O movimento neo-realista em Portugal na sua primeira fase

 

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Alexandre Pinheiro Torres (*)

 

 

1. DO PROBLEMA DE ATRIBUIR «FASES» AO NEO-REALISMO

 

A proposta do título O Movimento Neo-Realista em Portugal na sua Primeira Fase, não sendo da responsabilidade do autor mas de quem planeou a colecção, levanta desde logo um problema para quem se dispôs a aceitá-lo e a redigir o texto que lhe deva corresponder. Que problema? O de definir qual seja essa Primeira Fase, quais os seus limites cronológicos - a havê-los e como determiná-los (problema delicadíssimo) - ou o espírito específico que o terá caracterizado, em contraposição ao de uma Segunda ou Terceira Fases que, em princípio, deverão ser estudadas pelo ensaísta a quem foi incumbida a missão de redigir a Evolução do Neo-Realismo.

 

Tem-se aceitado, com mais ou menos dogmatismo, que, a partir de certa altura, por volta do fim da década de 40 ou princípios da década de 50, ou mesmo em 1950 (exactamente), surgiu uma nova fase dentro do Neo-Realismo no nosso país, fase essa em que novos valores se revelaram, alheios ao furor polémico ou ao propósito doutrinário dos últimos anos da década de 30, em que, com boas razões, se pode considerar fixado o surto do Movimento.

 

Devemos dizer que o nosso acordo quanto à possibilidade de Ihe atribuir fases (ou a data de 1950 para limite da «primeira») é menos que absoluto. Podemos aceitá-las apenas de um ponto de vista estritamente escolar, mas, como adiante se verá, nada há na tal evolução do Neo-Realismo que já não estivesse contido na teorização e prática neo-realistas da Primeira Fase. Afirmamos, pois, que a natural evolução do Neo-Realismo, a sua fase adulta (digamos assim), não se fez à custa de quaisquer novos pressupostos ideológicos - hipótese impensável e de rejeitar por não resistir a qualquer análise séria - nem se fez sequer à custa de uma atitude estética totalmente nova, nem até de menor intenção polémica ou doutrinària. E se frisamos este aspecto é porque se tem considerado como fim da Primeira Fase aquele período em que os autores já consagrados do Neo-Realismo (ou os que lhe iam enriquecer as fileiras) teriam finalmente despertado para a urgente necessidade de considerarem, antes de mais nada, os seus trabalhos literários como obras de arte, atentos, por fim, ao primado do estético, embora não abdicando dos principios ideológicos de que o Neo-Realismo é e será sempre inseparável enquanto existir ou pretender subsistir como tal; e, para já, a Ideologia que o informa encontra-se dinamicamente viva.

 

Encontramo-nos, pois, do lado de Mário Dionísio (desde sempre o teórico de maior vulto do Movimento, pela sólida formação cultural e artística que caracteriza o seu mestrado crítico) quando, em 1955, ao acusar os detractores do Neo-Realismo que deste se compraziam em salientar apenas os «dogmas», as «receitas», e o «primarismo de visão», declara:

 

«Com olhos embaciados, ei-los a registar o fracasso da corrente em que haviam posto tão entusiasmadas quão silenciosas esperanças, a denunciar o equívoco fatal, embora com a relativa consolação de poderem aplaudir a mãos ambas o aparecimento de uma segunda camada de escritores "neo-realistas", mais novos, menos equivocados e teimosos, cujos progressos, como é transparente, se tornam mais patentes à medida que se afastarn do Neo-Realismo(1)

 

Este afastam é realmente perturbador, constituindo o uso do verbo atestado suficiente de estreiteza crítica da parte de quem o ia utilizando, pois implicava que só se pudesse considerar como obra neo-realista toda aquela que fosse exemplo inequívoco e insofismável de exibição bem explícita dos tais «dogmas» ou «receitas» e que sobretudo enfermasse bem claramente de «primarismo de visão». Logo que o escritor, por virtude do seu talento, ultrapassasse estas limitações, afastava-se do Neo-Realismo. É contra esta abusiva injustiça, claramente demonstradora de absoluta desonestidade intelectual, que se revolta Mário Dionísio (2).

 

A haver uma Primeira Fase - e podemos aceitar apenas provisoriamente que a há - ela só pode ser definida em função de uma certa ênfase dada ao assunto, à urgência e à brutalidade de o transmitir na sua nudez e imediatismo, por um certo número de figuras eminentes do Movimento, como o fez polémica e doutrinariamente Alves Redol. Na verdade, o livro que se tem considerado a baliza inicial do Neo-Realismo, o romance Gaibéus, de 1939 (3), exibe seguinte epígrafe:

 

«Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem».

 

Mais tarde (1965), no prefácio a 6.ª edição do mesmo livro, é o próprio Redol quem faz o balanço do tal «primarismo de visão» que tão doutrinariamente hasteara como bandeira vinte e seis anos antes:

 

«Há em todo o romance (um)a impetuosidade desregrada (...). Os lineamentos de transposição do tema correspondem ao que havia de linear na própria realidade. Só por um lado, é evidente. Porque no outro se reflectia às escâncaras a falta de aprofundamento dialéctico dessa mesma realidade nas suas contradições (...). Tão aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura parecia urgente a todos os jovens que ansiavam plantar os alicerces para um novo tipo de cultura extensiva às grandes massas ausentes da actual, preparando pelo alargamento à quantidade a síntese posterior da qualidade» (4).

 

Esta auto-análise não fazia mais do que confirmar as declarações que, em 31 de Janeiro de 1958, prestara a um entrevistador do Diário de Lisboa:

 

«Gaibéus e Fanga no período do Neo-Realismo em que o primado do social, valorizado por necessidade polémica - não se esqueça que nos batíamos contra os partidários da "arte pela arte" - esbatia as determinações individuais, as particularidades psicológicas, os tipos, os caracteres, as paixões humanas».

 

…………………………………………………………………………………

 

«A literatura começa quando a obra escrita é uma obra literária» (5).

 

O Neo-Realismo, porém, que se queria fazer, aquele que se foi largamente doutrinando durante muitos anos, o Neo-Realismo ideal, não pressupunha como dogma qualquer obscura separação entre a forma e o conteúdo, o que já é claro, por exemplo, na crítica severa, desde o ponto de vista estilístico, que Mário Dionísio dedica a Jorge Amado nos n.ºs 164, 165 e 167 de O Diabo, de 14 e 21 de Novembro e 5 de De­zembro de 1937, respectivamente. Estes textos de 1937 são até muito importantes porque no primeiro da série se chega a concluir:

 

«Não é também pelo ponto de vista político que a sua obra (a de Jorge Amado) nos interessa. (Devemos aqui dizer que não nos interessa nada o ponto de vista político em arte).

 

Juízo que Mário Dionísio qualificará em importante artigo, também em O Diabo («S.O.S.» - Geração em Perigo), n.º 248 de 24 de Janeiro de 1939:

 

«...Nunca alguém disse que queria uma arte panfletária Nunca alguém disse que se pretende impor ao artista estes e aqueles temas e proibir-lhes outros...».

«... quando se fala da arte humana não se quer dizer humanitária (...) quando se pretende uma arte útil não se pensa em utilidade imediata (...) quando se advoga uma arte social não se quer dizer política na arte...»

 

E do segundo artigo são de realçar as seguintes afirmacões:

 

«Nota-se que o autor (Jorge Amado) partiu de uma ideia política para chegar aos homens...

«... Temos a noção a cada passo de estar a ler um panfleto documentário. Trata-se de documentar uma opinião (...). Ora um romance não deve ser um discurso de parlamento, qualquer coisa como uma grande tirada retórica, salvo as devidas distâncias. Carl (6) expôs justamente a opinião de que quanto mais forçado for o intuito do autor menos convincente será a obra (...). Parafraseando, a literatura panfletária parece-nos uma doença infantil da literatura social».

 

A ênfase na mensagem política, como recado óbvio, é o que o ensaísta condena. Aliás, em Cacau (1933), Jorge Amado afirmava em epígrafe (que inspirará meia dúzia de anos depois a que Redol inscreve no pórtico de Gaibéus):

 

«Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Baía.

«Será um romance proletário?»

 

Mário Dionísio não poderá concordar com estas posições «estéticas» de Redol ou Amado. Ele, o mais liberal, o mais esteticamente consciente teorizador do Neo-Realismo, afirmará mesmo esta coisa corajosa no ambiente cerrado de polémicas de fins dos anos 30 e dos primeiros anos da década de 40:

 

«Parece-nos (...) acanhado considerar a arte, mesmo a mais subjectiva (o que nos parece bem diferente de impermeável ou inatingível), inútil ou perigosa» (7).

 

Tal afirmação vai mesmo contra o espírito da polémica entre presencistas e neo-realistas, que adiante brevemente referiremos.

 

Para já, queremos salientar apenas que, nos seus momentos de maior lucidez teórica, longe da confrontação com os escritores da Geração de 1927 (a que se convencionou chamar a do Segundo Modernismo Português, ou simplesmente «geracão da Presença») não há qualquer proposta de «dogmas», «receitas» ou «primarismos de visão». Mário Dionísio, ainda muito jovem (8), colocava-se em posição extremamente aberta, secundada aliás por grande número de escritores neo-realistas desta Primeira Fase, dos quais se devem destacar, pela recusa frontal do cânone dogmático, homens como ele próprio, Fernando Namora, João José Cochofel, Álvaro Feijó, Políbio Gomes dos Santos, Vergílio Ferreira, Manuel da Fonseca, e, sobretudo, Carlos de Oliveira.

 

Em 1943, o mesmo ensaísta insistia numa crítica ao primeiro livro de Sidónio Muralha, Beco (1941):

 

«Forma e conteúdo são elementos inseparáveis (...) Penso, como André Spire que a poesia "não é, em princípio, uma maneira de cantar, mas uma maneira especial de pensar”. Uma composição será pois poesia, ou não, não por aquilo que exprime, mas pela maneira como o exprime, o que não é contraditório, como à primeira vista parece se pensarmos que o como o exprime éjá consequência bem directa, completamente consequência, de como se pensa» (9).

 

Tal atitude perante a arte, tal forma de teorizar, explicam o desabafo de Mário Dionísio de 1955 na revista Vértice (10). O ensaísta recusará, portanto, as possíveis distinções Primeira Fase - Segunda Fase, conforme se pode ainda ver pela declaração:

 

«... esta fase, que se pretende bem morta e enterrada, da nossa literatura contemporânea, este pobre realismo, fruto de mentalidades primárias ou, na melhor das hipóteses, tristemente ludibriadas, continua a constituir a obsessão dos seus solícitos coveiros. Vêmo-lo hoje, mais do que nunca, zurzido, alfinetado, falsamente estudado, a propósito e a despropósito, em todos os tons e nos mais diferentes lugares. Que morto é este que continua a insinuar a sua incómoda presença no mais pequeno artigo de tantos teorizadores que lhe decretaram o óbito, tantas e tantas vezes, desde o seu aparecimento?» (11)

 

Em que argumento basear, pois, a distinção de «fases»? No único possivel: no da aceitação de que a Primeira Fase seria a de assentamento de posições teóricas, inclusivamente o período em que foi necessário decretar que o desprezo da forma não poderia constituir-se em plataforma estética aceitável, mesmo a curto prazo, para o Neo-Realismo. A verdade é esta: se alguém tão eminente como Alves Redol inaugurava o novo Movimento com um livro como Gaibéus onde se estatui, preto no branco, que «não pretende ficar na literatura como obra de arte», declaração que, já se viu, reiterava uma outra de Jorge Amado expendida em 1933, alguém deveria acordar escritores assim «polémicos» para a realidade insofismável de que, para uma obra pertencer à Literatura, precisaria de nela haver a procura duma forrna que possuísse significado por si própria. Tal será o apostolado de Mário Dionísio, embora este, na sua rnissão de esclarecimento estético, estivesse longe de se encontrar desacompanhado (12).

 

Aceitemos, porém, provisoriamente, que a Primeira Fase do Neo-Realismo seja - para utilizar a expressão de Alves Redol no prefácio à 6.a edição de Gaibéus - a da «aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura», a qual, segundo nos afirma, «parecia urgente a todos os jovens que ansiavam plantar os alicerces para um novo tipo de cultura extensiva às grandes massas ausentes da actual, preparando pelo alargamento à quantidade a síntese posterior da qualidade» (13), e aceitemos a «arbitrariedade» da data do seu termo: 1950. Esta nossa aceitação - reforce-se – é feita sob a máxima reserva, pois não corresponde a qualquer realidade palpável. É que a «batalha pelo conteúdo» a que se refere Redol não se poderá separar, para outras grandes figuras do Neo-Realismo, de uma «batalha pela forma». E isto desde o primeiro momento em que lançaram mão da pena.

 

Não ignoramos, aqui, que um estudioso do Neo-Realismo, como Mário Sacramento (1920-1969), no seu livro Fernando Namora propõe um «critério» de divisão entre «Primeiro Neo-Realismo» e «Segundo Neo-Realismo». Parece-nos, todavia, inaceitável. Diz-nos ele que a passagem se opera (e exemplifica com Namora) quando o autor dos Retalhos da Vida de um Médico passa a viver em Lisboa:

 

«Posteriormente, conduzindo a sua carreira de médico rural pelas regiões que Ihe pareceram mais propícias à apreensão dos problemas básicos do povo português, virá a criar uma galeria de personagens em que não é o número ou a variedade que contam, mas a exemplaridade ou o enquadramento específico. Concluído este ciclo, a sua transição para a cidade virá a coincidir, como veremos, com a passagem do primeiro para o segundo Neo-Realismo» (14).

 

Mário Sacramento acrescentará no capítulo «O Segundo Neo-Realismo» que a inversão se opera com o romance Mudança (1950) de Vergílio Ferreira. Ora tanto a tese de que a passagem do rural para o citadino marca a separação entre as duas fases, como a de Mudança poder servir de baliza são ambas apressadas e destituídas de qualquer fundamento sério. O Dia Cinzento de Mário Dionísio, publicado em 1944, era já um livro citadino. Ora como diz a bem urdida nota anónima da lombada da reedição de 1967:

 

«(...) O Dia Cinzento já então apresentava a novidade de opor a ambiência urbana ao ruralismo e de utilizar, na efabulação dos seus novos temas, a tensão e a ironia, a análise psicológica e um determinado intelectualismo até aí inexistente, por vezes um hermetismo que coincidia com a busca de um estilo pessoal e desenvolto que procurava resolver-se em acção. Com este livro, Mário Dionísio demonstrou, há vinte e três anos, como é possfvel criar obra neo-realista através de processos subjectivos, não sendo, por isso, menor a humanidade dos casos nela tratados e das personagens que os vivem».

 

Aliás, Anúncio de Alves Redol, livro de 1946, é também um romance de ambiente citadino, devendo acrescentar-se que os romances de Carlos de Oliveira Casa na Duna (1943) e Pequenos Burgueses (1948), ou Fuga (1945) de Faure da Rosa são, desde o início, livros em que o «momento do subjectivo» é tão ou mais importante que o de qualquer mero objectivismo, o qual nem sequer é forçoso que tenha de ser sempre tão superficial. Nestas obras não é, aliás, do campesinato que se fala, mas da alta classe média ou da classe média possidentes da província, no caso de Carlos de Oliveira, onde o atributo «rural» se carrega de características significativas muito mais amplas do que aquelas a que Mário Sacramento parece fazer referência no seu livro. No caso de Faure da Rosa é mesmo a burguesia da cidade e seus problemas. Mudança (1950) de Vergilio Ferreira não é qualquer abertura para um segundo Neo-Realismo. É antes um corte com o Movimento. As «aberturas» já se encontram postuladas desde o início do Movimento, e quanto ao romance, pelo próprio Namora, e, sobretudo, por Dionísio e Carlos de Oliveira. O que não quer dizer que em certos romances neo-realistas de Namora não se notem preocupações existenciais, possivelmente através de Vergílio Ferreira que se torna, esse sim, a partir de 1950, no campeão do existencialismo em Portugal.

 

 

2. DO SOCIALISMO UTÓPICO DA GERAÇÃO DE 70 E DA «DISSIDÊNCIA» PRESENCISTA AO ESTABELECIMENTO DOS PRESSUPOSTOS IDEOLÓGICOS DO NEO-REALISMO

 

A aceitação possível de um Primeiro Neo-Realismo dependerá então de podermos fundamentá-lo através do realce que for de justiça atribuir aos aspectos denunciados por Alves Redol na citada entrevista de 1958 (15): o primado do social, valorizado por necessidade polémica.

 

Polémica contra quê? Pois, no plano literário, ela só poderia estabelecer-se contra aquele tipo de literatura ou autores que se haviam consagrado - e estes eram os da revista Presença (1927-1940) - e não só consagrado como se haviam tornado no novo establishment. Não que o movimento Presença não tivesse exercido, a seu tempo, uma acção bem eficaz contra o velho establishment académico dos Dantas, Joaquins Leitões e Anteros de Figueiredo que completamente desmoronou. Acção tão útil e sanitária que um dos arautos do Neo-Realismo, Joaquim Namorado, passar-lhe-ia não há muitos anos (esquecido o furor polemizante anti-presencista), o seguinte atestado de justiça:

 

«a Presença liquidara de vez o academismo, a "literatice literária", em que descambara quer certo simbolisrno dessorado, quer um naturalismo invertebrado e sem informação. A Presença arvorara a bandeira de uma "literatura viva", combatera pela liberdade da criação artística, derrubara tabus, destruíra preconceitos, trouxera ao seu público o convívio de Proust, de Joyce, de Thomas Mann, de Gide, opusera a uma realidade que não aceitava, o isolamento na torre de marfim, o "não vou por aí", o individualismo, a introspecção, o subjectivismo, e, como única verdade na arte, a predominância dos valores estéticos» (16).

 

A verdade, porém, é que do seio da Presença já haviam surgido «dissidentes» contra ela, Miguel Torga, Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca, homens do grupo, os quais se revoltavam contra o «tipo único de liberdade» (17) que os «mestres» da revista pareciam querer impor. Branquinho da Fonseca chega mesmo a sair da direcção da célebre folha coimbrã (18). A cisão era devida ao facto de a revista haver caído em nova espécie de academismo: tal a acusação básica que os «dissidentes» lhe dirigiam. Mas as razões seriam mais profundas. Iriam contra a própria bandeira «arte pela arte» e «inutilidade da arte» hasteada pelos seus mais tenazes corifeus. Numa entrevista de 1944, Edmundo de Bettencourt - que, com Branquinho da Fonseca, recusara em 1939, o apelo de José Régio de regressar ao redil (19) - declarava a João de Brito Câmara, entre outras coisas:

 

«Enquanto que o momento para a geracão da Presença cria o interesse pelo homem concebido isoladarnente no que possa representar do homem num plano especulativo, a hora da actuaI geracão (a do Neo-Realismo) cria nesta o interesse pelo homem no seu conjunto, bem concretamente, com as inquietações e aspirações que são de todos, e alheio à preocupação da hierarquia de ideias ou sentimentos» (20).

 

E sobretudo isto:

 

«Nas suas obras (nas dos neo-realistas) vibra a força do protesto contra os desacertos dum mundo e se revela a coragem de humanamente conceber e aceitar um mundo menos errado, pelo que se torna claro caberem só entre elas as que reflectem esse protesto - caminho que se abre - ou as que se projectam nesse caminho concebido, onde já não darão lugar aos problemas da Arte pela Arte ou Arte pela Vida, pois que lá serão apenas Arte do Mundo a que pertencem (...). (...) Estas obras (as dos neo-realistas), embora sejam acentuadamente sociais, não deixam de conseguir também objectivo estético, porquanto o que nos autores foi querido pela inteligência existiu antes na sensibilidade e poderia traduzir-se em emoção» (20).

 

A revista Manifesto (Coimbra, 1936), dirigida pelo «dissidente» Miguel Torga e Albano Nogueira, constituiria nova contestação, embora em tom menor, da presença (21), contra a «arte pela arte», como o segundo destes escritores reconheceria na sua conferência Panorama da Literatura Portuguesa Moderna, pronunciada a 13 de Maio de 1939:

 

«... o fundo da questão entre a arte pela arte e a arte social, está, antes, na diferença de atitude perante a vida, está na maneira de ser, na conformação espiritual, no modo de entender a vida - e não apenas no que cada artista pensa dos valores a exprimir pelos temas. Por isso ao grupo Presença se opõs, duma maneira embora conciliante, a efémera revista Manifesto - e se opõe, com mais fogo do que verdade, a novíssima geração literária, ansiosa por fazer valer os direitos da chamada Arte Social».

 

E Albano Nogueira, fazendo o processo da Presença e considerando todavia inútil a polémica - pela razão, como observa, de toda a arte ser social - escreve estas palavras definitivas sobre a qualidade espiritual dos hornens que fizeram o Segundo Modernismo:

 

«Num período turbulento e instável como é o nosso, natural que as grandes lutas que emocionam os homens venham a ter o seu reflexo nas obras de arte; mas num mundo turbulento como é o nosso, se é certo haver homens cheios de angústia desses grandes problemas, certo é também haver outros formados numa época descuidada de paz podre, que os não sentiram e os não sentem prementes nem os têm como essenciais».

 

«Época descuidada de paz podre»?, é legítimo que perguntemos. 1926 é a data da implantação da Ditadura fascista em Portugal. No ano seguinte, 1927, surge a Presença. Mas os «dissidentes», seus seguidores ou panegiristas só três anos depois é que acordam para a realidade de que a revista não reflectia, nem de perto nem de longe, os problemas da realidade portuguesa.

 

«Dissidentes» embora, não se encontravam porém preparados para qualquer guerra ideológica com os chamados Mestres do Segundo Modernismo. É que a Geração de 1927, na esteira da do Primeiro Modernismo (1915), não fazia mais do que continuar, na melhor das hipóteses, o humanismo ideologicamente «purificado» da Geracão de 70, quando esta já se encontrava no seu período de decadência. As gerações de ambos os Modernismos eram alérgicas a toda e qualquer ideologia. A própria palavra deixava-os em pânico, absolutamente crentes de que Arte e Ideologia eram dois mundos impossíveis de conciliar. Em toda a História da Literatura Portuguesa não há outro exemplo de um afastamento tão conscientemente programado das realidades pátrias e ambientais. É uma repulsa quase do domínio da patologia. Os detractores da Presença caricaturizaram tal atitude afirmando que os seus sequazes haviam optado pela Torre de Marfim, acusação de que José Régio se havia de defender, tenazmente, a partir de 1939, após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, quando decidiu reiniciar a Presença (22). Só então é que o grande poeta dos Poemas de Deus e do Diabo se lembra de referir o «terrível momento histórico» que o mundo atravessava, na descoberta repentina de que o world at large afinal até contava. Era, porém, tarde. Havia muito que a Presença se encontrava ultrapassada, como bem o haviam visto os «dissidentes» de 1930.

