se, como o marxismo, essas teorias são uma previsão histórica, indiferente, doutrinalmente, aos males patentes, considerados filosoficamente como as condições indispensáveis de organizações superiores. Assim se apresenta o modo de produção capitalista como uma necessidade histórica para transformar o trabalho isolado em trabalho social. Mas, enquanto a socialização do trabalho não chega, vai-se morrendo de frio e de fome. Por isso julgo mais bem aconselhados aqueles que se reduzem às reclamações possíveis na ocasião» (106).
A conclusão não podia ser mais lógica; mau grado a sua relativa boa vontade, Bruno é incapaz de compreender o objectivo de Marx, e de Engels, e de todos os «comunistas científicos»: a subversão da formação capitalista e a instauração de uma sociedade sem classes. Mas também neste caso se constata que Bruno não pôde compreender a existência destas classes e procurou antes demonstrar a ausência de racionalidade dessa divisão das formações capitalistas, proposta por Marx, pelos marxistas, pelos comunistas e pelos anarquistas: «E, todavia, essa luta de classes deriva dum salto mais geral, sem o qual ela é ininteligível: a hostilidade das variedades étnicas da espécie. Não se compreende a constituição de classes dentro dum agrupamento homogéneo; porque qualquer banda guerreira teria a medir-se, para a usurpação, com equivalentes que não lho sofreriam. Assim, as desigualdades profundas, radicais, extremas, pressupõem a preliminar guerra de raças, hierarquizadas pela diferenciação evolutiva» (107).
O que corresponde, trocado em miúdos, à recusa da divisão sexual e social do trabalho, e à impossibilidade de compreender a função da mais-valia e da acumulação primitiva e do lucro, como elementos levando à disjunção das formações sociais. Na realidade, o bom burguês tripeiro acha «naturais» as funções sociais, que necessitariam quando muito uma correcção, para eliminar as injustiças mais evidentes, sem jamais pôr em causa a estrutura da sociedade, a «actual normalidade social». Tais posições explicam, enfim, o conteúdo do ideário republicano português, de que Bruno foi um dos propagandistas e agentes.
Se a classe operária não se reconhecia em Marx, se os intelectuais tripeiros eram incapazes de o compreender, a Universidade aprendeu-o e comentou-o mal, como já vimos e como vamos voltar a ver. Afonso Costa faz melhor do que os seus predecessores coimbrões, não lendo Marx, mas os seus comentadores. Do marxismo retém apenas a importância da mais-valia, ainda que o conceito não seja utilizado («e a sua teoria sobre o valor, que leva à conclusão que fica muito trabalho por pagar, não teve ainda quem a derribasse nos seus alicerces fundamentais»), e uma que outra informação marginal. Na realidade, Afonso Costa nunca estudou Marx, nem porventura chegou a lê-lo, tendo-se limitado a adoptar um Marx lido, corrigido e deformado pelos comentadores: Paepe, e sobretudo Benoît Malon (108). Foi de resto este militante francês que forneceu aos «marxistas» portugueses, pelo menos aos universitários, os elementos teóricos mais utilizados, sem que estes se tenham interrogado quanto à maneira como Malon «lia» Marx. Ora se o «socialismo integral» conheceu uma certa voga em França e noutros países europeus, nem por isso deixa de ser uma mera contrafacção do marxismo.
Generosamente, Benoît Malon, ao estabelecer a genealogia do «socialismo integral», inclui Marx entre os seus predecessores, naturalmente superado pelas suas propostas teóricas e assim remetido ao armário das coisas velhas e inúteis. Assim o entende também Afonso Costa, ao mostrar que Malon acrescenta à doutrina económica do marxismo «uma doutrina mais geral, mais compreensiva dos meios e das múltiplas necessidades da humanidade, melhor adaptada à concepção actual da história e aquisições recentes da ciência». O elemento novo, introduzido por Malon e que tudo regularizará, era o «Direito», cuja expressão seria a «Justiça». Os seus princípios seriam a «Liberdade» e a «Igualdade», o que levou Afonso Costa a afirmar que «o socialismo integral, o socialismo do futuro, não se apoia apenas na necessidade económica de destruir o capitalismo: vai mais longe e mais alto: firma-se também sobre a justiça social» (109).
Que quer isto dizer? Muito simplesmente que Benoît Malon pretendia convencer os trabalhadores a renunciar a uma hipotética «transformação do dia para a noite», dado que todas as tentativas neste sentido em França - 1834, 1848, 1871 - se tinham revelado inúteis, provocando a reacção brutal do capitalismo e do Estado, sobretudo em 1871. Por isso, Malon queria que o proletariado contasse antes com o progresso, lento mas certo, que podia obter-se pela via da instrução, e pelo desenvolvimento das cooperativas, mas sempre no quadro das instituições da República. O que lhe permitia separar-se da luta de classes, para afirmar que o socialismo era sobretudo uma questão moral. Deste modo, Benoît Malon procura legitimar o «socialismo integral», numa perspectiva estreitamente possibilista, que recusa toda e qualquer forma de revolta ou de revolução, o que convinha necessariamente ao aprendiz de feiticeiro Afonso Costa, e que deixa já entrever a sua denúncia do sindicalismo como arma do proletariado e do campesinato, como aconteceu na sua famosa conferência de 1913.
Tudo isto levou Benoît Malon a recusar tanto Marx como Lassalle - que ele confundia, como aconteceu a muita gente na Europa, e particularmente em Portugal, graças ao Lassallezinho Antero de Quental - e a denunciar o marxismo político, - o de Marx e Engels - considerado uma simples utopia, ao passo que ia exaltando o socialismo francês, ciência positiva e mistura mais ou menos (im)ponderada de Fourier, Louis Blanc, Calvet, Proudhon e outros ainda. Ciência positiva que, neste caso particular, devia ser entendida como a ciência do possível, e capaz de legitimar o extremo possibilismo de Benoît Malon, que o transformava em pilar do poder existente, procurando desarmar o proletariado, convencendo-o da impossibilidade de qualquer acção decisiva contra os capitalistas e ainda menos contra o Estado. O que, como se pode calcular, muito convinha a Afonso Costa e aos seus amigos do Partido Republicano.
Pode portanto concluir-se que o estilo redundante não consegue esconder a ausência de um estudo directo: Afonso Costa só conhece Marx por tabela seca, seja pela via Oliveira Martins, seja através de Benoît Malon. Ora num e noutro caso, não se trata de autores que procurem estudar Marx, mas antes de adversários, ou pelo menos de capadores das teses e das teorias de Marx. Mas se isto explica os disparates sinceros da tese, não absolve o professor universitário que também foi Afonso Costa, embora nos ajude a compreender a maneira como se comportou enquanto dirigente do P.R.P. (Partido Republicano Português) e presidente do Ministério. A brutalidade da sua acção face aos trabalhadores deu-lhe direito à alcunha de «racha-sindicalistas», que bem mereceu e bem justificou: talvez tal brutalidade tenha sido teoricamente justificada pelo «socialismo integral», porque não? Temos assistido a tais aberrações no mundo político português, que esta hipótese entra no domínio de possível, e sem necessidade de recorrer a caricaturas! (110).
Mau grado esta apresentação caricatural das teorias de Marx, a tese de Afonso Costa suscitou algumas querelas, das quais deve reter-se a intervenção do professor liceal Fortunato de Almeida, historiador, relativamente honesto, merecidamente esquecido, e incapaz do menor trabalho teórico. Os seus ataques contra o colectivismo e contra Marx são lançados no vácuo, pois Fortunato de Almeida, como já sucedera a Afonso Costa, não lera Marx. Não falta perspicácia ao professor Fortunato de Almeida, quando mostra que Afonso Costa é apenas o «filho espiritual de s. ex.ª o sr. Benoît Malon, que Deus tenha em sua santa guarda», mas o seu capítulo VI, onde procura abordar a questão do colectivismo de Karl Marx e de Lassale, é escrito sem brio e sem provas.
A maneira como o ilustre professor, cita e utiliza os documentos dos socialistas e dos comunistas seus contemporâneos é verdadeiramente caricatural, mas reveladora. Numa passagem, pretende mostrar que as conclusões do seu sistema (de Karl Marx) foram claramente formuladas no congresso de Gotha, em 1875, no seguinte programa adoptado por grande maioria:
«O trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a civilização. Como o trabalho geral produtivo só é possível pela sociedade, o produto total do trabalho pertence à sociedade, isto é, a todos os seus membros, com o mesmo direito, e a cada um segundo as suas necessidades racionais, sendo todos obrigados a trabalhar» (111).
Ora toda a gente sabe hoje, e já sabia na época, que tanto Marx como Engels haviam criticado este programa e que nas «Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão», Marx comenta largamente o programa, desmontando-o parágrafo por parágrafo, para revelar o seu carácter retrógrado, ou mesmo reaccionário. Para salientar a fragilidade do primeiro parágrafo, Marx mostra que «o trabalho não é a origem de toda a riqueza. A natureza tanto é a origem dos valores de uso (e são precisamente estes que, no fim de contas, constituem a riqueza real!) como o é do trabalho, que é ele próprio apenas a expressão de uma força natural, a força de trabalho do homem» (112).
Vê-se bem por esta pequena amostra o esforço de documentação dos professores liceais e universitários portugueses, mas também se constata que estes professores podiam afirmar impunemente as coisas mais aberrantes, porquanto não havia uma contraproposta teórica da classe operária e do campesinato. Ou dito de outra maneira: os professores, só podiam dizer tantas coisas ineptas na medida em que os teóricos do proletariado não procuravam ocupar o terreno da teoria. A fragilidade da classe operária revela-se nesta ausência, que pode já servir-nos para «prever» o resultado dos combates que já então se travam contra o capital e o Estado.
Diga-se ainda que esta ausência de informação e de conhecimento, não impediram o professor Fortunato de Almeida de prosseguir na sua diatribe contra Marx e os «colectivistas», afirmando que o colectivismo não possuía um «cunho de originalidade frisante», dado que os «seus princípios e as suas conclusões pertencem às velhas escolas de Adam Smith, Ricardo, Bastiat, Turgot, de Tracy, etc., tendo porém Karl Marx, «verdadeiro fundador do colectivismo», tido a «habilidade» de «envolver os velhos princípios numa forma nova», revestindo-os «de um certo aparato científico, por vezes bem arquitectado embora assente em bases pouco sólidas». O que lhe permite concluir com um parágrafo que não deixa de lembrar alguns passos dos comentários de Sampaio Bruno: «Karl Marx deveu à circunstância de ser o fundador da Internacional, toda a popularidade que alcançou entre os socialistas. O seu livro intitulado O capital (Das Kapital), cheio de abstracções e fórmulas científicas que exigem na leitura uma certa tensão de espírito, não era destinado a percorrer todas as fileiras da democracia socialista» (113).
Ficamos a saber que o ilustre professor queria ler sem «uma certa tensão de espírito», o que explica pelo menos parcialmente a fragilidade da sua obra de historiador, mas constatamos também que a informação de Fortunato de Almeida é, como no caso de Afonso Costa, de segunda mão, respigada nos comentadores anti-colectivistas: apoia-se em Laveleye, que por seu turno se apoia em Cliffe Leslie, e utiliza também, embora menos frequentemente, Eichthal. Retenhamos enfim a maneira peremptória como Fortunato de Almeida «aniquila» os princípios teóricos da demonstração da mais-valia (Mehrwert): «tais são as teorias de Karl Marx, que teve o grande defeito de se conservar no campo das fórmulas teóricas, sem basear as suas deduções no exame rigoroso dos factos» (114).
Percebe-se contudo, nestas diatribes, o grande medo que começava já a preocupar a burguesia portuguesa, na maneira como Fortunato de Almeida defendia o capital privado: «os lucros do capitalista constituem uma retribuição dos seus cuidados, da sua direcção, e representam um prémio do risco a que está sujeito; portanto são justos». Furtando-se a toda e qualquer interrogação sobre a maneira como apareceu o capital nas formações sociais, Fortunato de Almeida não podia compreender o sentido das propostas socialistas, colectivistas ou comunistas; a única coisa que ele podia perceber na multiplicação das teses e das teorias, ou no arraial das greves e das manifestações dos famélicos da terra, era a ameaça para os proprietários do capital, a que se sentia ligado tanto pessoal como institucionalmente. Por isso mesmo, ele só podia integrar a hoste fornida dos adversários de Marx, que se multiplicavam como cogumelos no perímetro social e político da burguesia.
Podia ainda fazer-se um comentário aos seus métodos de trabalho, mas já constatámos que a universidade onde ele se formara, não se mostrava muito exigente no que diz respeito ao conhecimento dos textos. Afonso Costa não lera Marx, ou apenas os excertos utilizados pelos comentadores que fora compulsando, e Fortunato de Almeida não lhe podia ficar atrás. Os seus lapsos são inerentes ao processo intelectual português da época, e não se pode dizer que esse vício já tenha sido inteiramente eliminado, mas neste caso particular, eles reforçam um desfasamento dramático entre a intelligentsia burguesa e a massa dos produtores. Mas, por outro lado, esse desfasamento é inerente à formação social portuguesa, separando cuidadosamente o trabalho manual do trabalho intelectual, e considerando que só este possui algum prestígio social.
Em 1896 apareceram mais alguns comentários dedicados a Marx, provando que este fim do século XIX forçou os autores portugueses a procurar descobrir os fundamentos da doutrina marxista. Silva Mendes, numa obra significativamente intitulada Socialismo libertário ou anarquismo (115), dedica algum espaço, não muito, a Karl Marx. Uma grande parte da sua obra analisa as relações entre Karl Marx e a Associação Internacional dos Trabalhadores, afirmando peremptoriamente que, «em Portugal, o movimento anarquista não tem acompanhado o dos outros países», dizendo também que o «operariado de Lisboa, Porto, Coimbra e outros centros industriais vai pouco a pouco abandonando as tendências marxistas para se lançar no anarquismo. Convencido da improfiquidade da tática parlamentar, repugna-lhe aceitar o socialismo autoritário» (116). Pela segunda vez o resumo de Déville é utilizado e citado (117), mas a verdade é que Silva Mendes é um dos responsáveis pela legenda do afrontamento entre os «marxistas» e os outros militantes operários. Ora já pudemos constatar que não havendo estudos do marxismo em Portugal, nem organizações de tipo marxista, havia de ser difícil a existência de «marxistas». Creio que também neste caso se trata de uma extrapolação, e quando se diz «marxistas», quer-se dizer «filiados na A.I.T.».
