Lenine de olhos amendoados:

O asiocentrismo

 

 

Daniele Burgio, Massimo Leoni e Roberto Sidoli (*)

 

 

Lenine, “É Melhor Menos, mas Melhor” (1923): “O resultado da luta” (entre o comunismo e o imperialismo moderno) “depende, em última instância, do facto de a Rússia, a Índia, a China, etc., constituírem a enorme maioria da população”.

 

Description: TIL that Vladimir Lenin, the Russian revolutionary, spoke English with an  Irish, and more specifically, a Dublin accent. : r/todayilearned

 

Dada como certa a contribuição decisiva aportada por Lenine, de 1893 a 1923, para a vitória e consolidação da histórica Revolução de Outubro, em grande parte sobre o antigo império czarista, é agora pouco apreciada na esquerda antagónica das metrópoles imperialistas, o genial contributo teórico (bem como como prático) oferecido por Lenine ao processo de desenvolvimento do marxismo criativo e antidogmático: os esquemas e análises inovadores produzidas gradualmente pelo grande revolucionário russo (1870-1924) em relação ao capitalismo russo de 1894 a 1916, ao partido revolucionário, ao desenvolvimento nas diferentes fases do processo revolucionário, ao materialismo e à lógica dialética, ao imperialismo contemporâneo, ao capitalismo monopolista de Estado, ao complicado processo de construção do socialismo na Rússia, constituem uma série impressionante de joias muito preciosas e encastradas entre si, que ainda servem hoje para a elaboração coletiva e a práxis dos comunistas do século XXI, cem anos após a morte do fundador do bolchevismo/comunismo moderno.

 

No entanto, outra secção relevante e importante do pensamento leninista revela-se muito menos conhecida, que consiste na teoria do asiocentrismo.

 

Importa desde já salientar que o próprio conceito de Ásia é de origem europeia e remonta ao historiador grego Heródoto, sendo uma categoria geopolítica não aceite pelos habitantes da Ásia até ao início do século XX.

 

Se, portanto, não é surpreendente que o eurocentrismo, o centrismo dos E.U.A. (doutrina Monroe, etc.) e o sinocentrismo (até à horrenda Guerra do Ópio, desencadeada pela primeira vez pelo colonialismo anglo-francês contra o povo chinês em 1839-42) constituam fenómenos culturais e ideológicos diferentes entre si, mas com raízes profundas e centenárias, o asiocentrismo de inspiração comunista constitui antes uma corrente de pensamento relativamente recente que encontrou o seu fundador precisamente em Vladimir Illich Ulianov: isto é, um russo apaixonado também pela sua pátria então sofredora, torturada e gigantesca, e que recebeu o seu apelido de um dos principais rios asiáticos, o Lena, localizado naquela Sibéria que Lenine conheceu diretamente nos anos de sua deportação, entre 1897 e 1899.

 

A primeira peça do asiocentrismo de Lenine veio da sua autoconsciência do carácter dualista e dividido, europeu mas também asiático, do ponto de vista geopolítico e económico, da Rússia ilimitada dos séculos XIX e XX: um verdadeiro subcontinente, cujos confins se estendiam desde a fronteira com o império alemão até à China, às costas orientais da Sibéria e a Vladivosstock, como observou Estaline no seu excelente ensaio O Marxismo e a Questão Nacional, publicado em 1913 sob a supervisão política de Lenine (1).

 

Desde o outono de 1895, Lenine sublinhava, num artigo em que recordava e elogiava o grande revolucionário e cientista Friedrich Engels, que “Marx e Engels viram claramente que a revolução política” (anti-czarista) “na Rússia teria uma imensa importância também para o movimento revolucionário da Europa do Leste. A autocracia russa sempre foi o baluarte da reação europeia em geral". Em 1902 e na sua lúcida obra-prima política intitulada Que fazer?, Lenine deu um salto qualitativo teórico ao sublinhar que a história “coloca uma tarefa imediata ao proletariado russo, a mais revolucionária de todas as tarefas imediatas do proletariado de qualquer país. O cumprimento desta tarefa, a destruição do mais poderoso baluarte da reação", isto é, o czarismo "não só europeu, mas também (hoje podemos dizê-lo) asiático, faria do proletariado russo a vanguarda do proletariado internacional" (2).