 

A confrontacão ideológica, contudo, iria ser assurnida não por entes, como já o dissemos, mas por todos aqueles que irão forjar o Neo-Realismo. E estes vêm de longe. Vêm das fileiras do Marxismo-Leninismo, ou do Socialismo Marxista, que pouco ou nada tinha que ver com o Socialismo burguês do sec. XIX, o da Geração de 1870, como já demonstrámos no nosso livro O Neo-Realismo Literário Português para o qual revertemos o leitor interessado (23).

 

Não deixa de ser significativo que o primeiro artigo a aparecer na imprensa literária portuguesa a defender a palavra ideologia foi o de Álvaro Cunhal em O Diabo, n.° 179, de 27 de Fevereiro de 1938. Nesse texto aponta sumariamente as razões pelas quais ela se carregará de conotações pejorativas (Napoleão apelidara já os seus adversários de ideólogos), significando esse vocábulo, e em grosso, o «conjunto de ideias inventadas por homem ou grupo, com o fito de, por baixo e à socapa delas, ocultar os seus interesses». Mais tarde, soava a hora do Romantismo, o termo fora limpo da «balda pejorativa». Álvaro Cunhal mostra, porém, que as ideologias são reflexos, efeitos, gerando-se conforme os estratos sociais onde se produzem, de acordo com «determinantes de carácter primário, vitais, económicas». Insiste ainda sobre a tese segundo a qual, se os homens se fraccionam e lutam, não é, pois, pelas ideologias - algo só «reflexo» ou «efeito» - mas sim «pelos fenómenos que lhe são causa». As realidades objectivas, acrescentará, é que são «as verdadeiras e profundas razões das actuais batalhas». Para ilustrar o seu ponto de vista cita o caso de um país - embora não o nomeando - em que essas «razões» estariam contidas nesta simples estatística relativa à forma como nele se encontrava dividida a terra:

 

«- 15% do número dos proprietários possuía, pouco mais ou menos, 87% do total da superfície.

- 85% do número de camponeses possuía, pouco mais ou menos, 13% do total da superfície.

- 1% dos proprietários possuía mais hectares do que todo o resto da população rural junta.»

 

A geração de 1870 era ainda sensível às grandes injustiças sociais preconizando uma forma de Socialismo que se bebia em Proudhon (o qual acabaria por se tornar num dos inspiradores do Fascismo) e nada queria com Marx. Repudiava, como lembrei no meu livro atrás mencionado, toda e qualquer acção revolucionária. Os seus componentes eram anti-comunistas convictos e apaixonados. O seu Socialismo burguês dissolvia-se e dissolveu-se num vago humanitarismo cristão, numa «generosidade fidalga», de acordo com a feliz expressão de Fernando Piteira Santos (24). "Nunca foi intenção do Socialismo burguês destruir o Capitalismo. Sempre quis viver com ele, em alegre conúbio, limadas as arestas mais irritantes, as injustiças sociais de todo em todo insuportáveis. Teve sempre como programa promover o trabalhador rural ou industrial a pequeno burguês, levá-lo, pois, a aceitar a ideologia típica da pequena-burguesia, e, através desta promoção, acabar com o perigoso dualismo burguês-proletário, por eliminação daquilo a que chamava a «metade podre da maçã»”. Usando as palavras de Alfredo Margarido:

 

«Como Proudhon, a grande maioria, ou até a totalidade dos socialistas portugueses, pretendia quase exclusivamente eliminar o “lado mau" do capitalismo, mas não destruí-lo, e semelhante óptica adaptava-se perfeitamente à situação portuguesa, visto faltar ao proletariado português uma sólida base organizacional». (...) Enquanto Proudhon e os seus discípulos e seguidores menosprezavam a conquista do poder político, os comunistas consideravam ser essa uma tarefa prioritária» (25).

 

A Geração de 1870 acreditava, aliás, que a Revolução seria conseguida sem se mexer uma palha. O mundo das «injustiças sociais» desmoronaria por si. Antero de Quental faz esta declaracão no seu texto O que é a Internacional:

 

«O programa político das classes trabalhadoras, segundo o Socialismo, cifra-se em uma só palavra: abstenção. Deixemos que esse mundo velho se desorganize, apodreça, se esfacele por si, pelo efeito do vírus interior que o mina. No dia da decomposicão final, nós cá estamos então, com a nossa energia e virtude, conservadas puras e vivas longe dos focos de infecção desta sociedade condenada» (26).

 

É esta concepção frouxa de um Socialismo comprometido com o Capitalismo, que leva à falência da Geração de 70 no plano da praxis política, conforme observa Mário Soares ao analizar a acção governativa de Oliveira Martins:

 

«Mas também o caminho de um homem que não tinha os pés assentes na realidade social portuguesa, que não soube nem pôde enlaçar os seus planos de reforma às aspirações definidas de uma classe em ascensão, e que, por isso mesmo, caindo de transigência em transigência, acabou por ficar isolado de todos, e finalmente - incrivel paradoxo! - irremediavelmente comprometido com aquelas mesmas instituições que ele próprio, com a sua crítica lúcida e dissolvente, ajudou talvez mais do que ninguém, a desprestigiar e destruir» (27).

 

Ora se Antero de Quental aconselhava a abstenção, quem havia de aceitar o conselho totalmente à letra foi a intelligentsia portuguesa do Primeiro e Segundo Modernismos: pela completa demissão das ideologias, pela marginalizacão política, pelo total desinteresse quanto aos acontecimentos históricos nacionais ou mundiais. A Ideologia era algo que logo se identificava como uma barreira para a Arte.

 

Aliás, os teóricos comunistas, mesmo Marx, são praticamente ignorados no nosso país no séc. XIX, como parece haver demonstrado Alfredo Margarido (28). O mais que se faz é deformar as teses de Marx e Engels (29). E nos três primeiros decénios deste século a situacão não é mais brilhante. Criado o Partido Comunista Português em 1921, no mesmo ano em que foi fundada a Seara Nova (mera coincidência), só em 1930 aparece a primeira biografia de Marx, publicada pelo anarco-sindicalista Emílio Costa, ataque aliás bastante violento ao pensamento do filósofo alemão, biografia que compreende uma curta antologia que inclui um curto excerpto do Manifesto Comunista (30). Não cabendo neste pequeno volume um levantamento ou análise exaustiva dos jornais ou revistas literárias progressistas dos anos 30, lembremos tão-somente que em Abril de 1930, se fundou no Porto a revista Pensamento, subintitulada «órgão do Instituto de Cultura Socialista». Nela é possivel falar de Marx com certo à vontade (até cerca de 1934), o que prova que a Censura fascista só começa a fazer sentir o verdadeiro peso do seu «lápis azul», apartir desta altura. Mais precisamente: em Março de 1934 quando o n.° 48 da publicação já não pode exibir como responsável pela direccão a «Comissão de Cultura e Propaganda de Cultura Socialista», mas sim um vago e inócuo «grupo editor». Com efeito, no n.° 2 César Nogueira divulga o conceito básico da «mais valia», no n.° 3éa «luta de classes» (artigo anónimo), e no n.° 5, Agosto de 1930, Jorge Ramos em «O intelectual e a sua época» propõe uma missão para o escritor totalmente alheia à concepcão do Primeiro e Segundo Modernismos. Como que se defende a tese: O intelectual é e serve. Não se estabelece aqui a possibilidade de separar o quê do como. O intelectual deverá ter «a sensibilidade dum artista e a análise dum filósofo».

 

Logo no ano seguinte, 1935, Adolfo Casais Monteiro, então com 27 anos de idade - a partir do n.° 33 da Presença (Julho-Outubro de 1931), passara a pertencer ao corpo directivo da revista coimbrã, substituindo o «dissidente» Branquinho da Fonseca - escreve o seu artigo tão discutido «A arte é, não serve» (31). Encontramo-nos perante a primeira confrontação, ainda que sem peso sensível, pois a revista Pensamento anulava-se pela péssima qualidade dos textos de criação literária pura: prosa ou poesia, a roçar o caricato. Mais interessante é, todavia, neste «Orgão do Instituto de Cultura Socialista», a profunda confusão ideológica dos seus colaboradores. Se para uns o verdadeiro Socialismo é o marxista, para outros Antero de Quental, anti-marxista, é um dos Mestres do Socialismo. Pensamento preocupava-se, porém, com o que realmente se passava em Portugal e no Mundo. Em Dezembro de 1930 (n.° 9) já se encontra neste órgão uma denúncia dos males da Itália Fascista, e, em 1933 (n.° 38), apelida-se a política de Hitler de «terrorista». Se as nossas investigações estão completas, parece ser nesta revista que pela primeira vez se fala em Portugal do escritor russo Fedor Gladkov (32), que tanta influência havia de exercer nos escritores neo-realistas portugueses da Primeira Fase, especialmente Soeiro Pereira Gomes. Num artigo «Como deve a literatura de hoje encarar o problema social», Sérgio Augusto Vieira declara, entre outras coisas:

 

«(...) A literatura de hoje tem o perfeito cunho de reformadora. É revolucionária: quer uma moral nova, e, como todo o revolucionário, voltou as costas ao passado».

(...) «A nova literatura, a do pós-guerra, a da pós-Revolução russa firmada ern princípios humanistas, deseja transformar o homem-lobo-do-homem, conceito latino do ódio, no homem-irmão-do-homem, conceito humano do amor e da liberdade. E tem soberbos motivos para isso. Tais são Leonov, Pilniak, Gladkov!»

(...) O literato dos nossos dias, vivendo num período agitado por poderosas correntes políticas e sociais, sente a imperiosa necessidade de intervir no mundo de realidade que o cerca».

 (...) A literatura tem uma missão social a cumprir hoje. Ter intercepção no problema social...» (33)

 

Declaração explícita de engagement, em sintonia com os objectivos do jornal operário A Batalba, em torno do qual se agregaram vários escritores de esquerda como Ferreira de Castro, Assis Esperança, Eduardo Frias, Jaime Brasil, Julião Quintinha, Mário Domingues, Roberto Nobre, etc.. O jornal A Batalha cujo primeiro número foi publicado em 23 de Fevereiro de 1919, até ser assaltado pelos fascistas que se apoderaram do poder pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926 (a que pomposamente se deu o nome de Revolução), e, pouco depois, implacavelmente encerrado pela tirania da extrema-direita, veio na verdade a exercer grande influência na consciencialização ideológica de um sector da intelectualidade portuguesa que, num certo sentido, abriu o caminho do Neo-Realismo.

 

O Socialismo destes escritores era ainda, porém, herdeiro do da Geração de 70. O próprio Ferreira de Castro (1898-1974) ao publicar Emigrantes, em 1928, encontra-se bastante longe do verdadeiro ideal socialista o qual, para os neo-realistas, é incompatível com quaisquer formas de compromisso com o Capitalismo ou com a ideologia ou os ideais capitalistas. A personagem central de Emigrantes, Manuel da Bouça, é um analfabeto sem consciência social ou política, o que não é de surpreender, e o seu único projecto, ao emigrar para o Brasil, é enriquecer, e com os produtos do seu esforço comprar terras, tornar-se proprietário, capitalista e patrão. Era esta, todavia, a realidade que Ferreira de Castro via à sua volta no norte de Portugal. E quando a realidade não evolui ou não se encontra evoluída, não poderá evoluir ou evoluir-se à força dentro do quadro dos romances que pretendem retratá-la. Assim sendo, não ficaria, contudo, tapado o caminho a Ferreira de Castro para uma perspectivação socialista de toda a situação do camponês do norte de Portugal, alienado à mística da terra, como o mostraria amplamente Raul Brandão em O Pobre de Pedir (livro póstumo de 1931).

 

É possível, pois, falar de um individualismo (anti-socialismo?) do romance realista-naturalista pré-neo-realista, mesmo quando ele se preocupa com os problemas básicos (infra-estruturais) da sociedade portuguesa, propósito que nunca caberá dentro de qualquer preocupação ou projecto modernista. E dizemos individualismo porque, quando um escritor põe toda a sua ênfase numa possibilidade individual de promoção, isso corresponde a evitar-se pôr em xeque a organização social que entrava, não a promoção de um, mas de toda uma classe. Pôr em destaque uma ascensão excepcional, ocasional e quase miraculosa de um filho do povo talvez acabe por mascarar a injustiça que está na base do impedimento da promoção do maior número. Se não é bem este o caso de Emigrantes, pois Manuel da Bouça regressa do Brasil não promovido, o mesmo não sucede com A Selva (1930) ou A Lã e a Neve (1974). Roberto Nobre no seu estudo sobre Ferreira de Castro, «O escritor e Manuel da Bouça» (34) comete, pois, um erro que outros cometerão muitas vezes, em relação tanto ao mesmo como a outros «escritores», inserindo-o dentro do Movimento neo-realista. Diz-nos ele: «Era o Neo-Realismo, embora então ainda assim não estivesse crismado». Pois não era, embora se deva dizer que em Eternidade (1934) Ferreira de Castro não andasse dele muito longe.

 

Das várias revistas que surgem por estes anos, e que haviam de preparar o terreno ideológico para o surto do Neo-Realismo, órgãos que, não por acaso, surgiram logo a seguir ao Congresso do Partido Comunista realizado em Moscovo em 1934 (Gleba, Lisboa, Outro Ritmo, Porto, Ágora, Coimbra, etc.) há a destacar, da revista Gládio, cujo primeiro número se publicou em 31 de Janeiro de 1935, um artigo de Álvaro Salema, «O Anti-Burguesismo da Cultura Nova», em que se censura toda a revolta que seja «uma singela atitude intelectual de espírito inconformado perante uma sociedade indiferente». Nele se ataca Antero (o autor de Odes Modernas, não já como figura emblemática do Socialismo, como ainda vemos na revista Pensamento, mas antes como um homem que acabou por refugiar-se na «angústia metafisica»), e a cultura de inspiração burguesa

 

«(...) que limita o mundo com a pretensão de o dilatar inteligentemente, sem olhar para o espectáculo áspero da vida em que se joga o verdadeiro jogo das amarguras comuns e em que se desenrola a trajectória dramática do hornem de sempre».

 

Eis-nos perante uma confrontação séria contra o Socialismo burguês da Geração de 70, o terreno a preparar-se para a sua rejeição. Ora a recusa deste tipo utópico de Socialismo é condição sine qua non para o estabelecimento teórico do Neo-Realismo, ou seja, não há no Neo-Realismo qualquer compatibilidade ideológica com o Socialismo de oitocentos.

 

Esta posição polémica de Álvaro Salema de 1935 será formulada em linguagem mais precisa por Jofre Amaral Nogueira (uma das mais rigorosas formações filosóficas do Neo-Realismo) em ataque dirigido contra António Sérgio que, num artigo para a Revista de Portugal (35) sobre Antero, defendia a linha abstencionista da Geração de 70, e, muito idealisticamente, repetia os pressupostos do Proudhon da decadência (não os do jovem Proudhon) segundo os quais a Revolução teria de ser sempre moral. O escrito de Jofre Amaral Nogueira «Carta ao Sr. António Sérgio», de 15 de Novembro de 1937, é um dos documentos mais importantes de toda a história do Neo-Realismo. Sérgio parecia não só acreditar nas «leis imanentes pelas quais exclusivamente se governa o universo» (36), como atacava o ponto mais vulnerável da ideologia do Neo-Realismo (ainda a modelar-se), ou seja, os próprios fundamentos filosóficos dele, o Marxismo-Leninismo, ou melhor: o materialismo dialéctico. Sérgio chega, com efeito, a declarar dogmaticamente que «a noção de dialéctica é incompatível com a de materialismo».

 

O ataque de Jofre Amaral Nogueira é frontal, extremando finalmente os campos ideológicos em confronto. Ficava assente que a Nova Geração, de que o jovem adversário de Sérgio era um dos arautos, repudiava o idealismo dessangrado não só da Geração de 70 (37), como a de qualquer outro idealista que com ela se encontrasse em sintonia de posições ideológicas. A defesa do materialismo dialéctico contra a inconsistente argumentação filosófica de Sérgio (38) corresponde a ultrapassar-se finalmente em Portugal o impasse ideológico da Geração de 70 e à proposta prática do Socialismo marxista contra o Socialismo idealista, utópico, anti-revolucionário e burguês de oitocentos. A necessidade de firmar posições dessa Nova Geração leva Jofre Amaral Nogueira à redacção doutro artigo fundamental no Sol Nascente, «O Papel duma Nova Geração», onde, mais claramente, vem à estacada sobre o corte com o passado doutrinário, tido como herança a repelir de uma vez por todas:

 

«(...) uma das características da sociedade liberal era exactamente o culto mistificado do indivíduo. Julgando-se a expressão final, no campo colectivo, das possibilidades humanas, julgando-se mais do que a sociedade ideal - a sociedade natural, ela julgou-se susceptível apenas de pequenos retoques e abandonou ao indivíduo isolado (aparentemente para todos, realmente só para alguns) o único progresso que lhe parecia possível: o individual. Daqui a importância tomada pela educação, pelo pensamento, pela arte, como coisas individuais: a educação pela educação, o pensamento pelo pensamento, a arte pela arte. É a época dos clercs (39) e é a época também das gerações que nascem da crítica acerba aos costumes do seu tempo, mas que amadurecem pela traição lenta ou rápida às suas posições juvenis. É o caso, apesar de tudo e por mais trágico que seja, dum Antero, dum Oliveira Martins, da ironia dum Eça e do isolamento dum Herculano» (40).

 

 

3. ALGUNS ACONTECIMENTOS E LIVROS QUE INFLUENCIARAM O SURTO DO NEO-REALISMO

 

Estaremos agora em posição de regressar a Alves Redol que, antecipando as expressões «educação pela educação», «pensamento pelo pensamento» e «arte pela arte», usadas por Jofre Amaral Nogueira, em 1938, mas seguindo fielmente Plekhanov, fazia, dois anos antes (1936), uma conferência na Associação de Construção Civil em Vila Franca de Xira sob o título «Arte». Essa conferência, quanto à sua estrutura, reduz-se a três grandes linhas afirmativas (utilizamos as próprias expressões de Redol):

 

1.º «A arte pela arte é uma ideia tão extravagante em nossos tempos como a de riqueza pela riqueza, ou de ciência pela ciência»;

2.º «Todos os assuntos devem servir em proveito do homem, se não querem ser uma vã e ociosa ocupação; a riqueza existe para que toda a humanidade goze; a ciência para guia do homem; a arte deve servir também para algum proveito essencial e não deve ser apenas um prazer estéril»;

3.º «A arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social».

 

É deste espírito que nascerá a polémica com a Presença. João Gaspar Simões publicava na Revista de Portugal, o seu «Discurso sobre a Inutilidade da Arte» (1937), obviamente inspirado pelo prefácio de Théophile Gautier a Mademoiselle de Maupin (1835), e, exactamente no mesmo número, Sérgio escrevia o texto que Jofre Amaral Nogueira impugnaria, discurso que constituiu mais um desafio a uma Nova Geração que, nesse mesmo ano, vivia ardentemente o drama da Guerra Civil de Espanha, facto histórico perante o qual os presencistas manifestavam a maior das indiferenças.

 

Cabe aqui abrir um largo, mas bem necessário parêntesis, para relembrar acontecimentos da história política europeia de meados dos anos 30 que foram de importância extrema para o despertar da militância dos intelectuais portugueses que se opunham ao clerc intelectual presencista que discursava sobre o nulo papel que a Arte poderia desempenhar como plataforma para a consciencialização das massas. Em 12 de Fevereiro de 1934 havia ocorrido em Vincennes um facto tido por extraordinário: a união entre Socialistas e Comunistas, da qual derivou a aliança entre a Section Française de l'Internationale Ouvrière (SFIO, o partido socialista) e o Partido Comunista. Esta fusão entre os objectivos do proletariado com os da classe-média só se tornou possível à custa de vários factores, um dos quais importa aqui salientar: alguns intelectuais eminentes, até então em vilegiatura nas respectivas Torres de Marfim, abandonaram o seu isolamento, a sua «inutilidade», restituindo à esquerda o prestígio intelectual e moral que ela havia perdido. Encontrava-se formada a famosa Frente Popular que, mais do que coligação de partidos, era uma irmandade de largo número de organizações. Estas, embora de diferente importância e projecção política, encontravam-se em uníssono, empenhadas em não deixar que o Fascismo, à semelhanca da Alemanha, Itália e Portugal, se estabelecesse em França. Originalmente o objectivo desta aliança foi organizar demonstrações de massa através de todo o país, por ocasião do 14 de Julho de 1935, em que os participantes jurariam permanecer unidos na defesa da democracia. Marchando lado a lado, gritando as mesmas palavras de ordem, acusando os mesmos inimigos, as massas aperceberam-se da sua força. Tudo isto fez lembrar os dias heróicos da Revolução de 1789.

 

Nesta altura não se pensava que os partidos que haviam constituído a Frente Popular pudessem um dia voltar ao seu velho e crónico isolacionismo. O que se passava em França acabaria por ter o seu reflexo em Espanha, onde a Frente Popular do país irmão ficou constituída em 15 de Janeiro de 1936, reunindo no seu seio o Partido Socialista, o Partido Comunista, a Esquerda Republicana, a União Republicana, a União Geral dos Trabalhadores, o Partido Republicano Federal, etc.. Nesse mesmo ano, em França, tiveram lugar eleições gerais. Verificou-se que no primeiro escrutínio os votos dos comunistas haviam passado de 783.000 (1932) para 1.468.000 (1936). Iria a Extrema Direita reagir no segundo escrutínio? Tal não aconteceu; e, em 3 de Maio de 1936, a Frente Popular francesa ganhava um total de 376 lugares na Assembleia Nacional, mais do que a maioria absoluta, o que emulava o célebre 16 de Fevereiro de 1936 espanhol em que, de 453 deputados eleitos, 257 pertenciam à Frente Popular (41).

 

Não cabe dentro do âmbito deste livro historiar o que foi o «apogeu e decadência» das Frentes Populares francesa e espanhola, os sonhos e as desilusões, os epílogos trágicos delas, o primeiro dos quais foi a Guerra Civil Espanhola que eclodiria no próprio ano de 1936, a 17 de Julho. Cabe, sim, salientar que entre as hostes daquela parte da intelligentsia portuguesa que vivia intensamente os problemas políticos, e desejava comparticipar na luta contra o Fascismo, de que os portugueses já tinham uma experiência de sofrimento na pele de mais de dez anos, não podia haver realmente grandes complacências para com aqueles escritores (por muito modernistas que fossem) que se encontrassem ou se confessassem mais ou menos desligados dos «destinos do mundo».