Significa isso que o fim do século XIX assisitiu à multiplicação dos textos criticando ou deformando as teses de Karl: Marx e de F. Engels, o que mostra a perfeita integração dos intelectuais portugueses no ritmo geral europeu. De resto esta dependência dos portugueses é largamente comprovada pela falta de leitura dos textos originais, substituídos pelo recurso aos comentadores, ou compensada pela manipulação dos resumos ou da colecção de extractos. Ou seja ainda: os intelectuais portugueses colocavam-se na dependência das estruturas europeias, limitando-se a procurar «nacionalizar» as ideias publicadas no exterior, sobretudo em França e em Itália. O que contribui para a ausência de uma reflexão nacional neste plano específico do comentário das teorias marxistas, ao contrário do que sucedia com uma parte do proletariado, que procurava teorizar tendo em conta a prática da classe.
Em 1899, a revista universitária de Coimbra O Instituto, começou a publicar o trabalho do jovem estudante de direito A. A. Pires de Lima, «As doutrinas económicas de Karl Marx. Estudo expositivo e crítico», que se prolongou durante muitos números (118). Encontramos a situação já descrita anteriormente, no que diz respeito à orientação geral dos falsos analistas de Marx, que não liam praticamente o autor vivisecado. Neste caso, o jovem Pires de Lima (que nascera em 1880), utiliza os Extractos organizados por Lafargue, na edição prefaciada por Vilfredo Pareto (119). Creio que vale a pena considerar uma das primeiras notas de rodapé; que se referem à maneira como o autor entende modificar a exposição de Karl Marx:
«Estas fórmulas, como muitas outras que surgirão no decorrer deste trabalho, não são de Marx, que se limita a apresentar uma série fastidiosa de elementos concretos. Nós é que pretendemos dar um cunho mais científico à sua obra informe e desorganizada ainda, generalizando, deduzindo e simplificando as leis do Capital (120).
Quer dizer que Pires de Lima não compreende a maneira como Marx constrói a teoria, que não parte de um a priori teórico que deve ser confirmado pela prática, mas considera acima de tudo a importância da prática, precisamente da massa dos «elementos concretos», para poder definir as relações existindo realmente entre os capitalistas e os produtores. Agindo desta maneira, Marx podia mostrar a importância da ideologia que mascara a estrutura real das relações de classe, graças sobretudo à ideologia da classe dominante, e salientar ainda a importância central do trabalho como produtor do valor e da mais-valia (Ou mais valor, como em alemão), no quadro bem definido do capitalismo. As fórmulas de Pires de Lima não são uma contribuição científica, como se podia esperar, e têm naturalmente a desvantagem de tornar opaco o que se queria e era transparente. Mas a ilusão da fórmula, leva-o a procurar uma base científica, que teria faltado a Marx, naturalmente menos astucioso que o jovem estudante coimbrão.
Continuemos porém, retendo mais uma confissão de Pires de Lima, importante para podermos julgar a sua maneira de trabalhar. Diz ele, in fine, que considerou apenas nove capítulos dos extractos de Lafargue, abandonando os outros trinta e três, renunciando a «acompanhar» Marx nas questões concretas estudadas - mais-valia relativa, colonização, salários, expropriações – primeiro «em virtude da grande extensão da obra» e depois «porque é o que expusemos o que há de fundamental na doutrina marxista» (121). Na realidade esta amputação do trabalho de Karl Marx revela não só uma atitude nascísica, mas mais do que isso uma real incompreensão do esforço teórico, pois que tudo estando centrado em torno da mais-valia - elemento central do capitalismo e, necessariamente, das relações entre capitalistas e força de trabalho -, «renunciar» ao estudo das questões referentes à mais-valia relativa, significa de facto renunciar não só à compreensão do «marxismo», mas também do mecanismo do capitalismo.
Tudo isto se traduz, na realidade, por uma impossibilidade visceral de criticar as teses de Karl Marx, mesmo se a segunda parte do trabalho de Pires de Lima se empenha em fazê-lo, primeiro recenseando as várias críticas feitas a Marx pelos autores europeus - Emilio Laveleye, Vilfredo Pareto, Jean Grave - depois procurando articular a sua própria crítica. Retenhamos para começar a sua explicação das razões que provocam a pouca simpatia pelas teses de Marx:
«A ausência de simpatia, da parte das multidões avançadas, pelas doutrinas marxistas, explica-se, não tanto pela falta de solidez dos princípios económicos de Karl Marx, como pelas suas ideias histórico-evolucionistas, conservadoras em parte, e em parte friamente positivistas, e que, à nervosidade metafísica dos cérebros febrilmente irrequietos pela explosão rápida da justiça, se antolham um perigoso obstáculo» (122).
Confesso que me parecem adoráveis as considerações do jovem Pires de Lima, precocemente grave, a pensar já na borla e no capelo que não conseguiu obter, apesar de perfeitamente justificados pela suficiência largamente manifestada. Mas, varrida a ironia, que neste caso nem sequer é excessiva, fica-se a pensar no que podia ser o ensino em Coimbra, se bem que tudo o que acaba de se ler, corresponda perfeitamente à maneira de pensar deste fim do século XIX, que em Portugal estava a contas com a acção da classe operária, não só em Lisboa, mas já através do país. A surpresa não é possível, pois estamos perante um exemplar perfeito da auto-satisfação da burguesia, que pode ainda conhecer em Marx um mínimo de qualidades, que contudo não são suficientes para lhe assegurar a popularidade, ainda menos a eficácia, mesmo se relativa.
Se esta passagem já me parece assaz elucidativa, há outra que me parece ainda mais demonstrativa, e que expõe com foguetes e fanfarras, a tese revolucionária de Pires de Lima. Diz ela que «é precisamente a inversão do lema de Karl Marx que nos dá o verdadeiro conceito da origem do valor. Todo o valor vem realmente do trabalho, mas não do trabalho do produtor: do trabalho do consumidor».
Excelente inversão, que procura transformar a importância do trabalho, tal como fora proposta pelos economistas clássicos, e corrigida por Marx, de maneira a transferi-lo para uma zona peculiar à da burguesia: o «trabalho» do consumidor. Quer dizer que o mais importante não é a produção do valor e da mais-valia pela força de trabalho, mas a relação entre a oferta e a procura, directamente dependente do salário, da renda, e da poupança do consumidor.
Tal afirmação vai de par com uma outra, que afirma «que é da necessidade do objecto» que «provém o seu valor», o que traduz a incapacidade de compreender que a questão do valor só pode ser enunciada quando se trata da produção capitalista. Neste caso particular, a responsabilidade não cabe inteiramente a Pires de Lima, que se limita a repetir, com grandes pretensões pessoais, as passagens clássicas das teses dos críticos do marxismo, que pretendem transformá-lo num mero epígono dos economistas clássicos.
Evidentemente, Pires de Lima procura instalar-se no ramo tremente da utilidade, como acontece a muitos outros epígonos dos economistas clássicos, sem considerar que a discussão não pode manter-se neste plano. O que lhe permite dizer coisas flagrantemente deslocadas: «a utilidade é quem aparentemente manifesta o valor; mas ele não é mais do que a sirnbolização da necessidade individual, assim como esta é simplesmente a expressão do trabalho». Assim regressamos à «necessidade individual», que é uma maneira nem sequer astuciosa de considerar o indivíduo isolado, praticamente independente das relações sociais, quando na realidade o valor não tem nada a ver como trabalho, quando este é considerado de maneira lata, pois é impossível separar tanto o trabalho como o valor das relações sociais que os estruturam e os impõem. Ora se nas sociedades de tipo autárcico, se pode constatar que o valor não é uma categoria pertinente para classificar o trabalho, é exactamente o inverso que se verifica na produção capitalista, visto o valor ter urna relação directa e permanente com o trabalho.
Deste modo, o valor não pode ser em momento algum uma simples «simbolização da necessidade individual», visto exprimir exclusivamente as relações sociais que permitem e mantêm o capitalismo. Se prosseguirmos a demonstração, compreendemos perfeitamente que a «necessidade individual» não pode assumir «a expressão do trabalho», pois não existe nenhuma relação lógica ou outra entre estas duas categorias. Pelo contrário, a «necessidade individual» é um dos elementos que servem para a manipulação capitalista, visto esta poder ser exarcerbada pela apropriação sistemática e contínua dos meios de produção. Mas disso não cura Pires de Lima, revelando pouca originalidade nos elementos críticos, embora não hesite em avançar na cena da teoria com a certeza de poder vir a ser uma das primeiras figuras.
O que nos ajuda a compreender os seus dois foguetes finais, o primeiro que se refere ao «comunismo puro» de meios de produção e de consumo que «combinado com a substituição do Estado actual pela representação fraccionada e pura dos interesses do povo», (permite) «não só a máxima remuneração de todo o trabalho humano, mas a máxima satisfação de todos os ideais político-sociais» (123). O que deixa em aberto a questão de saber «onde se irá buscar a justa, a legítima, a respeitável autoridade»: «Moralizar o Estado importa previamente moralizar os membros que o devem compor: e todos concordam em que é impossível extirpar do coração humano a ambição de glória e de despotismo. A reforma, portanto, no sentido do melhoramento do bem-estar do povo, há-de ser orientada de forma que a independência individual cresce progressivamente, o indivíduo goza cada vez mais de governo próprio, a fim de que o bom governo de cada um crie bom governo da colectividade» (124).
As pretensões individualistas, que não consideram nenhuma das condições práticas da passagem a uma nova forma de gestão política, cabem curiosamente no messianismo típico dos intelectuais que procuram aderir aos movimentos da extrema-esquerda da época. É evidente que A. A. Pires de Lima procura integrar-se na massa dos «anarquistas» que povoam a universidade coimbrã neste período, e que naturalmente se recusavam a uma acção política coerente, embora não hesitassem em empolar o discurso com afirmações definitivas e terrivelmente revolucionárias. Se na primeira parte, Pires de Lima revela não só um péssimo conhecimento de Marx, mesmo acompanhado por uma pretensão sem limites, estes períodos finais aparecem deslocados do sentido geral do discurso, como uma profissão de fé que se sente necessária, mas que não sabe como se há-de constituir. Trata-se de uma função simbolicamente residual que deve absorver, no seu excesso, a falta de estrutura teórica do que fôra dito antes, e que pretendia ser uma exposição de algumas teses de Marx.
A última grande tentativa de análise teórica da obra de Marx foi a de Bazílio Telles em 1901 (125). Autor também tripeiro e amigo de Sampaio Bruno, foi um militante essencialmente preocupado pela necessidade de defender os valores regionais do norte contra o apetite frenético do sul (126), e deveras céptico quanto à qualidade dos portugueses e das suas obras (127). Pensador estritamente nortenho, ele aceita a ideia da «degenerescência» dos povos peninsulares, assim como a ideia da «crise nacional», que seria a sua manifestação especificamente portuguesa.
Bazílio não procurou estudar Marx: a sua relação com Marx é unicamente polémica, limitada à questão do valor. Esta polémica é explicada através de conceitos que não são nunca os de Marx, mas antes aqueles criados por Bazílio para definir as situações isoladas por Marx, ou pelos economistas clássicos. Bazílio procura antes de mais circunscrever o que considera ser o «lapso» de Marx, sublinhando que este «decerto por ter em vista unicamente a mercadoria, ou o produto confeccionado em vista da troca, não discrimina o valor absoluto do valor relativo, nos dois regimes, distintos, de auto-retribuição e de retribuição social (128).
Trata-se contudo de conceitos que pretendem possuir um relativo rigor. Assim, o «regime de auto-retribuição» seria preponderante nas zonas de propriedade dividida e, por consequência, de policultura. Quer dizer que se trata «do homem que consome a mercadoria que produz». Os seus produtos, «o pão, o vinho, a lenha, etc., do prédio rústico modesto é ao próprio agricultor que se destinam, na grande maioria dos casos, apenas um excedente em determinado produto, ou numa indústria caseira complementar, qualquer, se reservam para obter, pela permuta, aquilo que a terra não dá» (129).
O «regime de troca» é uma espécie de «auto-retribuição», mas imperfeita (130), enquanto o regime dominante, «a retribuição social, ou de troca indirecta, variável e difusa, (implica) a existência da moeda e do comércio» (131). Não custa reconhecer aqui argumentos já utilizados no estreito quadro conceptual português, mas deve sobretudo sublinhar-se a ausência de qualquer referência ao mecanismo da mais-valia, único que podia servir para esclarecer a posição de Marx, mas ainda mais as condições da passagem das formas autárcicas para aquelas onde o trabalhador é separado dos instrumentos da produção, e forçado a vender a sua força de trabalho.
Os conceitos de Bazílio Telles são portanto inadequados, mesmo se alguns pontos da sua análise, nomeadamente no que diz respeito à pouca contribuição dada pela organização doméstica rural ao capitalismo, devam ser retidos, e considerados até exemplares. Simplesmente, ele minimiza as relações existentes entre os elementos propostos por Marx, o capital, o trabalho, a mais-valia, o lucro, a acumulação. Recusando-se a operar com estes conceitos, Bazílio Telles prefere inventar a noção de auto-retribuição, que implica já a existência do lucro e portanto a relação com um sistema marcado pela exploração e necessariamente pela mercadoria, com a carga alienante que esta comporta. Ora em Marx, estes sistemas de economia doméstica, o oïkos de Aristóteles, encontram-se numa esfera diferente, como ele muitas vezes sublinhou, por exemplo ao analisar a resistência do mir russo à desintegração sob a pressão das forças do capitalismo moderno (132).
Não deixa de ser surpreendente constatar que Bazílio Telles considerava o regime então dominante, que é ainda o mesmo, embora mais refinado e mais astucioso, como sendo o da retribuição social, sem entrar em linha de conta com as condições muito diferentes e até contraditórias em que intervém semelhante «retribuição». Não querendo analisar a função do capital, nem as condições que presidem à sua reprodução, recusando-se a considerar o aparecimento do capital financeiro, Bazílio Telles renuncia a uma análise séria, para se manter fiel a um credo utopista, dependente do município e da fisiocracia.
Como seria possível depois disto mostrar-se surpreendido diante da ausência de toda e qualquer referência ao proletariado e à sua organização, mesmo se o facto pode chocar neste começo do século XX?
