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A história da greve geral
Alexandre Vieira (*)
Ao público ingénuo e bom desafiando os caluniadores.
Para que se conheçam inteiramente os motivos que provocaram a greve geral de 29 e 30 de Janeiro findo e a atitude inapta e hostil do governo, publicamos a seguir as notas mais importantes do movimento, pelas quais os leitores constatarão da lealdade com que os operários procederam em contraste com a deslealdade do ministério.
Pela 1 hora da tarde do dia 19 de Janeiro foi uma numerosa comissão operária constituída por dezassete delegados, ao Ministério do Interior. Nela estavam representadas as Associações e Federações de Lisboa, os trabalhadores rurais por um delegado, e os corticeiros e descarregadores do Barreiro, por dois. Falando com o respectivo ministro, essa comissão pediu-lhe que mandasse reabrir as associações de Évora e Barreiro e pôr em liberdade os presos, que nessa altura não tinham ainda sido entregues ao poder judicial. Respondeu o Sr. Silvestre Falcão que as Associações tinham sido encerradas por motivo da ordem pública assim o exigir.
Um dos delegados informou-o de que no Barreiro haviam sido obrigados operários a trabalhar à força, tendo-lhes sido apontadas as carabinas pela guarda republicana. Retorquiu o ministro que os operários tinham por obrigação respeitar a liberdade do trabalho e que se os soldados haviam procedido assim era para defenderem os operários dos ataques dos outros que não os deixavam trabalhar e afirma que confiava absolutamente nas informações oficiais. Os delegados demonstraram-lhe que as suas afirmações eram verdadeiras e que elas eram corroboradas por operários que tinham presenciado os factos, podendo o ministro ser iludido, pois não os viu como aqueles.
Após grande cópia de argumentos, os delegados avisaram o ministro de que a agitação que ia lavrando entre os trabalhadores rurais do sul do país poderia vir a dar maus resultados para a economia nacional, mostrando que ele se quisesse, com uma penada a podia evitar, mandando reabrir as Associações, libertar os presos e fazer cumprir os contratos dos lavradores com os rurais, contratos estes que tinham sido assinados pelas autoridades locais. Declarando depois o ministro que sabia que a greve de Évora tinha sido provocada por dois lavradores «talassas», os delegados disseram-lhe por que razão não os mandava prender. O ministro respondeu que ia tratar disso, acentuando todavia que confiava em absoluto nas informações das autoridades. Disseram-lhe em conclusão os delegados que ele acreditava tudo quanto lhe diziam os lavradores mas nada do que lhe diziam os assalariados e o Sr. Silvestre Falcão terminou por dizer que não podia fazer juízo pelo que os operários lhe afirmavam e que ia estudar o assunto. A conferência durou hora e meia.
No dia seguinte, isto é, a vinte de Janeiro, a Federação Corticeira, que tem no seu seio 28 sindicatos, foi procurada por uma comissão corticeira de Évora, a qual participou que a Associação daquela cidade tinha sido encerrada. A Federação nomeou então uma comissão para ir falar com o ministro do Interior. O secretário disse que o ministro não podia receber e que não sabia mesmo quando ele estaria visível. Discutiram os delegados corticeiros acaloradamente e à saída encontraram-se aqueles com o deputado Ribeiro de Carvalho, a quem disseram que não tinham sido recebidos pelo ministro. O referido deputado foi então falar com o Sr. Silvestre Falcão sobre o assunto, declarando este que já tinha dito à outra comissão o suficiente.
No dia 29 de Janeiro, segunda-feira, cerca da meia-noite, o comandante da policia mandou chamar à Casa Sindical particularmente, o camarada Jorge Coutinho. Este não estava, indo procurá-lo várias camaradas. Inteirado do que ocorria, Jorge Coutinho, que não quis ir sozinho ao governo civil, fez-se acompanhar por mais três camaradas da União e dirigiu-se então, pela uma hora da madrugada, àquela autoridade. O comandante da polícia, sabendo que se ia fazer o movimento, pediu aos quatro operários que diligenciassem não haver alteração da ordem pública, de forma a não se ver obrigado a intervir, e oferecendo-se para apresentar ao governo os operários, que seriam os portadores das reclamações. Responderam aqueles que nada podiam fazer, visto que ali estavam individualmente, mas que tinham a certeza de que se a autoridade não interviesse não haveria quaisquer conflitos, visto que os operários não são nunca os primeiros a alterar a ordem pública. O comandante concluiu por dizer que tinha a melhor boa vontade de que não fossem praticadas violências de parte a parte, saindo os operários em seguida.