 

Dizer que o contexto histórico da luta francesa e espanhola contra a ameaça do Fascismo não desempenhou um papel de primeiríssima importância na consciencialização política dos escritores portugueses que iriam fazer o Neo-Realismo seria tentar estabelecer um tipo de desvinculação História-Política-Literatura sem qualquer sentido, e que, aliás, nunca ninguém poderá tentar por perfeitamente absurda. Nas revistas principais onde por esta época se teorizou e praticou pela primeira vez o Neo-Realismo, Sol Nascente e O Diabo, éevidente o espírito de sintonia com a própria vida política das Frentes Populares e com todas aquelas manifestações culturais que a reflectiam. Entre os livros, como sempre vindos de França, mas onde se praticava o ideário marxista-leninista, há que destacar dois que se tornaram universalmente populares entre os intelectuais da esquerda portuguesa, La Crise du Progrès de Georges Friedmann e La Conscience Mystifiée de Henri Lefèbvre e Norbert Guterman. O primeiro destes livros chegaria a ser longamente parafraseado num extenso texto de Luis Vieira «Para uma explicacão concreta dos intelectuais pseudo-livres», publicado nos n.os 42 e 43-44 de Sol Nascente (Janeiro e Fevereiro-Março de 1940), mas é importante notar que, nessa espécie de resumo, fica pouco claro que o que se põe profundamente em questão no livro de Friedmann é o Capitalismo, sobretudo a forma como este se aproveita do trabalho das massas, com promessas ilusórias de um futuro melhor para todos, quando o futuro melhor no Capitalismo foi, segundo Friedmann, sempre o de uma élite. Fica ainda obscuro no sumário de Luis Vieira como o surto do Fascismo se encontra, segundo ainda Friedmann, profundamente ligado a um Capitalismo que tem de se apoiar em militares (mais ou menos comprados ou mais ou menos vendidos) para poder sobreviver da força que estes lhe podem garantir. De tal aliança, onde se torna conspícua a presença da Igreja, nascerá o Estado Corporativo. Por razões que não é necessário mais esclarecer, o articulista passa mesmo em claro a última parte do livro de Friedmann, ou seja, Capítulo IV, «Le Partage des Chemins» (42), especialmente os subcapítulos «Le Marxisme et l'héritage humaniste» e «L'Homme peut donner davantage», onde se propõe a filosofia do materialismo dialéctico como a única proposta capaz de redimir o proletariado destruído pela prática capitalista das doutrinas de Taylor e Ford.

 

Claro que o papel do materialismo dialéctico, sempre segundo Friedmann, seria precisamente alertar as massas trabalhadoras para a verdadeira natureza dos seus problemas, chamar-lhes a atenção para o carácter operatório da engrenagem da exploração montada pela alta-burguesia monopolista, levá-las a entender as contradições de uma sociedade cuja classe média se encontrava compelida a manter-se fiel a forças que também a iam explorando e emprobrecendo, embora lhe garantissem uma ilusão de dignidade social que a colocava bem acima do extracto mais baixo: os trabalhadores industriais ou camponeses totalmente marginalizados. De uma consciencialização adequada de todas estas questões candentes, por via de uma inteligência correcta do que devesse ser o verdadeiro Socialismo, surgiria uma Sociedade Nova, um Humanismo Novo, que procederia à definitiva abolição da propriedade privada, e à materialização de todas as reinvindicações populares que, mais tarde, depois de 1945, se haviam de tornar na base operatória económica e política das Repúblicas Democráticas Populares.

 

Luis Vieira é obrigado pela força das circunstâncias a denunciar a intelligentsia que, perante o fracasso do Capitalismo industrial em resolver os problemas básicos da Humanidade, se refugia no irracionalismo, no subjectivismo, na fenomenologia, no bergsonismo, etc. - teses aliás também de Friedmann - mas que já haviam amplamente servido como armas aos neo-realistas na grande polémica que os opôs aos presencistas.

 

La Conscience Mystifiée de Gutermann e Lefèbvre, também de 1936, andava, com menos minúcia de análise, em torno dos mesmos princípios teóricos e da mesma ideologia. Outros livros foram de importância capital neste período: todos os de Lefèbvre, vários de Georges Politzer (entre os quais se deve destacar os Principes Élementaires de Philosophie, introdução simples ao estudo do materialismo dialéctico e que era um apanhado das lições proferidas por Politzer em 1935-1936 na Université Ouvrière de Paris, Révolution et Contre-Révolution au XX.e Siècle, Le Bergsonisme, une mystification philosophique; L'Origine des Mondes (1936) de Paul Laberenne, assim como os dois volumes À la lumiere du Marxisme, especialmente o segundo, onde se faz a crítica não só dos socialistas utópicos, como a de Auguste Comte, e, como não podia deixar de ser, a de Bergson.

 

Circulavam também como textos de rotina as obras de Auguste Cornu, de 1934, La Jeunesse de Karl Marx e Moses Hess et la gauche hegélienne; traduções de Karl Marx, Friedrich Engels, Lénine (especialmente o Matérialisme et empiriocriticisme), e Plekhanov, cujos textos desempenharam um papel muito especial no desenvolvimento do Neo-Realismo. Na verdade, mais que Les questions fondamentales du marxisme, tornar-se-ia leitura obrigatória, a partir de 1934, o seu livro, hoje clássico, A Arte e a Vida Social. Éesta obra, aliás publicada pela primeira vez em 1911, que se tornará no ponto de partida da estética literária marxista. Entre nós, era já conhecida em 1934, o que sabemos não só por vários depoimentos pessoais como pelo facto de aparecer citada, nesse mesmo ano, na revista Gleba (43).

 

A grande importância de A Arte e a Vida Social de Plekhanov é permitir uma argumentação alternativa contra os adeptos da «arte-pela-arte». Como é sabido, baseavam-se estes nas afirmações pioneiras de Théophile Gautier no prefácio a Mademoiselle de Maupin, algumas das quais se tornaram nos slogans bem humorados dos diletantes das letras, ou dos «líteras» de café, como por exemplo, «l'endroit le plus utile d'une maison, ce sont les latrines», ou «à quoi sert la beauté des femmes?», «tout ce qui est utile est laid» e outros mimos que Oscar Wilde muito gostaria mais tarde de decadentemente parafrasear para delícia dos ociosos pseudo-inteligentes de salão. A verdade é que o fragilíssimo texto de Gautier, embora brilhante, deu no gôto a uma burguesia intelectual ansiosa de novidades e, sobretudo, originalidades, uma élite que se comprazia em ofender o establishment burguês ou a pô-lo em questão, em escandalizá-lo, a desafiar-lhe os valores, etc.. O artista encantava-se em colocar-se a desafiar a sua própria classe, mas muito longe de desejar que a ordem social, tal como a conhecia, sofresse qualquer modificação. É esta a denúncia fundamental de Plekhanov em relaeão a um tipo de artista, aparentemente «revolucionário», mas que, bem vistas as coisas, até pretendia que a boa da sociedade que atacava fosse e continuasse a ser como era, para que, em relação a ela, ele, artista, personalidade de excepção, se pudesse impôr como raro. Nessa raridade ou nessa excepcionalidade residiria, afinal, a única originalidade. Se a ordem social se subvertesse a favor das classes desfavorecidas, em que se tornaria tal originaliclade? Numa excrescência do passado.

 

Toda a argumentação de Plekhanov (interpretação certamente pessoal) parece-nos centrada em torno do que pode ser uma resposta à pergunta de Gautier: «Y a-t-il qualque chose d'absolument utile sur cette terre et dans cette vie où nous sommes?» Sim, é a resposta de Plekhanov, tudo o que possa contribuir para que no mundo se estabeleça uma maior justiça social, para o que é necessário que, antes de mais nada, fiquem bem denunciados os desmandos do homem. O artista deverá centrar a sua obra em torno dessa Ideia básica, não deverá limitar-se ao auto-comprazimento do seu ego, a partir do qual acaba por ver o mundo desfigurado, perdidas todas as ligações profundamente sérias com o mundo concreto. Ora, assenta Plekhanov, tudo o que contribua para que se atinja um estado de maior justiça social, tudo o que traga um contributo positivo para que a opressão acabe, tudo isso é progresso social, e uma arte ligada a esta Ideia estrutural é certamente uma arte socialmente progressiva. Progressiva no sentido de se considerar como superior a posição em que se coloque o artista no centro dos acontecimentos do mundo, e não acima ou ao lado deles. O refocilar nas experiências mais ou menos intimistas do ego, que se auto-considera superior e se define como excepcional, não conduz a nada que profundamente interesse a uma sociedade onde predominam a opressão, a desigualdade e a injustiça.

 

O que é curioso - e esta é uma das contradições fundamentais de Gautier - é que ele acaba por nos dizer que «la jouissance me parait le but de la vie, et la seule chose utile au monde». Ora, pois, se há uma coisa útil, essa é o prazer, ela será tanto mais útil quanto mais a humanidade puder vastamente usufruí-lo - e tal só pode acontecer se houver uma reorganização tão profunda dela que esse usufruto não se limite a alguns mas a um número cada vez maior. Logo, Gautier estabelece um «princípio utilitário», no parágrafo a seguir àquele em que declara solenemente: «les principes utilitaires sont bient loin d'être les miens».

 

Plekhanov redige, pois, no princípio do século, o estatuto da arte útil contra a arte inútil, encontrando-se a primeira intimamente ligada ao Marxismo-leninismo, ou seja, àquela concepção do Marxismo-leninismo cujo objectivo final é a liberdade para todos os homens, e, de maneira nenhuma, uma nova forma de opressão.

 

Exposto isto, muito sumariamente, há que reiterar que a conferência de 1936 de Redol tem, pois, naturalmente, como fonte directa o livro de Plekhanov, da mesma forma que as declarações presencistas sobre a inutilidade da Arte (Gaspar Simões, Régio ou mesmo Casais Monteiro) glosavam, um século depois, as teses de Théophile Gautier, com ar de grande novidade e sobranceria aristocrática. Não havia mais originalidade no primeiro do que nestes últimos.

 

 

4. ALGUNS PONTOS FULCRAIS DA POLÉMICA ENTRE NEO-REALISTAS E PRESENCISTAS (1937-1939)

 

Nas revistas Pensamento, Gládio, Gleba, Ágora, Outro Ritmo, etc., há já, portanto, uma polémica latente contra o aristocratismo dos movimentos modernistas e uma posição clara de hostilidade contra os chamados Mestres do Orpheu, como tal proclamados pelos corifeus da Presença, mas não apelidados ou considerados como tais por outros escritores portugueses que, nem por isso, deixavam de se considerar modernos. Estes reivindicam, aliás, o seu direito a um tipo de modernidade que não era, já se sabe, a do Modernismo, mas que não deixava, apesar de tudo, de ser modernidade ou actualidade. Um dos grandes escritores do Neo-Realismo, José Gomes Ferreira, nascido em 1900, cerca de vinte anos mais velho do que os jovens que, pelos fins dos anos 30, início dos anos 40, produziriam as primeiras obras neo-realistas, dá-nos este depoimento importante do que já era atitude de um certo número de jovens escritores portugueses relativamente ao «mestrado» do Orpheu:

 

«... os nossos guias em 1921 não eram, nem poderiam ser, Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro. Como Mestre elegêramos Raul Brandão (...) em que os componentes do grupo encontravam não só o Espanto, a Caricatura, o Absurdo, o Desumano e o Desvario do planeta circundante, mas também a Fraternidade e a Revolução Inverosímil imanente. Ao lado de Brandão colocávamos o Fialho dos contos rústicos, a verdade camponesa do incomparável Aquilino das Terras do Demo, Camilo, Dostoievski, Tolstoi, Gorki, Strindberg... É manifesto que, movidos por estes semideuses (posto que eu sempre evidenciasse simpatia por tudo o que cheirasse a vanguardismo e modernidade), nunca consentiríamos em pautar a nossa visão do mundo pela de Sá-Carneiro, definida em versos deste teor, que só me chegaram às mãos em1937, data da publicação de Indícios de Oiro pela Presença (passaram-me despercebidos na Contemporânea):

 

«Ganhar o pão do seu dia

Com o suor do seu rosto...»

- Mas não há maior desgosto

Nem há maior vilania» (44)

 

O que quer dizer claramente que a mensagem da «arte-pela-arte» ou da arte de Gautier não passara a todos os escritores que, à perspectiva de hoje, não nos parecem (pelo menos a nós), de forma nenhuma, menos modernos que os «modernos» do Primeiro e Segundo Modernismo.

 

É em 1937, ano por todos os motivos crucial, que surge, ainda, o primeiro ataque em forma à poesia de José Régio. Num artigo sob o titulo «José Régio - Casais Monteiro, poetas», assinado por Mando Martins, escreve este crítico:

 

«... Régio é o poeta de si. Quase todos os seus versos cantam as baixezas e heroísmos banais do seu eu enorme (...) A poesia de Régio é uma casa fechada sem janelas para a rua; lá dentro, às escuras, um homem torce-se em combates e dores que não procuram a comunicação para se lavarem em amor humano. Esta submissão do mundo do eu do autor e a constante obsecação de si, dão às produções bem trabalhadas de Régio uma arquitectura inútil, a sensação de um estéril esforço em dizer inquietações comezinhas» (45).

 

José Régio, no n.º 21 da mesma revista, «Carta ao snr. Mando Martins», defendendo-se da acusação da sua obra não ultrapassar um «mero onanismo psíquico», afirma recusar-se «a sujeitar as criações do espírito seja a que preconceitos, dogmatismos e fanatismos for». Mando Martins (assinando agora Armando Martins) repele e redução da sua crítica a uma fórmula («onanismo psíquico») que, de facto, não empregou. Recusa, sobretudo, a qualificação de «fanático» que Ihe é atribuída pelo autor dos Poemas de Deus e do Diabo e insiste no ponto de vista ideológico que mais interessa ao Neo-Realismo:

 

«A nossa literatura andou sempre mais presa às substituições de escolas em França do que às mudanças revolucionárias da vida social e do homem português» (46).

 

É do principio de 1938 o aparecimento do ensaio de José Régio António Botto e o Amor. Logo a 6 de Fevereiro desse mesmo ano surge em O Diabo (n.° 176) uma crítica de António Ramos de Almeida, um dos maiores entusiastas do Movimento, o qual nesse mesmo ano se estrearia com um volume de poemas, Sinal de Alarme, que se deve contar entre as primeiras manifestações do Neo-Realismo. António Ramos de Almeida inicia o seu artigo, intitulado «Um livro, um crítico, uma questão» com um elogio rasgado de José Régio. Não são de nenhuma forma postos em questão, quer o seu talento poético, quer o seu talento crítico. Onde surge o conflito é sobre o teor da matéria exposta por Régio no primeiro capítulo de António Botto e o Amor, a que ele deu, muito polemicamente, o título de «Arte pura e arte social». Segundo Ramos de Almeida nele se comete um erro básico: o de supor-se que a polémica entre as «duas gerações» (a da Presença e a que estava a assentar as bases do Neo-Realismo) nada mais era do que uma «luta entre sociólogos e artistas». Era esta, com efeito, a posição tradicional da Presença: desde que uma obra manifestasse preocupações de carácter social, ou ela fosse encarada ou criticada de um ponto de vista sociológico, já não pertenceria ao domínio da Literatura mas ao da Sociologia. Ramos de Almeida pretende repor o problema noutra base, a qual é verdadeiramente a que corresponde ao espírito do Neo-Realismo, ou seja, a base segundo a qual «a polémica arte pura - arte social não se trava entre sociólogos e artistas mas sim entre artistas e artistas». Insiste ainda numa questão fundamental: «a polémica arte pela arte - arte social, em termos absolutos, teóricos e gerais, não tem sentido, reduz-se a uma simples questão de palavras» (47).

 

O artigo é, aliás, pretexto para Ramos de Almeida continuar a ofensiva contra o excessivo subjectivismo dos artistas do Primeiro e Segundo Modernismos. Não que demita as obras destes como nulas, menos importantes, ou irrelevantes. De forma nenhuma. Ramos de Almeida advoga, apenas, a necessidade de uma mudança de ênfase, por razões que, embora por ele não expostas neste artigo, se inserem dentro do espírito que se vivia na Europa histórica do período, conforme atrás salientamos. Afirma:

 

«O artista, abandonado a si próprio, sujeito simplesmente à sua plena liberdade de realização, colocou a originalidade acima de tudo. O artista passou a ter como prirneira e suprema aspiração ser original. Originalidade não somente de fundo, mas sobretudo a mais completa originalidade formal. Do ataque ao formalismo clássico nasceu paradoxalmente um novo formalismo, daí o hermetismo e o esoterismo da arte moderna, da arte pura, da arte pela arte...

(...) Muitos dos artistas modernos partidários da arte pura possuem obras ricas e complexas, mas o conteúdo moral, filosófico, social, psicológico, isto é, o miolo humano que as enche, é hiper-subjectivista, egocentrista, egoísta, alheio à tragédia humana e social do nosso tempo...» (...) Se certos artistas se tornaram, pela força da própria vida e das suas múltiplas circunstâncias, indiferentes à questão social, os artistas que hoje começam, e porque realmente o são não podem ficar indiferentes perante o drama mais flagrante e intenso da nossa época (...). O artista de hoje já não é o homem fim de raça, fim de império, fim de civilização. A geração do Orpheu foi composta por artistas que representavam o canto de cisne de uma certa vida (...). A geração do Orpheu cantou a decadência da sua hora. Presença foi mais longe, realizou uma obra de construção cultural, e hoje pode ser uma ponte entre uma agonia e uma nova aurora, se souber compreender em toda a profundidade a manhã estética que vai nascer».

 

Ramos de Almeida pretende aqui estatuir que a nova geração não deixará de ser de «artistas» e que há a necessidade de compreender os novos «horizontes estéticos» que ela tentará estabelecer, não já circunscritos por uma orientação hiper-subjectivista, hermética, esotérica, egocentrista, etc., cujo miolo é «alheio à tragédia humana e social» do nosso tempo, mas por um «conteúdo moral, filosófico, social, psicológico» que, pelo contrário, se faça eco dessa mesma tragédia. A insistência de Ramos de Almeida na indissolubilidade forma-conteúdo (ainda que não explícita) é, na verdade, o horizonte ideal para que aponta o Neo-Realismo. Mas, como já foi dito (ou ficou implicado), uma coisa era o Neo-Realismo ideal que se predicava, outra o real que se viria a praticar pelos escritores mais polémicos da Primeira Fase. Lembramos novamente a posição de Redol dos primeiros anos, tal como a definiria em 1965: a da «aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura» (48).

 

Esta situação contraditória entre a teoria e a prática derivou em grande medida, a nosso ver, da recusa dos presencistas em verem na nova geração outra coisa que não fosse a vontade de fazerem vingar um novo conteúdo e nada mais, por muito que, desde o ponto de vista da explanação teórica, os neo-realistas recusassem a aceitação da falsa dicotomia como - o quê. As acusações de Régio contra Armando Martins revestem-se de aspectos particularmente graves: a nova geração empenhada numa «arte social», numa «arte útil» encontrar-se-ia imbuída apenas de «preconceitos», «dogmatismos» e «fanatismos».

 

A verdade é que ela denunciava o fim dum ciclo da Literatura Portuguesa, o dos Modernismos, e hoje, cerca de quarenta anos depois, podemos ver, com muito menos paixão, que os «dissidentes» da Presença já haviam diagnosticado esse mesmo fim, diagnóstico que os mais apaixonados defensores do presencismo consideravam como totalmente intolerável. João Gaspar Simões nunca poupara os neo-realistas nas suas críticas; mas, se honestamente terá de reconhecer o talento de alguns, será para, ao mesmo tempo, ir afirmando que se as obras deles são boas, só o são na medida em que se «afastam» dos postulados dogmáticos do Movimento - e eis-nos aqui regressados aos justos desabafos de Mário Dionísio, de 1955, já referidos no primeiro capítulo deste livrinho.

 

Afonso Ribeiro, outro dos pioneiros do Movimento, respondera ainda em Sol Nascente (n.° 29, 15 de Maio de 1938) a um novo ataque de Régio contra «os rapazes» que ousavam criticar António Sérgio, após o que surgem as «Cartas Intemporais» de Régio publicadas na Seara Nova (n.os608 e 609) que são outros tantos textos de oposição ao Neo-Realismo, numa das quais, a publicada em 29 de Abril de 1939 no n.º 611 da revista, se defende a tese de que a literatura brasileira não podia prestar-se a exercer influência na portuguesa, por não ser «a mais indicada». Punha-se aqui em questão a publicidade especial que em O Diabo e Sol Nascente se estava fazendo a Jorge Amado, Graciliano Ramos, Amando Fontes, José Lins do Rego, etc. (49). Régio tinha ido longe de mais, na opinião dos neo-realistas, e o ataque mais virulento não se fez esperar. Ele é publicado também na Seara Nova (n.º 615) e transcrito na íntegra no n.º 37 de Sol Nascente de 1 de Junho de 1939. Assina-o Álvaro Cunhal.

 

O artigo chamar-se-á «Numa Encruzilhada dos Homens», sendo fácil de ver que o próprio título era já polémico, oferecendo-se ao leitor como clara contra-proposta a Encruzilhadas de Deus, título do terceiro livro de poemas de José Régio, aparecido em 1936. O texto de Álvaro Cunhal pode sumarizar-se nos seguintes tópicos:

 

1.º «A humanidade chegou a uma encruzilhada (...) Cada qual tem de cscolher um caminho (...) O destino do mundo está em jogo (...) Há (...) homens que se assustam ou horrorizam. Alguns desses homens afastam-se prudentemente, monologando acerca dos horrores da luta travada (...) O clamor desorienta-os e leva-os a procurar a solidão. Julgam, assim, libertar-se da necessidade de escolher um caminho».

 

Este «primeiro tópico» é uma critica óbvia ao poema «Cântico Negro» de Régio, inserto no livro de estreia do Poeta, Poemas de Deus e do Diabo (1925) que é, sem dúvida, um dos livros mais extraordinários de toda a poesia portuguesa, o que, aliás, nem sequer estava em questao (50). Os versos do poema que, todavia, se põem em questão e se haviam de tornar no «cavalo de batalha» contra o qual os neo-realistas passaram a lançar todos os dardos, como se na verdade esses versos epitomisassem o autêntico espírito presencista, ou tudo o que era a Presença, são os seguintes:

 

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

 

e, do mesmo modo, a estrofe final:

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: «vem por aqui»!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

- Sei que não vou por aí!

 

O segundo dos tópicos de Álvaro Cunhal, relacionado com o primeiro, incide concretamente sobre alguns versos de Encruzilhadas de Deus, os quais se encontram no poema «Mitologia». A certa altura diz o Poeta:

 

Vergo a cabeça sobre o peito,

Concentro os olhos sobre o umbigo.

E um coração que me hão desfeito

Chora de achar-se só comigo...

 

O que permite ao critico estabelecer que

 

2.º «a vida, para esses homens, pouco mais é que a apreciação do próprio cansaço, do próprio desalento, da própria solidão (...) O seu eu passa a ser motivo predominante da sua vida (...) Fugir do mundo barulhento e prenhe de ódios e arnor, para não comparticipar (...) Ficar só, só, só! Adorar o próprio umbigo e cantar!»