 

Portanto, a partir de 1902, a componente asiática, tanto de natureza político-económica como de relações internacionais, da Rússia, constituiu um facto e uma evidência empírica bem presente na consciência do genial Lenine: e nos anos seguintes este último ergueu uma segunda pedra angular da sua teoria asiocêntrica através de uma tese importante, mas contraintuitiva, sobre o carácter político-social avançado da Ásia, no início do século XX, relacionado por Lenine com a natureza bastante atrasada da Europa e do mundo ocidental em geral.

 

Num memorável artigo, publicado em maio de 1913 no semilegal Pravda, intitulado precisamente “Europa atrasada e Ásia avançada”, Lenine iniciou o seu raciocínio analítico admitindo que

 

“o contraste destas palavras parece um paradoxo. Quem não sabe que a Europa está avançada e a Ásia atrasada? No entanto, as palavras que constituem o título deste artigo contêm uma verdade amarga.

 

A Europa civilizada e avançada - com a sua técnica brilhantemente desenvolvida, com a sua cultura rica e multifacetada e a sua Constituição - atingiu um momento histórico em que a burguesia, no seu comando, apoia, por medo ao proletariado que multiplica os seus membros e as suas forças, tudo o que é atrasado, moribundo, medieval. A burguesia moribunda alia-se a todas as forças envelhecidas e em extinção, para manter a agora abalada escravatura assalariada.

 

Na Europa avançada governa a burguesia, que apoia tudo o que é atrasado. Nos nossos tempos, a Europa avançou, não graças à burguesia, mas apesar dela, uma vez que o proletariado, e só ele, alimenta continuamente o exército composto por milhões de homens que lutam por um futuro melhor; só ele preserva e espalha um ódio implacável por tudo o que é atrasado, pela brutalidade, pelos privilégios, pela escravidão e pela humilhação infligidas pelo homem ao homem.

 

Na Europa “avançada” apenas o proletariado é uma classe avançada. A burguesia ainda está viva, porém, está pronta para qualquer ato brutal e feroz e qualquer crime para salvaguardar a escravidão capitalista que está prestes a perecer.

 

Não se poderia fornecer um exemplo mais impressionante desta putrefação de toda a burguesia europeia do que o do seu apoio à reação na Ásia para os propósitos gananciosos dos empresários financeiros e dos vigaristas capitalistas.

 

Na Ásia, um poderoso movimento democrático está a desenvolver-se, a espalhar-se e a fortalecer-se por toda a parte. Lá a burguesia ainda marcha com o povo contra a reação. Centenas de milhões de homens despertam para a vida, para a luz, para a liberdade. Que entusiasmo este movimento universal desperta nos corações de todos os trabalhadores conscientes, que sabem que o caminho para o coletivismo passa pela democracia! Que simpatia sentem todos os democratas honestos pela jovem Ásia!

 

E a Europa “avançada”? Está a saquear a China e a ajudar os inimigos da democracia, os inimigos da liberdade na China!

 

Aqui está um pequeno cálculo, simples, mas instrutivo. O novo empréstimo chinês foi contraído contra a democracia chinesa: A “Europa” é por Yuan Sci Kai, que prepara uma ditadura militar. Mas por que é que o apoia? Porque é um bom negócio. O empréstimo foi contraído no valor de quase 250 milhões de rublos, a uma taxa de 84%. Isto significa que os burgueses da “Europa” entregam aos chineses 210 milhões enquanto fazem o público pagar 225. De repente, em poucas semanas, você tem um benefício líquido de 15 milhões de rublos! Isso não é realmente um benefício verdadeiramente “líquido”?

 

E se o povo chinês não reconhecer o empréstimo? Na China existe uma república e a maioria do Parlamento não é contrária ao empréstimo?

 

Ah, então a Europa “avançada” levantará altos gritos sobre “civilização”, “ordem”, “cultura” e “pátria”! Então ela fará falarem os canhões e esmagará a “atrasada” república asiática, em aliança com o aventureiro, traidor e amigo da reação Yuan Sci Kai!

 

Toda a Europa que está no poder, toda a burguesia europeia está aliada a todas as forças da reação e da Idade Média na China.

 

Por outro lado, a jovem Ásia, isto é, as centenas de milhões de trabalhadores da Ásia, tem um aliado seguro no proletariado de todos os países civilizados. Nenhuma força no mundo poderá impedir a sua vitória, que libertará tanto os povos da Europa como os povos da Ásia” (3).