Depois disto, voltaram os operários à Casa Sindical, expondo à assembleia o que se tinha passado com o comandante da polícia. Aquela resolveu então que os operários, José Maria Gonçalves e Jorge Coutinho fossem os medianeiros entre os operários e o governo. Ao mesmo tempo, pela exposição daqueles camaradas, que informaram que o comandante da polícia também tinha dito que os operários mais bem organizados do país, os corticeiros, não acompanharam o movimento e sabendo-se que, ao contrário, eles tinham aderido, incluiu a assembleia na comissão medianeira, o camarada Sebastião Eugénio. Esta nova comissão dirigiu-se pouco depois ao governo civil, mandando o comandante da polícia, apresentá-la ao governo por um empregado da polícia e seguindo ela num automóvel do Estado.
Uma vez no ministério dos estrangeiros, seriam três horas da manhã, foi a comissão recebida pelos Srs. presidente do Conselho e ministro da Guerra, que interinamente exercia o cargo de ministro do interior.
E expostos pela comissão os motivos da greve, que, como acima se diz, o governo já conhecia, foi longamente debatido o facto dos operários se desgostarem com o procedimento das autoridades locais que tão arbitrariamente têm infringido os princípios consignados na Constituição, como sejam: a liberdade de reunião e garantias individuais. Assim era desejo dos mesmos operários que as Associações de classe, não só de Évora como de outras localidades fossem imediatamente reabertas e os presos por delitos de greve postos em liberdade. Os operários também insistiam pela demissão do governador civil de Évora. Então o governo disse que iria reabrindo as Associações, que os presos que estavam entregues ao poder judicial os iria libertando à medida que se fosse comprovando que eles não tinham quaisquer responsabilidades, e finalmente que o governo não podia intervir directamente junto do poder judicial, visto que é um poder independente. Ainda sobre a demissão do governador civil, disseram aqueles ministros nada haver provado que ele tivesse delinquido acrescentando que um delegado do parlamento tinha ido inquirir a Évora dos seus actos, e o resultado desse inquérito estava em concordância com as informações que o governo tinha. Assim não só achava o governo que seria injusta a demissão mas também não a podia impor, visto que tinha intervido já um delegado do parlamento, que é um poder igualmente independente do executivo. Que a comissão aconselhasse os operários a não fazer greve, porque o caso, a seu ver, parecia estar resolvido. Então a comissão declarou que, não tendo intervido de qualquer forma para que os operários fizessem greve, e sendo desejo destes a imediata satisfação das suas reclamações, não iria aconselhar ninguém a que se não manifestasse, porque não era essa a sua missão, mas simplesmente expor o resultado da entrevista, como comissão medianeira.
Exposto por um delegado da comissão a uma assembleia magna das associações o resultado da conferência com o governo foi votada por aclamação uma moção no sentido de se prosseguir no movimento, em virtude de não satisfazerem as declarações do governo, por serem vagas.
Por volta da meia-noite de 2.ª feira, uma comissão de ferroviários dirigiu-se à Casa Sindical, onde declarou que o seu sindicato tinha resolvido nomear uma comissão para ir ao governo solicitar-lhe que satisfizesse o pedido dos operários em greve, que nesta conferência ficara acertado os ferroviários nada quiseram fazer de definitivo sem primeiro consultarem as associações da União dos sindicatos.
Em virtude destas declarações foi resolvido que da comissão para ir a Évora, fizessem parte quatro delegados dos ferroviários e dois da União dos Sindicatos, e que depois de recebidas as informações que essa comissão mandasse de Évora telegraficamente, se solucionasse o conflito. Imediatamente se dirigiram ao governo, que estava no Ministério da Guerra, as comissões dos ferroviários e medianeira dos sindicatos da União para lhe expor o resultado da aceitação da proposta do governo feita por intermédio dos ferroviários.