 

Daqui estabelece a linha divisória que separa as «duas gerações»:

 

3.º (...) a sorte de milhares de homens depende do caminho que será seguido (...) (Há) artistas que (...) fazem naturalmente reflectir nas suas produções artísticas as preocupações que os obsecam. A única diferença entre estes artistas e os artistas solitários é que, enquanto a obsecação destes é o próprio umbigo, a daqueles é a sorte da humanidade. Mas, quer uns quer outros, põem naturalmente a arte ao serviço de qualquer coisa: nuns, essa qualquer coisa é a vida de milhares de seres; noutros esse qualquer coisa é o próprio umbigo. (O próprio José Régio aconselha cada artista a falar «do que mais profundamente sente, pensa, imagina, sonha, vive, sabe», Seara Nova, n.° 609)»

 

A observação polémica de Régio de que «não se deve confundir literatura (falo daquele aspecto principal da literatura que é a arte literária) com a política ou sociologia, nem a arte literária é propaganda seja do que for» - o que constitui sempre o argumento último dos adeptos da «arte pela arte» - responde Álvaro Cunhal com a posição que pretende ser a que concilie e supere as posições em conflito, numa declaração de princípios que, em 1939, seis meses depois do aparecimento de Gaibéus, era obviamente a de um Neo-Realismo ideal a que Alves Redol não havia obedecido ou que havia arredado do seu caminho como incomportável com o imediatismo da mensagem que se impunha como imperativamente necessário transmitir:

 

4.º «É transparente como água que literatura não é política nem sociologia e que arte literária não é propaganda. Mas não é menos transparente que toda a obra literária - voluntária ou involuntariamente - exprime uma posição política e social e que toda ela faz propaganda seja do que for (inclusivamente do próprio umbigo). Simplesmente, há quem prefira, pelas razões atrás expostas, as obras literárias que exprimem determinada posição política e social às obras literárias que exprimem outra posição política e social. E uma posição política e social não existe só quando se afirma claramente a preferência por um ou outro dos caminhos que saem da encruzilhada, mas existe ainda quando há um afastamento da encruzilhada. Creio - digo-o quase sem ironia - que a «adoração do próprio umbigo» exprime também uma posição (e até uma atitude) política e social...»

 

Foi deste confronto em relação a Régio, em especial, que nasceu, portanto, a acusação genérica e fácil, de que toda a Presença estaria imbuída de umbilicalismo. A palavra fez carreira e foi, naturalmente, extremamente ressentida entre os presencistas, do mesmo modo que as palavras fanatismo e, sobretudo, dogmatismo, constituiram ofensas que os neo-realistas não puderam então (como continuam hoje) a não poder perdoar. O conflito entre as «duas gerações» encontrava-se, portanto, ferinamente desencadeado. Os argumentos dos presencistas iriam, aliás, ser repetidos pelas décadas fora, até hoje, pelos inimigos do Neo-Realismo: a tecla batida foi sempre a mesma, por muito pretensamente inteligente ou originais que os seus detractores se tivessem sucedido na estafeta em que o testemunho a transmitir, afinal, nunca mudou de aspecto, forma, côr, peso ou tamanho. João Pedro de Andrade tentava já, em 1938, lançar água na fervura. Em artigo n'O Diabo (51), observava que na «conturbada atmosfera da nossa época uma consciência se está formando» e que «alguns reflexos dessa consciência chegam até nós». Advertia, porém - e esta advertência tinha em vista os intelectuais da Presença - que «homens vindos de outra época, embora recente, não se encontrassem adestrados para sentir inteiramente a época actual, para moldar ao ritmo dela o seu conceito de vida». Os presencistas pareciam ser, portanto, segundo as palavras de João Pedro de Andrade, insensíveis à grande convulsão política e social que abalava a Europa Ocidental, com a emergência do Fascismo, que já trazia a Espanha em pé de guerra. Do próprio seio da Presença saía um poeta, Adolfo Casais Monteiro, que, embora «defendendo a poesia do contacto mais ou menos obrigatório com as preocupações profanas (...) pensa mais nos outros do que em si». Referia-se ao livro de poemas Sempre e Sem Fim (1937), obra que muito impressionou os neo-realistas que então procuravam caminhos, entre os quais Mário Dionísio. João Pedro de Andrade observava, até, a estranha «dualidade» entre o teórico da Presença e o poeta «prático», achando-a «bela», pelo que representava de «desinteresse e de isenção». Em tal livro, Adolfo Casais Monteiro definiria mesmo «uma poderosa organização de homem social», afirmacão que nenhum neo-realista se atreveu a impugnar. Talvez pela certeza inerente a esta observacão, o crítico declarava:

 

«Assim, uma geração que sucede a outra geração é, mais do que diferente, antagónica da que a antecedeu. Esse antagonismo resulta, em grande parte, do ardor com que cada uma defende as suas convicções. Nenhuma delas é possuidora da verdade suprema. (...) Para anular ou atenuar esse antagonismo seria necessário: que a geração presente ponderasse o quanto são falíveis os juízos assentes sobre entusiasmos excessivos; que a geração passada não supusesse estar de posse da única verdade, e que nos seus conselhos à juventude abandonasse certo tom de irritante protecção, e de exagerada confiança em si mesma que desde logo põe de sobreaviso aqueles a quem se dirige...»

(...) «A geração anterior (a presencista) afirma, por vezes rudemente, a absoluta independência da arte; outras vezes reconhece, expondo conceitos de humanidade adrede forjados, que em última análise a arte é sempre humana e social. A geração actual (a neo-realista) inclina-se para a resposta afirmativa à segunda interrogação, e os seus pareceres são por vezes demasiado rígidos e dogmáticos».

 

Mas o conflito seria apenas (mais um) entre «duas gerações»? Em polémica célebre entre João Pedro de Andrade e Mário Dionísio, travada anos mais tarde e que não cabe aqui historiar, este último proferirá as seguintes palavras (entre muitas outras) com as quais inteiramente concordamos:

 

«Não se trata de uma oposição de gerações (...) mas de grupos sociais, de interesses opostos, de mentalidades opostas, de atitudes opostas, de homens diferentes» (52).

 

O que explica muito melhor o depoimento atrás citado de José Gomes Ferreira. Por isso, um grande poeta como Afonso Duarte (1884-1958), acabaria por também se tornar companheiro dos jovens que lançavam as primeiras pedras do Neo-Realismo. Confronto, pois, entre duas concepções do mundo totalmente diversas. A da Presença - repetimo-lo - não ultrapassava, de um ponto de vista ideológico, um humanitarismo ainda mais dessorado que o da Geração de 70. Não pensava em quaisquer soluções para o mundo, porque os seus representantes intelectuais interessavam-se exclusivamente numa actividade, a do escritor que escreve, a qual pressupunham com tenacidade como ser desligado dos interesses mais gerais (e logo inferiores) do comum destino humano. Não aceitavam que a obra dele pudesse ser, antes de mais e acima de tudo, fruto de uma consciência social, consciência na qual participava a própria singularidade (ou excepcionalidade) psicológica do artista, como reflexo do mundo extremamente vasto e complexo onde se formou «adaptando-se e reagindo em maior ou menor escala, integrada (contra ou a favor e nas várias e subtis gradações que estas atitudes podem assumir) num todo económico, político, social, de tradições culturais ou outras, de ideologias; em suma: no complexo contraditório, instável ambiente de uma época. A partir de tudo isto constrói o escritor, a sua ideologia ou concepcão do mundo, mais ou menos alienada, mais ou menos lúcida, que se manifestará, depois, na sua obra» (53).

 

O caso dos «dissidentes» ou, posteriormente, o de Adolfo Casais Monteiro (sempre, aliás, temível adversário «teórico» do Neo-Realismo), não invalida o que de um ponto de vista neo-realista, profundamente no plano da Ideologia, caracterizou negativamente os homens da Presença: a sua fé na «arte-pela-arte», na «arte inútil»; o seu apoliticismo; o seu idealismo; o seu humanismo humanitarista (à maneira da geração de 70) quando vagamente o havia; a sua crença na reforma moral do Homem, desde dentro; quando mesmo só nesta espécie de reformismo se acreditava; o seu escandaloso descaso pela circunstância histórica do mundo; o seu horror pelas transformações sociais; o seu conservadorismo, quando não o seu reaccionarismo; o seu profundo anti-marxismo, mesmo quando se reinvidicassem de socialismo que não poderia ser senão uma tinta já leve do que haviam palidamente herdado do proudhonismo oitocentista.

 

 

5. PROPOSTAS TEÓRICAS BÁSICAS DO NEO-REALISMO

 

As propostas concretas do Neo-Realismo virão a ser explicitadas com uma certa lentidão teórica. Mário Dionisio em artigo já citado, «S.O.S. Geração em Perigo» (54) dirá, por exemplo (isto em 1939), mais de um ano depois de João Pedro de Andrade ter falado da «querela das duas gerações»:

 

«(...) Do alto da sua autoridade crítica (55), das regiões do absoluto, suspensos no espaço, esbofeteiam heroicamente uma geração... que ainda não existe. Confundem meia dúzia de indivíduos que começam a aparecer, apenas unidos por um mínimo de pontos de vista comuns, com um grupo em plena actividade, subordinado a rígida doutrina».

 

Mário Dionísio parece, pois, acreditar que a geração neo-realista ainda não tem existência em meados de 1939. Até que ponto será esta afirmacão verdadeira? «Meia dúzia de indivíduos» não seria uma forma de diminuir-lhes em excesso as fileiras? Mas diminuir para quê? A verdade é que por essa data ainda não tinha aparecido um livro verdadeiramente neo-realista, a não ser a possível tentativa que constituem os dois últimos contos de Ilusão da Morte (1938), de Afonso Ribeiro, que adiante referimos. Todavia, já tinham publicado poemas, contos e extractos de romances, todos aqueles que, não muito tempo depois, se haviam de tornar nas grandes figuras do Neo-Realismo português, os Mestres dele. Entre estes, os mais precoces Carlos de Oliveira e Fernando Namora, de parceria com Artur Varela (que abandonaria as letras), já haviam publicado, mesmo antes de Afonso Ribeiro, um volume de contos intitulado Cabeças de Barro, com data de 1937, sobre o qual também falaremos um pouco mais adiante.

 

O que é interessante notar é que Mário Dionísio, em meados de 1939, declarava que a «geração» ainda não existia (ou não existia, pelo menos, a consciência de ela já existir), talvez porque para fazer frente à obra já vultuosa dos presencistas, a gente nova não podia responder-lhes com produções acabadas que tivessem peso suficiente para impô-las como geração.

 

Mais, pois, do que uma obra que ainda não existe, diz-nos Mário Dionísio que o que une essa «meia dúzia de indivíduos» é um «mínimo de pontos de vista comuns». Que «pontos de vista»? Pois bem: os que constituirão a base ideológica do Neo-Realismo a aprestar-se para fazer o seu aparecimento na História da Literatura Portuguesa.

 

O primeiro deles parece-nos ser a forma como é contestado o Humanismo burguês de oitocentos, o Socialismo utópico da Geração de 70, como já tivemos ocasião de frisar quando nos referimos ao artigo «O Papel duma Nova Geração» de Jofre Amaral Nogueira. Fernando Piteira Santos, também um dos primeiros teóricos do Movimento, havia, posteriormente, de reiterar tal posição através de algumas palavras lapidares a propósito de Antero:

 

«(Antero)... considerava o movimento proletário estreito, incapaz de avalizar conversõess, assustador para a burguesia. O seu socialismo procedia de uma preocupação moral, de uma generosidade fidalga, de um tradicional cristianismo e não de um exame reflectido do desenvolvimento dos fenómenos sociais (...) Em Antero agita-se o drama de uma época e o drama de urn filho dessa época. O drama de uma classe que experimentava o receio das forças que criara» (56).

 

Esta opinião será, mais tarde ainda (1963), definitivamente esclarecida por Augusto da Costa Dias, importante ideólogo do Neo-Realismo, cuja acção se centra nos anos 60 e 70 até à sua morte (1976):

 

«...A consciência do proprietário (ou melhor do pequeno-burguês proprietário) nunca se apagará em Antero, em Queirós e em Oliveira Martins, para citar apenas os três vultos proeminentes do grupo. E, por isso, o socialismo que defendem é mais um protesto do que um movimento com raízes nas massas; nuns em maior escala do que noutros, não passará de um socialismo conservador que não se atreve a contestar, na essência e na prática, a causa dos males que denuncia e, em última instância, procura inconscientemente deter ou prevenir a proletarização da classe em que se integravam» (57).

 

Ambas estas formulações são tardias, especialmente a última, mas ambas traduzem melhor, em resumo, qual a posição neo-realista que era ponto de fé comum quanto à herança ideológica da Geracão de 70. Que pode o Neo-Realismo oferecer, como programa contestatário, a este Socialismo utópico do séc. XIX? A alternativa do Socialismo marxista-leninista que bem cedo aparece sob a designação eufemística de Novo Humanismo ou Neo-Humanismo. A própria designação Neo-Realismo surge como outro disfarce eufemístico para resignar o Realismo Socialista, ou melhor: todo aquele Realismo cujo ideário pressupunha como filosofia básica o materialismo dialéctico, pelo que se superava, por sua vez, o Realismo Burguês, o Naturalismo ou o Realismo-Naturalismo do século XIX e princípios do século XX, cujo positivismo, à Comte, também se procurava transcender. Se, pelo decurso dos anos 30, surge nas revistas já referidas uma teorização esparsa do marxismo, cujo levantamento detalhado também não cabe aqui fazer, em 1938, no Sol Nascente ainda se gastam páginas para divulgar «o que é a dialéctica» (ou o materialismo dialéctico) (58), a designação Realismo Humanista aparece-nos em O Diabo, n.° 235, de 25 de Março de 1939, em artigo teórico assinado por Mário Ramos, onde, numa das notas, se postula, com a velada clareza que a Censura fascista podia permitir, a mesma posição posteriormente mais bem formulada por Piteira Santos e Costa Dias. Lemos, com efeito:

 

«Os humanistas que possuem o privilégio de se colocarem au delà das coisas reais, fora da praxis, sem a consideração do conflito material, negam automaticamente todo o humanismo. A realização do verdadeiro humanismo coincide com a destruição da Klassenkampf (59). Só nesta medida pode ser considerado. Considerado au delà das coisas reais, é uma alienação da consciência motivada pela falta de consciência das próprias coisas reais».

 

A própria palavra materialismo dialéctico passa a ser referida, muitas vezes, pela abreviatura «diamática» (as primeiras sílabas da designação inglesa dialectical materialism a fim de, da mesma forma, se poderem iludir os censores.

 

Os «pontos de vista comuns» a que Mário Dionísio se refere, ou a comunidade da participação deles, encontra-se bem exemplificada no n.° 234 de O Diabo (18 de Março de 1939) onde se presta homenagem ao editorial do número desse mesmo mês de Sol Nascente, editorial onde se afirmava ser esta revista um órgão de gente nova apostada em reagir:

 

«... contra a metafísica e contra o psicologismo, apoiando-se na obra crítica do pensamcnto diamático; (a) combate(r) pela Neo-Realismo como forma necessária da humanização da arte; (a) defende(r) um humanismo integral que seja verdadeiramente um humanismo humano».

 

Sol Nascente proclamava ainda que tão «grandiosa tarefa» não podia «ser obra de alguns indivíduos, mas antes um desideratum da formação duma verdadeira consciência colectiva», para o qual todos deviam trabalhar «com ânimo forte na edificação da nossa obra comum». O Diabo, ao transcrever tais palavras, afirmava:

 

«Esta obra comum de que fala Sol Nascente é o traballto de uma geração inquieta que erguerá novos valores. Das colunas de O Diabo estendemos a mão a Sol Nascente, novo companheiro de uma mesma ideia».

 

A palavra Neo-Realismo já encimara, pela primeira vez, um artigo de Joaquim Namorado em O Diabo (estudo sobre o escritor brasileiro Amando Fontes (60) ), um dos textos que deve ter estado na base do reparo de José Régio, a que atrás nos referimos. Neste texto de 31 de Dezembro de 1938 observa-se uma perfeita compreensão, pela parte do seu autor, daquilo a que se pode chamar a «estética marxista». Cita-se uma passagem célebre de Friedrich Engels (da «Carta a Minna Kautsky» de 26 de Novembro de 1885), mas Joaquim Namorado vê-se constrangido a referir Engels pela perífrase: «um extraordinário pensador do séc. XIX», o que traduz bem o clima quase esotérico em que se estava a processar a teorização neo-realista.

 

A oposição Humanismo burguês - Novo Humanismo vai, todavia, encontrar a sua melhor formulação teórica só em 1944, na revista Globo (61), quando à pergunta de um leitor «ainda não vi perfeitamente definido o que seja o Neo-Realismo», quem redige a resposta anónima admite logo que «entre as próprias pessoas que aderem a um movimento, nem todas apreendem, desde o início, a sua complexidade, após o que passa a explicar como o Novo Humanismo é uma forma de oposição ao Humanismo burguês de oitocentos e como o Neo-Realismo nada mais era do que a expressão artístico-literária desse Novo-Humanismo. Vale a pena um longo, embora insuficiente, extracto da excelente exposição:

 

«(...) Conhece a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, saída da vitória da Revolução Francesa. O que é a declaração? Sabe bem que o estabelecimento prático da igualdade abstracta entre os homens. Porque digo eu uma igualdade abstracta? Porque, na realidade, os homens nunca se igualaram (...) A Declaração afirma a igualdade e a liberdade abstractas. Olhemos porque são abstactas.

1.º - Parece-lhe possível que, sem um certo nível de educação, um indivíduo possa desempenhar certos cargos influentes particulares ou públicos? Para se ser médico é necessário um estudo aturado (...) Que faz a Declaração? Permite o livre acesso de todos os cidadãos a todos os cargos e profissões. Mas abstractamente, porque nem a todos, que têm condições de inteligência, dá os meios. Para determinado nível de educação é necessário um nível económico determinado, e, assim, acontece que o que, teoricamente, é para todos, é, na prática, só para alguns (...).

(...) Que é a Declaração? A expressão política do humanismo de um grupo social. Um humanismo abstracto que quebra todo o privilégio de sangue, criando a susceptibilidade do homem mais pequenino chegar aos mais altos lugares. Isto é perfeitamente exacto, como o demonstra o exemplo de Ford. Mas raríssimo. Este humanismo é o produto teórico de uma classe ascendente, já afirmado no movimento intelectual burguês da Renascença e que se concretiza, após o Iluminismo e a Enciclopédia, imediatamente à Revolução Francesa, no govemo das nações. Este humanismo, que começou por ser progressivo, como a classe de que é expressão teórica, entrou em contradição com ele própprio na prática porque, partindo da igualdade dos homens, os empurrou para a desigualdade mais profunda. Tendo aceitado, de começo, a ideia de uma moral e de uma política variáveis, conforme as classes e as épocas, embora encobrindo-as sob o manto do direito natural (veja-se o Quixote de Cervantes ou os teóricos da Revolução Francesa), uma vez oficializado, passou à noção de um homem eterno, de uma moral e de uma política eternas. É sem esforço que se vê na sua doutrinação o vão propósito de se eternizar o poder de um grupo social. É, pois, o humanismo de um certo grupo social que é a antítese do humanismo de um grupo social que lhe é oposto. A este segundo humanismo que pretende uma libertação e igualdade concretas do homem dá-se o nome de Novo Humanismo e difere essencialmente do primeiro...»

«... O Neo-Realismo é a expressão artístico-literária do Novo Humanismo...» (oitálico é nosso)

 

Da exposição ainda longa destacamos aqueles pontos teóricos de definição do Neo-Realismo que constituiria o tal «mínimo de pontos de vista comuns», a que se refere Mário Dionisio:

 

1.°) O Romantismo e o Realismo, surgidos no século XIX, não eram senão expressões artísticas do mesmo grupo social: a burguesia possidente. O Romantismo seria profundamente caracterizado pela fuga à realidade, pela «nostalgia de mundos diferentes do nosso» (a Idade Média), o «gosto do fantástico e do singular», o «culto do herói individualista burguês». No Realismo já se observa a crítica da vida quotidiana da burguesia;

 

2.°) O Neo-Realismo «pretende ser a síntese das duas escolas; de uma parte abraçar a realidade para a descrever tal qual é, de outra sonhar uma realidade diferente para que se volta»;

 

3.°) «O Neo-Realismo não procura dar só a realidade, mas também transformá-la. Por isso, faz realçar o heroísmo da luta daqueles que são os meios da sua transformação. Este heroísmo não é o heroísmo individualista do homem isolado, mas o heroísmo de um grupo de que os seus maiores valores são apenas uma afirmação mais clara»;

 

4.°) O Neo-Realismo não pretende ser apenas uma síntese do Romantismo e do Realismo, mas de todas as escolas, porque uma das características do Novo-Humanismo é o aproveitamento de «toda a herança do passado». Aproveitará «mesmo as conquistas presentes da arte que lhe é oposta. Se a arte burguesa tem sido, nos últimos tempos, uma contínua revolução formal, nem por isso o Neo-Realismo deixa de se utilizar destas novas formas»;

 

5.º) O Neo-Realismo «não compreende o homem desligado da vida social e encara-o, portanto, de um ângulo diferente de observação, mas deseja também o maior aprofundamento do indivíduo. Serve-se de todas as descobertas fecundas do interiorismo e apenas rejeita o que lhe parece tão só fruto de uma imaginação sem controle» (62).

 

Um outro artigo extremamente importante (e hoje histórico) é aquele em que Mário Dionísio consegue esclarecer, exemplarmente, outro dos «pontos de vista comuns» que os detractores do Neo-Realismo se recusavam a entender. O artigo foi publicado no dia 3 de Janeiro de 1945 na página literária de O Primeiro de Janeiro e dele destacamos apenas a passagem em que o seu autor defende o novo Movimento da acusação de este ter como assunto exclusivo os «miseráveis», ou a «criada de servir com o filho ilegítimo ao colo», como mais tarde (1963) Vergílio Ferreira, desejou ainda caricaturá-lo (63). Diz Mário Dionísio:

 

«... O Neo-Realismo não se debruça sobre o povo: mistura-se com ele a ponto das suas obras não serem mais que uma das muitas vozes dele. E, por isso, não está interessado (como, com tanta injustiça, se tem pensado) em limitar o seu campo a este ou aquele personagem, a este ou aquele meio. Está interessado sim, para poder bem reenquadrar o homern no seu todo social, em concretizar a sua visão do mundo, em cada caso e em todos os casos. É, portanto, completamente falso que um operário, uma criada de servir, um pescador sejam preferidos pelos neo-realistas, como personagens, a um industrial, a uma filha de família ou a um banqueiro. Outro aspecto da mesma barreira entre o populismo e o Neo-realismo encontrará qualquer pessoa: a observação abstinente de um e a observação actuante do outro. Para o neo-realista, não se trata de copiar a natureza, como o Naturalismo pretendeu, nem de interpretá-la, como tem feito com tanto êxito o Modernismo, mas de transformá-la. Os neo-realistas pensam que os indivíduos são um produto do meio mas que, por sua vez, esse meio é, em grande parte, produto das suas mãos. Por isso mesmo o Neo-Realismo (cujo nome é considerado deficiente mas aceite por de momento ser impossível encontrar-lhe outro mais feliz) não se limita ao velho conceito de objectividade.