 

De acordo com o julgamento correto de Lenine, que assumiu uma importância histórica e se estendeu a uma grande parte do planeta, por esta altura "a jovem Ásia, isto é, as centenas de milhões de trabalhadores da Ásia" já tinha demonstrado um potencial político-social tão elevado que “nenhuma força no mundo” teria sido capaz de impedir a sua vitória na luta contra o imperialismo feroz da “Europa atrasada”: uma profecia leninista que se revelaria absolutamente correta, mas compreendida por poucos em 1913.

 

Outra peça do asiocentrismo de Lenine veio à luz em março de 1923 através de um escrito seu que também tinha como objeto o facto certo e indiscutível de que a Ásia (incluindo a Rússia) representava a grande maioria da população do planeta em 1923, bem como o maior continente: elementos empíricos que adquiriram um imenso significado político-social aos olhos do lúcido e apaixonado revolucionário russo, agora próximo da morte, transformando-se nos fatores e forças finalmente decisivos para a vitória à escala planetária do socialismo, no seu choque secular com o imperialismo de origem predominantemente ocidental.

 

No artigo profundo, detalhado e complexo em análise, Lenine analisou de facto a situação mundial desse período com a sua clareza habitual.

 

“Estamos pois neste momento colocados perante a seguinte questão: poderemos manter-nos com a produção do nosso pequeno e muito pequeno campesinato, no nosso estado de ruína, até ao momento em que os países capitalistas da Europa Ocidental tenham completado o seu desenvolvimento para o socialismo? Mas eles fazem-no de maneira diferente daquela que esperávamos anteriormente. Não o fazem por um processo gradual de «amadurecimento» neles do socialismo, mas mediante a exploração de uns Estados por outros, mediante a exploração do primeiro Estado entre os vencidos na guerra imperialista, combinada com a exploração de todo o Oriente. E, por outro lado, o Oriente entrou definitivamente no movimento revolucionário devido precisamente a esta primeira guerra imperialista, e foi definitivamente, arrastado para o turbilhão geral do movimento revolucionário mundial.

 

Qual é a táctica que este estado de coisas prescreve ao nosso país? Evidentemente a seguinte: devemos manifestar uma prudência extrema para manter o nosso poder operário, para manter sob a sua autoridade e sob a sua direcção o nosso pequeno e muito pequeno campesinato. Temos do nosso lado a vantagem de que todo o mundo está já agora a passar para um movimento que deve gerar a revolução socialista mundial. Mas temos do nosso lado o inconveniente de que os imperialistas conseguiram cindir todo o mundo em dois campos, e esta cisão complica-se pelo facto de que a Alemanha, país de desenvolvimento capitalista realmente avançado e culto, se vê agora em grandes dificuldades para se reerguer. Todas as potências capitalistas do chamado Ocidente cravam nela as suas garras e não a deixam levantar-se. E, por outro lado, todo o Oriente, com a sua população trabalhadora e explorada de centenas de milhões de homens levados ao último grau da miséria humana, foi colocado em condições em que as suas forças físicas e materiais não podem de modo nenhum comparar-se com as forças físicas, materiais e militares de qualquer dos Estados da Europa Ocidental, que são muito mais pequenos.

 

Podemos evitar o futuro choque com estes Estados imperialistas? Podemos esperar que as contradições internas e os conflitos entre os Estados imperialistas prósperos do Ocidente e os Estados imperialistas prósperos do Oriente nos dêem pela segunda vez uma protelação, como no-la deram da primeira vez, quando a cruzada da contra-revolução da Europa Ocidental, destinada a apoiar a contra-revolução russa, fracassou em consequência das contradições existentes no campo dos contra-revolucionários do Ocidente e do Oriente, no campo dos exploradores orientais e dos exploradores ocidentais, no campo do Japão e da América?

 

Parece-me que a esta pergunta é preciso responder que a solução depende aqui de muitíssimas circunstâncias, e só se pode prever o desenlace da luta no seu conjunto com base no facto de que o próprio capitalismo, no fim de contas, ensina e educa para a luta a gigantesca maioria da população da Terra.

 

O desenlace na luta depende, em última análise, do facto de que a Rússia, a Índia, a China, etc., constituem a gigantesca maioria da população. E é precisamente esta maioria da população que, nos últimos anos, se integra com inusitada rapidez na luta pela sua libertação, de modo que neste sentido não pode haver sombra de dúvida em relação a qual será o desenlace definitivo da luta mundial. Neste sentido, a vitória definitiva do socialismo está plena e absolutamente assegurada” (4).