É todavia evidente que os teóricos republicanos .do Porto jamais consideraram a classe operária como capaz de criar e de impor organizações autónomas suficientemente eficazes. Para eles, os proletários e os camponeses, eram apenas o exército de reserva necessário, mas não indispensável, para expulsar os monárquicos do poder, sem contudo serem obrigados a impor uma mutação, que podia ser perigosa. Dito por outras palavras: a má leitura de Marx pelos teóricos da burguesia, traduz a sua impossibilidade de reconhecer a existência do antagonismo das classes, assim como a inevitabilidade da revolução dos proletários e dos camponeses contra o aparelho dominante.
Poder-se-á incluir o curto panfleto de João de Meneses A nova fase do socialismo (133) entre as obras que convém inventariar? É difícil responder, porque, por um lado, há uma infornação considerável, contrabalançada porém por um projecto que o separa do marxismo. Convém trocar estas afirmações em miúdos, o que não será difícil. João de Meneses era nesta época uma figura proeminente do Partido Republicano, e já conseguira em 1899 a aliança dos republicanos e dos socialistas do Porto, o que permitira a eleição dos três deputados Afonso Costa, Paulo Falcão e Xavier Esteves, que puderam desempenhar um papel importante na desestruturação da monarquia constitucional. O marxismo não lhe interessa directamente, nem sequer como elemento teórico, embora não possa escapar aos movimentos que agitavam na época os debates sobre o socialismo, não tanto em Portugal, como essencialmente na Europa. A utilização de Marx e dos demais socialistas, só pode compreender-se no quadro restrito da propaganda republicana e sabendo-se que uma parte da classe operária, e mesmo dos intelectuais burgueses, se mostravam refractários à propaganda republicana e a qualquer acção «revolucionária».
Para forçar os militantes a fazer a auto-crítica das soluções adaptadas até então, João de Meneses inventaria as diversas correntes e as diferentes opções socialistas. Muito habilmente, recorre a Engels que defendia a «república democrática (...) única forma política dentro da qual a luta entre a classe operária e a classe capitalista podia generalizar-se», demonstrando através deste autor a iniquidade das posições teóricas e práticas dos que se pretendiam indiferentes à questão do regime. Neste caso, as posições de Bernstein eram bem-vindas, e o vocabulário político de João de Meneses oscila entre o radicalismo burguês e a social-democracia, pela qual mostra de resto um entusiasmo nem sequer desarmante, tão lógico ele nos aparece na situação portuguesa da época.
No que diz respeito ao marxismo, João de Meneses quase se limita a mostrar que as doutrinas de Marx estavam sujeitas a uma revisão, por três vias diferentes: 1) publicação dos escritos complementares; 2) crítícas levadas a efeito pelos autores contemporâneos; 3) comparação de Karl Marx e de Fr. Engels com os escritores coevos. Na realidade esta renovação doutrinária passava por uma teia de autores tais - Benoît Malon, Vendervelde, Destrée, Van Koll, Merlino, Benedetto Croce, Arturo Labriola, Bernstein - que seria deveras difícil encontrar, à saída do túnel, o mais leve fragmento de Marx. É precisamente por isso que não me repugna recusar a integração de João de Meneses entre os autores que contribuiram para a introdução do marxismo em Portugal.
Contudo esta exclusão não pode ocultar uma pergunta fundamental: qual a razão que levou João de Meneses a recorrer a um certo número de autores marxistas que não eram estudados em Portugal? Tratar-se-á apenas do feiticismo do nome próprio, cuja invocação mágica seria suficiente para apoiar os pontos principais da sua defesa da propaganda e da acção republicana? Ou estaremos uma vez mais perante a submissão aos modelos estrangeiros, que serviam de guia e de justificação à burguesia bem e mal-pensante do país? A questão é importantíssima e mesmo se não me sinto autorizado a responder-lhe, na situação actual da investigação respeitante às ideologias dominantes em Portugal neste fim do século XIX, nem por isso a devo deixar na sombra, tanto mais que um grande número de investigadores começa a interessar-se pela história social portuguesa numa óptica felizmente diferente da que existiu até agora.
Importa, para concluir, salientar que João de Meneses ao reflectir sobre a crise filosófica e científica do marxismo seu contemporâneo, raciocina pouco em termos de Marx, mas muito em consequência dos comentadores, o que é uma prática bem portuguesa. Mas quero sobretudo pôr em relevo a censura dirigida aos que julgavam liquidada a «aspiração socialista», que também se destina aos que pensam que, para a realizar, «basta enunciar fórmulas abstractas» ou pregar a «proximidade duma revolução universal». Como ele o diz algures, e muito bem, não pode aderir nem aos princípios de Bernstein - o movimento é tudo e a aspiração final nada importa - nem aos de Rosa Luxemburgo -- a aspiração final é tudo, o movimento nada vale -, para aceitar e defender o meio termo, a «solução de Liebknecht», que é nem mais nem menos do que a solução social-democrata que havia de arruinar as pretensões do Partido Republicano Português, minando o terreno da sociedade portuguesa em favor da solução ditatorial? De forma inconsciente muitas vezes, mas sempre perigosamente. Por isso João de Meneses, utilizando embora Marx e Engels e os comunistas, e uma coorte de socialistas de todas as orientações, me parece marginal à introdução do marxismo. Porque utilizá-lo não é conhecê-lo, mas antes caricaturá-lo.
A proclamação da República parece ter desanuviado o horizonte teórico português, mas não tanto como podiam ter esperado os ingénuos da política. Na realidade a reforma do poder do Estado, que interessava acima de tudo à burguesia e à pequena-burguesia, fizeram-se contra os produtores, ou seja o proletariado industrial e o campesinato. De resto a vontade dos trabalhadores, reforçada pela capacidade repressiva da novel república, provocaram a greve geral de 1912, que assistiu a urna acção conjunta do proletariado urbano e do campesinato, primeira expressão da frente comum dos produtores, decididos a impor a sua hegemonia. Mas se já constatamos que não só as teorias de Marx, de Engels e dos comunistas - ou até dos socialistas - tinham sido introduzidas com vagar, e com insuficiências, somos também forçados a verificar que mau grado as falhas teóricas, tanto a classe operária como os camponeses tinham sido capazes de definir as suas estruturas de maneira assaz eficaz. Digo assaz eficaz, porquanto a greve geral foi brutalmente liquidada pelo aparelho repressivo da República, sem a mínima contemplação, e com desprezo pelas regras de direito que ela própria já criara e pusera em vigor. Estes elementos forçam-nos uma vez mais a mostrar que o mais importante no processo político do proletariado, consiste na sua capacidade de inventar sem descanso as formas novas de combate, que lhe permitem opor-se à burguesia, sempre em busca de uma radicalização da situação, que lhe dê a possibilidade de impor a sua hegemonia.
É certo que no caso português os limites desta acção se revelam rapidamente, mas isso não impede que verifiquemos a constância da regra. Somos também obrigados a constatar que o Estado, seja qual for o gerente, age sempre contra os produtores, e que se trata por isso de urna instância exclusivamente repressiva, como de resto a história da 1.ª República, até ao putsh de Maio de 1926 e à ditadura, o confirmará plenamente. Acrescente-se que aparecem poucas referências a Marx, sendo a mais importante a publicação, numa tradução exemplarmente infiel ao texto, do resumo do Capital de Gabriel Déville em 1912, que será durante muito tempo o único texto de Marx existente em Portugal, senão em língua portuguesa, visto o Brasil se ter mostrado muito reservado nas suas relações com Marx e com o marxismo. Creio não ser exagerado atribuir à publicação deste Resumo algumas referências a Marx que aparecem no ano seguinte na imprensa operária, nomeadamente na polémica que se travou, a propósito das várias opções políticas, entre Manuel Ribeiro, Emílio Costa e Adolfo Lima.
Trata-se de uma polémica que interessa directamente a classe operária, pondo face a face os anarquistas e os sindicalistas, pois, como já sugeri algumas páginas atrás., a discussão sobre o sindicalismo, sobretudo depois da Carta de Amiens de 1906, interessou a maior parte dos teóricos da classe operária. Assim, respondendo a um artigo de Emílio Costa, Manuel Ribeiro ataca os anarquistas com alguma veemência: «só depois de Karl Marx ter revolucionado a economia é que o anarquismo começou também a preocupar-se com os problemas económicos e foi Kropotkine quem melhor sistematizou a sua teoria económica dando-lhe a base comunista» (134). Argumentos destinados a demonstrar a insuficiência do combate puramente anarquista, que seria incapaz de atacar os fundamentos da sociedade capitalista. A afirmação de Manuel Ribeiro não revela um grande conhecimento de Marx, mas traduz uma inquietação perante as condições da organização da classe operária, tendo em vista uma eficácia que, como tinham mostrado os diversos afrontamentos com a República desde 1910, faltava à classe operária.
A resposta de Emílio Costa não hesitou em mostrar o que considerava ser a relativa insuficiência dos argumentos de Manuel Ribeiro, pois não havia uma grande diferença entre os anarquistas e os sindicalistas, antes se tratando de formas de combate inteiramente complementares: «a predominância do factor político desperta (...) uma consciência anarquista»; «a predominância do factor económico desperta (...) uma consciência sindicalista»; o que leva a uma síntese: «o sindicalismo é, pois, para o capitalismo, o que o anarquismo é para o Estado». E, reforçando o seu ponto de vista, Emilio Costa insiste, afirmando que o sindicalismo «é apenas a sistematização de processos de luta, de uma orientação no ataque à sociedade capitalista»: Sem querer retomar todos os argumentos deste afrontamento, queria todavia salientar a vivacidade da polémica, que revela claramente as inquietações do proletariado face às questões da organização, que levariam, no ano seguinte – 1914 - à realização da Conferência de Tomar e à criação da União Operária Nacional.
Esta polémica, que precedeu directamente a Conferência de Tomar, resulta tanto da influência dos princípios sindicalistas introduzidos e divulgados pela Carta de Amiens, como do balanço do fracasso da greve geral de 1912. A repressão levada acabo pelo governo republicano parecia dar razão a quantos, se tinham, recusado alinhar nos partidos burgueses, mas a verdade é que se tornava necessário e urgente criar uma forma de organização capaz de reforçar a mobilização do proletariado e do campesinato. O que não impedia a discussão de ultrapassar este quadro, e encontramos outra polémica, opondo J. Carlos Rates a um certo número de sindicalistas. Os princípios defendidos por Rates são de um grande oportunismo, e não revelam a mínima perspectiva estratégica, mas uma pura e simples colagem ao instante. Na sua colaboração publicada por O Socialista, sempre a propósito do Congresso de Tomar, Rates afirma ser «preciso que o proletariado se eduque», e «que compreenda os problemas da vida colectiva portuguesa», eliminando ao mesmo tempo «as preocupações táticas e doutrinárias». A resposta, seca, directa, como uma chicotada, de Augusto Machado, limita-se a lembrar a Rates as lições que tinham sido as suas, muito mais coerentes e apropriadas à situação portuguesa. Com efeito, alguns anos antes, Rates pudera dizer, respondendo ao governador civil de Évora: «eu direi a S. Ex.ª que o mal do socialismo é ter-se desviado das teorias marxistas, abandonando a luta de classes e transformando-se de partido da revolução em partido de cooperação. Eu bem sei que tal socialismo é mais cómodo para os patrões e para o Estado». Com efeito, mas ao estabelecer o balanço do inquérito organizado por O Sindicalista, conclui-se que neste fim de 1913, princípio de 1914, a classe operária portuguesa estima «que a colaboração de classes é inevitável em certos casos» (135), traduzindo o recuo das posições duras e intransigentes anteriores à greve geral de 1912.
Como se constata facilmente, a Universidade, e a tecnocracia que ela cria, abandonam Marx e o marxismo, e encontramo-nos perante um hiato importante, que só será eliminado no após-guerra. Tem-se afirmado gratuitamente entre nós que a Revolução de 1917 encontrou um eco imediato entre nós, e que se teria trasformado no guia absoluto do proletariado. Convém ser mais prudente, pois se encontramos alguns ecos da Revolução, não será na imprensa do proletariado, mas mais precisamente na imprensa burguesa (136). Na verdade, a primeira grande tentativa de mobilização colectiva no imediato após-guerra, consistiu na greve geral de Novembro de 1918, convocada pela União Operária Nacional, para fazer face a uma situação deveras difícil. Mas tal convocação não quis atender às condições específicas do país, onde a pneumónica fizera devastações singulares, causando mais de 100.000 mortos. Quer dizer que uma parte dos produtores fora secamente e rapidamente dizimada, o que acarretou também uma maior fragilidade económica. Os dois elementos associados tornavam necessariamente frágeis os produtores, levando ao fracasso, como se verificou. A única referência à revolução encontra-se na imprensa burguesa que, ao denunciar a acção dos camponeses do Vale de Santiago, que tinham ocupado as terras que cultivavam, fala nos «sovietes» (137). De resto, o governo, assumindo com soberba o seu carácter repressivo, ordenou o desterro destes camponeses, sem processo e sem julgamento para Angola, de onde voltariam alguns anos depois.
Tais factos ajudam contudo a definir a situação de fragilidade política da classe operária. Ora a revolução soviética só começou a encontrar eco entre nós a partir de 1910, primeiro por via de uma série de artigos de O Século, depois e essencialmente através da criação da Federação Maximalista Portuguesa, cujo secretário-geral foi Manuel Ribeiro, ao tempo ainda funcionário dos Caminhos de Ferro (138), mas também em alguns artigos polémicos de A Batalha, onde alguns militantes, entre os quais Manuel Joaquim de Sousa, denunciavam com constância e fervor o perigo do Estado centralizador e totalitário, tal como se desenhava, por exemplo, na polémica entre Lenine e Alexandra Kollontaï. Mas, neste mesmo ano, o interesse da revolução soviética seria suplantado pela acção dos militantes italianos em Turim, e serão estes dois elementos práticos que estarão na base das fórmulas teóricas dos maximalistas, dos anarquistas e dos anarco-sindicalistas, como vamos já verificar.