O seu conceito de objectivo, e portanto de real, considera indispensável, como se disse já, o momento do subjectivo. Éo que explica a necessidade de coexistência de Realismo e de Romantismo para a existência de Neo-Realismo. Por um lado, a narração da verdade, da verdade sem deturpação, tal como só pode vê-la e amá-la um homem ascendente; por outro lado, e simultaneamente, o sonho - sern o qual nenhuma obra pode viver e actuar, o sonho melhor de todos os sonhos – que é o que parte do real e tende para ele...»

 

Estas respostas, pelo seu vigor, se manifestavam em 1944 e 1945 uma noção teoricamente exacta do que era o Neo-Realismo, equacionados finalmente os seus princípios com uma exactidão e economia de termos que não foram possíveis antes, não significa que os responsáveis teóricos pela doutrinação tivessem levado anos a descobrir o que ele fosse. É certo que, como implicaria Mário Dionísio no já citado artigo «S. O. S. - Geração em perigo» ele precisava ainda (Agosto de 1939) de ser feito na prática, através de «obras portuguesas», e não apenas à custa de análises dos livros brasileiros, franceses ou russos que Ihes servissem de modelos, mais ou menos afastados, do que os nossos escritores acabariam finalmente por vir a fazer. A verdade é que, por 1944-1945, a teorização já feita em Sol Nascente e O Diabo, com o carácter pouco sistemático que não podia deixar de ter, em breve se tornaria num free-for-all. Todos interpretavam como queriam, reinava tal confusão, que Mário Dionísio, na entrevista de 3 de Janeiro de 1945 de O Primeiro de Janeiro, tinha de advertir:

 

«A frequência com que ultimamente se tem escrito, em todos os tons, sobre o Neo-Realismo é de molde a cativar os que, à sua propagação entre nós, têm dado o melhor do seu esforço. Infelizmente, porém, fala-se de tudo menos de Neo-Realismo. Motivos circunstanciais têm impedido o tratamento do caso com aquela clareza que desfaz os equívocos definitivamente. E por isso não é, infelizmente, invulgar encontrarmos artigos em que se pretende propagar e até defender o Neo-Realismo, atribuindo-lhe pontos de vista que não são nem nunca foram os dele. Há quem o julgue caracterizado apenas pelo facto de se preocupar com questões sociais, ou por tratar de certos personagens, ou ainda, no mais santo dos desconhecimentos, por ser feito por pessoas jovens... Todos os dias aparece um autor intitulando-se publicamente neo-realista porque publicou um romance sobre varinas ou criadas de servir. E todos os dias aparece um crítico que censura severamente o Neo-Realisrno, considerando como tal todas as convicções de tais autores». (O itálico é nosso).

 

Um crítico como Raul Gomes, por exemplo, escrevia em 1944, na Seara Nova:

 

«Não nos parece que seja indispensável para escrever romances neo-realistas conhecer os princípios teóricos do Neo-Realismo» (64).

 

o que se encontra em perfeita contradição com aquilo que Rui Feijó, outro dos animadores e teóricos do Neo-Realismo, escrevia, com muito mais inteligente conhecimento de causa, na mesma revista, um ano antes:

 

«Com boas intenções, mesmo com boa observação, faz-se, por exemplo, um romance populista. Mas não se faz um romance neo-realista sem consciência» (65).

 

Se existia esta divergência entre críticos no próprio seio do Movimento, não temos que nos surpreender que em 1944 e 1945, escritas já algumas das obras básicas do Neo-Realismo, houvesse ainda necessidade de explicar, escolarmente, o que ele era. Esta necessidade não decresceu nas décadas de 50 e 60, mas ela derivou fundamentalmente dos ataques dos detractores que, por incompreensão ou espírito polémico, lhe atribuíam erradas intenções. Tal atitude de oposição pode considerar-se hoje como definitivamente ultrapassada.

 

 

MANIFESTAÇÕES POÉTICAS E EM PROSA DE FICÇÃO DO NEO-REALISMO ATÉ AO «FIM» DA PRIMEIRA FASE (1950)

 

Aceitemos, pois, por questão de «prática provisória», a existência de uma Primeira Fase no Realismo. Ela deverá coincidir, por consequência, como já dissemos, com aquele período de tempo em que se terá travado uma batalha pelo conteúdo, pelo assunto, epitomizável pela epígrafe de Alves Redol a Gaibéus. Admitamos, ainda, que o espírito criado por ela, ou que ela transmite, é a nota predominante ou a mais relevante desse período, a que, pelo menos, mais impressiona a sensibilidade do leitor, mais a fere, mais a acorda para a novidade da mensagem do novo Movimento. Podemos até oferecer aqui um pequeno texto de Mário Dionisio em que este esteta do Neo-Realismo (tão preocupado sempre em que não fosse possível sobreporem-se os campos da Literatura com os da Política ou Sociologia), declarava polemicamente na Seara Nova, por altura das primeiras eleições pretensamente livres que Salazar se viu constrangido a fazer depois da guerra:

 

«Se alguérn me perguntar qual o mais belo, mais poético, mais humano tema para um poeta neste momento, eu lhe responderei sem hesitação: eleições livres, eleições livres, eleições livres» (66).

 

Aceite este pressuposto, mas insistindo ainda sobre o facto incontrovertível de que para a maioria dos neo-realistas a batalha pelo conteúdo raro se terá separado de uma batalha pela forma, façamos um levantamento, forçosamente incompleto nesta obrinha, das primeiras manifestações em prosa de ficção e em poesia do novo Movimento.

 

Pensamos que devemos considerar alguns poemas de Mário Dionísio publicados em Sol Nascente, ern 1937, como as mais antigas que, em data, é possível encontrar, imbuídas já do espírito do novo Movimento.

 

Estes poemas intitulam-se «Caminho», «Complicação» e «Poema da Mulher Nova», tendo sido publicados nos n.os 7, 12 e 13 daquela revista (67). Neles se fala em nome não de um eu, mas de um nós, de um «caminho» de que os homens oprimidos passaram a dispor para sua libertação (primeiro dos poemas); das dificuldades a vencer e dos obstáculos a transpor para se fugir «à igualdadc eterna, seca, estéril, fútil da planície» (segundo poema), e, da «mulher nova» (terceiro) com que o Poeta se identifica:

 

Vejo-te em mim quando me sinto massa

com muitos milhões de braços e de pernas e uma cabeça de anjo.

 

Não conhecemos poesia anterior a esta em que haja da parte de qualquer poeta a confissão de uma identidade absoluta com a massa dos homens, vencido aqui, polemicamente, o eu individual ou singular ou excepcional do artista, que o autor declara ultrapassar, ainda que não com absoluta exclusão do eu que também é, porque o «quando» é restritivo, abrindo a porta à liberdade do Poeta ressalvar a sua individualidade. Faltará saber se quando fala em nome do seu eu individual, esse eu não será tangente ainda a um nós, como podemos verificar que de facto é se lermos a colectânea em que estas poesias serão mais tarde reunidas (68).

 

Pensamos que estes poemas, pela forma como são bem representativos do espírito polémico da Primeira Fase, devem ter precedência em relação às crónicas que Alves Redol já havia publicado em O Diabo, sob a rubrica «De Sol a Sol». Mais ou menos pela mesma data em que Dionísio publica os poemas citados, apareceriam mais duas, «As Lezírias» e «Campinos» (69), em que, todavia, o seu autor sacrifica ainda ao pendor etnográfico, nele confessadamente despertado por estímulo de Rodrigues Lapa, um dos directores da revista, grande animador intelectual dos jovens que lhe imprimiram, pela sua colaboração, uma feição inteiramente nova. É o filão «etnográfico a explorar» a que se refere no prefácio do seu livro de estreia Glória (70) publicado em 1938, onde se recolhem textos que não diferem, pela natureza, dos que tornara até então públicos em O Diabo, e que continuaria a divulgar, mesmo depois do aparecimento de Gaibéus.

 

Mais dentro da nova corrente parecem-nos estar alguns textos de Afonso Ribeiro, que este incluiria no seu livro Ilusão na Morte, publicado por «Edições Sol Nascente», Porto, em 1938. Trata-se de uma colectânea de sete histórias de que só as duas últimas «Será sempre assim?» e «Pobres de pedir» dão mostras do início da mesma reviravolta. Aliás, em escritos polémicos de Sol Nascente, «Cartas de um imaginário camponês a um senhor verdadeiro da cidade» (71) o autor proclamava a necessidade de se olhar para o campo com olhos diferentes daqueles a que o burguês da cidade estava acostumado quando vinha passar o mês de Agosto «à quinta». O que se propõe nestas «Cartas» é que seja prestada uma atenção toda nova à vida trágica do camponês:

 

«Falar no homem do campo, no trabalhador da terra e esquecer suas angústias inconfessadas, seus músculos doridos, seu olhar triste - da tristeza horrível que nada aguarda, nada! - parece-me feio embuste» (72).

 

Estes textos constituíam uma forma de demitir, como irrelevante, qualquer visão idílica do «homem do campo», a que ainda se aceitava como típica do lavrador, legado de Júlio Dinis, embora já ultrapassada por Raul Brandão, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro, em termos do socialismo humanitário que já excessivamente caracterizamos.

 

Nas duas histórias «Será sempre assim?» e «Pobre de Pedir», de Ilusão na Morte, de Afonso Ribeiro, com que o livro se conclui, há com efeito, um tipo de camponês, Lourenço, que se revolta surdamente contra o facto de não lhe pertencer a terra que sempre trabalhou, e da qual é expulso pelo patrão, o Dr. Abílio, que «nunca mexera uma palha» (73). Impotente, no seu justo protesto, exclamará: «Mundo muito mal feito. Uns com tudo, outros sem nada. Homens trabalhando para outros homens, como servos. Será sempre assim?» (74). Surge neste conto, ainda, a noção revolucionária de que a «terra é de quem a trabalha», através da desarmada contestação de Lourenço: «Os campos eram de quem os cultivava» (75).

 

Observe-se, neste passo, que a noção do camponês trabalhar uma terra que não lhe pertence, a consciência da alienação em relação aos meios de produção, surgira já num autor muitíssimo jovem que viria a tornar-se numa das figuras máximas do Neo-Realismo: Carlos de Oliveira. Com efeito, em 1937, como já referimos, este escritor, com Namora e Artur Varela, publicariam, de parceria, o volume Cabeças de Barro (76), onde se destaca o conto «Terra Alheia», de Carlos de Oliveira, pela presença da noção concreta da alienação camponesa, embora não haja vestígios de uma atitude no contista que ultrapasse o que se pode encontrar no Ferreira de Castro de Eternidade (1933). Cabeças de Barro tem hoje apenas interesse histórico. Carlos de Oliveira, nascido em 1921, tinha então dezasseis anos de idade; Fernando Namora, nascido em 1919, iria pelos dezoito. Tratava-se das primícias de dois dos maiores romancistas do Neo-Realismo português. Fernando Namora publicaria dois livros Relevos (poemas) e As Sete Partidas do Mundo (romance), em 1937 e 1938 respectivamente, mas não é muito difícil descobrir neles claros indícios do espírito do novo Movimento, conforme nos confirma José Cochofel na nota de lombada que escreveu para As Frias Madrugadas (1962), livro em que Namora reuniu os seus livros de poemas Relevos, Mar de Sargaços, e Terra:

 

«... Fernando Namora fez o seu aprendizado junto da Presença (...) Esse aprendizado transparece (...) no confessionalismo introspectivo, no recorte do seu primeiro livro de versos, Relevos, de 1937, e do seu primeiro romance Sete Partidas do Mundo, de 1938, mantendo-se em Mar de Sargaços, de 1939. Mas alguma coisa, nesses mesmos livros, denunciava já as preocupações da corrente neo-realista que então ensaiava em Porrugal os primeiros passos...»

 

Do que Fernando Namora já manifesta plena consciência quando, em 1941, declara na Seara Nova:

 

«Presencistas foram os meus primeiros livros, Relevos e Sete Partidas do Mundo, embora um leitor imparcial possa lá encontrar, mesmo em Relevos, alguma coisa que já não cabe no espfrito presencista» (77).

 

De 1938 é também o livro de poemas Sinal de Alarme de António Ramos de Almeida. No poema de abertura, «Prefácio», dedicado à Mãe, é ainda o tom das Odes Modernas de Antero de Quental que prevalece:

 

«...Todos viemos à Terra

para cumprir a missão

de não viver para morrer

mas viver em Redenção

de saber

o que a Salvação

da pobre Humanidade

que quer Liberdade, Luz e Pão».

 

As composições de Ramos de Almeida, cheias de boa vontade «revolucionária», não ultrapassam, nesta obra de estreia, o nivel do slogan. Um deles, todavia, podemos considerá-lo como «palavra de ordem» para a «batalha do conteúdo»:

 

«Minha estética desprezou a forma

e deixou-se abandonada

no élan dos conteildos» (78).

 

Este livro abre-lhe contudo o caminho para uma outra mais bem conseguida, Sinfonia de Guerra, publicado em 1939 sob a égide de «Edições Sol Nascente», com prefácio de Rodrigo Soares que era, na ocasião, o doutrinador mais intransigente do Movimento, com algumas posições marcadamente estalinistas, que não mereceram aplauso dos marxistas-leninistas da geracão (79). O livro tem um posfácio de Joaquim Namorado, onde este poeta, depois de reiterar princípios de fé do Neo-Realismo, afirma ser Sinfonia de Guerra uma obra onde o seu autor «teve a coragem de viver um drama de toda a gente», o que é um sumário bastante do projecto de António Ramos de Almeida.

 

Por esta altura haviam já publicado poemas dispersos quase todos os poetas que se vão reunir em torno do «Novo Cancioneiro», a colectânea que, em definitivo, imporá o Neo-Realismo poético. Há poemas de Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, Políbio Gomes dos Santos, João José Cochofel, etc., não só em Sol Nascente, como em O Diabo, Seara Nova, Altitude, etc.. Por outro lado, nestas e noutras revistas, surgiriam também textos em prosa de ficção de autores neo-realistas que só se estreariam em livro também mais tarde. Não dispondo aqui de espaço para um inventário cronológico deles, passaremos a referir unicamente as obras em volume que, por uma razão ou por outra, achamos que é importante mencionar.

 

Em Dezembro de 1939 aparece, enfim, Gaibéus, o primeiro romance neo-realista, em edição do próprio autor, Alves Rodol, e que, para todos os efeitos, se deve considerar como a obra que, pelo seu fôlego, novidade e ambições, inaugura o Neo-Realismo português. Mário Dionísio, que poderia reinvindicar para si a glória de ter sido o escritor a apresentar ao público os poemas com que, no plano da criação literária, o Movimento dá os seus primeiros passos firmes, abdicaria, três anos depois (1942), e, generosamente, dá prioridade para declarar na sua Ficha-5 (80):

 

«... Aconteceu ser Alves Redol o primeiro a aparecer, em livro, desta geração que se tem preparado ao contacto directo da vida, que por ela tem dado e espera continuar a dar tudo, que para ela, e só para ela, reclama direitos de cidade nas letras e nas artes. Isto fez que Alves Redol fosse a primeira pessoa a trazer para a nossa literatura de ficção personagens e problemas até então nela desconhecidos e ainda hoje julgados pelos críticos e artistas decadentes, que se deixaram ultrapassar e vencer pela sua éposa, como personagens e problemas indignos de uma literatura. Isto fez também que o nome de Alves Redol se tenha tornado um nome que nunca mais poderá desligar-se da nossa literatura actual. Quando mais tarde se estudar a literatura portuguesa do século XX, os seus períodos de apogeu e os seus pertodos de decadência (...) o estudo de Alves Redol impor-se-á como o estudo do primeiro grito de reacção contra a enxurrada de abstenções e falseamentos de vida que enchiam as montras e prateleiras das livrarias na sua acção mistificadora (consciente ou inconscientemente não interessa)».

 

Redol considera, com efeito, no seu romance um determinado extracto social perfeitamente diferenciado pela profissão, nível económico e coordenadas situacionais: o dos ceifeiros de arroz do Ribatejo. O herói de Gaibéus já não será predeterminado e redutível ao Ambiente, como no Naturalismo ortodoxo (de tal modo que é possivel dizer que, nesta corrente, o Ambiente é que é o «herói»), nem sequer é o indivíduo que se isola do seu próprio grupo, ou com ele não se identifica, e cujo destino se torna uma função de uma revolta pessoal, sem eco que comova o grupo de que se destaca, para uma acção colectiva de protesto e promoção social. O herói em Gaibéus será o próprio grupo social. E se nele Redol destaca algumas figuras será para que estas tipifiquem uma situação e um destino comuns, e não um processo de diferenciação excepcional em relaçâo ao grupo. O autor, ao centrar a sua atenção sobre o grupo em bloco, como que nos diz: «Não me interessa o destino excepcional». Porque centrar a atenção sobre o destino individual, não representativo do destino de todo o grupo no seu conjunto, equivaleria, no firn de contas, a duas coisas:

 

1.a) ou a dizer que a solução do condicionalismo desfavorável que afecta o grupo estaria nas tentativas isoladas dos elementos que o compõem para se distanciarem dele - hipótese impensável;

 

2.a) ou a estatuir que interessa mais o indivíduo, cujo destino tende a diferenciar-se, que o próprio grupo, e a subtrair os problemas que afectam este no seu conjunto às atenções do público - hipótese não menos admissível.

 

O que Redol vai tratar é do tema geral da exploraçâo de que todos os gaibéus são vitimas no Ribatejo, simbolizado pela figura opressiva do Patrão Agostinho, por sua vez instrumento da Senhora Companhia, entidade abstracta que pode simbolizar desde o Capitalismo até ao Estado Totalitário que o torna possível. O romancista, claro, é obrigado a singularizar personagens, mas estas não vão ser bafejadas por aquele circunstancialismo de acaso que possibilite que se separem do grupo a que pertencem. Tal ponto de vista não corresponde, porém, à «fatalidade» que encharca a filosofia subjacente ao Naturalismo. É que no romance de Redol, contrariamente àquilo que se passa nos naturalistas de escola, os factos não se processam como se estivessem destinados a repetir-se indefinidamente. No Naturalismo o Herói é, em absoluto, pré­determinado pelo meio social (Ambiente), mas nunca surge como factor determinante de mudança, o que levou Ernst Fischer a declarar que Zola pintou a decadência da burguesia, a miséria do povo, a resistência da classe trabalhadora, sem esperanças numa solução, «como um pesadelo que jamais haveria de ser superado» (81):

 

«Zola não conhecia Marx e Engels; assim não compreendia a luta de classes, não enxergava os caminhos do desenvolvimento social; encarava a pessoa humana como um ser passivo, uma criatura animal de hereditariedade e do meio circundante, incapaz de escapar a um destino predeterminado» (82).

 

Ora Redol é o primeiro autor a esboçar claramente os parâmetros definidores de uma realidade historicamente nova. Gaibéus desenvolve-se segundo as linhas doutrinárias mais puras, mesmo escolásticas, do Neo-Realismo: a narrativa vai-se desbobinando, em larga medida, em função e do ponto de vista das circunstâncias futuras que fatalmente farão estalar a campânula ao abrigo da qual se conserva (como planta de estufa) a consciência ainda alienada do grupo. O «ceifeiro rebelde» do romance é, deste modo, um personagem que há que considerar como simbólico, porta-voz de uma consciência já desalienada dos míseros e explorados gaibéus, e porta-voz inclusivamente do próprio autor. O objectivo de Redol era «criar um romance anti-assunto, ou, melhor, anti-história, sem personagens principais que só pedissem comparsaria às outras» (83) mas era intenção sua tornar clara a solução para o aparente impasse social em que se encontravam os gaibéus. Diz-nos em 1965:

 

«Os fios pessoais para a superação do drama desenrolam-se em dois sentidos: um deles pela fuga dos ceifeiros ansiosos por emigrar, cujo inteiro significado só agora se avalia; o outro pela confiança ainda elementar do ceifeiro rebelde, personagem sem rosto e sem nome, um tanto eu próprio, com a minha experiência africana; ou ainda pela camaradagem entre os jovens rabezanos e gaibéus que esboça o fim da hostilidade absurda dos adultos, cujas consequências deveriam levar à concretização de um colectivo mais amplo e dinâmico, quando uns e outros compreendessem qual o inimigo comum, se a mensagem do ceifeiro rebelde tivesse voz ampla para lhes dar unidade» (84).

 

Assentada esta sólida pedra inicial do Neo-Realismo, não tardariam muitos meses que aparecesse o primeiro grande livro de poemas do Movimento. Trata-se de Rosa dos Ventos, de Manuel da Fonseca, em edição do autor, e datada do Verão de 1940. Não nos vamos espraiar sobre esta obra poética de excepcional nível (85), a provar imediatamente que a batalha pelo conteúdo era a batalha pela forma. A Presença não apresenta, apesar das suas preocupações estetizantes, qualquer obra que se Ihe superiorize. Em Rosa dos Ventos encontram-se mesmo alguns dos poemas formalmente mais belos deste seculo (86). Que se tratava, porém, de uma reviravolta temática na poesia portuguesa, a continuar com inspiração bastante superior as primeiras produções que haviam aparecido no Sol Nascente, assinadas por Mário Dionísio, e, em definitivo, muito acima da boa vontade versificatória de António Ramos de Almeida, não pode haver quaisquer dúvidas. É o primeiro livro, além do mais, da realidade trágica do Alentejo. Dele dirá Mário Dionísio, dois anos depois:

 

«... Quando falo em Manuel da Fonseca revelar o Alentejo, penso em qualquer coisa de muito semelhante ao Alentejo se revelar a si próprio. Qualquer coisa como se aquelas figuras que aparecem, a espaços, especadas, imóveis e sombrias no meio da grande planície, começassem subitamente (...) a falar-nos delas, da terra e dos senhores que as esmagam» (87).