Estranhando o governo que o movimento se não solucionasse sem serem recebidas as informações da comissão que ia a Évora, foi dito pela comissão que o governo havia prometido vinte e quatro horas antes que iria reabrindo as Associações que as informações que tinham de Évora era de que ainda não tinha sido reaberta nenhuma delas, e que os operários só depois das informações dos seus delegados é que se convenceriam que tinham sido atendidas as suas reclamações. O governo aceitou estas declarações, ficando deliberado, sobre o governador civil de Evora, que o relatório que a comissão operária apresentasse sobre o seu procedimento, fosse entregue ao governo, depois da solução do conflito, ficando-lhe reservada a qualidade de árbitro para a apreciação e confronto dos relatórios dos operários e do delegado do Parlamento. Sobre a libertação dos presos, o governo, por intermédio do Sr. Ministro da Justiça, mandá-los-ia imediatamente, sob caução, para depois se irem julgando consoante o apuramento de responsabilidades.
Como as despesas da comissão operária que ia a Évora, corressem por conta do governo, como ficou assente, o Sr. Ministro das Finanças disse pelas 10 e meia horas de terça-feira a comissão poderia partir para aquela cidade, ao que a comissão medianeira observou que era demasiado tarde, e que melhor seria partir no comboio das 8 e meia, porque essa medida mais depressa solucionaria o conflito, como era seu desejo. Efectivamente o governo concordou com a objecção da comissão, e depois de serem dados os nomes dos delegados que iam a Évora, ficou resolvido que partissem no comboio das 8 e meia. Durante o dia de terça-feira realizaram-se várias sessões na Casa Sindical, onde foi exposto o resultado das negociações com o governo, aconselhando-se aos operários que se mantivessem na mesma atitude pacífica que até ali tinham conservado e que os boatos de que havia intuitos políticos no movimento, eram absolutamente infundados, como todos deviam ter essa consciência, pois que foram os mesmos operários que votaram a greve, nos seus sindicatos, com o fim exclusivo de protestarem contra as violências e arbitrariedades da autoridade regional de Évora. Nessas reuniões ficou assente que se aguardassem as notícias da comissão operária que fora a Évora, para imediatamente se solucionar o conflito, se essas notícias fossem confirmadoras dos desejos dos operários.
Pelas 22 e meia horas de terça-feira, foi recebido o seguinte telegrama dos delegados da União em Évora:
«Vamos saúde. Associações Évora reabertas. Estamos hotel Duarte»
Vamos saúde significava que havia provas do procedimento arbitrário do governador civil. Como, porém, isso seria apresentado ao governo, restava saber se os operários presos tinham sido soltos. Por intermédio do «Século», telefonou-se para a associação dos ferroviários, donde foi dito que as informações ali chegadas confirmavam a notícia da reabertura das associações e acrescentavam a libertação dos presos. Imediatamente a comissão medianeira mandou vir o automóvel que desde o princípio da greve, estava ao serviço da União e que fora cedido gratuitamente pela associação dos Cocheiros - para ir junto do governo liquidar o movimento e vir em seguida participar à Assembleia o resultado definitivo das negociações.
Por precaução e em vista do aparato de força que havia nas imediações da Casa Sindical foi a comissão a pé, seguindo-a o automóvel, pela Rua do Arco, onde estava uma força que impedia a passagem por aquela rua, disseram-lhe aqueles nossos camaradas ao que iam, sendo destacada uma escolta para os acompanhar junto do comandante, que era quem poderia conceder tal licença. Tornejando pela Calçada do Combro, chegou a comissão à Travessa das Mercês, onde estava o comandante Sá Cardoso, que, quando aquela lhe disse ao que ia, ordenou a sua prisão. Os três membros da comissão foram acompanhados pela mesma força para o quartel dos Paulistas, onde ficaram incomunicáveis.
Eis feita detalhadamente toda a historia da greve Fizemo-la com toda a possível minúcia e precisão ao contrário da nota oficiosa, documento este, que passados os primeiros momentos de pavor, deve ser para os seus autores um motivo de vergonha pelas injúrias que encerra pela deturpação consciente dos factos que narra pelas torpes calúnias que destila e até pela gramática avariada em que é feita.