Deve contudo dizer-se que houve uma grande confusão teórica e prática na actividade dos maximalistas. A questão fundamental consistia contudo no reconhecimento da necessidade de uma organização capaz de concentrar os produtores; pesava sobre os maximalistas a sombra do partido bolchevique, que fora capaz de levar a cabo a revolução. Simultâneanente, os militantes portugueses eram forçados a reflectir sobre as condições em que fôra desencadeada a greve geral, e a dimensão da derrota, que não deixava ilusões a ninguém. Mas, insista-se, é evidente que o princípio do partido, só aparece como consequência dessa imensa derrota, cujas feridas eram já então, embora de modo pouco visível, incuráveis. Face à derrota, o proetariado sentiu-se obrigado a considerar os termos da operação, tanto mais que o campesinato precisara de oito anos para recuperar do fracasso de 1912. Por isso a ideia da «frente unida» havia de aparecer nas fórmulas teóricas dos maximalistas, que não hesitam em violentar a teoria para melhor assumir os problemas da prática.
Num artigo intitulado «Pelo bolchevismo», denuncia-se a situação de miséria profunda dos trabalhadores, que são convidados a afirmarem-se bolchevistas, por razões directamente ligadas a uma ideologia de combate: «afirmai-vos bolchevistas, nas ruas, na praça pública, na casa dos grandes e dos poderosos, diante das autoridades e dos potentados. Dizei que ser bolchevista é ser pelo pobre contra o rico, pela virtude contra o crime, pela democracia contra a aristocracia, pela liberdade contra a opressão, pelo fraco contra o forte. É querer que o trabalho seja recompensado, que a virtude seja honrada, que o parasita seja despojado do que usurpou indignamente; que uns não se banqueteiem lautamente e outros morram de fome; que uns habitem em palácios e outros se definhem em mansardas. É querer a abolição das castas e dos privilégios; é querer a genuína democracia, o governo do povo pelo povo; é querer a igualdade econórnica dos homens, como igual é o direito de viver. Levantai-vos camaradas» (139).
Citação voluntariamente extensa, e que nos permite ouvir uma voz diferente, que se separa das discussões académicas sobre o valor, para se interrogar sobre a situação das classes em Portugal. Todavia, os acentos proféticos não conseguem ocultar a fragilidade das bases teóricas, porquanto o texto é construído a partir de uma série de oposições dicotómicas, que pretendem traduzir a situação existente em Portugal. Ninguém se pode enganar, mesmo voluntariamente: os autores não sabem o que é o bolchevismo, a não ser que se trata de um partido que derrotara o velho poder do czar, da nobreza e dos capitalistas, arrancando-lhes o poder e arruinando-os para sempre. Há ainda, neste texto, um elemento miserabilista, que caracteriza o fundo do pensamento de Manuel Ribeiro e de muitos outros militantes socialistas portugueses, influenciados por Tolstoi. Contudo, e paece-me necessário insistir no facto, não há a mínima referência a Marx ou a Engels, se bem que, como já verificámos, Manuel Ribeiro conheça de maneira vaga alguns elementos essenciais das teses do marxismo.
Entrevê-se, é certo, a lição já antiga do Manifesto do Partido Comunista, e o conceito de ditadura do proletariado que se tornará central na elaboração teórica do proletariado português neste período - aparece invocado por Manuel Ribeiro: «esse ideal (dos trabalhadores) é a Revolução social concretizada na ditadura do proletariado, expressão política da nova fórmula governativa provisória, adoptada como uma solução irremediável a que não pode fugir-se (...). É doloroso mas é necessário. Todo o poder aos proletários, tal deve ser pois o lema inscrito na nossa bandeira, o grito de guerra das hostes vermelhas na hora suprema do grande arranco» (140). Repare-se na enorme transformação que intervem nas formas e nas fórmulas do discurso: enquanto os pensadores da burguesia possedente se interrogavam interminavelmente sobre as questões do valor, ou até da mais-valia, a classe operária prevê e anuncia a ditadura do proletariado. Não sem hesitações, como transparece na fórmula utilizada: «é doloroso mas é necessário», mas com uma certa determinação, visto não haver outra solução. Manuel Ribeiro, mau grado a sua prática pequeno-burguesa, aparece como um pensador ligado ao proletariado, e isso o separa de maneira radical dos pensadores que temos sido obrigados a considerar de perto, emanações indiscretas da burguesia.
Este facto devia ter obrigado a estudar de perto a maneira como se processa o aparecimento desta opção bolchevista, mas como Manuel Ribeiro se converteu ao catolicismo antes de pactuar com a ditadura fascista, caiu sobre ele o anátema absurdo; e se não desapareceu inteiramente da história literária, a verdade e que foi eliminado da historia política. O que não quer dizer que Manuel Ribeiro, ou o seu grupo, tenha manifestado uma grande coerência; mas tal não os impediu de enunciar alguns problemas cruciais para o proletariado da época. De resto, convém reter o grande realismo dos maximalistas, que se manifesta na «Declaração de Princípios»: «considera-se (...) que todo o indivíduo que em Portugal se declara bolchevista é anarquista ou sindicalista revolucionário» (141), o que torna uma vez mais evidente a realidade portuguesa: em 1919 não havia comunistas em Portugal, e menos ainda bolchevistas, mas pura e simplesmente militantes anarquistas e sindicalistas revolucionários obrigados a contabilizar o fracasso da greve geral e o aumento da força repressiva da República liberal e parlamentar.
Trata-se sobretudo de uma lição de pragmatismo que devemos saudar com respeito, e não condenar de maneira apressada, como costumam fazer os historiadores ou os teóricos que não hesitam em dar lições ao passado. Os militantes maximalistas conheciam intimamente a situação da classe operária, eram quase todos operários, e não podiam pensar em criar um partido bolchevista com os bolchevistas que não havia. Por isso, retendo embora a fórmula do partido, onde transparece da maneira mais evidente a lição da União Soviética, mas possivelmente também da Itália, os dirigentes maximalistas utilizam os materiais disponíveis, que são de resto os únicos. Nenhuma necessidade de Marx ou de Engels, visto a prática portuguesa navegar noutras águas, mas o reconhecimento de uma realidade política que impunha soluções inéditas, sem ter em conta as considerações académicas dos teóricos da burguesia. Trata-se, parece-me, de uma das lições a retirar da prática dos maximalistas, e esta posição está a exigir uma análise sistemática e coerente, que decerto não tardará a aparecer (142).
Mau grado as afirmações de uma parte importante da classe operária, mau grado a capacidade de mobilização demonstrada pelos maximalistas, a verdade é que a Revolução de 1917 não foi sempre considerada a chave real das transformações inelutáveis das sociedades capitalistas e burguesas, sobretudo na Europa ocidental a que pertencemos. Na introdução à Ditadura do Proletariado, J. Carlos Rates procura analisar as condições, tanto objectivas como subjectivas, que abrem caminho à Revolução, depois de terem condenado as soluções políticas das democracias parlamentares. Ora constata-se que se a Revolução de 1917 é encarada com algum favor, ela não é descrita como sendo a mola fundamental da transformação.
Sem dúvida, escreve Rates, «o exemplo da Rússia serviu e serve de corajoso alento aos socialistas de todos os países», mas a subversão europeia, ou até mundial, não tem a sua razão de ser fundamental no «contágio dos sucessos moscovitas», pois a sua origem deve ser antes procurada no «desequilíbrio provocado pela gerra, o supérfluo de alguns feito pela miséria extrema de muitos», e determinando a «causa do triunfo da revolução» (143). Quer dizer que, fiel à tradição miserabilista do proletariado. português, J. Carlos Rates retém como elemento dinâmico, a extrema miséria a que fôra reduzida a classe operária, mau grado as acções levadas a cabo para arrancar ao patronato uma situação menos esmagadora.
Ora se Rates anuncia o fim do domínio capitalista no «campo da produção, da permuta e da distribuição», é para o substituir por um «regime transitório», ou seja uma ditadura exercida «por indivíduos indicados e nomeados pela CGT, por ser esta a maior força socialista organizada do país, mas aproveitando para as funções políticas os elementos valiosos de todos os agrupamentos socialistas» (144), e efectivamente em alguns decretos que deviam gerir futuramente a formação social portuguesa, J. Carlos Rates confia missões de confiança e de direcção a personagens cuja competência técnica parece indiscutível, mas cujas opções políticas eram pelo menos confusas, para não dizer pior, como no caso dos engenheiros Ezequiel de Campos e Cunha Leal.
Fazia eu referência aos decretos contidos em A Ditadura do Proletariado. Deixem-me explicar: na realidade este livro é constituido por um curto prefácio, e urna longa colecção de decretos, tocando em todos os sectores da vida portuguesa, que vão da organização da força pública, que cria a inevitável polícia política, neste caso o Comissariado de Vigilância Social e Força Pública, passando pelos muitos capítulos referentes à socialização - da propriedade agrária e da produção agrícola, da propriedade urbana e da produção da construção civil, dos bancos e estabelecimentos de crédito e cambiais, da indústria do seguro, dos transportes terrestres, dos transportes marítimos e de longo curso, das indústrias em geral - terminando nas «uniões sexuais», em que se decide abruptamente que «o fim supremo da união sexual, por motivo de simpatia mútua, é a perpetuação da espécie», numa grande fidelidade às regras anti-malthusianas. E J. Carlos Rates poderá afirmar que a solução única, monolítica, é a ditadura: «sou decididamente pela ditadura do proletariado» (145).
Acrescente-se porém que J. Carlos Rates será obrigado a corrigir a sua posição extremista, e o livro que consagrou a Rússia dos Sovietes, revela uma mais ampla compreensão das bases teóricas do marxismo, do comunismo e dos sovietes, depois de uma leitura atenta do resumo do Capital organizado por Gabriel Déville, e sobretudo do «Bosquejo do socialismo científico», deste mesmo autor, traduzido em português já em 1912, dois anos após a proclamação da República (146). O que não impede que Rates reste fiel a muitas concepções expostas na sua Ditadura do Proletariado, entre as quais avulta a ideia de vender as colónias, projecto que teria sido integrado no programa do Partido Comunista Português, sem a intervenção mais lúcida, ou oportunista, do delegado da 3.ª Internacional, Jules-Humbert Droz (147).
Tudo isto não impede que tenha sido J. Carlos Rates o primeiro militante a interrogar-se acerca das propostas teóricas de Karl Marx como ferramenta para o trabalho político, tendo em vista a revolução necessária, cujo corolário havia de ser a ditadura do proletariado, indispensável à reestruturação da formação social portuguesa, cujos males eram, uns seculares, outros provocados pelo capitalismo nascido com o liberalismo, outros ainda de origem mais recente, criados pela república burguesa e retrógrada. Note-se que entre os dois textos de J. Carlos Rates se constata uma valorização da revolução soviética, que desempenhava um papel importante mas secundário no texto de 1920, para aparecer como o eixo da situação no texto de 1925.
Mas entretanto, a própria revolução soviética, ao derrotar os vários exércitos brancos, impunha uma figura nova e assustadora. Sem querer sair do âmbito dos autores portugueses, mesmo se escrevendo em francês, e mesmo se editados em França, parece-me necessário recorrer a Homem Cristo Filho que exaltava o fascismo e o seu chefe carismático Benito Mussolini, capaz de assegurar a «paz» interna da Itália, graças à «extinção da luta de classes; à fusão obrigatória dos partidos em proveito do trabalho e, por consequência, da prosperidade» (148), ao mesmo tempo que denunciava a colisão entre os políticos e sobretudo os intelectuais, culpados de benevolência excessiva perante a revolução soviética. Se já era demasiado tarde para «aniquilar a ninhada de serpentes» soviética, Mussolini dera-se conta da situação e não pudera decidir-se, a admitir que «a nobre terra italiana se transformasse numa colónia russa». O discurso metafórico, delirantemente danunziano de Homem Cristo interessa-nos directamente, porquanto se integra na soma das afirmações excessivas que, na burguesia portuguesa, apresentavam e exigiam a ditadura como única solução para o caso português (149).
Não admira por isso que a obra de Karl Marx tivesse voltado a cair em desuso, a ponto de não encontrarmos nem comentários, nem glosas, nem críticas durante este período dos anos 1920. A primeira biografia de Karl Marx aparecerá precisamente em 1930, e é sobretudo reveladora dos nossos hábitos intelectuais, facilmente arrastados pelo prazer algo delirante do anátema.
Não creio exagerar ao condenar de forma tão radical o trabalho de Emílio Costa, embora haja pontos extremamente interessantes nas páginas que precedem a reflexão sobre Marx; que começa praticamente por uma pergunta: qual a razão que provocara um interesse súbito e profundo e contínuo pela obra de Karl Marx? Tal interesse devia-se «principalmente à revolução russa», o que nos separa de J. Carlos Rates (150). No caso do tecido político português, Emílio Costa nota que, antes da primeira grande guerra, as forças socialistas se agrupavam em três tendências: «socialistas de Estado, libertários e sindicalistas», estando estes subdivididos em dois grupos, um dos quais se irmanava «ideologicamente com os socialistas de Estado», enquanto o outro se identificava com «os libertários, os únicos que, na linguagem corrente, eram designados por sindicalistas». Trata-se de um ponto de vista interessante, tanto mais que é avançado por um militante experimentado, que os anarquistas sempre consideraram um dos seus porta-vozes.
Ora é o mesmo Emilio Costa que salienta a importância da transformação verificada após a Grande Guerra de 1914-1918, que atingiu sobretudo as tendências dos libertários e dos sindicalistas. Foram os militantes oriundos destes dois grupos que deram origem a uma nova tendência, «a dos socialistas de Estado, de orientação revolucionária, moldada no molde bolchevique e que tem hoje, por toda a parte, uma designação corrente, a de comunistas» (151). Estes dados não contradizem de maneira alguma o que fôramos avançando, sugerindo ou afirmando ao longo deste estudo, embora possam introduzir matizes a que não podemos ficar indiferentes, dada a autoridade da testemunha, mesmo se ela não renuncia, nem renunciará, à ideologia anarquista que era a sua, que sempre fôra a sua.
Ora queria relevar uma leve contradição neste discurso de Emílio Costa, que, por um lado afirma caber ao partido socialista a responsabilidade do desconhecimento de Karl Marx, enquanto pelo outro estabelece um inventário das condições objectivas que contribuíam para a impossibilidade de divulgar o pensamento de Karl Marx e dos marxistas.
Comecemos pela condenação, embora esta venha em segundo lugar na economia do texto de Emílio Costa. Afirma ele que durante dezenas de anos, «o partido socialista, o único agrupamento que se dizia partidário do marxismo, pouco ou quase nada fez para difundir nas massas, para divulgar a respectiva doutrina». Ao invés os comunistas «recém-chegados» não hesitaram em recorrer à doutrina marxista «como base de propaganda do seu objectivo: a conquista do poder, para a instauração da revolução social pela ditadura do proletariado» (152).