 

Mário Dionísio, no prefácio que em 1963 escreveu para os Poemas Completos de Manuel da Fonseca, explica-nos ainda a forma como este se integrou no grupo dos neo-realistas, facultando-nos um depoimento precioso sobre o espírito e a atmosfera criada por essa juventude que se reunia nos cafés da baixa de Lisboa, pela qual o futuro autor de Cerromaior tanto se deixaria atrair:

 

«... um coração pulsando por todos os humilhados e ofendidos (líamos muito Dostoievski, apesar do que terá parecido), uma obstinada recusa a ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do homem, ela teria um papel inestimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação de um mundo podre (...) o Neo-Realismo, que tanta gente assegura ter nascido por decreto de não sei que forças tenebrosas, insensíveis aos valores estéticos e cegas para tudo o que irremediavelmente distingue um artista do homem comum de que ele emerge, foi assim que surgiu. Assim, apenas assim, espontaneamente, da inquietação, da generosidade e da ingenuidade - da fecunda, exaltante, fraternal ingenuidade - desses tantos jovens que foram ao encontro uns dos outros pelo seu pé, irresistivelmente movidos por um mesmo espírito de recusa, uma mesma esperança no homem (que eles sabiam só poder querer dizer: os homens), uma mesma necessidade interior de dizer tudo isso em versos, em romances, em contos capazes de acordarem um país inteiro para a sua própria realidade nacional» (88).

 

Manuel da Fonseca tinha a coragem de proclamar, em 1940, no poema «Domingo» de Rosa dos Ventos:

 

...eu podia destruir esta civilização capitalista que inventou o domingo.

E esta era uma das coisas mais belas

que um homem podia fazer na vida!

 

Tal passagem polémica, bem dentro do espírito do período tão bem evocado por Dionísio, pode dar a impressão, fora do contexto, de que a série de trinta e uma poesias que constitui Rosa dos Ventos nada é mais do que um estendal de diatribes políticas. Nada de mais falso. E, todavia, essa explosão isolada encontra-se em sintonia profunda com o maravilhoso espírito do Poeta, que não se limita já à compaixão ou denúncia dos males da sociedade, por imperativo abstracto de justiça social, como parece ser ainda o caso de Sinal de Alarme de Ramos de Almeida.

 

De 1940 é também Mar de Sargaços, poemas de Fernando Namora, obra que se encontra ainda confessadamente ligada, por várias das suas características, à Presença, da mesma maneira que o seu livro de poesias anterior Relevos. Mas, mais ainda do que esta última Mar de Sargaços é o pórtico necessário de Terra (1941), livro com que se inaugurará a famosa colecção «Novo Cancioneiro», a verdadeira «carta de alforria» da geração. Realmente, a publicação desta colectânea será tão importante que a emergência do Neo-Realismo, como nova corrente, e sobretudo como expressão de um grupo, ou de uma «geração», ficará para sempre ligada aos dez volumes que constituem esta série poética publicada em Coimbra, de 1941 a 1944.

 

Terra é, como se disse, o volume inaugural. Fernando Namora, seu autor, está longe de ser um desconhecido. Já publicara nesta altura (lembramos de novo) dois livros de poemas e um romance. Ele e João José Cochofel chegaram mesmo a colaborar na última fase da revista Presença. Jean Paul Sarrault, que é, ao que supomos, o primeiro crítico a escrever uma crítica de conjunto à poesia do «Novo Cancioneiro» (89) afirma:

 

«Foi com elememos vindos, tanto desta segunda série da Presença como com escritores que tinham colaborado no Sol Nascente eno Diabo (os quais, entretanto, tinham cessado de aparecer) que nasceu a ideia de se publicar o Novo Cancioneiro. Fernando Namora e João José Cochofel, que tinham escrito nessas publicações, encontram-se, pois, muito naturalmente, destinados a servir de ligação entre o antigo grupo e a nova colecção de poesia então em formação. Mas a ligação entre estes dois grupos, não se limitava somente a uma questão de pessoas e de autores, porque grande parte do espírito da Presença passou para o Novo Cancioneiro. Tudo aquilo por que os primeiros tinham lutado não foi renegado pelos segundos e, em particular, esse combate pela poesia pura que a Presença tinha travado.

Todas as preocupações formais passaram igualmente de uma revista para outra. Mas os poetas do Novo Cancioneiro deram ao social um lugar eminente que não Ihe tinha sido concedido pelos seus predecessores; porque essa preocupação do social já não é, para eles, um tema importante ou novo, é a face da sua ideia, da sua preocupação; a sua preocupação constante e o seu próprio tema. Trata, pois, um assunto novo, com uma linguagem que os poetas anteriores tinham criado».

 

Note-se que este comentário contemporâneo do aparecimento do último volume do «Novo Cancioneiro» rejeita a ideia do desprezo pelas «preocupações formais» tão polemicamente declarado nos versos atrás citados de António Ramos de Almeida, como na epígrafe de Redol a Gaibéus. O que prova, mais uma vez, que a fase da «batalha pelo conteúdo» só ocasionalmente renegou a «preocupação pela forma». Não querendo, todavia, insistir mais neste ponto, observe-se porém que, como diz ainda Jean Paul Sarrault, «essa preocupação do social variará muito sensivelrnente de um poeta para outro» (90).

 

Só em 1941 aparecem mais cinco volumes da colecção. O n.° 2, Poemas, de Mário Dionísio; o n.° 3, Sol de Agosto de João José Cochofel; o n.° 4, Aviso à Navegação de Joaquim Namorado; o n.° 5, Os Poemas de Álvaro Feijó; e o n.° 6, Planície de Manuel da Fonseca. No ano seguinte, 1942, são editados mais três livros: o n.° 7, Turismo de Carlos de Oliveira; o n.° 8, Passagem de Nível de Sidónio Muralha; o n.º 9, Ilha de Nome Santo de Francisco José Tenreiro. Depois de um grande intervalo, quando o fogo inicial parecia acabado, surge, em 1944, a obra póstuma de Políbio Gomes dos Santos, Voz que escuta. É o fim da colecção. Na contra-capa dos n.os 1, 2, 3, 4 e 5 anuncia-se Poemas de Hoje de Augusto dos Santos Abranches, que nunca será incluído na serie; nos n.os 4 e 5 anuncia-se, ainda, o aparecimento de Sangue de António Ramos de Almeida, também não editado; no n.° 5 é anunciada uma nova obra, Viagem ao País dos Nefelibatas, de Joaquim Namorado, que também não sendo incluída no «Novo Cancioneiro» acabará por fazer parte do volume Incomodidade, do mesmo autor (em que se reedita Aviso à Navegação) com a chancela da Livraria Atlântida, e com a data já de 1945. Nesta altura, portanto, considerava-se que a série «Novo Cancioneiro» estaria definitivamente encerrada, porque um volume nela anunciado aparecia, um ano depois do livro de Políbio Gomes dos Santos, fora dela, sob a égide de um «editor comercial». Que o n.° 10 da série, a obra póstuma de Políbio, pareça ser já mais uma homenagem a um poeta da geração, em comum com o mesmo ideal, e não uma tentativa de continuar a colectânea imobilizada no n.° 9 (Ilha do Nome Santo de Francisco José Tenreiro), antolha-se-nos claro, até pela circunstância de o livro de Políbio ser o único onde não se anunciam outras obras «a aparecer proximamente».

 

Além dos livros publicados e dos anunciados que, afinal, acabaram por não aparecer, outros terão sido projectados que não chegaram mesmo à fase promissória de se verem incluídos na reduzida lista dos que se destinavam a ver a luz do dia na mesma colecção. De um destes poetas, José Gomes Ferreira, uma das figuras mais eminentes do Neo-Realismo português, possuímos o seguinte testemunho:

 

«... Os organizadores do Novo Cancioneiro (...)convidaram(me) a enviar um livro para a famosa colecção de Coimbra.

Aceitei - sinceramente orgulhoso e feliz daquela autêntica certidão de ter 20 anos (91). E tratei logo da urdidura menos difícil: a do título, que escolhi com esta sinceridade directa e expressiva: Líricas e Heróicas. Os dois rostos mais visíveis da minha poesia.

(...) Felizmente os dias e as horas evaporaram-se com a pressa de haver morte e o convite para o Novo Cancioneiro dissolveu-se em cinzas de ficar apenas a vaidade de ter sido convidado por moços de vinte anos para colaborar numa revolução literária» (92).

 

Se Mário Dionisio parece ter sido, em Lisboa, o centro em torno do qual todo o Neo-Realismo dir-se-ia gravitar - grande figura dinamizadora - não pode haver muitas dúvidas de que, em Coimbra, esse papel terá de ser atribuido à corajosíssima e exemplar personalidade de Joaquim Namorado. Eduardo Lourenço, que é hoje um dos mais notáveis críticos portugueses e foi colega e cornpanheiro dos jovens neo-realistas da cidade universitária par excellence, deixou-nos, não há muito tempo, o seguinte depoimento, que é importante, não só por partir de quem parte, como também por ser o de um antigo camarada de jornada:

 

«Cada geração, literária ou não, articula a consciência de si que a distingue e a sublima, em volta de duas experiências. A primeira é a invenção de uma personalidade liderante, de um foco de energia vital e moral, de um par inter pares que polariza uma atenção suplementar e a quem os outros, seus camaradas e seus iguais, acordam uma importância que a todos define e une (...). Esse papel de polarizador da energia de um grupo, sua referência activa e activista tanto como ética, não parece excessivo atribuí-lo a Joaquim Namorado...» (93).

 

o que confirma a opinião de Jean Paul Sarrault, expendida em 1944:

 

«... Namorado foi o conselheiro e amigo de um certo número de poetas do Novo Cancioneiro e (...) a sua influência foi muito grande. Foi a sua pessoa, mais que a sua obra, que influenciou os amigos e há, pois, no seu caso, uma grande parte de acção invisível» (94).

 

Os dez volumes do «Novo Cancioneiro» são, pois, dominados pela tónica do social, o que ocorre mesmo num poeta estetizante como João José Cochofel, cujo livro, Sol de Agosto é, aliás, de uma grande beleza formal, a qual não é incompatível com o seguinte soneto tematicamente explosivo e tão a contrapelo do tom íntimo e segredado de um autor que, de outro modo, se define por um tom muito contido e controlado:

 

Nos jardins, na modorra em que se alongam

a cadência do passo marca o triste

e belo dia. Os que passam mondam

tudo o que neles, em vão, ainda insiste:

 

- Rota a fachada! - Morna, a tarde cai;

autómatos, povoarn a cidade.

(Só uma ronda de crianças vai

lavando a nódoa. - Feliz idade.)

 

Que náusea isto me dá! Que calma vã

de que o pisar burguês todo se veste!

Cinza. Nada que a vida Ihes aloire.

 

E o cheiro que incomoda a gente sã

e vem dos bairros pobres onde há peste...

- Fazer do sol a bomba que isto estoire"! (95)

 

Mas, no mesmo ano em que o «Novo Cancioneiro» se inaugurava, é publicado o romance Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), autor não inteiramente desconhecido, pois, encorajado por Alves Redol, já colaborara em O Diabo. Esteiros constitui a prova cabal de que o Neo-Realismo acabaria por se afirmar também no plano da prosa. Mário Dionísio dedica-lhe a «Ficha-2» na Seara Nova e sente-se, finalmente, pronto a fazer a seguinte declaracão: «os romancistas já vêm aparecendo» (96). Entre os presencistas foi necessário esperar nove anos para que o mais aberto deles, ainda que sempre hostil ao Movimento, prestasse a verdadeira justiça a Soeiro Pereira Gomes. Mas este já havia falecido e a crítica de Adolfo Casais Monteiro acaba por parecer um pretexto para, atraves de um grande escritor morto, autor de uma obra que é uma das mais notáveis obras-primas da literatura, atingir o tal «bando de medíocres» que se acobertavam sob um pavilhão que tão recentemente degladiara o da Presença:

 

«O seu nome foi recebido pela crítica de todas as tendências com o maior aplauso. Isto se deve, sem dúvida, a ser Esteiros (embora um ou outro crítico o tenha considerado «tendencioso», arguindo que a «intenção social» teria levado Pereira Gomes a carregar excessivamente as cores) uma obra que se impõe pela «veracidade», ao mesmo tempo que pela poesia, dos sucessivos quadros em que nos apresenta essas inesquecíveis figuras de crianças miseráveis, o pessoal mártir dos «esteiros» das margens do Tejo, na época do ano em que se fabrica o tijolo; mártires também durante o resto do ano, em que nem o sofrimento do trabalho bárbaro os ajuda a subsistir, condenados à vagabundagem e à fome» (97).

 

E quando pergunta por que Soeiro Pereira Gomes triunfa onde os outros neo-realistas falham dá-nos esta explicacão falsamente verdadeira:

 

«... (se) Pereira Gomes (...) socialmente estava muito longe dos seus vagabundos e miseráveis, estava (fisicamente) perto deles, bastava-lhe abrir os olhos, como abriu, para ver essas misérias e outras muitas à sua volta. Quero eu dizer que não fez expedições para «colher material», não andou a escolher um tema com as características convenientes para levar a cabo a sua intencão de fazer arte «social» (98).

 

Forma de atingir um Redol que saíra do Ribatejo para o Douro, a fim de escrever os romances do Ciclo Port Wine (entre outros autores que antagonizava), esquecendo-se, porém, que as crianças abandonadas de Esteiros não eram mais familiares a Pereira Gomes do que os ceifeiros oprimidos e explorados de Gaibéus. A tragédia dos pequenos comparsas de Esteiros para sempre impressionará a sensibilidade dos leitores. É impossível alguém ficar impassível perante a luta dos meninos iludidos, inexperientes e inocentes de Esteiros contra o mundo dos adultos desiludidos e experimentados que, ou não lhes podem valer, e nem já podem lutar por eles, e os que os exploram: o universo concentracionário da burguesia do dinheiro, os Castros e rebentos (o Arturinho quando se tornar homem deverá ser uma imagem digna do pai). Sagui, Gineto, Gaitinha, Malesso, Guedelhas, Maquineta, formam talvez o friso mais trágico de toda a literatura portuguesa, e nesta já não faltam verdadeiras tragédias. E o drama de cada um destes filhos de pobres (o livro muito expressivamente dedicado «para os filhos dos homens que nunca foram meninos escrevi este livro») agudiza-se pela forma como se individualiza, porque há milhentas maneiras pelas quais a mesma dor se encarna e se exprime. O que conduz Gineto de pequeno ladrão à sua revolta contra o mundo, de raiz anarquizante (até a isso a sociedade o «obriga», dessolidarizado que se torna dos seus companheiros de infortúnio); os sonhos despedaçados de Gaitinhas e sua mãe, Madalena, que um dia, com o marido (Pedro) pensou que podia fazer do filho alguém na vida, o que leva à reacção de Castro «evidentemente que você não queria fazer dele um doutor» (99), frase miraculosa com que os poderosos pretendem a perpetuidade de um mundo de ignorância e de ignorantes que os sirva, enquanto para eles todos os .privilégios nunca serão muitos (eis a clara implicação polémica de Pereira Gomes); a inesgotável humanidade de Sagui; os sonhos, também destruídos, de Maquineta cujo ideal era trabalhar com máquinas e acaba longe delas, embora quase ao alcance da mão; o próprio drama da pequena indústria, ao nível artesanal (o Telhal Grande), que se esforça por sobreviver, mas é engolida pelo tubarão monopolista - estes são alguns dos sinais expressivos de uma sociedade doente em que o maior valor é o capital e o mais desprezível é a vida.

 

Tremendo líbelo contra o Capitalismo, mesmo assim Casais Monteiro tem de falar da «veracidade» dele. Honra, pois, ao grande humanista da Presença que se verga perante a excruciante verdade de um livro cheio de páginas clara e obviamente polémicas e doutrinárias, algumas das quais são mesmo das directamente taxativas do Neo-Realismo, como a cena em que os burgueses vêm «gozar» os efeitos da cheia, totalmente alheios ao drama que ela acaba de representar:

 

«- Gostava de cá voltar, quando o rio estivesse mais cheio - confessou uma senhora que ouvira a resposta do homem.

O marido discordou. - Não vale a pena. Isto é sempre a mesma coisa (...)

- Olhern - disse uma voz juvenil -, aquelas oliveiras dão a impressão que flutuam. E uma casita, alérn, meio afundada... Isto é triste, não é?

- Conforme... - retorquiu-lhe um rapaz magro, elegante. - Como disse Amiel, a paisagem é um estado de alma (...) A propósito: vocês leram o artigo do Silveira? A explicação de que as cheias enriquecem as terras pareceu-me inteligente. Pena que ele tenha um estilo tão fraco...

Agora era um senhor gordo, com amáquina fotográfica a tiracolo, quem apreciava o panorama.

- Afinal, onde está a maravilha?

- É grandioso, há-de concordar.

- Ora, meu amigo. Isto é um lago, comparado com as inundações que eu vi na América. Aí, sim. Povoações arrasadas, campos totalmente devastados, centenas de mortos...» (100).

 

De 1941 é ainda, Marés de Alves Redol, obra também polémica. Que muita da literatura neo-realista, não ultrapassava, é certo, neste período de iniciação, o mero nível panfletário, podemos vê-lo pelo fermentar de muita prosa de ficção de que apresentamos, como exemplo bastante, as duas colectâneas Contos e Poemas, publicadas em Abril e Novembro de 1942, as quais se podem considerar como que um «ensaio geral» para o aparecimento da série «Novos Prosadores» que, para o conto, novela ou romance, pareceu propor-se como contrapartida do «Novo Cancioneiro». Estas obras antológicas apelidadas anodinamente de Contos e Poemas, organizadas por Carlos Alberto Lança e Francisco José Tenreiro, entre nomes de grande prestígio do Movimento como Mário Dionísio («Os Sapatos da Irmã»), Sidónio Muralha («Escritório»), Soeiro Pereira Gomes («Um Conto»), Manuel da Fonseca («A Torre da Má Hora»), e Francisco José Tenreiro («Nós Voltaremos Juntos»), exibiram outros que, se não eram desconhecidos, estavam ainda longe de ser grandes figuras como Faure da Rosa, Manuel Mendes (que a crítica «avisada» sempre classificaria de «populista»), Armindo Rodrigues, Arquimedes da Silva Santos e até os poetas Eugénio de Andrade e Raul de Carvalho, que se tornariam cada vez menos empenhados em relação ao Neo-Realismo, mas com obras cheias de uma humanidade que talvez não tivessem, não fora a camaradagem de espírito que sempre os ligou às figuras mais participantes do Movimento. E, além destes, que se consagrariam, não à custa de panfletos, outros nomes que entretanto desapareceram (Ruy Nazaré, Teixeira de Sousa, Fernanda Barrena, Carlos Pato, Fernando Rebelo, Alda Sobral, etc., etc.), mas que não deixaram, por isso mesmo, de serem elementos dinâmicos de um «processo» que não se coadunava com o singularismo ou o vedetismo dos presencistas. Nem tudo, aliás, nestes nomes que desapareceram, foi pura perda, sob o ponto de vista da prática da literatura. Cite-se apenas o caso de Fernando Rebelo que em «Vila» reensaia em Portugal, pela primeira vez, o esquema básico estilístico de John dos Passos (o news-reel e o camera eye), o que provava como - mesmo no mais aceso da «batalha do conteúdo» - se procuravam novas formas ainda que estas (como quase sempre sucedeu em Portugal) coincidissem com aquelas que se poderiam importar do estrangeiro. 1942 é ainda o ano do aparecimento de dois livros extremamente importantes do Neo-Realismo: Avieiros de Alves Redol e Aldeia Nova de Manuel da Fonseca. Se o primeiro é uma tentativa de ilustrar a tese de que a virtude está no regresso ao povo, convite directo a todos os burgueses que dele vieram e que lhe voltavam as costas, tese alegorizada pela história de Olinda, filha dos pobres Carramilos, adoptada ainda bebé pela «aburguesada» Dona Clotilde, mas que acaba por fugir à influência da mãe adoptiva para regressar às suas origens que, doutrinariamente, segundo a mesma tese, são as únicas que se podem definir como puras e susceptíveis de permitir uma vida de resgate, Aldeia Nova de Manuel da Fonseca é um maravilhoso fresco alentejano, a um nível que não desdoura perante o confronto com a obra-prima que é Rosa dos Ventos.

 

Seria injusto não referir o aparecimento, por esta altura, de Manuel do Nascimento, cujo livro Eu Queria Viver (1942) é anterior a Mineiros que, escrito em 1938, só seria publicado em 1944. Destes livros falou recentemente, com humana compreensão, o Professor Fernando Mendonça da Universidade de S. Paulo:

 

«Não era difícil escrever um bom romance neo-realista em presença de uma realidade tão amargurada. Todo o material estava ali à mão, e bastava lançar no papel o dia a.dia da vida de uma mina, de uma mina daquela época, quando o desenvolvimento industrial ensaiava ainda o seu balbúcio em Portugal. Nas mais precárias condições de trabalho mal pago, os mineiros eram, mesmo despersonalizados, os grandes heróis do romance. Mas a personagem principal da história de Manuel do Nascimento é a mina. É ela que absorve toda a temática do livro, e dela partem as forças condutoras da acção, quase inexistente porque é apenas o defluir dos dias tristes e vazios de esperança da vida dos mineiros. Vida monótona transformada numa narrativa absorvente. (...) O calor humano, a tranquila compreensão do narrador tornarn a narrativa dolorosamente viva e instilam em nós a mesma quantidade de tristeza e revolta que já Soeiro Pereira Gomes instilara com os garotos dos «esteiros». O próprio protagonista-narrador é o mais amargo comentador do que se passa à sua volta. Cabe no seu comentário toda a problemática social do Neo-Realismo» (101).

 

De Eu Queria Viver, dá-nos o ilustre estudioso da literatura portuguesa, o seguinte depoimento:

 

«Eu Queria Viver narra, igualmente na primeira pessoa, a história de uma moça que, atacada pela tuberculose (e nisso está novamente a experiência do Autor, levado a um sanatório por uma lesão pulmonar), se compraz em comentar a vida circundante, com a ácida verdade de que só a perspicácia dos doentes é capaz. Romance doloroso, não pela crueldade ou impiedade das constatações, mas pela autenticidade das suas situações, normalmente simples e quotidianas» (102).

 

Reposta a justiça por um observador independente em relação a este escritor esquecido do nosso Neo-Realismo (mais adiante referiremos o seu livro de 1946, O Aço Mudou de Têmpera) cabe-nos agora, pela ordem cronológica que temos estado a seguir, citar uma outra obra significativa de 1942: Multidão, de Leão Penedo que, embora denunciando a excessiva pressa com que foi escrita, não deixa, por essa razão, de constituir uma curiosa experiência (na esteira da ficção norte-americana ou talvez da de Erico Veríssimo de Caminhos Cruzados) de vidas «paralelas» dos mais variados sectores sociais, desde a menina namoradeira, ao operário promovido socialmente pelo dinheiro, passando pela prostituta já na mó-de-baixo, a costureira, a dactilógrafa, o novo-rico, etc.. Note-se - e isto é importante - que este livro é de ambiente citadino, o que invalida, mais uma vez, a tese de Mário Sacramento, que citamos no princípio deste livrinho.