Apesar da cólera petrificada que este inqualificável documento produziu nos meios operários, apesar da indignação que nos assalta ao termos que nos referir a um documento que profundamente nos agrava e nos avilta forçoso se torna que fazendo um supremo esforço sobre nós mesmos adquiramos a necessária serenidade para nos entregarmos a sua análise desfazendo todas as insídias e todas as torpes insinuações que nele se contém.
Diz o governo na sua nota oficiosa a fim de justificar a necessidade de proclamação do estado de sitio que «a greve tinha assumido nos dois últimos dias proporções de violência revolucionária».
Onde estão os mortos? Onde estão os feridos? Quais foram as baixas entre a tropa? Porventura o governo se sentia impotente para manter a ordem com os elementos de que dispunha? Que necessidade tinha de mandar vir tropas de fora para esmagar um movimento que ele só por inépcia não soube evitar e que ninguém pode confessar, tivesse tomado proporções violentas da última greve geral de Inglaterra ou do recente movimento dos mineiros da Bélgica em que houve saques, incêndios, muitos feridos e mortos? Entretanto apesar destas duas situações não poderem ser comparadas na sua importância revolucionária, todos sabem que nem na monárquica Inglaterra nem na Bélgica, cujo governo é clerical, se proclamou o estado de sítio, se suspenderam as garantias e se criaram leis de excepção e tribunais militares contra as massas operárias em revolta. Nesta inépcia e neste opróbrio só podia cair a jovem república portuguesa que de tão maus ruins defensores dispõe?
Diz mais a nota oficiosa que «o governo ouvindo o Sr. governador civil, determinou a abertura das associações que não tinham sido dissolvidas e ordenou que os presos fossem imediatamente entregues ao poder judicial, para serem soltos, sob fiança, os que o pudessem ser. Autorizou que uma comissão de ferroviários, que se ofereceu como medianeira, fosse a Évora verificar a inexactidão das informações recebidas pelos grevistas. Apesar de todas estas tentativas de conciliação, demonstrando o desejo que o governo tinha de que tudo se resolvesse pacificamente os atentatos e as violências praticavam-se sem interrupção.»
Como noutro lugar se diz, a greve terminaria logo que os operários tivessem a certeza de que as associações tinham sido reabertas e os presos postos em liberdade. Para adquirirem essa certeza tinham partido, pois, para Évora a comissão medianeira dos ferroviários e bem assim a de delegados das Federações da Indústria, cujas despesas foram pagas pelo governo! Precisamente quando uma comissão saía da Casa Sindical para comunicar ao Ministério que a greve estava terminada, visto que já tinha a certeza que as associações estavam reabertas e os presos postos em liberdade, foi essa comissão presa metida, sob rigorosa incomunicabilidade, no quartel dos Paulistas.
Continuemos, porém, na nossa análise à nota oficiosa.
«Os carros eléctricos, sem que o pessoal tivesse aderido à greve, foram impedidos de circular, lançando-se-lhes bombas que feriram os condutores e danificaram o material. Exerceram-se também violências sobre os cocheiros de trens e chauffeurs de automóveis para os impedir de circular. Atiraram-se bombas sobre a guarda republicana e sobre as tropas, e nas associações mostravam-se das janelas bombas e armas, distribuindo-se manifestos e convites à destruição da propriedade e ao atentado pessoal. O Conselho de ministros em sessão permante desde o início da greve, deliberou portanto, ontem às 3 horas da tarde, visto o inêxito de todas as tentativas de participação, proclamar o estado de sítio no distrito de Lisboa, entregar o governo da cidade e a manutenção da ordem pública à autoridade militar, tendo o Sr. Presidente da República assinado o respectivo decreto, que foi publicado em suplemento ao Diário do Governo.»
Não é verdade que a Associação dos Carris de Ferro não tivesse aderido à greve. Numa assembleia geral previamente realizada deram aqueles nossos camaradas a sua adesão ao movimento apenas com 4 ou 5 rejeições. Não reuniu para esse efeito toda a classe? Não, é verdade. Mas toda a gente sabe que quando uma associação convoca uma reunião e comparece, segundo a lei, o número suficiente para poder resolver, as resoluções tomadas pertencem à classe. Sabe-se que as minorias é que fazem todo o trabalho, do qual as maiorias se aproveitam, quando ele as beneficia.