Creio que Emílio Costa exagera, pois já constatámos, que não houvera o mínimo esforço para tornar acessível a divulgação das teorias de Karl Marx, tanto mais que o princípio da «ditadura do proletariado» derivava mais directamente da experiência italiana de Turim, com os conselhos de fábricas, e da revolução soviética, com os sovietes, do que de uma interpretação do trabalho teórico de Karl Marx.
Por isso me parece mais sólido o inventário das «razões para o desconhecimento de Karl Marx», em número de cinco: a) a dificuldade dos assuntos tratados; b) o Capital e as outras obras de Marx possuem as qualidades e os defeitos de muitos escritores científicos alemães: «é pesado, maciço, abstracto, com a minúcia fatigante levada ao extremo»; c) existe portanto, inerente, a dificuldade «em a resumir de forma clara»; d) dificuldade reforçada pela «extrema ignorância da população do último quartel do século passado» e pela «quase inexistência dum proletariado fabril, que é o melhor terreno para a propaganda socialista»; e) a tudo isto deve acrescentar-se a «nossa maneira de ser de individualistas», que contribui para a «predilecção bem acentuada entre os propagandistas e a massa dos trabalhadores, pela orientação oposta à do marxismo: a do socialismo libertário» (153).
Prefiro deixar a Emílio Costa a responsabilidade deste inventário, tanto mais que ele aceita de bom grado, justificando-a, a separação existente entre a mentalidade dos «marxistas», mais ponderada e mais informada, e a dos «socialistas libertários», visceralmente mais espontaneístas, e incapazes de uma organização assentando num sólido inventário da realidade. Não é contudo possível passar esta afirmação sob silêncio, porquanto um certo número de historiadores se tem elevado contra esta maneira de ver, que seria não só simplista, mas completamente falsa. Mas neste caso, ou somos obrigados a incluir Emílio Costa na infinita lista dos racistas anti-proletariado, esquecendo a sua acção de militante, ou consideramos esta acção, e teremos então de nos interrogar quanto ao fundo real da questão, mais prática do que teórica, assim abertamente levantada e respondida (154).
O que não impede Emílio Costa de condenar da maneira mais brutal o pensamento de Karl Marx e dos marxistas em geral, a ponto de poder escrever sem a menor tibieza um parágrafo deveras singular, pois me pareceria mais lógico que Emílio Costa tivesse renunciado a escrever a biografia de Marx: «se depois do que fica dito (o inventário das dificuldades de leitura que existiriam na obra de Marx), o leitor tem desejos de ler a obra de Marx, leia-a se dispõe de tempo para dar e vender, ou de muita paciência e se não é sujeito a tonturas e está disposto a ficar, no fim, pouco mais ou menos na mesma» (155). Atitude singular, que se pode compreender da parte do militante anarco-sindicalista que não podia de modo algum aderir ao representante da corrente «autoritária» do socialismo comunista, mas que exigia mais coerência, que neste caso teria sido a renúncia a um ataque tão directo e negativo.
De resto, os «trechos escolhidos», que ocupam apenas trinta e cinco páginas do livro (pp. 203-238), não revelam um grande entusiasmo nem, acrescentarei, um grande conhecimento da obra de Karl Marx, e a ocultação de informações sobre as questões referentes ao valor e à mais-valia, é reveladora. Na realidade Emílio Costa quase se limita aos fragmentos que se referem à 1.ª Internacional, ou às revoluções operárias. Conta-se assim um excerpto do Manifesto Comunista, acompanhado por dois outros do Primeiro Manifesto e dos Estatutos da A.I.T.; segue-se um trecho sobre o Materialismo histórico, extraído da Crítica da economia política, depois um outro sobre a Comuna de 1871, reforçado por um segundo referente à ditadura do proletariado, que é na realidade um extracto do prefácio de Engels e enfim um trecho sobre «o que é a religião», extraído da crítica à filosofia do direito de Hegel. A tudo isto é acrescentado um «Karl Marx íntimo», que é na realidade de autoria de Paul Lafargue, um dos genros cordialmente detestados de Marx.
Creio bem que se pode dizer que se trata de uma situação simbólica e grave. Quatro anos após a proclamação da ditadura militar e fascista, a porta fecha-se em Portugal sobre a obra de Marx não por obra e graça da ditadura, mas pela mão firme e pesada de um militante anarco-sindicalista, cuja devoção à causa sempre fôra sem limites. Conclusão que há-de perturbar-nos, pois nos mostra com uma alucinante clareza a que ponto os militantes se podiam enganar de adversário, o que explica as razões de muitos fracassos dos anos a vir.
Paris, Valença do Minho, Lisboa, Madrid, Paris. Outubro-Dezembro de 1974.
Paris, Amiens. Maio-Julho de 1975.
(*) Alfredo Margarido (1928-2010) é um dos pensadores mais lúcidos, independentes e heterodoxos do século XX português. Foi pintor, escultor, poeta, romancista, ensaísta, crítico literário, filósofo, tradutor, historiador, jornalista, publicista, editor, antropólogo, agrónomo, botânico, politólogo, matemático, sociólogo, professor universitário. A sua intervenção intelectual seria sobretudo marcante na sociologia da literatura e nos estudos africanos. Natural de Moimenta, no concelho de Vinhais, estudou na Escola de Belas Artes do Porto tendo-se fixado em África nos anos 1950, aí formando a sua consciência radicalmente anti-colonialista. Expulso de Angola pelo governador-geral português de turno, instala-se em Paris em 1964 com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, ligando-se aos meios intelectuais da extrema-esquerda. Fundou e dirigiu a revista Cadernos de Circunstância (1967-1970), com Manuel Villaverde Cabral, João Freire, Jorge Valadas e Fernando Medeiros, entre outros. Estas folhas policopiadas a partir do exílio conquistaram um lugar própria na história da oposição ao fascismo tardio português, com o seu rigor empírico enformado por um marxismo libertário e autonomista. Tem colaboração dispersa em diversas publicações francesas, italianas, inglesas, norte-americanas e brasileiras, sobretudo nos campos da história e da antropologia. De entre os periódicos portugueses em que colaborou, contam-se Árvore, Cadernos do Meio-Dia, Jornal do Fundão, Jornal de Letras, 57, Pirâmide, Persona ou Colóquio/Letras. Tocado pela experiência estética surrealista, foi ainda introdutor em Portugal da técnica do “nouveau roman”. Em França, lecionou nas Universidades de Paris I, Paris II, Paris VII, Paris VIII, na Universidade Júlio Verne e no Institut d'Art, ambas em Amiens. No Brasil, ensinou nas Universidades de S. Paulo (USP), Campinas (Unicamp), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade da Paraíba do Sul (João Pessoa). De entre as suas obras ensaísticas em volume, destaquemos Teixeira de Pascoaes - A Obra e o Homem (1961), Jean-Paul Sartre (1965), La pensée politique de Fernando Pessoa (1971), Estudos sobre Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa (1980), Plantas e conhecimento do mundo nos séculos XV e XVI (1986), A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses (2000). O presente ensaio começou por ser um prefácio à sua tradução do resumo de O Capital da autoria de Gabriel Déville (Guimarães & C.ª Editores, Lisboa, 1975), mas evoluiu para se tornar o mais completo e problematizador estudo que existe, ainda hoje, sobre a receção em Portugal das ideias de Karl Marx, na monarquia constitucional e I República. Foi publicado autonomamente pela mesma Guimarães & C.ª Editores, nesse mesmo ano de brasa, em agosto de 1975.
______________ NOTAS:
(1) Louis Althusser, Théorie, pratique théorique et formation théorique. Idéologie et lutte idéologique, texto copiografado, Paris, 20 de Abril de 1965.
(2) Lucien Goldmann, «Révolution et bureaucratie» in Sociologie et révolution, Colloque de Cabris du 18 au 28 juillet 1970, Paris, 10/18, Union Générale d'Editions, 1974, p. 141.
(3) ibidem.
(4) Para medir a importância dos anarquistas e dos socialistas na introdução, na explicação e na divulgação dos princípios marxistas em Itália, basta ler a correspondência trocada entre Marx, Engels e os italianos. V. Marx e Engels, Corrispondeza con italiani, Giuseppe del Bo, ed., Milano; Feltrinelli Editore, Agosto 1964. Agradeço a Robert Paris o ter-me assinalado a importância desta colecção na. perspectiva que é a minha.
(5) César Oliveira, A Criação da União Operária Nacional, Porto, edição do Autor, 1973, pp. 15-16.
(6) As duas cartas foram publicadas na correpondência já citada, p. 178. Na carta dirigida por Karl Marx a Carlo Cafiero foram eliminadas as palavras entre parênteses. O editor italiano observa que não tem notícia da edição em servo, e só posso confirmar a sua informação. Existe apenas a tradução do extracto do capítulo VII Sta je te radenicki dan,po Karlu Marsku, Das Kapital, publicado em Radnik, Belgrado, n.os 26-35, de 8 a 31 de Março de 1872. No que diz respeito à edição inglesa publicada nos Estados Unidos, trata-se muito provavelmente dos Extracts from the Kapital of Karl Marx. Transtated by Otto Weydemeyer. É a tradução parcial de Kapital und Arbeit. Ein populärer Auszug «Das Kapital» von Karl Marx, von Johnn Most, Zweite Verbesserte Auflage, Chemnitz, 1875, 60 pp., publicada nos Estados Unidos por F. A. Sorge, New Jersey 1877, 47 pp..
(7) Pasquale Martignetti, 1844-1920, socialista, de Benevento, primeiro divulgador do marxismo em Itália, tradutor «fiel e escrupuloso» de Marx e de Engels, colaborador da imprensa socialista: La plebe, Critica Sociale, etc.. Filho de comerciantes modestos, autodidacta, escriturário, sempre a contas com dificuldades económicas provocadas pela sua actividade política, deu uma contribuição importantíssima à difusão dos textos clássicos da literatura marxista. Não sem ter sido objecto de alguns comentários irónicos de Labriola, que encarregado por Engels de rever os manuscritos de Martignetti, não hesitou em salientar apenas os defeitos do tradutor, o que não era confirmado por Engels que sempre elogiou a fidelidade destas traduções.
(8) O 2 de Dezembro foi um golpe de Napoleão III para recuperar o poder absoluto; o plebiscito organizado pelo Imperador confirmou este poder, mas foi precedido pela proscrição da oposição.
(9) Claude Willard, Le mouvement socialiste en France (1893-1905), Les Guesdistes, Paris, Editions Sociales, 1965, p. 25.
(10) Antonio Labriola, Socialisme et philosophie (Lettres à G. Sorel), Paris, V. Giard & E. Briere, 1899, p. 16. Labriola, 1843-1904, filósofo italiano que adoptou o marxismo por volta de 1880, tendo-se esforçado por difundir o pensamento marxista em Itália.
(11) Correspondance Marx-Engels. Lettres sur le «Capital» presentées et annotées par Gilbert Badia, Paris, Editions Sociales, 1965.
(12) «Fez o melhor que podia na redacção do seu resumo e foi encorajado a fazer este trabalho pelo próprio Papá», carta de Laura Lafargue datada de Paris, 18 de Julho de 1885. Friedrich Engels, Paul et Laura Lafargue, Correspondance, tome I, 1868-1886, Paris, Editions Sociales, 1956, p. 301-302.
(13) Carl Hirsh, 1841-1900, jornalista alemão, membro da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (Allgemeinen Deutschen Arbeitervereins).
(14) A expressão é intraduzível e refere-se aos participantes da Comuna em 1871, tanto da Comuna de Paris, como das Comunas da província.
(15) Maurice Block, 1816-1901, economista e estatístico francês, membro da Academie des Sciences morales et politiques.
(16) Emile Louis de Laveleye, 1822-1892, economista belga da escola liberal.
(17) As duas cartas, escritas originalmente em francês, estão publicadas em Karl Marx und Friedrich Engels, Werke, Berlin, Institut Für Marxismus-Leninismus Beim ZK Der Sed, a primeira no volume 34, 1966, pp. 248-249; a segunda no volume 36, 1967, p. 48. Não tendo sido possível encontrar o original, a tradução do alemão, feita por Carlos da Fonseca, a quem agradeço, pode apresentar variações de pormenor, que não devem ser contudo graves, nem prejudicar a inteligibilidade.
(18) Henri Mayer, «A propos d'une bibliographie de Karl Marx», Les Temps Modernes, Novembro de 1957, pp. 935-951.
(19) Numerosos passos o confirmam na correspondência publicada até agora.
(20) Carta de F. Engels a Laura Lafargue, ob. cit., pp. 145-147, original inglês e tradução francesa. Sigo, neste caso a lição do original inglês.
(21) Carta de F. Engels a Lavrov - Pietr Mavrovitch, 1823-1900, publicista russo, teórico dos Narodniki, «populistas», representando a «escola» subjectivista russa em sociologia. Redactor da Revista Vperiod (Para a frente), editada em Zurique e em Londres. Lettres sur le Capital, ob. cit., pp. 331-332 (datada de 5 de Fevereiro de 1884).
(22) «Volto a abrir a carta para lhe dizer que acabo de receber a visita de Déville que já começou a trabalhar nos capítulos que lhe indicou», carta datada da prisão de Sainte Pélagie, 17 de Outubro de 1883, F. Engels, P. et L. Lafargue, ob. cit., p. 152.
(23) «Herr Déville hat mit nun eben auf mein Nachsuchen die alleinige Autorisation zur Übersetzung seines Auszuges ins Deutsche gegeben».
(24) «O mouro», epíteto afectuoso dado a Marx por Engels.
(25) Longa carta de Engels a Laura Lafargue, datada de Londres, 17 de Janeiro de 1886, ob. cit., pp. 332-335.
(26) Cf. Élie Halevy, Histoire du socialisme européen, Paris, Gallimard/Idées, 1974, pp. 104-113.
(27) Carta de Marx a Engels, de 20 de Julho de 1870.
(28) Problema que nem sempre tem sido suficientemente analisado, mas que pode explicar o sentido de numerosas querelas internas das internacionais.
(29) Encontrei apenas uma edição posterior de 1945, em língua castelhana: El Capital, resumido por Gabriel Déville. Versión castellana de Luis Bertrán Contrera, Buenos Aires, Editorial Claridade, 1946.