 

1943, como já dissemos, é uma data extremamente importante do Neo-Realismo porque assinala o aparecimento da colecção «Novos Prosadores», que se propunha ser, para a prosa, o que, para a poesia, era ainda (estava ainda a ser) o «Novo Cancioneiro». Se Fernando Namora já inaugurara esta última, será ele também a assinar o romance inaugural de «Novos Prosadores»: Fogo na Noite Escura. Deste livro dá-nos Mário Sacramento uma súmula notável e perfeita:

 

«Romance à clef, Fogo na Noite Escura, se é um dos mais conseguidos romances da moderna literatura portuguesa, é também um depoimento inestimável em torno das coordenadas da Geração de 40. Reconstituição romanesca de uma época, há no livro, por um lado, uma larga margem de transposição naturalista de pessoas, ambientes e episódios que atingem a densidade factual do documento humano, como é o caso das páginas referentes à praxe académica; e, por outro, uma recriação do melhor tipo realista, que retorna e prolonga a lição queirosiana (...) Se o romance tem a qualidade formal das melhores tradições romanescas do século passado, o certo é que ele se debruça sobre algo que é novo: o aflorar, através de contradições de toda a sorte (é essa a sua enorme riqueza) de uma nova mentalidade social, encarada e estudada em termos colectivos de transformação histórica, a que não falta, sequer, uma segura autocrítica. Vista em corte transversal, a Coimbra da época mostra-nos um grande número dos seus mais variados extractos, quer futricas quer estudantis: a casta doutoral dos filhos-família, ali enviados para legalizarem, apenas, as suas tenças e feudos; a infiltração surda dos descendentes da pequena burguesia e do quarto estado, tentando a independência à custa dos sacrifícios mais penosos; o avultar da presença feminina nos estudos e nas carreiras intelectuais; as alianças da aristocracia com a média burguesia endinheirada ou com a pequena burguesia libertina; as pensões de estudantes como meio de que o provinciano e o rural lançam mão para poderem educar os filhos; o falso pitoresco de tricanas, pequenos empregados e pequenos funcionários soterrados na alienação; o corpo docente fradesco ou burocratizado, em cujo seio se infiltra uma ou outra flor de rebeldia astuciosa, destinada a confirmar e dourar o sistema; um pequeno comércio vivendo de expedientes ignaros; e, fugindo às malhas da sordidez pela porta de cavalo do amargurismo intelectual, alguns poetas e artistas que se queimam como cigarros na chama ilusória de um progressismo abstracto ou de um esteticismo ora ingénuo ora snob, ora vacilante ora decadente» (103).

 

O que constitui, aliás, paradoxalmente, também um bom resumo de um romance citadino. No mesmo ano, 1943, aparece integrado na nova coleccão, outro livro clássico do Neo-Realismo: Casa na Duna de Carlos de Oliveira. Cenário: novamente a classe média e a média burguesia. Não a da cidade, é certo, mas a da zona gandaresa. A acção do romance passa-se na aldeia de Corrocovo, no início do século. A velha casa burguesa dos Paulo, assim como a aldeia, como que se encontram isoladas do mundo. A região parece bastar-se a si própria, num equilíbrio que dir-se-ia perenemente estável. A história, porém, desenrola-se quando esse equilíbrio parece à beira de se desintegrar. O mundo exterior começa a dar sinal de si:

 

«O velho Paulo deixara ainda a quinta a produzir um rendimento apreciável. Mas os últimos anos haviam modificado as condições de vida. Estradas tinham sido abertas e por elas vinham, às feiras gandaresas, produtos de toda a parte. Pelas estradas e pelo caminho de ferro, nos vagões e nas camionetas, o comércio das cidades, das vilas, das aldeias, acelerava-se, levava daqui para ali, fazia permutas, entrechocava-se, explorava todos os mercados; o isolamento dos pequenos meios desaparecia» (104).

 

Carlos de Oliveira será o primeiro escritor neo-realista a estabelecer o paralelo estreito, ainda que alegórico, entre as estruturas económicas e sociais da Gándara (simbólica dos imensos pequenos universos patriarcais que constituíam a tessitura do espaço português) e as estruturas ainda herdadas da Idade Média. A própria «casa na duna» é arquetípica, porque ela é, ainda, a mansão senhorial a cuja sombra se distribuem os casebres dos servos. Para o símile ser mais óbvio, os gandareses «entregaram» as suas terras ao senhor para assim conseguirem a «protecção» de uma paga (renda) certa. De resto, Mariano Paulo, em dificuldades económicas (porque um sistema de economia a abrir a terra já não Ihe dá os rendimentos a que se habituara), opor-se-á à mecanização dos processos de lavoura, porque sabe que os maquinismos acabarão por subverter as relações senhor-servo que pretende, consciente ou inconscientemente, preservar. Receia - sente-se - o possível advento de uma nova fase nas relações vassálicas. A debâcle económica é, porém, inevitável. Mariano Paulo tenta a hipótese da industrialização. É o que faz, sacrificando o dinheiro que lhe resta no investimcnto de uma fábrica de tijolos e telhas com barro retirado do próprio terreno da propriedade. A quinta, essa, há-de mantê-la mesmo que dê prejuízo. É o seu distintivo de classe. Que este paralelismo com a Idade Média está no desejo do Autor, e não é uma interpretação arbitrária nossa, podemos verificá-lo por uma cena do capítulo XX. Referimo-nos, em particular, à passagem em que, depois de o Tendeiro descobrir ouro em terras do Miranda, a gente do povoado desata a escavar o solo, em louco frenesi, o que leva o Dr. Seabra, a única mentalidade progressiva, a exclamar: «Veja a desgraça dessa gente. A arrasar muros, a esfalfar-se no mato, só porque uma bruxa ordenou. Estamos na Idade Média, Mariano!» (105).

 

Fora do contexto da colecção, 1943 é ainda o do aparecimento doutro clássico: Cerromaior de Manuel da Fonseca e o da estreia de Vergílio Ferreira (n. 1916) com O Caminho fica longe. Este autor, que mais tarde se afastaria do Neo-Realismo, como dissemos, do qual se tornou um dos críticos mais acérrimos, pode ser hoje consideraclo, repetimo-lo, como o pioneiro do romance existencialista ou de preocupacão existencial em Portugal. Publicaria também, na sua fase neo-realista, dois livros de bastante mérito: Onde tudo foi morrendo (1944), que seria aliás o terceiro volume da série «Novos Prosadores», e Vagão J (1946), obras que o autor hoje mais ou menos repudia (106). Em 1943 há a assinalar, ainda, o aparecimento de Aldeia, de Afonso Ribeiro, obra que no contexto de outras muito mais perfeitas e sofisticadas, como as de Namora, Carlos de Oliveira ou Manuel da Fonseca, perde significado, ressalvando-se apenas a boa vontade do autor de denunciar males que afectavam (e afectam ainda) a vida do homem do campo. É um panfleto óbvio, devendo nós, todavia, observar que, em princípio, consideramos nada errado que um livro o seja, até porque a literatura panfletária vai até onde o mero panfleto não vai, e porque há no mundo literatura panfletária de nível excepcional, e muitas obras geniais são certamente panfletárias. Logo no ano seguinte, 1944, Afonso Ribeiro, insiste com outro livro não mais evoluído, Trampolim; regista-se a estreia na coleccão «Novos Prosadores» de Mário Braga com o volume de contos Nevoeiro, obra de alguma qualidade que não viria a ter, na década de 40, confirmação assinalável, devendo nós de novo singularizar Carlos de Oliveira por um livro de extrema importância Alcateia, e registar a estreia (excluída a sua juvenília (107) ) de Mário Dionísio, com o livro de contos O Dia Cinzento.

 

Alcateia é, doutrinariamente, um dos livros mais ousados de todo este período. O que não o impede de ser a obra mais dramática do autor, e, sern qualquer dúvida, a mais chocante pelo seu verismo, de uma truculência sem eufemismos. História de uma quadrilha de ladrões da Gândara, ela é também a exposição do pano de fundo dos interesses burgueses que torna possível a marginalização de um mundo de drop-outs («terra mãe engeitando os seus filhos pelo mundo fora» (108) ), condenados, mesmo depois de expiadas as penas (Venâncio e Troncho), à mesma vida criminosa. Esta, porém, reflecte a vida (noutro plano não menos criminosa) dos Carmos, Cosme Sapos, Padres Silvas, videirinhos e ladrões à maneira deles, não mais dignos do que Lourenção, que é da massa deste que os primeiros se fazem. Alcateia é ainda um líbelo contra o Estado fascista, o mais directo que se escreveu no Neo-Realismo. O Estado que se identifica com o Governo e vice-versa, «senhor desconhecido e poderoso» (109), «lobo mais voraz que Lourenção» (110), «essa canalha» (111), «um mundo de guardas, de administradores, de cadeias» (112), Estado bem espelhado nos «senhores de Corgos» (113). É contudo, da burguesia que surge a consciência de Rafael a doutrinar Fernando (filho do Dr. Carmo), no qual vai crescendo o horror pela «gente endinheirada de Corgos, comerciantes e proprietários, advogados e armazenistas, politiqueiros sem escrúpulos, tripudiando e enriquecendo» (114). Carlos de Oliveira, em plena ditadura de Salazar, não hesita mesmo em referir que a doutrinacão de Rafael era marxista-leninista (115).

 

O Dia Cinzento de Mário Dionísio, publicada no mesmo ano, contrastará imenso com o grande romance de Carlos de Oliveira, pelo tom discreto, pelo esforço de cortar toda a retórica panfletária, todo o sentimentalismo. Mas é a força do líbelo, num livro admiravelmente escrito, de poderosa acção contínua, ao mesmo tempo poesia e alegoria, que torna Alcateia no romance talvez mais inolvidável do Neo-Realismo dos anos 40. Só um livro lhe pedirá meças pelo fim da década: Retalhos da Vida de um Um Médico (1949), de Fernando Namora.

 

1945 é o ano em que se inicia o «ciclo rural» deste último escritor, com Casa da Malta, como é a estreia de um escritor extremamente importante do Movimento, que não tem conseguido junto do público a atenção que merece. Referimo-nos a Faure da Rosa que se estreia com Fuga, livro em que se aborda o problema da família como instituição, a qual o autor retrata em fase de desagregamento. Mau grado uma estrutura talvez não muito feliz do romance, a figura da protagonista, Luísa, mulher condenada pela sociedade ao casamento, tornar-se-á na contrapartida, neste século, da Luísa de Eça de Queirós (O Primo Basilio), e na sua tragédia ecoam todos os preconceitos e contradições de uma sociedade apenas pretensamente evoluída, onde os homens, mesmo os que se apresentam como mais «progressivos», não conseguem superar os seus prejuízos de classe.

 

Do mesmo ano é ainda o primeiro volume de Bairro de Manuel Mendes, grande fresco da vida lisboeta. Em 1946 são de destacar o já citado volume Vagão J de Vergílio Ferreira, Montanha Russa de Tomás Ribas, Gaimirra de Antunes da Silva e O Aço Mudou de Têmpera de Manuel do Nascimento. Neste último o tema é o da pesquisa e «tragédia» do volfrâmio, que tentara Aquilino Ribeiro dois anos antes (Volfrâmio), como Fernando Namora que publica, também em 1946, ligado ao mesmo assunto, Minas de S. Francisco.

 

E até 1950, data em que «aceitamos» considerar fechadas as contas relativas à «primeira fase» do Neo-Rcalismo, haverá ainda a contar com pelo menos meia dúzia de obras muito importantes: Pequenos Burgueses (1948) de Carlos de Oliveira, obra que o autor recentemente reestruturou por completo, e que nos faz regressar, de novo, à zona gandaresa; Retalhos da Vida de Um Médico (1949), de Namora, uma das grandes obras clássicas do Neo-Realismo, e, sem dúvida, uma das maiores da literatura portuguesa do século XX, que, de tão popular, nos escusamos de deixar aqui qualquer súmula; Caminheiros (1949) com que se estreia José Cardoso Pires, o qual se tornará na década de 50 e 60 uma das maiores figuras do Movimento; Terra Morta (1949) de Castro Soromenho, o primeiro livro verdadeiramente anticolonialista de um escritor português, o qual só encontrou editor no Brasil e depois em Paris (sob o título Camaxilo, Gallimard); A Noite e a Madrugada, também de Namora, e esse livro extraordinário que é O Mundo dos Outros de José Gomes Ferreira, outra obra hoje clássica.

 

Quanto à poesia que se publicou depois do «Novo Cancioneiro» haver escolhido a obra póstuma de Políbio Gomes dos Santos, nada mais acrescentamos, pois o leitor disporá de um volume separado nesta colecção sobre a Poesia neo-realista. Não queremos, todavia, acabar este livrinho sem mencionar as obras que, não saídas naquela colectânea, consideramos como as mais notáveis da mesma década de 40: Voz Arremessada ao Caminho (1943), A Esperança Desesperada (1948) e Beleza Prometida (1950) de Armindo Rodrigues; Mãe Pobre (1945), Colheita Perdida (1948) e Terra de Harmonia (1948) de Carlos de Oliveira; As Solicitações e as Emboscadas (1944) e Riso Dissonante (1950) de Mário Dionísio; Poesia - I (1948) e Poesia - II (1950) de José Gomes Ferreira; Incomodidade (1945) de Joaquim Namorado e Os Dias íntimos (1950)de João José Cochofel.

 

Romances e livros de poesia representativos apenas da «batalha pelo conteúdo» que seria característica básica da Primeira Fase? Respondemos, a concluir, com um «não» polémico ao próprio «sim» provisório e acomodatício com que aceitamos «escolarmente» o exercício desta obra, também provisória.

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA

 

Além das revistas citadas neste volume, que qualquer estudioso do Movimento terá de consultar extensamente, e além das obras dos autores do período que estudamos, de exame também indispensável, indicamos a seguir alguns textos que consideramos úteis para a compreensão tanto do Neo-Realismo como da sua ideologia:

ALMEIDA, António Ramos de: A Arte e a Vida, Livraria Latina Editora, Porto, 1945.

 

ANDRADE, João Pedro de: «Ambições e Limites do "Neo Realismo" Português» Tetracórnio: Antologia de Inéditos de Autores Portugueses, Lisboa, 1955.

 

Id., «Neo-Realismo», Dicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega, direcção de Jacinto do Prado Coelho, 3.a ed., Livraria Figueirinhas, Porto, 1973.

 

Id., A Poesia da Moderníssima Geração: Génese duma Atitude Poética, Livraria Latina Editora, Porto, 1943.

 

Id., O Problema do Romance Português Contemporâneo, Seara Nova, 1942.

 

BACELAR, Armando: «Sobre o Neo-Realismo», Vértice, Vol. XXIII, 1963, pp. 350-366.

 

BAPTISTA-BASTOS: O Filme e o Realismo, Editora Arcádia, Lisboa, 1962.

 

BRASIL, Jaime: Os Novos Escritores e o Movimento Chamado Neo-Realista, O Primeiro de Janeiro, Porto, 1945.

 

BURNS, Elizabeth and Tom: Sociology of Literature and Drama, Penguin Books, 1973.

 

CAMPOS, Costa: «A Propósito do Neo-Realismo», em Mundo Literário n.° 30, Novembro 1946.

 

CÂNDIDO, António: Literatura e Sociedade, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1969.

 

CARMO, José Palla e: Do Livro à Leitura, Publicacões Europa América, Lisboa, 1971.

 

CARVALHO, Manuel de Almeida: «Para a História do Neo-Realismo em Portugal», Jornal de Letras e Artes, 17 de Julho de 1963, pág. 13.

 

CAUDWELL, Christopher: Romance and Realism, Princeton University Press, 1970.

 

COELHO, Eduardo Prado: O Reino Flutuante, Edições 70, Lisboa, 1972.

 

Id., A palavra sobre a Palavra, Portucalense Editora, Porto, 1972.

 

COELHO, Jacinto do Prado: Problemética da História Literária, Ática, Lisboa, 1961.

 

COELHO, Nelly Novaes: Escritores Portugueses, Edições Quiron, São Paulo, 1973.

 

CORNU, Auguste: Essai de Critique Marxiste, Editions Sociales, Paris, 1951.

 

CRUZEIRO, Celso: «Alves Redol e Alguns dos Problemas do Neo-Realismo Português», Vértice, vol. XXX, 1970.

 

DEMETZ, Peter: Marx, Engels and the Poets, The University of Chicago Press, Chicago, 1967.

 

DIAS, Augusto da Costa: Literatura e luta de classes, Editorial Estampa, Lisboa, 1975.

 

Id., A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa, 2.a edição, Portugália Editora, Lisboa, 1964.

 

DIONÍSIO, Mário: Introdução à Pintura, Publicacões Europa-América, Lisboa, 1963.

 

Id., «Álvaro Feijó e o Neo-Realisrno», Seara Nova, vol. XXI, 1941, pp. 115-117.

 

Id., Ficha 14, Lisboa, 1944.

 

FERREIRA, Alberto: «Significado Literário e Ideológico de Gaibéus», Seara Nova, vol. XLVIII, 1970, pp. 224-229.

 

FERREIRA, José Gomes: A Memória das Palavras, 1.a edição, Portugália Editora, Lisboa, 1965.

 

FISCHER, Ernst: A Necessidade da Arte, Rio de Janeiro, 1966.

 

FRIEDMAN, George: La Crise du Progrès, Gallimard, Paris, 1936.

 

FROMM, Erich: Conceito Marxista do Homem, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1964.

 

GLADKOV, Fedor: Cemento, Colección «La Novela Proletaria», Ed. Cenit, Madrid, 1933.

 

GOMES, Soeiro Pereira: Obras Completas, Publicações Europa-América, Lisboa, 1968.

 

GRAMSCI, Antonio: Literatura e vida nacional, prólogo de Hector Agosti, Editorial Lautaro, Buenos Aires, 1961.

 

Id., Obras Escolhidas, vols. I e II, Editorial Estampa, Lisboa, 1974.

 

GUIMARÃES, Fernando: A Poesia da «Presença» e o Aparecimento do Neo-Realismo, Editorial Inova, Porto, 1969.

 

GUTERMANN e Lefebvre: La Conscience mystifiée, Gallimard, Paris, 1936.

 

KONDER, Leandro: Os Marxistas e a Arte, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967.

 

LAMBERT, Bernard: Les Paysans dans la lutte des classes, Sevil, Paris, 1970.

 

LEFEBVRE, Henri: Contribution à l'esthétique, Editions Sociales, Paris, 1953.

 

Id., Critique de la vie quotidienne, Bernard Grasset, Paris, 1947.

 

Id., Qué es la dialéctica, Editorial Dedalo, Buenos Aires, 1959.

 

Id., Materialismo Dialéctico e Sociologia, Editorial Presenca, Lisboa, s/d.

 

Littératures et idéologies, Coloque de Cluny II: 2, 3, 4 Abril 1970, ed. La Nouvelle Crilique, Paris.

 

LOPES, Oscar: e A. J. Saraiva: História da Literatura Portuguesa, 5.ª ed., Porto Editora, Porto, s/d.

 

LOPES, Oscar: Ler e Depois: Crítica e Interpretação Literária, Editorial Inova, Porto, 1969.

 

Id., Modo de Ler: Crítica e Interpretação, Editorial Inova, Porto, 1969.

 

LOURENÇO, Eduardo: Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, Editora Ulisseia, Lisboa, 1968.

 

LUKACS, György: La Novela Histórica, Ediciones Era, Mexico, 1966.

 

Id., Sociologia da Literatura, Ediciones Peninsula, Madrid, 1966.

 

Id., La Signification présente du réalisme critique, Gallimard, Paris, 1960.

 

Id., Studies in European Realism, Hillway Publishing Co., London, 1950.

 

Id., Histoire et Conscience de Classe, Les Editions de Minuit, Paris, 1960.

 

Id., Introdução a uma Estética marxista, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968.

 

Id., La Théorie du Roman, Editions Gonthier, Paris, 1963.

 

MARX-ENGELS: Sobre Literatura e Arte, Editorial Estampa, Lisboa, 1974.

 

MARX, Karl and Friedrich Engels: Collected Works, 7 vols., Lawrence & Wishart, London, 1975.

 

MENDES, José Manuel: Charrua em Campo de Pedras, Seara Nova, Lisboa, 1975.

 

MENDONÇA, Fernando: O Romance Português Contemporâneo, Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras de Assis, São Paulo, 1966.

 

Id., Três Ensaios de Literatura, Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras de Assis, São Paulo, 1967.

 

MONTEIRO, Adolfo Casais: O Romance: Teoria e Crítica, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1964.

 

NAMORADO, Joaquim: «Breves Notas sobre a Personalidade e a Obra de Alves Redol», Vértice, vol. XXX, 1970.

 

Id., «Da Dissidência Presencista ao Neo-Realismo», Vértice, vol. XXVI, 1966.

 

PALMIER, Jean Michel, Lénine: A Arte e a Revolução, vols. I e II, Moraes Editores, Lisboa, 1975.

 

PAVÃO, J. de Almeida: Alves Redol e o Neo-Realismo, Revista Ocidental, Lisboa, 1959.

 

PLEKHANOV, George V.: Art and Society, Oriole Editions, New York, s/d.

 

Id., Cartas sem Endereço, Editora Brasiliense, São Paulo, 1965.

 

RIBAS, Tomás: «O Neo-Realismo eo Romance Português de Tal Tendência», Estrada Larga, ed. Costa Barreto, Porto Editora, vol. I, s/d.

 

RODRIGUES, Urbano Tavares: Realismo, Arte de Vanguarda e Nova Cultura, Editora Ulisseia, Lisboa, 1966.

 

SACRAMENTO, Mário: Fernando Namora, Editora Arcádia, Lisboa, 1967.

 

Id., Há uma Estética Neo-Realista?, Publicacões Dom Quixote, Lisboa, 1968.

 

SENA, Jorge de: «Tentativa de um Panorarna Coordenado da Literatura Portuguesa de 1901 a 1950», Tetracórnio: Antologia de Inéditos de Autores Portugueses, Lisboa, 1955.

 

SIMÕES, João Gaspar: Liberdade de Espírito, Livraria Portugália, Porto, s/d.

 

Id., Crítica I: A Prosa e o Romance Contemporâneo, Livraria Latina Editora, Porto, 1942.

 

SLONIM, Marc: Soviet Russian Literature Writers and Problems, 1917-1967, Oxford University Press, New York, 1967.

 

SOARES, Rodrigo: Por um Novo Humanismo, Livraria Portugália, Porto, 1947.

 

TORRES, Alexandre Pinheiro: Romance: O Mundo em Equação, Portugália Editora, Lisboa, 1967.

 

Id., Vida e Obra de José Gomes Ferreira, Livraria Bertrand, Lisboa, 1975.