A Associação dos Chauffeurs igualmente tinha aderido à greve.
Apesar de tanta bomba arremessada contra os carros eléctricos, sobre a guarda e sobre as tropas, como o governo afirma, de todo este trágico estendal de violência nem sequer um ferido apareceu entre as tropas, nem um morto entre os populares! Apenas um guarda-freio com uma arranhadura numa mão, a qual o não impossibilita a continuar a exercer a sua profissão, e um carro eléctrico ligeiramente avariado!
Manifestos e convites à destruição da propriedade e ao atentado pessoal, onde apareceram eles? Se a proclamação da greve, assinada pelas Federações da Indústria, até recomendava que os operários não se aglomerassem no centro da cidade nem nas praças públicas!
Se houvesse o intuito de produzir manifestações violentas com o fim de provocar um movimento revolucionário, não seria este, com certeza, o procedimento a seguir. Só não vê isso quem não quer ver.
Como é que o Conselho de ministros tendo acordado no dia 29, como já expusemos, na forma da solução da greve, proclama «pelas 3 horas da tarde» desse mesmo dia, o estado de sítio, quando ainda não havia tempo de se saber se sim ou não tinham sido cumpridas as ordens do governo transmitidas para Évora, e, se como tinha ficado combinado com o mesmo governo, o movimento devia terminar?
O Conselho de ministros, continuando na sua nota oficiosa a querer dar ao movimento um aspecto tragicamente revolucionário que ele não revestiu, afirma que «de fora de Lisboa chegaram notícias de um estado de coisas semelhantes em algumas localiddes do distrito, em especial na Moita, em Setúbal e em Aldeia Galega. Na Moita o administrador foi assassinado.» Que nós saibamos, e que o governo o tenha demonstrado, em parte alguma das localidades citadas se deram atentados que se possam classificar de revolucionários. Se a morte de uma autoridade pode ser justificação suficiente para tais medidas de força, quere-nos parecer que o estado de sítio se deveria ter restringido simplesmente a Moita!
Diz ainda a nota oficiosa:
«No norte do país fracassaram as tentativas de greve geral. Em Coimbra pretendeu-se aliciar gente para a greve, mas os grupos civis e as providências das autoridades fizeram abortar o movimento. Em Lisboa, depois da suspensão das garantias foram presas algumas personalidades comprometidas, e entre elas José de Azevedo Castelo Branco, autor de uma carta de graves responsabilidades. A certos presos, conhecidos chefes sindicalistas, foram apreendidas bombas carregadas de poderosa força.»
A inconsciência, a inépcia, e a torpeza que estes períodos revelam!
Onde estão as provas? Apresentou-as, porventura o governo ao parlamento para lhe arrancar uma lei de excepção - mais reaccionária do que a do ditador maldito - que avilta e desonra a República?
Quais foram os «chefes sindicalistas» a quem apreenderam as tais bombas de poderosa força? Venham os nomes!
Temos o direito e o dever de o exigir e ao governo emprazamos a que não fique nas insinuações vagas, lançando sobre os operários todas as suspeitas infames e caluniosas de vendidos aos reaccionários, mas sem apresentar uma única prova das suas afirmações.
Mais uma vez repetimos: é uma mentira, é uma calúnia infame! Nós não somos vendidos!
Venham as provas!
Venham todos os documentos!
Publique-se tudo!
O estado de sítio não foi proclamado por causa dos operámos. O governo sabe muitíssimo bem que não houve solicitações dos reaccionários para connosco e sabe ainda que se as houvesse elas seriam devidamente repelidas. Sim, houve solicitações, mas essas partiram dos republicanos, e nós, operários, repudiámo-las!
Já no último número de ‘O Sindicalista’ nós dizíamos que alguns elementos republicanos «procuram servir-se e aproveitar os movimentos de protesto do proletariado para os seus reservados desígnios, acobertando-se com eles, de modo que, vencedores, colheriam todos os frutos da vitória, e, vencidos, endossariam sobre outros as próprias responsabilidades».