 

A tendência de Lenine para o asiocentrismo encontrou um novo suporte na teoria do “calcanhar de Aquiles” do capitalismo internacional, a partir de agosto de 1919 e após a derrota sangrenta do processo revolucionário na Hungria.

 

Na verdade, Lenine compreendeu, a partir daquela dura derrota, que a Ásia constituía agora à escala planetária e muito mais do que a Europa - com a exceção parcial da Alemanha derrotada na Primeira Guerra Mundial - o elo mais fraco da cadeia global do imperialismo, declarando que «A Inglaterra é o nosso pior inimigo. É na Índia que devemos atacá-la com força", bem como sustentar que "o Oriente nos ajudará a conquistar o Ocidente", com a Rússia revolucionária, bolchevique e eurasiática, atuando como pivô e articulação geopolítica entre as duas áreas do globo em objetivo (5).

 

Mesmo um historiador anticomunista, mas inteligente, como A. Ulam compreendeu a estratégia asiática hábil e inescrupulosa de Lenine ao examinar as relações soviético-afegãs de 1919-20.

 

“Para dar um exemplo, poucos Estados contemporâneos” (no final da Primeira Guerra Mundial) “poderiam ser definidos com mais precisão como Estados feudais, no que diz respeito à sua ordem social e à sua estrutura política, do que o Afeganistão. O novo rei daquele país, o rei Amanullah, conquistou recentemente a sua independência da Grã-Bretanha. O regime soviético foi rápido em prestar homenagem ao monarca e estabelecer relações diplomáticas com o seu governo, o que parecia capaz de criar grandes dificuldades aos britânicos na Índia. Em maio de 1920, o representante soviético na Ásia Central enviou uma nota diplomática aos afegãos, na qual prestava homenagem ao «Afeganistão independente» e, como símbolo da amizade soviética pelo seu país, anunciou-lhe que o governo soviético faria oferta ao Afeganistão do equipamento necessário à construção de uma estação radiotelegráfica.

 

A política externa soviética seguiu, portanto, o princípio de apoiar, tanto a nível estatal como através do Comintern, qualquer movimento revolucionário e de emancipação nacional dirigido contra os interesses das grandes potências" (6).

 

Apoio político e material especialmente e sobretudo na Ásia, do Afeganistão à Turquia e da China à Índia, durante os anos entre 1917 a 1923.

 

Como Ulam também admitiu, a clarividente práxis de planeamento leninista em relação às intermináveis massas populares asiáticas rapidamente se tornou hegemónica tanto no seio do Partido Bolchevique como na Internacional Comunista, fundada em Moscovo em Março de 1919, embora tivesse de superar a resistência dos dogmáticos e eurocêntricos, como Serrati e Bordiga, unidos na rejeição da opção leninista pelos povos submetidos ao jugo imperialista durante o segundo congresso da Internacional, realizado no verão de 1920 em Moscovo.

 

“Além das visões grandiosas de Trotsky, a ideia de que o Extremo Oriente oferecia o campo mais fértil para o futuro da revolução e que as massas asiáticas poderiam tornar-se os aliados mais valiosos do Estado soviético nasceu nos primeiros dias do regime soviético e constituiria durante muito tempo um ponto de referência para a sua política externa. No entanto, esta conceção colocava um problema ideológico e tático muito sério: de facto, com base na carta da ortodoxia marxista ou na observação da realidade contemporânea, era difícil esperar que um regime socialista pudesse surgir no Egipto ou na China num período relativamente curto de tempo. Estes países tinham pouco ou nenhum proletariado industrial e atravessavam aquela fase de desenvolvimento que, segundo as categorias marxistas, era definida como «pré-industrial». Mas, segundo o pensamento de Lenine, nenhum escrúpulo ideológico deveria impedir a comunidade de se aliar aos inimigos dos seus inimigos. A lógica da sua doutrina queria que os comunistas apoiassem um movimento nacionalista baseado nas classes médias, desde que fosse dirigido contra uma potência imperialista, e não era forçoso desprezar mesmo os grupos sociais mais retrógrados (senhores feudais ou líderes religiosos), na medida em que eles lutassem contra a Inglaterra ou a França pela liberdade do seu país. Qualquer hesitação ou aparência de duplicidade relativamente a este ponto teria privado a doutrina da autodeterminação dos povos, apoiada pelos comunistas, de grande parte do seu valor propagandístico. [...] Mas não se tratava apenas de fórmulas abstratas: partidos comunistas haviam sido criados na Índia, na China, noutros países. Deveriam estes partidos ter subordinado a sua luta pelo poder e pela reforma à luta nacionalista, servindo simplesmente como aliados das classes superiores?