(30) Filippo Turati, Canzo, 1857 - Paris 1932. Polemista eficaz e coerente, desde os seus primeiros escritos (Il delitto e Ia questione sociale, Lo stato delinquente, 1883). Em 1891, em colaboração com A. Kulisciof, transformou a revista social Cuore e critica, em Critica Sociale, onde se uniram eficazmente as fracções intelectuais avançadas da burguesia ao movimento operário. Em 1892, fundou, com outros amigos, em Génova, o Partito dei lavoratori italiani (Partido Socialistta Italiano), que abandonou em 1922 para fundar o Partido Socialista Unitário. No exílio, em 1926, conseguiu, graças a uma plataforma elaborada com P. Nenni, restabelecer a unidade do Partido Socialista Italiano.
(31) A carta de Engels responde a uma primeira do italiano, anunciando-lhe a próxima publicação do Capital, «reduzido» por Dévilie, por um «excelente socialista» de Cremona, Ettore Guindani. V. Corrispondenza citada, pp. 480-483.
(32) Ibid., p. 484. Esta edição - v. nota 42 - provocou a reacção de um editor italiano, a Unione tipografico-editrice de Turim, que pretendia ter comprado aos herdeiros de Marx o direito de propriedade das suas obras. A resposta brutal de Engeis, de 20 de Julho de 1893, põe os pontos nos ii. pp. 493-495.
(33) Friedrich Theodor Cuno, 1847-1934, engenheiro alemão, colaborador de Engels. Obrigado a abandonar a Alemanha, onde tivera já Icontactos com Liebknecht e BebeI, por razões políticas, refugiou-se primeiro na Áustria e depois em Itália. Tendo-se instalado em Milão, entrou em contacto com iEngeís em carta datada de 1 de Novembro de 1871, e fundou pouco depois a secção local da Internacional. Expulso da Itála em 1872, instalou-se na Bélgica, tendo mais tarde de emigrar para os Estados Unidos. Participou em 1872 no Congresso da Haia, e foi presidente da comissão que julgou Bakunine e a Aliança.
(34) «Die Italiäner müssen eben noch ein bisschen Erfahrunsgsschule durchmachen damit sie lernen dass ein so zurückgebliebnes Bauernvolk, wie sie, sich nur lächerlich macht, wenn es den Arbeitern der grossen Industrievölker vorschreiben will, we sie sich zu befreien haben», ob. cit., p. 217. Ser-me-á permitido acrescentar que, quando escreve em alemão, Engels é nitidamente mais brutal nos juízos sobre os povos europeus não anglo-saxões?
(35) Le Capital de Karl Marx, résumé et accompagné d'un Aperçu sur le socialisme scientifique par Gabriel Dévilie, Paris, H. Oriol, s. d. (1883). As datas indicadas seguem as indicações manuscritas de Déville, nos exemplares que lhe pertencem e estão à consulta na Biblioteca Nacional de Paris. Escreveu ele que, «no que diz respeito à data de publicação, e ao número de edições, não existe nenhuma indicação salvo o anúncio do meu volume publicado em 1919». Indicação manuscrita, num volume sem data (1919, portanto).
(36) Id., Paris, C. Marpon et E. Flammarion, s. d. (1887).
(37) Id., Paris, E. Flammarion, s. d. (1897), com um Post-Scriptum onde Gabriel Déville explica as razões que o levaram a renunciar à necessidade do recurso à violência.
(38) Palavra ilegível; a escrita de G. Déville, já um tanto idoso, não é fácil de decifrar.
(39) Nova palavra ilegível.
(40) Repare-se que a última reedição deste resumo data de 1935, na véspera do Front Populaire, e não parece ter sido reeditado em francês, apesar do grande interesse suscitado pela obra de Marx no imediato após-guerra.
(41) El Capital, resumido y acompañado de un estudio sobre el socialismo por Gabriel Déville, Madrid, Fernando Fé, 1887.
(42) Il Capitale, riassunto de Gabriel Déville e preceduto da Brevi cenni sul socialismo scientifico. 1.ª traduzione italiana (di Ettore Guidanai) autorizata dall'autore, Cremona, «L'eco del popolo», 1893.
(43) The people's Marx; a popular epitome of Karl Marx's Capital, by Gabriel Déville, in to english by Robert Rives La Monte, New York, The International Library Publishing Co., 1900.
(44) Duas traduções em russo, Varna, 1900, e em Genebra, destinada à Ucrânia, também em 1900, mas mais provavelmente em 1901.
(45) Editado por Guimarães Editores, numa tradução discutível de Emília.
(46) Como escreve o próprio Engels: «serás capaz de me mandar o mais rapidamente possível outro exemplar do Capital de Déville?», carta a Laura Lafargue, datada de Londres, 5 de Fevereiro de 1884, ob. cit., p. 165-168.
(47) Não pude encontrar as indicações bibliográficas deste resumo nas bibliotecas de Paris e naturalmente ele não existe na Biblioteca Nacional de Lisboa. Contudo, Maximilien Rubel fornece informações muito precisas quanto às condições da sua realização: «em 1875, Marx ajuda Johann Most (o fututro anarquista) na organização do pequeno resumo do Capital e trabalha na tradução francesa de J. Roy, que será acabada no mesmo ano». M. Rubel, Bibliographie des oeuvres de Karl Marx. En appendice: Réportoire des oeuvres de Friedrich Engels, Paris, Marcel Rivière & Cie., 1956, p. 20. J. Most, 1846-1906, socialista, que pasou mais tarde ao anarquismo.
(48) Edição italiana em Milano, na Biblioteca Socialista, volume V, 1879.
(49) Abrégé du «Capital» de Karl Marx, par Carlo Cafiero, traduit en français par James Guillaume, Paris P.-V. Stock, 1910. Acrescente-se que o resumo de Cafiero não conheceu a popularidade do resumo organizado por Déville, mesmo se, recentissimamente, Daniel Lindenberg afirma o contrário: «comecemos pelos anarquistas, esses inimigos por excelência do «marxismo autoritário». Um deles, o italiano Cafiero, é autor, de um Resumo do Capital, muito divulgado e muito superior ao de Déville», Le Marxisme introuvable, Paris, Calman-Lévy, 1975, p. 93. Trata-se de uma afirmação sem suporte, puramente gratuita, e que só se explica porque Daniel Lindenberg quer acusar o Parti Ouvrier Français de não ter feito o que seria conveniente e necessário para assegurar a divulgação do marxismo. Mas o juízo de Marx, reforçado pelo de Engels, parece-me mais representativo, neste caso particular.
(50) Também não pude encontrar as referências bibliográficas deste resumo. F. D. Nieuwenhuis, 1846-1919, socialista holandês, que se converteu ao anarquismo, como havia feito Most.
(51) Karl Marx ökonomische Lehren, 1887.
(52) Karl Marx. Le Capital, extraits faits par M. Paul Lafargue. Introduction de Vilfredo Pareto, Paris, Guillaumim, 1894. A introdução é um ataque em regra ao pensamento de Karl Marx, que de resto inspirará muitos pensadores da «direita».
(53) Paul Descamps, Le Portugal. La vie sociale actuelle, Paris, Firmin-Didot et Cie., Editeurs, 1935. Isto apesar da fotografia meditativa do prof. Oliveira Salazar que abre o livro... Note-se que apesar da rápida penetração do capitalismo no campo português sobretudo após as guerras liberais, uma parte importante da sua actividade escapou durante muito tempo aos mecanismos que determinam as operações de outras instituições económicas. Ver a este respeito algumas observações argutas de Bazílio Telles, in Estudos Históricos e Económicos, II, Porto, Livraria Chardron 1901, p. 144. Mas consultar também Boguslaw Galeski, Basic concepts of rural sociology, Manchester, Manchester University Press, 1972, sobretudo p. 152-153.
(54) Emílio Costa, Karl Marx, Lisboa, Livraria Peninsular Editora, 1930, p. 21-22. Emílio (Martins) Costa, Portalegre 1877- …. ), diplomado com o Curso Superior de Letras, foi um dos militantes mais activos na divulgação da cultura, e foi chefe dos serviços escolares da Voz do Operário. Colaborou num grande número de jornais e revistas, e publicou um número assaz importante de textos doutrinários ou de divulgação.
(55) 18 Brumario, 1.ª edição, Nova Iorque, 1852, p. 60; cito de acordo com Henry Meyer, ob. Cit..
(56) Alberto Machado da Rosa, «O Socialismo em Portugal há um século. (A fundação da Internacional)», Seara Nova, n.º 1503, Novembro de 1970.
(57) Mesmo que esta observação possa desagradar a Joaquim Barradas de Carvalho, que, em Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico?, Lisboa, Livros Horizonte, 1974, ainda se permite duvidar desta evidência. Pertencemos geograficamente à Europa, enquanto por outro lado as nossas práticas agrícolas são intrinsecamente mediterrânicas, como salientam os agrónomos e os geógrafos: «Portugal é mediterrâneo por natureza, atlântico por posição» (Pequito Rebelo, A Terra portuguesa, Lisboa, 1929, p. 25), confirmado por Orlando Ribeiro: «os traços essenciais da agricultura portuguesa têm o cunho do Mediterrâneo: o predomínio dos cereais, entre estes o trigo e o milho, a importância das culturas arbustivas e arbóreas, a extensão das áreas de regadio e a preponderância do gado miúdo» - Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa, Sá da Costa, 1967 (3.ª edição, 1.ª edição 1945), p. 61. Sobretudo, a nossa integração antropológica e económica foi confirmada e reforçada por mais de um milhão de trabalhadores que a nossa economia, e a nossa estrutura política, forçaram a entrar no duro caminho da emigração. Acrescentarei ainda que a escolha do Atlântico, ou antes a recusa da Europa, parece responder a um movimento de receio, ou mesmo de pânico, perante uma Europa mais desenvolvida materialmente e demograficamente absorvente. Creio porém ter chegado o momento de nos desembaraçarmos dos múltiplos complexos de inferioridade face a uma Europa que nos tem fornecido os modelos da organização social, sejam quais forem as analogias com os países tropicais invocadas pelos defensores do Atlântico. Convém contudo salientar que a interrogação de Barradas de Carvalho traduz uma inquietação pertinente, de denúncia mais implícita do que explícita da barbárie das grandes metrópoles, que esmagaram a «convivialidade» para recorrer à expressão já clássica de Ivan Illitch. Deve reter-se a carga utópica do projecto, mas não basta querer virar as costas à Europa para a afastarmos da nossa prática mais íntima e mais quotidiana. Uma prova complementar e não dispicienda da completa integração de Portugal na Europa, encontra-se nas relações económicas entre Portugal e a Europa, por um lado, e Portugal e os países não europeus, pelo outro. Se considerarmos apenas os anos recentíssimos de 1973 e 1974, constatamos que as exportações, para as antigas colónias foram de 15 e 11 % respectivamente, enquanto as importações foram de 10% nos dois anos considerados. As exportações para os países estrangeiros atingiram entretanto 85 % - sendo 66% para a Europa - e 89% - dos quais 66% para a Europa -, enquanto as importações dos países estrangeiros somaram 90 % nestes dois anos, variando as importações da Europa de 65% para 60%. Será possível transformar radicalmente estas correntes comerciais, para nos integrarmos no Atlântico Sul? Basta acrescentar que as exportações para a América - ou seja o continente americano na sua totalidade - representaram, em 1973, 14% e em 1974, 15%, sendo as importações, em 1973, de 14% e em 1975, de 15 %, ou seja uma percentagem relativamente pouco importante. A lição parece simples, e nem valeria a pena repisá-la, se não vivêssemos num momento em que a ideologia substitui a reflexão e a consideração da nossa realidade específica.
(58) Ver o meu artigo «As relações de clientela na burocracia portuguesa», Cadernos de Circunstância, n.° 1, 1967, p. 7-29; e também o artigo «Elementos para uma análise das Forças Armadas», no n.° 4/5, p. 70-78, número de redacção colectiva, a cargo de Alberto Melo, Alfredo Margarido, Aquiles de Oliveira, Fernando Medeiros, Jorge Valadas, José R. dos Santos e M. Vilaverde Cabral.
(59) Esta resolução acentua os dois elementos fundamentais da acção do proletariado: luta económica e política para impor as reformas sociais no seio da ordem estabelecida, sem renunciar ao sufrágio universal ou às leis sociais; e conquista, legal ou violenta do poder político, seguida da aplicação das medidas de transição indispensáveis à mutação do modo de produção capitalista, ou burguês. O que implicaria, num prazo mais ou menos curto, a ditadura do proletariado, como de resto o sentiram perfeitamente os militantes reunidos na Federação Maximalista Portuguesa, de que falaremos mais adiante.
(60) Oliveira Martins, Dispersos. Artigos políticos, económicos, filosóficos, históricos e críticos, seleccionados, prefaciados e anotados por António Sérgio e Faria de Vasconcelos, Lisboa, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1923, tomo I, p. 221.
(61) António de Moraes Silva, Diccionário da língua portugueza, (8.ª edição), Rio de Janeiro, Empreza Litterária Fluminense, 1891.
(62) Misère de Ia philosophie, Paris, Edição 10/18, 1964, p. 489.
(63) Alexandre Vieira, Em volta da minha profissão. Subsídios para a história do movimento operário do Portugal continental, Lisboa, Edição do Autor, 1950, p. 39-41.
(64) Ibid., p. 37.
(65) Amorim Viana não condena o capitalismo, mas, insisto, o «capitalista ocioso», que é também perigoso para o próprio capital. Contudo, a solução há-de vir do povo, e da sua capacidade de organização: «associe-se, proclame-se livre e todos esses males se converterão em bens. Haja creches, haja caixas económicas, mas regidas por pessoas eleitas de entre o povo, pagas por ele, servindo temporariamente; nada de presidências, de chefes, de incenso e de adulação (...). Assim se formaria a sociedade, não fundada no privilégio, mas na associação igualitária e legítima, modelada pelo falanstério ou oficina de trabalho desde a creche e a escola de primeiras letras até o gerente e administrador», Pedro de Amorim Viana, «Análise das contradições económicas de Proudhon». A Península, 1852 e 1853, in Petrus, Proudhon e a Cultura Portuguesa, Porto, Editorial Cultura, 1961-1965, p. 1-96. Repare-se que se trata de reformas e de instituições que não põem em causa o aparelho de Estado, cuja modificação não é jamais encarada como o único caminho, e menos ainda radical.