Foi o que sucedeu!
Nós não queremos exercer o papel de denunciantes, apesar de que a atitude infame de uma certa imprensa tudo justificaria! Investigue o governo! Mas não! O governo não vai fazer tais investigações. Ele conhece melhor do que nós os bastidores onde os politicantes tramam as suas torpes conjuras. Delas é que o governo se atemorizou. Mas como não convinha que lá fora se soubesse que as dissenções e lutas entre os republicanos tinham atingido um tal grau de tensão que os fazia descer à rua para liquidar os seus agravos e as suas ambições de poderio e mando, ele voltou-se contra os operámos para de uma cajadada matar dois coelhos: libertar-se da organização sindicalista nascente, desarmar uma parte da carbonária e evitar um golpe de estado, já preparado por ocasião da manifestação anticlerical, como no próprio parlamento o deu a entender um deputado.
Eis a verdade, que os politiqueiros propositadamente encobriam, iludindo capciosamente a opinião pública que, na sua eterna cegueira, não conseguiu descortinar, atrás das medidas de força do governo e das insídias infamantes vomitadas por muitas bocas abjectas, os truques de que se lançou mão para esconder os factos.
Concluindo, emprazaremos mais uma vez o governo e todos os que com ele acusarem de menos honestos os sindicalistas, a que apresentem em público as provas que dizem possuir de que os trabalhadores estavam vendidos aos reaccionários. Queremos que luz se faça, e mal irá aos nossos caluniadores se eles se continuarem a manter silenciosos ante o repto que nesse sentido o proletariado lhes dirige.
Venham as provas!!!
O cerco à casa sindical Um espectáculo ultragrotesco A partida para bordo dos navios
As raras pessoas que depois de uma hora saíam da Casa Sindical para se dirigirem às suas habitações, eram obrigadas a voltar ao ponto de partida, visto que a tropa já então não permitia a passagem. Era evidente que estávamos cercados por todos os lados. Permanecíamos, porém, absolutamente tranquilos, aguardando serenamente os acontecimentos.
Nos gabinetes das associações e em várias salas havia muitos camaradas que dormiam a sono solto, pois se encontravam na firme disposição de só abandonarem aquela casa quando da boca dos delegados que tinham ido a Évora ouvissem o resultado da sua «démarche». Outros conversavam animadamente sobre a marcha do grandioso movimento, e ainda outros tomavam tranquilamente o seu café, esperando o anunciado assalto. Espalhados pela grande escadaria estavam também vários grupos, nos quais se comentava em termos cáusticos aquele aparato bélico que em torno de nós ostentavam as forças do regime, e a porta principal do edifício era guardada talvez por uns 20 camaradas entre os quais se achava quem estas linhas escreve. Os que à porta da rua nos havíamos postado tinham por fim impedir que algum camarada mais exaltado se dirigisse aos pontos onde as forças se encontravam e pudesse de qualquer forma dar motivo a violências por parte daquelas, visto que depois por certo se alegaria que da nossa banda tinha partido a provocação.
Da uma às três horas só 3 pessoas atravessaram a rua do Século. Foram 2 bombeiros que mais tarde vimos no quartel-general e um repórter da «Pátria», que descendo do lado da calçada dos Caetanos, veio ao nosso encontro e pretendia entrar àquela hora na Casa Sindical, talvez em serviço de reportagem... Mostrou-nos o seu bilhete de identidade, mas teve que seguir o seu caminho, porque o momento não era para visitas. Antes, porém, de partir, asseverou-nos que a Casa Sindical ia ser assaltada, o que agradecemos.
Ninguém mais quebrou naquelas 2 horas o lúgubre silêncio que ia na rua do Século. Só de momento a momento, lá para os lados da redacção do camaleão ou na calçada do Tijolo aparecia um ou outro vulto de soldado que lançava uma vista rápida e deslizava em seguida.
Seriam talvez 2 horas e meia quando vimos apagar, com muitas precauções, um dos candeeiros que ficam junto do edifício do camaleão. Em seguida vimos um sinal luminoso e logo depois outro candeeiro foi apagado. Tudo indicava que estava a chegar o momento solene. Entretanto, nós, à porta da Casa Sindical, seguíamos todos os movimentos dos sitiantes e batíamos o dente, porque fazia um frio siberiano.