 

Id., O Neo-Realismo Literário Português, Moraes Editores, Lisboa, 1977.

 

 

 

Movimento_neo-realista

 

(*) Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999) nasceu em Amarante, tirou o bacharelato em Físico-Químicas na Universidade do Porto e licenciou-se depois em Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra. Nesta cidade acompanhou com o grupo de poetas do movimento neo-realista que editava e era representado no Novo Cancioneiro. Fundou a revista Serpente. Foi professor do ensino secundário até ser proibido de lecionar em Portugal, por ter feito parte do júri da Sociedade Portuguesa de Autores que queria atribuir o seu Grande Prémio de Ficção em 1965 a Luuanda de José Luandino Vieira, então preso no Tarrafal como «terrorista». Foi obrigado a exilar-se no Brasil, de onde partiu para Inglaterra. Foi professor na Universidade de Cardiff, onde criou a disciplina de “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa” e fundou um Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros. Foi escritor, crítico literário, historiador da literatura e tradutor (D. H. Lawrence, Hemingway, Horace MacCoy, entre muitos outros). Colaborou regularmente no Diário de Lisboa, nos semanários Mundo Literário e Jornal de Letras, Artes e Ideias, e também em revistas como Seara Nova, Vértice, Gazeta Musical e de Todas as Artes e Colóquio-Letras. Publicou diversas obras de ficção, entre as quais A Nau de Quixibá (1977), Tubarões e Peixe Miúdo (1986), Espingardas e Música Clássica (1987), O Adeus às Virgens (1992) e Amor, Só Amor, Tudo Amor (1999). Na poesia, deixou também vários volumes, de que são exemplo Novo Génesis (1950), A Terra de meu Pai (1972), A Flor Evaporada (1984) ou A Ilha do Desterro (1996). Publicou antologias de poesia brasileira e trovadoresca galaico-portuguesa. Foi um crítico literário temido e, ocasionalmente, um polemista acerado, defendendo sempre o movimento neo-realista de que foi um dos expoentes teóricos. Entre as suas obras de ensaio sobre temas literários, para além da que aqui apresentamos, destacam-se Científico-Cosmogónico-metafísico de Perseguição (1942), Poesia, programa para o concreto (1966), Vida e Obra de José Gomes Ferreira (1975), O Neo-realismo Literário Português (1977), Os Romances de Alves Redol (1979), Ensaios Escolhidos I (1989), Ensaios Escolhidos II (1990) e A Paleta de Cesário Verde (2003).

 

 

______________

NOTAS:

 

(1) Cf. «Comentários» in Vértice, n.° 141, Junho de 1955, p. 360.

 

(2) Em outro artigo de Vértice, n.° 140, Maio de 1955, pág. 297 denuncia: «E há quem prove com uma simplicidade comovente, com as obras na mão: ou se trata de um romance medíocre, revelando manifesta superficialidade de análise, cheio de erros de sintaxe, quando não de ortografia (e não faltam, na verdade, casos destes por aí) e a obra será classificada como a mais típica producão neo-realista que se pode conceber; ou se trata de um grande romance, profundamente humano e belo, compreensivo e eficiente, bem pensado e bem escrito, e será açodadamente considerado, por mais expressivo que seja da visão do mundo e do homem que o novo realismo indispensavelmente implica, uma necessária reacção ao Neo-Realismo».

 

(3) Escreve Redol: «Gaibéus viria a ser também o primeiro romance neo-realista português» (Prefácio à 6.ª edicão, Publicações Europa-América, Lisboa, 1965, pág. 27). Mário Dionísio parece aceitar esta mesma baliza na sua «Ficha 5», Seara Nova, vol. XXI, n.° 765, 11 de Abril de 1942, pp. 131-134, quando afirma: «Aconteceu ser Alves Redol o primeiro a aparecer em livro desta geração que se tem preparado do contacto da vida, etc...».

 

(4) Prefácio à 6.ª edição de Gaibéus, id., id., pág. 29.

 

(5) Esta entrevista encontra-se reproduzida na revista Vértice, n.° 173, Fevereiro de 1958, pp. 108-110.

 

(6) Mário Dionísio refere-se deste modo cripticamente a Karl Marx, a fim de iludir a censura fascista.

 

(7) «A propósito de Jorge Amado», O Diabo, n.° 164, de 14 de Novembro de 1937.

 

(8) Mário Dionísio nasceu em Lisboa em 1916. Em 1937 tinha, portanto, vinte e um anos de idade.

 

(9) Cf. «Ficha - 7», Seara Nova, ano XXII, n.° 797, 21 de Novembro de 1942, pp. 6-8.

 

(10) Cf. nota 2.

 

(11) Vértice, n.° 140, Maio de 1955, p. 298.

 

(12) Mando Martins, outro teórico do Neo-Realismo, escrevia, por exemplo, no seu artigo «Literatura Humana», Sol Nascente, n.° 4, 15 de Março de 1937: «Toda a arte é uma deformação subjectiva da realidade - a literatura é um processo dessa deformação».

 

(13) V. nota 4.

 

(14) Mário Sacramento, Fernando Namora, Coleccão «A Obra e o Homem», Editora Arcádia, Lisboa, s/d (1968?), pp. 73-74. (O sublinhado é nosso).

 

(15) Esta entrevista encontra-se reproduzida na revista Vértice, n.° 173, Fevereiro de 1958, pp. 108-110.

 

(16) Joaquim Namorado, Vértice, n.os 322-323, Novembro-Dezembro de 1970, p. 914. Ver também, do mesmo autor, o texto «Da Dissidência Presencista ao Neo-Realismo», Vértice, n.º 279, Dezembro de 1966, pp. 782-786.

 

(17) Carta Aberta aos Directores da Presença, Coimbra, 16 de Junho de 1930.

 

(18) Saída anunciada no n.º 27 da Presença, Junho-Julho, 1930.

 

(19) Presença, Ano XII, 2.ª série, n.° 1, Novembro de 1939. Miguel Torga, que não assinou a Carta dos Dissidentes de 30 de Dezernbro de 1939, solidarizar-se-ia todavia com ela e, portanto, com a afirmação nela contida: «Os desencontros pessoais ou antagonismos existiram e existem».

 

(20) João de Brito Câmara, O Modernismo em Portugal, Funchal, 1944. O sublinhado é nosso.

 

(21) Não esquecemos aqui que, em 1930, surgira já o número único da revista Sinal dirigida por todos os «dissidentes»: Miguel Torga, Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca.

 

(22) Como o leitor poderá ver no volume que, nesta colecção [Biblioteca Breve do Instituto de Cultura Portuguesa], é dedicado ao Movimento da Presença, esta revista publicou 54 números entre Março de 1927 e Novembro de 1938 (números que constituem a 1.ª série), tendo reaparecido em Novembro de 1939. Mas só mais outro número seria editado, além deste.

 

(23) Alexandre Pinheiro Torres, O Neo-Realismo Literário Português, Moraes Editores, Lda., Lisboa, 1977. Cf. Capítulo: «O Humanismo da Geração de 70 julgado pelo “Novo Humanismo Neo-Realista”. O Neo-Realismo como expressão literária do “Novo Humanismo”».

 

(24) Seara Nova, ano XXV, n.° 978, 11 de Maio de 1946, pp. 27-28, (in «Antero de Quental e o Socialismo»)."

 

(25) Alfredo Margarido, A Introdução do Marxismo em Portugal, Guimarães & Ca., Lisboa, 1975, pp. 34-35. Nesta pequena obra de consulta indispensável, lê-se ainda a pág. 51: «Oliveira Martins pregava então uma revolucão que, recusando o «predomínio das classes fabris», devia assentar no «concurso fértil dos operários e dos camponeses com a pequena burguesia, lojistas, foreiros, rendeiros, pequenos proprietários agrícolas, industriais, com os operários da ciência, médicos, legistas, matemáticos, arquitectos, engenheiros, publicistas, etc. Amálgarna insidiosa que procurava diluir as diferenças existentes entre estes tipos de trabalhadores».

 

(26) Antero de Quental, O que é a Internacional. Citamos o texto publicado na revista Pensamento n.º 8 a 13 (Novembro de 1930, Abril de 1931), p. 299.

 

(27) Mário Soares, «Nota sobre a actuação pública de Oliveira Martins», Vértice, n.° 92, Abril, 1951, 134. Alfredo Margarido, ob. cit., 50, chatna a Oliveira Martins «homem dos compro­missos com a burguesia e/ou o poder».

 

(28) Ob. cit.

 

(29) Ob. cit., pág. 69.

 

(30) Ob. cit., págs. 95-96.

 

(31) Adolfo Casais Monteiro, De Pés Firmados na Terra, Editorial «Inquérito», Limitada, Lisboa, 1940, pp. 27-35.

 

(32) O livro Cimento de Gladkov circulava já entre nós no fim dos anos 30. Alves Redol mostrou-nos, em 1961, um exemplar da tradução espanhola, 3.ª edição (1933) da Editorial Cenit, S. A. Madrid, que ele anotara e nos afirmou muito haver discutido com Soeiro Percira Gomes.

 

(33) Pensamento, n.° 37, Abril de 1933, págs. 14-17.

 

(34) Obras de Ferreira de Castro, Lello & Irmão, Editores, Porto, 1975, 1.º volume, pp. 275-277.

 

(35) António Sérgio, «Tese e Antítese nos Sonetos de Antero». Revista de Portugal, n.° 1, 1937.

 

(36) Jofre Amaral Nogueira, «Carta ao Sr. António Sérgio», Sol Nascente, n.° 19, 15 de Novernbro de 1937.

 

(37) Observe-se aqui que o processo sobre a Geração de 70 é feito também, no início de 1937, na polémica Rodrigues Lapa - Sílvio Lima, nas páginas de O Diabo. Embora concordando com várias brilhantíssimas observações de Sílvio Lima, não podemos deixar de consignar o nosso acordo quanto à afirmação básica de Rodrigues Lapa: «O vencidismo (...) foi, em todo o caso, segundo nos parece, uma elegante capitulacão, em nome da amizade, dos ideais avançados que norteavam os rapazes de 70 (...) Aviso que preste: não queiram incidir nos mesmos erros, e não glorifiquemos, sob o pretexto de a discutir, essa atitude fraca e lamentável» (O Diabo, n.° 139, 21 de Fevereiro de 1937).

 

(38) António Sérgio, sendo embora um dos maiores ensaístas portugueses, como tal amplamente reconhecido por todos os neo-realistas, ver-se-ia envolvido posteriormente (1951) numa polémica com António José Saraiva, então defensor de uma linha dura dentro do Neo-Realismo. Cf. O Caprichismo Polémico do Sr. António Sérgio, edição do Autor, Porto, 1952, pequeno livro em que se põe em questão o idealismo sergiano, para estudo do qual aconselhamos a leitura de Joel Serrão, Temas de Cultura Portuguesa, Lisboa, 1960, pp. 169-184.

 

(39) O termo clerc designa o intelectual que «serve» uma causa que não exclusivamente a Arte pela Arte. Tal «serviço» foi classificado de «traição» num célebre livro de Julien Benda La Trahison des Clercs (1927). O escritor deveria, segundo Benda, permanecer à margem e acima de todos os acontecimentos históricos e políticos. Neste sentido, os corifeus da Presença forarn clercs. Os «dissidentes», pela sua atitude, puseram em questão a validade de tal princípio. A obra de Miguel Torga acabará mesmo por tornar-se um símbolo de protesto contra o Fascismo, embora não sob o signo do Marxismo-Leninismo.

 

(40) Jofre Amaral Nogueira, «O Papel duma Nova Geração», Sol Nascente, n.° 28, 15 de Abril de 1938. O sublinhado no texto é da nossa responsabilidade. Observe-se, como importante, que a argumentacão de J. A. Nogueira se inspira numa passagem de Chernishevsky, citada por Plekhanov logo no início da sua obra A Arte e a Vida Social (Cf. George Plekhanov, Art and Society, Oriole Editions, New York, 1974, edição que seguimos neste estudo).

 

(41) Cf. History of the XXth Century, Phoebus Publishing Company, Bristol, 1973, vol. 4, pp. 1543-1552 e La España del Siglo XX de Tuñon de Lara, Paris, 1966, pp. 383-417.

 

(42) Cf. Georges Friedmann, La Crise du Progrès, Gallimard, Paris, 1936, p. 205 e passim.

 

(43) Cf. Vicente Martins, «Ars Nuova», Gleba, Novembro de 1934.

 

(44) José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras, Portugália Editora, Lisboa, 1965, pp. 98-99. Ver em mais detalhe Alexandre Pinheiro Torres, Vida e Obra de José Gomes Ferreira, Livraria Bertrand, Lisboa, 1975.

 

(45) Cf. Sol Nascente, n.° 20, 1 de Dezembro de 1937.

 

(46) Armando Martins, «Resposta aJosé Régio, que é carta aos mais escritores portugueses», Sol Nascente, n.° 24, 1 de Fevereiro de 1938.

 

(47) É este, aliás, o ponto de vista moderno da questão, conforme o sintetiza Fernando Guimarães no seu artigo «Arte», Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, Iniciativas Editoriais, Lisboa, s/d, pp. 466-473.

 

(48) Cf. notas 4 e 13.

 

(49) Cf. entre outros, os artigos de Mário Dionísio sobre Jorge Arnado (O Diabo, n.os164 a 167, 14 de Novembro de 1937 - 5 de Dezembro de 1937), de Joaquim Namorado sobre Amando Fontes (id., n.º 223, Dezembro de 1938), de Afonso Ribeiro sobre José Lins do Rego (Sol Nascente, n.º 17 de 15 de Outubro de 1937) e sobre o «Romance Brasileiro Contemporâneo» em geral (id., n.º 28 de 15 de Abril de 1938), o importante estudo de Alves Redol também sobre Amando Fontes (id., n.º 29 de 15 de Maio de 1938), onde o autor de Gaibéus declara ser Cimento de Gladkov o melhor livro que leu, e os de António Ramos de Almeida sobre Jorge Amado, Amando Fontes e José Lins do Rego (id., 31 e 32 de 15 de Agosto e 1 de Dezembro de 1938), só para nos referirmos àqueles estudos publicados entre 1937 e o fim de 1938 e que podem ter desencadeado a má-vontade de Régio (a Presença prestava culto particular a José Lins do Rego).

 

(50) Notemos, a este respeito, que mau grado os ataques dos neo-realistas contra Sérgio, ou Gaspar Simões, ou José Régio, nunca estas figuras deixaram de ser consideradas por eles como das mais eminentes da nossa literatura. Gaspar Simões ou Régio não gozam hoje, entre as novas geracões, do mesmo prestígio. O mesmo não sucede com António Sérgio cuja estatura cresce com os anos, o que é, sem dúvida, da mais elementar justica, embora a ideologia de Sérgio não vá mais além do que a da Geracão de 1870, constituindo a principal fonte de inspiração doutrinária dos socialistas burgueses contemporâneos.

 

(51) N.º 184, 3 de Abril de 1938.

 

(52) «Ficha 13-A», Seara Nova, ano XXII, n.º 833, 31 de Julho de 1943, pp. 267-270.

 

(53) Augusto da Costa Dias, A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa, Prefácio da 2.ª edição, Portugália Editora, Lisboa, 1964, p. XLVIII.

 

(54) O Diabo, n.° 248, 24 de Junho de 1939.

 

(55) Mário Dionísio refere-se, obviamente, aos opositores presencistas.

 

(56) Seara Nova, ano XXV, n.° 978, 11 de Maio de 1946, pp. 27-28.

 

(57) A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa, Portugália Editora, 1.ª edicão, Lisboa, 1963, p. 121.

 

(58) Sol Nascente, n.os 29 e 30, de 15 de Maio e 1 de Junho de 1938. O n.° 40 de 15 de Novembro de 1939 sumariza mesmo, sob o título «ABC - que é o método dialéctico», os artigos anteriores.

 

(59) Klassenkampf: luta de classes. Mário Ramos vê-se obrigado a empregar a expressão alemã para evitar os cortes inevitáveis da Censura fascista.

 

(60) Cf. nota 49.

 

(61) Ano II, n.º 32, 1 de Outubro de 1944.

 

(62) O leitor interessado numa definição teórica rnais detalhada do que seja o Neo-Realismo encontrá-la-á no meu livro O Neo-Realismo Literário Portugués, Moraes Editores, Lisboa, 1977, pp. 27-43.

 

(63) Cf. Alexandre Pinheiro Torres «O Neo-Realismo», Ed. da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico (policopiada), Lisboa, 1963.

 

(64) Seara Nova, ano XXIII, n.° 872, 29 de Abril de 1944, p. 261.

 

(65) Seara Nova, ano XXII, n.° 816, 3 de Abril de 1943, p. 319, (in «Apontamentos sobre o Neo-Realismo»).

 

(66) Seara Nova, ano XXV, n.° 949, 20 de Outubro de 1945, p. 117, (in «A literatura e o momento político»).

 

(67) São as seguintes as datas destes números de Sol Narcente:1 de Maio, 1 de Agosto e 15 de Agosto de 1937.

 

(68) Estas poesias encontram-se incluídas em Poemas (1941), segundo volume dos dez que constituíram a série «Novo Cancioneiro».

 

(69) Cf. O Diabo, n.º 150 e 155 de 9 de Maio e 13 de Junho de 1937.

 

(70) Alves Redol, Glória, Uma Aldeia do Ribatejo, edição do autor, 1938. O livro depois de falar de «a terra» e d’«as gentes», em termos de pura descrição etnográfica, dividir-se-á em duas partes «Ergografia» e «Folclore», onde se abordam, monograficamente, os instrumentos de trabalho, o vestuário, a arte manual, o moinho de vento, danças, religião, e até «expressões» e um «glossário», etc.. Obra, pois, com certas pretensões eruditas.

 

(71) Afonso Ribeiro publicou quatro destas cartas, a primeira das quais no n.° 7 de Sol Nascente (1 de Maio de 1937) e a última no n.° 18 (11 de Novembro de 1937).

 

(72) Id., Carta IV.

 

(73) Afonso Ribeiro, Ilusão na Morte, Ed. Sol Nascente, Porto, 1938, p. 232.

 

(74) Id., id., p. 234.

 

(75) Id., id., p. 232.

 

(76) Cabeças de Barro, obra hoje rara, foi publicada pelos editores Moura Marques Filho, tendo sido impressa na Tipografia Lousanense, da Lousã, em 1937. É um pequeno volume de 78 páginas, incluindo três contos de cada um dos colaboradores e fechando com dois poemas, um de Namora («Pântano») e outro de Carlos de Oliveira («Lamentação»).

 

(77) Seara Nova, ano XIX, n.° 734, 6 de Setembro de 1941, p. 285.

 

(78) Cf. Poema «Atitude», p. 41.

 

(79) As críticas de Rodrigo Soares, abrangendo um período que vai de 1938 a 1947, encontram-se compendiadas no livro Por um Novo Humanismo, Livraria Portugália, Porto, 1947. Obra sem dúvida importante para o estudo do Neo-Realismo.

 

(80) Seara Nova, ano XXI, n.° 765, 11 de Abril de 1972, pp. 131-134.

 

(81) Ernst Fisher, A Necessidade da Arte, tradução portuguesa do original alemão Von der Notwendigkeit der Kunst, Rio de Janeiro, 1966, p. 91.

 

(82) Id., id., p. 90.

 

(83) Alves Redol, Gaibéus, prefacio à 6.ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 1965, p. 28.

 

(84) Id., id., id.

 

(85) Encontra-se planeada para esta colecção um obra especial sobre a poesia neo-realista.

 

(86) José Gomes Ferreira dá-nos o seguinte depoimento: «... Dos livros de versos iniciais do Movimento (...) o mais belo foi, sem dúvida, Rosa dos Ventos, de Manuel da Fonseca, publicado em 1940 por cotização dos amigos que assim quiseram prestar homenagem à sua personalidade inconfundível...», Mernória das Palavras, Portugália Editora, 1.ª ed., 1965, p. 211.

 

(87) Mário Dionísio, «Ficha 6», Seara Nova, ano XXI, n.° 766, 18 de Abril de 1942, pp. 151-153.

 

(88) Prefácio a Poemas Completos de Manuel da Fonseca, Colecção «Poetas de Hoje», Portugália Editora, 1963, pp. XIV-XV.

 

(89) Cf. «O Novo Cancioneiro», na revista Afinidades, n.º 7-8, Outubro de 1944, pp. 97-108.

 

(90) Id., id., p. 99.

 

(91) José Gomes Ferreira nasceu em 1900, sendo, portanto, o mais velho de todos os neo-realistas. É célebre a sua apóstrofe num poema de 1936 (só publicado em 1948): «Recuso-me a ter mais de vinte anos» («Heróicas», VII, Poesia - I).

 

(92) José Gomes Ferreira, ob. cit. (nota 86), pp. 220-221.

 

(93) Eduardo Lourenço, Sentido e Forma da Poesia neo-realista, Editora Ulisseia, Lda., Lisboa, 1968, pp. 105-106.

 

(94) Jean Paul Sarrault, «O Novo Cancioneiro», Afinidades, n.º 7-8, Outubro de 1944, p. 101.

 

(95) João José Cochofel, Sol de Agosto, «Novo Cancioneiro», Coimbra, 1941, p. 25.

 

(96) Seara Nova, ano XXI, n.° 759, 28 de Fevereiro de 1942, pp. 38-39.

 

(97) «Soeiro Pereira Gomes e o mundo da infância» (1950) O Romance (Teoria e Crítica), Livraria José Olympio Editora, Rio de Janciro, 1964, pp. 396-400.

 

(98) Id., id. (nota 97).

 

(99) Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, Publicações Europa-América, 6.ª edição, p. 27.

 

(100) Id., id., pp. 90-91.

 

(101) Fernando Mendonça, O Romance Português Contemporâneo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, S. Paulo, pp. 102-103.

 

(102) Id., id., p. 105.

 

(103) Mário Sacramento, Fernando Namora, Colecção «A Obra e o Homem», Editora Arcádia Lda., Lisboa, 1967(?), pp. 75-77.

 

(104) Carlos de Oliveira, Casa na Duna, Coleccão «Novos Prosadores», Coimbra, 2.ª edição, 1944, p. 79.

 

(105) Id., id., p. 143.

 

(106) Cf. Prefácio à 2.ª edição de Vagão J, Editora Arcádia, Lda., Lisboa, 1974.

 

(107) Mário Dionísio, «Oiro! caricatura de uma  civilização», Edições Gleba, 1934.

 

(108) Carlos de Oliveira, Alcateia, Colecção «Novos Prosadores», Coimbra, 1944, p. 246.

 

(109) Id., id., p. 18.

 

(110) Id., id., p. 24.

 

(111) Id., id., p. 38.

 

(112) Id., id., p. 44.

 

(113) Id., id., p. 23.

 

(114) Id., id., p. 222.

 

(115) Id., id., p. 223.