(66) Victor de Sá, Perspectivas do Século XIX, Lisboa, Portugália, 1964.
(67) Ob. cit., p. 93.
(68) Ibid., p. 89.
(69) Oliveira Pinto, «Proudhon e a Economia Política.», O Instituto, de acordo com a reedição de Petrus, ob. cit., p. 97-134, p. 132.
(70) Ibidem.
(71) José Júlio de Oliveira Pinto Moreira, licenciado em direito, deputado, Barqueiros, 1830 - Lisboa, 1868.
(72) Batalha Reis, conferência intitulada «O socialismo», que devia analisar as ideias de Proudhon, Marx e Engels.
(73) José Fontana, relojoeiro, encadernador, depois gerente da Bertrand, 1840-1876.
(74) José Carrilho Videira, livreiro, proprietário da Livraria Internacional, na rua do Arsenal, n.º 96, 1845-1905.
(75) Antero Tarquíneo de Quental, 1842-1891.
(76) Eduardo Maia, médico (?-1897).
(77) José Correia Nobre França, tipógrafo, 1832-1920.
(78) Carlos da Fonseca, A origem da 1.ª Internacional em Lisboa, Lisboa, Editorial Estampa, 1973, p. 65-66.
(79) Eça de Queiroz, Notas contemporâneas, Porto, Lello, 1927 (5.ª edição), p. 348-349.
(80) Diário Popular, Lisboa, Março de 1873.
(81) Maximilien Rubel, «Remarques sur le concept de parti prolétarien chez Marx», Revue française de sociologie, n.º 3, julho-setembro 1961, p. 166-176.
(82) J. P. de Oliveira Martins, Portugal e o Socialismo. Exame constitucional da sociedade portuguesa e a sua organização pelo socialismo (1873), Lisboa, Guimarães Editores, 1953, p. 45.
(83) Oliveira Martins, A Inglaterra de hoje, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1893, p. 169.
(84) Ibid., p. 170.
(85) Afonso Costa, A Igreja e a questão social, Análise crítica da encíclica pontifícia «De conditione Opificum» de 15 de Maio de 1891, Coimbra, Tipografia da Livraria Portuguesa e Estrangeira, 1895, p. 68.
(86) António Sérgio prefácio a Teoria do Socialismo. Evolução política e económica das sociedades na Europa (1873), Lisboa, Guimarães Editores, 1952, p. XVI.
(87) Portugal e o Socialismo, p. 46.
(88) A correspondência trocada entre Engels, Marx, as Federações Espanholas, a Federação do Jura, etc., dirigida a José Fontana, Nobre França e ao jornal O Pensamento Social, pode considerar-se perdida, visto Nobre França, receando as perseguições políticas, ter destruído os seus arquivos, como o fizeram muitos outros militantes, pelas mesmíssimas razões. O Protesto, 12 de janeiro de 1930.
(89) Note-se que as edições ulteriores são muito mais tardias e saem praticamente do âmbito deste prefácio: em 1967 nas Edições Avante!, numa versão discutível, e depois numa edição da Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências Económicas e Financeiras de Lisboa.
(90) V. Carlos da Fonseca, ob. cit., loc. cit., que, de passagem, enuncia uma questão importante: a maneira como se tem querido associar o aliancismo ao atraso industrial, enquanto o marxismo caracterizaria as nações desenvolvidas. Sem querer entrar na discussão, de resto demasiado importante para ser resolvida numa nota, parece-me que a recusa de um laço entre as posições teóricas e a situação prática do proletariado e do campesinato, pode arrastar a um maniqueísmo do mesmo tipo que aquele que se denuncia. Na verdade, há componentes demográficas que impõem urna alteração profunda das estruturas que pode levar a adoptar não uma ou outra das posições, mas também situações intermédias, que devemos salientar, dado que mostram a extraordinária flexibilidade das formações sociais na busca de soluções políticas autónomas e originais.
(91) José Frederico Laranjo, «Origem do Socialismo», Conferência recitada no Instituto de Coimbra em 7 de Novembro de 1874, O Instituto, vol. XX, n.° 7-12, p. 57-72.
(92) José Frederico Laranjo, advogado e professor, Castelo de Vide, 20 de Dezembro de 1846 - Lisboa, 2 de Janeiro de 1910. Lente na Faculdade de Direito de Coimbra em Janeiro de 1878, deputado por Portalegre de 1878 a 1898, data em que foi nomeado par do reino, militou no Partido Progressista.
(93) Bruno, Notas do Exílio, Livraria Chaidron, 1893, p. 128-129: «Moroso e árido, o preciso e móbil espírito francês entendeu dever contraí-lo num resumo, conscienciosamente feito por G. Déville. Vulgarizou-se logo o hábil apanhado; por módicas quatro pesetas o vende em espanhol o prestante Fernando Fé, à carrera de S. Jerónimo».
(94) Auguste Bebel, 1840-1913, um dos fundadores do partido social-democrata alemão.
(95) «O primeiro chefe da tendência socialista na Alemanha foi Fernando Lassalle (1825-1884), filho de pais judeus» (ob. cit., p. 121); «como Lassalle, Marx é também de origem judaica, filho ou neto, não me ocorre, de um rabino» (ob. cit., p. 122). Teixeira Bastos, em A Crise - Livraria Internacional Ernesto Chardron, 1894, p. 8 - cita não só a France Juive - de Drumont, bíblia dos anti-semitas franceses, mas não hesita em denunciar a «judiaria»: «o predomínio da judiaria, como chamam à influência omnipotente dos banqueiros e dos milionários os modernos escritores franceses, trouxe uma profunda mudança política do nosso país». Acrescente-se um outro elemento que permite desconfiar da dimensão do iceberg: o texto sobre urna hipotética Invasão dos Judeus, de Mário Saa, s. l. n. d. [Lisboa, 1925].
(96) Duas passagens serão suficientes para o provar: «Déville reduziu, aclarou, alagou as notas, onde no texto primitivo se encontra tudo. Desde os acerbos estenderetes infligidos à falsa claridade do ingénuo sofista Bastiat, até aos mais impresumíveis informes sobre assuntos a que, só com versos latinos intraduzíveis, os fellare, os irrumare dos poetas da decadência, é lícito aludir» (ob. cit., p. 128-129). A segunda: «Entre nós, as doutrinas de Marx são quase desconhecidas e o livro fundamental do socialista presta-se dificilmente aos nossos entendimentos, pelo carácter aridamente abstracto que possui, agravado pela germânica falta de ordenação lógica das matérias» (ob. cit., p. 125).
(97) Ob. cit., p. 126.
(98) Ob. cit., p. 153.
(99) Ibidem.
(100) Já mostrei alhures - Cadernos de Circunstância, n.º 1 - que a «revolução» do 31 de Janeiro de 1891, se fizera sem a mais leve participação dos trabalhadores portuenses. Não porque eles fossem anti-republicanos, mas porque os «conspiradores» encaravam apenas o recurso ao putsh para resolver a questão política. Ora Bazílio Telles e Sampaio Bruno estiveram intimamente ligados à «revolução», como haviam de o estar também à chamada «revolução» de 5 de Outubro de 1910.
(101) Ob. cit., p. 145.
(102) Id., p. 146.
(103) Id., p. 154.
(104) Id., p. 155.
(105) Id., p. 157.
(106) Id., p. 163.
(107) Id., p. 161.
(108) Afonso Costa, ob. cit.. César de Paepe, 1842-1890, internacionalista belga, membro do Conselho geral belga da Internacional, um dos fundadores do Parti ouvrier belge. Teórico do colectivismo, fel colaborador da Tribune du Peuple e da Liberté de Bruxelas. Benoît Malon, 1841-1893, filho de trabalhadores agrícolas do Forez, pastor durante a sua juventude, tornou-se operário tintureiro e adquiriu uma vasta cultura. Dirigente da 1.ª Internacional, membro da Comuna, deputado, aderiu ao Partido de Brousse, depois de ter regressado do exílio, que abandonou para se transformar no teórico da Revue Socialiste, tendo publicado Le Socialisme Integral em 1890 (Paris, Félix Alcan, 1890, 2 vols.). Mau grado o recurso constante a este texto, a versão portuguesa só apareceu em 1899, O Socialismo Integral, em tradução de Heliodoro Salgado, Lisboa, Instituto Geral das Artes Gráficas e Typografia do «Dia», 2 vols., tendo sido precedido por A injustiça económica, em 1895.
(109) Afonso Costa, ob. cit., pp. 91-92.
(110) A. H. de Oliveira Marques - Afonso Costa, Lisboa, Arcádia, 1972 - sobrevalorizou a figura e a acção de Afonso Costa, deixando na sombra todos os aspectos negativos, ou sequer discutíveis da personagem, que não hesitou em reprimir a classe operária e o campesinato, e algumas vezes até uma parte da burguesia, com urna violência obstinada e sem tréguas. Basta consultar a imprensa portuguesa, e não só a imprensa operária, para nos darmos conta desta repressão, assim como do ódio que ela provocou no proletariado, que lhe deu a alcunha muitíssimo merecida de «racha-sindicalistas». Para quê, porquê, então, esta hagiografia, em vez da análise alheia aos preconceitos ou às amizades?
(111) Fortunato de Almeida, A questão social. Reflexões à dissertação inaugural do sr. dr. Afonso Costa, Coimbra, Typografia de F. França Ammado, 1895, pp. 6-67. A tradução que mais se aproximaria do texto do programa seria esta: «o trabalho é a origem da totalidade da riqueza e da totalidade da cultura, e como o trabalho útil só é possível na sociedade e pela sociedade, o produto do trabalho deve pertencer integralmente, por direito igual, a todos os membros da sociedade».
(112) Karl Marx & Fr. Engels, Critique des programmes socialistes de Gotha et d'Erfurt, com urna introdução de Bracke, Paris, Spartacus, 1947, p. 15.
(113) Fortunato de Almeida, ob. cit., p. 60.
(114) Ibid., p. 62-63.
(115) Silva Mendes, Socialismo literário ou anarquismo, Lisboa, 1896.
(116) Id., ob. cit., p. 169.
(117) Id., ob. cit., p. 228.
(118) A. A. Pires de Lima, «As doutrinas económicas de Karl Marx. Estudo expositivo e crítico», O Instituto, n.º 46 (10), outubro de 1899: p. 769-784; n.° 46 (10 bis), Outubro de 1899: p. 833-840; n.° 46 (11), Novembro de 1899: p 833-840; n.° 46 (11 bis), Novembro de 1899: p. 897-903; n.° 46 (11 bis), Novembro de 1899: p. 961-966; n.° 46 (12) Dezembro de 1899: p. 1025-1031; n.° 46 (12 bis), Dezembro de 1899: p. 1089-1097; n.° 47 (1), Janeiro de 1900: p. 2-11; n.° 47 (2), Fevereiro de 1900: p. 65-73. A.(ntónio) A.(ugusto) Pires de Lima, Areias, Santo Tirso 24-5-1880 - Santo Tirso, 24-11-1953, advogado e escritor, professor e reitor do Liceu Rodrigues de Freiras, no Porto, director-geral do ensino liceal e governador civil do Porto (1940-1945). Prudentemente, o ilustre reitor fez desaparecer da sua ficha bibliográfica esta incursão no «pensamentio» de Karl Marx, indicando como seu primeiro trabalho um ensaio sobre O Caracter científico da História, de 1904. Diga-se que o «marxismo» de Pires de Lima está na mesma linha do «socialismo» de Oliveira Martins: como se trata de exercícios académicos, nunca foram obstáculos intransponíveis para chegar ao poder, ou à sua caricatura.
(119) Karl Marx. Le Capital, extraits faits par M. Paul Lafargue. Introduction de Vilfredo Pareto, Paris, Guillaumin, 1894.
(120) A. A. Pires de Lima, ob. cit., n.° 46 (10), p. 774, nota 1.
(121) Ibid., n.° 46 (12) Dezembro de 1899: p. 1031, nota 1.
(122) Ibid., n.° 46 (12 bis) Dezembro de 1899, p. 1089-1090.
(123) Ibid., n.° 47 (1) Janeiro de 1900, pp. 5-6 e 7-8.
(124) Ibid., n.° 47 (2) Fevereiro de 1900; p. 73.
(125) Bazílio Telles, Estudos Históricos e Económicos, II, Porto, Livraria Chardron, 1901. A personalidade e a obra de Bazílio Telles ainda não foram estudadas com a atenção que merece uma das mais importantes figuras da propaganda republicana e da 1.ª República, quando mais não fosse para eliminar os falsos ouropeis com que é sistematicamente coberta. Para melhor compreensão das reservas que já muitas vezes enunciei, recomendarei a leitura do seu pequeno folheto, O Estudo dos Povos (Contra-projecto ao Pacto da Liga das Nações), Porto, Livraria Moderna, 1920, onde faz a defesa e algumas vezes até a apologia da escravatura: «a escravatura é compatível com o tratamento humano, e até complacente e generoso, do escravo»; e mais ainda: «são múltiplas as circunstâncias que a determinam e entretêm, como sejam o clima desfavorável aos naturais da nação escravatista, a natureza do trabalho (tal como é apreciada no conceito do senhor) que se relega para o escravo, a indolência, o vício, ou defeitos quaisquer inerentes, e prejudiciais à disciplina social, se não à saúde própria, ao tipo ou população humana escravizados» (p. 69). Não podendo mostrar a possível identidade destas afirmações de Bazílio Telles com urna parte não despicienda da ideologia da burguesia europeia, entalada entre Hegel e Gobineau, queria sobretudo salientar a identidade desta defesa da escravatura com alguns comentários no mesmo sentido avançados por Fernando Pessoa, que na sua convergência, confirmam o carácter fundamentalmente repressivo da ideologia da burguesia portuguesa neste primeiro quarto do século XX.
(126) «Quando da crise de (18)91, o Sul defendeu-se principalmente (...) não importando; o que demonstra, sem possibilidade de dúvida, que o seu deficit produtivo era enorme, sem excluir o capital. E o pior é que continua a sê-lo, como dantes; nem a área cultivada se tem notavelmente alargado, nos nove anos decorridos desde aquele acontecimento, nem a produção fabril tem acompanhado, de longe sequer, o extraordinário desenvolvimento do Norte; e que só à sua parte absorve, para citarmos um caso, 80 % do algodão em rama importado. De maneira que, se por qualquer circunstância, o comércio de reexportação colonial afrouxar, achar-nos-emos em face desta anomalia inqualificável: o Norte, ou directamente pelo imposto, ou indirectamente aceitando Lisboa por praça intermediária de muitas transacções exteriores, fornecendo capitais e bancos, empresas e companhias, ministrando ao Estado um excedente de cambiais, - a fazer viver parte do Sul, ou a suster, quase só, o peso dos nossos encargos de pátria», ob. cit., p. 300.