- Três horas. Dos lados do quartel-general, que tinha sido instalado junto da redacção do «Século» surgiram dois vultos que se encaminharam para os lados da nossa fortaleza. Eram dois bufos que vinham encarregados de uma missão diplomática. Pararam a uma distância de vinte metros empunhando cada um o seu revólver, disseram-nos com voz pouco firme: - Os senhores querem parlamentar connosco? No caso afirmativo queiram mandar dois ou três indivíduos ao nosso encontro.
O autor destas linhas mandou-os esperar e, voltando-se pediu que chamassem um camarada que pouco antes tinha subido ao andar superior. Volvidos uns cinco minutos, Sá Júnior e Alexandre Vieira, vão ter com os dois... parlamentários. Tomou então a palavra um deles que disse:
- O Sr. Comandante da divisão convida os senhores e todas as pessoas que lá estão dentro a abandonarem essa casa. Dá-lhes para isso o prazo de cinco minutos, e se não quiserem sair, está ali a artilharia que...
- Nada de papões - atalhou um dos nossos. - Os operários que se encontram na Casa Sindical estão dispostos a abandonar o edifício, sem que para isso sejam necessárias quaisquer ameaças.
- Nesse caso - voltou o mesmo parlamentário - querem vir falar com o Sr. Comandante que se encontra ali? - Leve-nos, pois ao Sr. Comandante - dissemos.
E imediatamente nos pusemos em marcha para o quartel-general. Ao aproximarmo-nos notámos um grande reboliço entre aquela tropa. Como os polícias se dirigissem juntamente connosco para o comandante em chefe, imediatamente todas aquelas fardas se puseram em movimento, formando uma muralha em torno do engalanado-mor - uma criatura a que a densa escuridão mal permitia que distinguíssemos as feições. Graças à pequena chama que um carbonário, que estava de arma a tiracolo, tirou do cigarro que fumava, conseguimos lobrigar, num relance, uma luneta ou óculos. Afigurou-se-nos que aquela gente à nossa chegada, fizera a espectacular estratégia no intuito talvez de evitar que o militarão em chefe fosse vítima de qualquer... atentado da nossa parte. Ou a Casa Sindical não fosse uma temível fábrica de explosivos e cada um dos nossos dedos uma infernal arma homicida!...
Uma vez em frente de tal comandante, o homem botou fala, exprimindo-se com ares solenes, nos seguintes termos:
- Então os senhores não sabem que estão suspensas as garantias e que não podiam, portanto, estar reunidos nesta casa? E continuou:
- Querem entregar-se? Dou-lhes o prazo de um quarto de hora para saírem, de contrário...
- Já dissemos - interrompemos nós - que estamos dispostos a abandonar a Casa Sindical. Estranhamos, porém, que nos seja feita uma instrução dessa ordem, desde que uma comissão deve estar agora mesmo conferenciando com o governo (ainda não sabíamos que os camaradas tinham sido presos), ultimando talvez os trabalhos para a solução da greve...
- Agora é tarde para se entrar em negociações - disse o comandante, mostrando assim desconhecer absolutamente o estado da questão.
E, prosseguindo, disse:
- Visto que estão dispostos a render-se, façam então sair cá para fora toda a gente que lá dentro se encontra. Estão lá também mulheres? - inquiriu.
- Sim senhor.
- Bem. Nesse caso, elas que formem nesta meia laranja (e indicou o largo fronteiro à redacção do «Século» e os homens que saiam depois formando mais abaixo. Que venham, porém, todos, e que nem o próprio gato lá fique!
- Lá não há bichos - redarguimos.
Em seguida, voltamos, sós, para a Casa Sindical. Aguardava-nos no átrio um grande número de camaradas, ansiosos por saberem o que se tinha passado. A todos convidámos a dirigirem-se para o salão principal, indo outros acordar os que nos gabinetes repousavam, embora pouco confortavelmente, das fadigas do dia.