(127) «Mas, à civilização europeia, - que demos nós directamente, e com desinteresse mental? Com que grande trabaiho de indagação científica enriquecemos nós o Espírito? Desenganemo-nos todos, por mais que a verdade amarrote o nosso orgulho o que à Europa civilizada nós demos, ou, mais propriamente, vendemos, foi o pau Brasil e a pimenta» (ob. cit., p. 58).
(128) Bazílio Telles, Introdução ao problema do trabalho nacional, Porto, Livraria Chardron, 1901, p. 13.
(129) Id., Estudos Históricos e Económicos, II, pp. 151 e 144.
(130) Ob. cit., p 152.
(131) Ob. cit., p. 154.
(132) Ver a este respeito a famosa carta de 8 de Março de 1881 à revolucionária russa Vera Zassoulitch (1851-1919).
(133) João (Duarte) de Meneses, Lisboa 22 de Abril de 1868 - 8 de Abril de 1918, A Nova phase do socialismo, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1902. João de Meneses, licenciado em direito em Coimbra, foi advogado em Lisboa e participou na revolta do 31 de Janeiro de 1891. Deputado pelo Funchal nas legislaturas de 1906 e 1908, foi Ministro da Marinha no efémero gabinete João Chagas, de 3 de Setembro a 12 de Novembro de 1911. Nomeado vogal do Supremo Tribunal Administrativo em 10 de Agosto de 1914, ascendeu a presidente desta instituição um mês depois.
(134) Manuel Ribeiro, «Anarquistas e sindicalistas. Resposta a Emílio Costa», O Sindicalista, n.° 117, de 23 de Fevereiro de 1913.
(135) J. Carlos Rates, O Socialista, 25-26 de Outubro de 1913; A. Machado, «Sem rancores», O Sindicalista, n.° 142, 4 de Janeiro de 1914. O questionário sobre o Congresso de Tornar foi publicado em O Sindicalista, n.° 149, de 14 de Dezembro de 1913. A conclusão, ou o balanço, foi publicada no n.° 148, de 22 de Fevereiro de 1914. Pode utilizar-se com proveito, tendo porém o cuidado de verificar as fontes, César Oliveira, A criação da União Operária Nacional, edição do autor, Porto, janeiro de 1973.
(136) Ao organizar as Questões sobre o movimento operário português e a revolução russa de 1917, Porto, Edição do Autor, 1971, José Pacheco Pereira procurou provar que a Revolução soviética encontrara um eco imediato e profundo entre nós, a ponto de forçar os actores sociais a modificar o estilo das relações inter-classes. Na ausência de documentos que pudessem confortar a sua demonstração, viu-se obrigado a transformar o «milagre de Fátima» numa resposta directa à Revolução, contra a clara evidência das datas - a primeira aparição verificou-se a 13 de Maio de 1917, o que é mau grado tudo assaz distante do mês revolucionáro de Outubro! - e contra o conteúdo das declarações dos três «videntes», sobretudo da então jovem Lúcia. O milagre de Fátima destinava-se a responder a uma inquietação profundíssima da população rural que fornecera o essencial dos corpos expedicionários que combatiam os alemães na Europa e em África, em Angola e em Moçambique. São de resto isentas de ambiguidade as declarações dos «videntes» e sobretudo da jovem Lúcia, a única que falava com a Virgem. Só conhecemos essas declarações, a partir do mês de Julho, pois a imprensa só se fez eco das aparições a partir do fim do mês de junho por razões que não vêm agora para o caso. Eis a sequência dessas declarações: a 13 de julho, a Virgem diz a Lúcia: «rezem o terço a Nossa Senhora do Rosário que abrande a guerra que só ela é que lhe pode valer»; a 13 de Agosto: «Se não tivessem abalado contigo (os peregrinos) para a aldeia, o milagre seria mais conhecido. Havia de vir S. José com o Menino Jesus para dar a paz ao mundo»; a 13 de Setembro: «Quero-te dizer que continues a rezar o terço sempre à Senhora do Rosário, que abrande a guerra; que a guerra está para acabar. Para o último dia há-de vir S. José com o Menino Jesus dar a paz ao Mundo e Nosso Senhor dar a bênção ao povo»; e enfim a 13 de Outubro a Virgem teria dito «que rezássemos o terço e pedíssemos perdão dos nossos pecados, que a guerra acabaria hoje e que esperássemos os nossos soldados muito brevemente»; declarações reforçadas alguns dias depois com esta afirmação: «a guerra acaba ainda hoje, esperem cá pelos seus militares muito breve» (citações extraídas de Costa Brochado, As aparições de Fátima, Lisboa, Portugália, 1952. Repare-se, antes de mais, no carácter profético e messiânico das declarações de Lúcia, que deviam levar-nos a integrar as «aparições» no quadro dos movimentos profético-messiânicos que marcaram a história das formações sociais na Europa como noutros continentes. Mas mesmo se deixarmos esta indicação de lado, não parece difícil constatar que a grande preocupação dos camponeses portugueses residia no destino dos militares que se batiam em França ou em África e de que havia poucas notícias. Repare-se na constância com que Lúcia repete os mesmos argumentos, as mesmas perguntas dirigidas à Virgem, e praticamente as mesmas respostas. Na realidade, Lúcia não podia interrogar a Virgem sobre a Rússia, pois a jovem camponesa devia conhecer mal a geografia do seu país, e pior ainda a geografia da Europa. Mas era sensível às inquietações do seu meio social, e foi sempre a partir de tais preocupações que ela interrogou a Virgem, dando as respostas que toda a gente podia esperar. Lembremos, de passagem, que no ano seguinte, a 9 de Abril, os portugueses seriam esmagados na batalha de La Lys, e que em 1919 o país seria vítima da famosa epidemia da pneumónica, que matou cerca de 100.000 pessoas, número enormíssimo, que exerceu uma grande influência tanto na estrutura demográfica portuguesa como no plano político. Quer dizer que uma grande parte da população portuguesa se sentia numa situação de crise extremamente aguda, que ainda não foi descrita com a atenção que merece, tanto mais que ela coincide com uma viragem na prática dos trabalhadores, com a greve geral de 1919, primeiro passo para o esmagamento que levaria ao fascismo de Maio de 1926. Mas queria também insistir no comentário aos «métodos históricas» de alguns autores, decerto bem intencionados, mas que não conseguem furtar-se à necessidade de manipular os documentos, nem hesitar perante o anacronismo. Trata-se de atitudes e de comportamentos que não servem ninguém, pois é impossível alterar as cronologias, assim como o conteúdo real e indiscutível dos documentos. Decerto a hierarquia portuguesa - o Estado e a religião - procuraram reciclar as aparições para a mobilização contra o «comunismo» em 1936-37, mas noutro contexto, em plena guerra civil espanhola, para reforçar a mobilização contra os comunistas que comiam padres, criancinhas e freiras... O historiador não está autorizado a confundir, para não transformar a história em panfleto, sobretudo em mau panfleto.
(137) Artigo intitulado «Os sovietes do Vale», publicado no jornal A Folha de Beja, de 19 de Dezembro de 1918. Utilizo as referencias do artigo de João Maria Campos, «Para a história das lutas operárias. O anarco-sindicalismo no concelho de Odemira», A Batalha, ano 1, quarta série, n.º 16, 24 de Maio de 1975, p. 8.
(138) Manuel (António) Ribeiro, Albernoa, 13 de Dezembro de 1878 - Lisboa, 27 de Novembro de 1941. Obrigado a abandonar os preparatórios na Escola Politécnica necessários à inscrição na Faculdade de Medicina, empregou-se na CP, onde chegou a empregado principal de 1.ª classe, tendo sido expulso por ter apoiado uma das muitas greves dos operários dos caminhos de ferro. Tendo estado preso no Limoeiro, reencontrou-se com o catolicismo depois de discussões com o famoso padre Cruz, e entrou no funcionalismo público em 1932, na Biblioteca Nacional primeiro, na Torre do Tombo, como conservador, depois, até à sua morte.
(139) A Bandeira Vermelha, n.° 3, 19 de Outubro de 1919, «Pelo Bolchevismo!».
(140) Id., n.° 10, 7 de Novembro de 1911, p. 1.
(141) Id., n.° 2, 12 de Outubro de 1919.
(142) João Quintela prepara para publicação o «mémoire de maîtrise» que apresentou na Universidade de Paris-VIII (Vincennes), consagrado à Federação Maximalista Portuguesa.
(143) J. Carlos Rates, A Ditadura do Proletariado, Lisboa, Secção Editorial de «A Batalha», 1920, p. 8. Este texto, que é um dos documentos mais importantes para estudar as propostas do proletariado nos anos 1920, será reeditado nesta colecção.
(144) Ibid., p. 10.
(145) Ibid., p. 9.
(146) Carlos Rates, A Rússia dos Sovietes, Lisboa, Guimarães Editores, 1925. A referência ao «Bosquejo» de G. Déville, encontra-se na pág. 26. Esta obra está completamente esgotada há já alguns anos, e a Guimarães começou já a preparar uma nova edição, pois se trata de um texto intimamente ligado à história das ideias e das práticas socialistas, comunistas e marxistas entre nós. Compreende-se mal, de resto, que José Pacheco Pereira não tenha incluído Carlos Rates na sua antologia Questões sobre o movimento operário português e a revolução russa de 1917, Porto, Edição do Autor, 1971. Não só esta maneira de apresentar a revolução do proletariado teve a sua origem na revolução russa, como ainda o ter sido editada por A Batalha, mostra a convergência, embora momentânea, das opções das várias fracções do proletariado português. Enfim, mesmo se Rates morreu à direita, após ter traído a sua classe de origem, nem por isso a sua obra perdeu interesse, nem deixou de pertencer, para bem ou para mal, à história da classe operária portuguesa.
(147) Repare-se no artigo 5.º - «o Conselho de Comissários reserva-se o direito de alienar algumas das colónias que menos convenham ao nosso intercâmbio comercial, se as nações credoras insistirem pelo pagamento dos seus créditos». Acrescente-se que Rates se mostrou sempre interessado pelas questões coloniais, e que a sua visão do problema se modificou no após 28 de Maio, sob a pressão do «desvario» da opinião pública: «Admitir e propagar que é exclusivamente com o esforço nacional que havemos de valorizar os dois milhões de quilómetros quadrados que ainda conservamos em África parece-me loucura demarcada. Mas em Portugal, pelo que se tem visto, são possíveis todos os desvarios da alma colectiva. Já que temos colónias e queremos conservá-las urge que as ponhemos (sic) em valor, admitindo e estimulando a cooperação de capitais estrangeiros para se criarem aquelas razões jurídicas que levam à expoliação. Temos que abrir as portas se não queremos que no-las arrombem, Angola, Moçambique, S. Tomé, Lisboa, Tipografia Didot, 1929, p. XII.
(148) Homem Christo, Mussolini. Bâtisseur d'Avenir. Harangue aux foules latines, Paris, Société des Editions Fast, 1923, p. 173. Francisco Manuel Homem Cristo Filho, Lisboa, 1892 - Itália, 12 de Junho de 1928, depois de ter sido «anarquista» em Coimbra, como era moda na sua época, neste meio estudantil, integrou-se nos movimentos monárquicos imediatamente após a proclamação da República. Refugiado em Paris, foi nomeado director dos Serviços de Informação de Portuagl nos Países Amigos e Aliados por Sidónio Paes. Tendo regressado a Portugal após o 28 de Maio de 1926, o seu fascismo puro e duro não pôde entender-se com os militares que ocupavam o poder e foi obrigado a regressar ao exílio. Morreu em Itália num desastre de automóvel, quando organizava, com Mussolini, o Congresso Panlatino, que devia confirmar o ditador italiano no seu papel de guia dos povos latinos.
(149) Vale a pena dar aqui uma amostra do estilo empolado, entre futurista e danunziano de Homem Cristo: «Pode dizer-se que, quando foi proclamada, a República dos Sovietes encontrou, no mundo inteiro, muito mais partidários teóricos do que detractores. Esta atmosfera de confiança platónica, e de curiosidade acolhedora foi extraordinariamente favorável ao desenvolvimento da fatal evolução russa; quando nos demos conta de que os Sovietes se tinham limitado a substituir o deplorável estado social do tzarismo, por um estado social infinitamente pior, era demasiado tarde para aniquilar este ninho de serpentes. Já Paris, Londres, Roma, Madrid, Lisboa, Bruxelas, todas as capitais do antigo e até do novo Mundo, principalmente as cidades milenárias, berços de civilização, recebiam a visita assolapada de estranhos emissários, de delegados cautelosos, portadores da funesta palavra moscovita. Já se fundavam filiais por toda a parte, eram nomeados comissários e, nas reuniões estupidamente toleradas pela polícia, acorriam os curiosos para ouvir um homenzinho com as maçãs do rosto salientes e uma testa fugidia, pronunciar palavras de fraternidade universal e entoar o cântico do proletariado unido contra os satrapas do capitalismo». Ob. cit., pp. 303-305.
(150) Emilio Costa, Karl Marx, Lisboa, Livraria Peninsular Editora, 1930, p. 23.
(151) Ibid., p. 26.
(152) Ibid., p. 28.
(153) Ibid., pp. 21-22.
(154) O que pode mostrar até que ponto a hierarquia dos «povos» está presente nas elaborações teóricas dos europeus. Quer dizer que não se trata apenas de procurar definir os termos em que foi posta a «questão nacional» (v., a este respeito, o meu artigo sobre «Le problème des nationalités» in Les Dictionnaires du savoir moderne. L'histoire. De 1871 à 1971: les idées et les problèmes, Marc Ferro ed., Paris, CAL, 1971, pp. 304-331; mas sobretudo, Georges Haupt, Michael Löwy, Claudie Weil, Les marxistes et la question nationale, 1848-1914, Paris, François Maspero, 1974), mas também a das etnias, questão esta recorrente na escrita de Engels.
(155) Ibid., p. 40.
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