Dentro em pouco, a grande sala achava-se completamente apinhada de camaradas de ambos os sexos, tendo muitos outros que deixar-se ficar pelos corredores e salas contíguas, visto que era impossível entrarem na sala. Calculámos que ali se encontrassem naquele momento cerca de 800 pessoas; e depois vimos que o nosso cálculo não era exagerado. Sá Júnior, no meio do maior silêncio, e em breves palavras transmite à assembleia as palavras do oficial. Unanimemente, com firmeza, sem um protesto todos resolveram sair. Alexandre Vieira pronuncia também algumas palavras, e logo a seguir começa a debandada. Poucos momentos volvidos a rua do Século, desde o largo do Chafariz ao largo fronteiriço à redacção do «Camaleão», achava-se cheia de gente.
Começaram logo a organizar-se as levas, mas com uma morosidade espantosa. As primeiras foram formadas por 30 e 35 homens, aos quais tinham sido previamente tirados os chapéus-de-chuva e as bengalas que, depois de apalpados por vários janízaros - não tivessem eles consigo alguma bomba... - eram metidos entre as respectivas escoltas, sendo cada criminoso guardado por 2 soldados, os quais antes de se porem em marcha carregavam à vista dos presos as espingardas. Uma cena teatral mas que caía pelo ridículo.
Após as duas primeiras levas, começou a cair uma chuva impertinente, o que bastante irritou a tropa carbonária e os batalhoeiros que tiveram que a gramar como uns catitas. Entretanto, a maioria dos nossos voltava para a Casa Sindical, esperando que lhes chegasse a vez de serem metidos entre a escolta. Nós, por exemplo, tivemos tempo de ali conversarmos demoradamente com alguns amigos e dormir uma boa soneca, e depois disso ainda esperámos cá fora uma longa hora para ser metidos entre tochas. Eram 7 horas quando nos coube a vez, parece-nos que na penúltima leva, de marcharmos para destino ignorado. Todos os homens foram conduzidos para o Arsenal. Quando lá chegámos era dia.
Várias levas partiram ao som da Internacional, cantada nas bochechas dos «nossos amigos» pelos grandes criminosos, e muitas delas foram recebidas naquele edifício do Estado com vivas à greve e à união dos trabalhadores, entusiasticamente correspondidos pelos que chegavam.
Eis um relato rápido do que os nossos olhos presenciaram na histórica manhã de 31 de Janeiro do ano da graça de 1912, 21.º aniversário da revolta republicana do Porto, data que os republicanos jacobinos festejaram com mortiças luminárias, no próprio dia em que o governo dessa república, que foi feita pelos proletários, com o sacrifício da sua vida e do seu dinheiro, exercia sobre a classe trabalhadora de Lisboa a mais monstruosa de todas as violências e a mais infame de todas as ciladas.
(*) Alexandre Vieira (1880-1973), tipógrafo, foi um dos mais destacados dirigentes operários da I República e o seu mais reputado cronista. Foi director dos jornais ‘A Greve’, ‘O Sindicalista’ e ‘A Batalha’, secretário-geral da União Operária Nacional (UON) e da Confederação Geral do Trabalho (CGT). Mais tarde apareceria ligado à ‘Seara Nova’ e ao MUD. Manteve-se sempre ideologicamente ligado a posições de puro sindicalismo, demarcando-se do anarquismo, sem todavia aderir ao comunismo, apesar de ter ido a Moscovo e participado no IV Congresso da Internacional Sindical Vermelha, em 1928. Este texto foi publicado no n.º 64, de 18 de Fevereiro de 1912, de ‘O Sindicalista’, órgão da Comissão Executica do Congresso Sindicalista. Foi escrito no rescaldo da primeira greve geral realizada em Portugal e a sua preocupação central foi desagravar o movimento operário das imputações caluniosas contra ele então lançadas pelo governo republicano. Foram corigidos alguns erros notórios do texto tal como ele aperece reproduzido em César Oliveira (recolha, prefácio e notas), ‘Antologia da imprensa operária portuguesa’, UGT e Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1984. Faltou relatar que os detidos na Casa Sindical seriam ainda, a partir do Arsenal, embarcados para o navio de transporte Pero d’Alenquer, fundeado ao largo de Lisboa, onde passariam outra noite, para serem de seguida, parte deles, encarcerados no Forte de Sacavém.
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