 

Este problema daria origem a muitas discussões e disputas, que atormentaram aqueles que tiveram que decidir sobre a política do Comintern, e da União Soviética nas décadas seguintes. Já durante o segundo congresso do Comintern, Lenine encontrou-se em desacordo com um jovem comunista indiano, M. N. Roy, que se tinha declarado contra a atribuição da condição de aliado revolucionário a todos os movimentos de libertação nacional, independentemente do facto de serem ou não baseados em determinadas classes. Nas suas memórias, Roy cita Lenine: "Ilustrando-me a sua teoria segundo a qual os movimentos de libertação dos povos coloniais eram uma força revolucionária... ele, no entanto, advertiu: 'Isto não significa que o nacionalismo deva ser tingido de vermelho'" (7).

 

Lenine não foi certamente o primeiro pensador russo a compreender o carácter peculiar da Rússia, diferente do resto da Europa.

 

Como observou o estudioso russo K. Rakhimov, no final de 2022, num relatório ao conceituado Clube Valdai de discussão internacional, na Rússia “a questão da autodeterminação sob o argumento «Europa ou Ásia» foi colocada na agenda desde os tempos de Pedro, o Grande, quando a Rússia começou a declarar-se como um Estado europeu. Ao mesmo tempo, existe um paradoxo: a maior parte do território da Rússia já estava localizada na Ásia, o que deu origem a discussões entre ocidentalistas e eslavófilos sobre a localização do país” (8).

 

A peculiar posição geopolítica, bem como sócio-produtiva, da Rússia já tinha sido reconhecida em meados do século XIX, mesmo por um democrata sincero, altamente estimado pelo próprio Lenine, como A. I. Herzen, que entre outras coisas identificou na propriedade coletiva do solo e na comuna camponesa a pedra angular do processo de desenvolvimento do socialismo na Rússia do século XIX (9).

 

Por sua vez, Lenine representou o primeiro teórico a ter a coragem - desafiando a ira dos marxistas dogmáticos, do seu tempo e do presente - de apoiar a superioridade político-social adquirida pela Ásia avançada sobre o mundo ocidental retrógrado e reacionário, desde o início do século XX, bem como a reconhecer a população trabalhadora da Ásia como a alavanca decisiva de último recurso para o sucesso do movimento anti-imperialista e comunista no plano mundial.

 

A nova fase de desenvolvimento do marxismo criativo à escala planetária, ou seja, o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas da nova era, retomou e expandiu a ainda embrionária teoria leninista em exame, considerando superada qualquer forma de pensamento ocidentalo-cêntrico, também no campo teórico, demonstrando-se, também neste aspeto, um digno sucessor do leninismo, a segunda etapa de crescimento do marxismo antidogmático.

 

A nível prático, enfim, o Partido Comunista Chinês certamente não tem estado inerte.

 

Por exemplo, em meados de 2017, um marxista indiano como Y. Chemarapally tinha, por exemplo, identificado a importância da entrada da Índia e do Paquistão como países plenamente associados ao Pacto de Xangai.

 

A este respeito, o analista indiano referiu que “a Índia e o Paquistão tornaram-se formalmente os últimos membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO, no acrónimo inglês) na última cimeira do grupo, que se realizou em Astana, capital do Cazaquistão, na segunda semana de junho. Os dois países mantiveram o estatuto de observadores na organização durante muitos anos e foram agora elevados à categoria de membros de pleno direito. O Irão é o próximo país que deverá juntar-se ao grupo num futuro próximo.

 

Os membros que deram vida ao grupo, criado em 1995 e inicialmente conhecido como “Os Cinco de Xangai”, são Rússia, China, Cazaquistão. Quirguistão e Tajiquistão. O grupo foi nomeado SCO depois da adesão do Uzbequistão em 2001. Desde o início, a SCO foi vista como um pacto de segurança e um rival emergente da NATO. Nos últimos anos, transformou-se numa organização empenhada na luta contra o terrorismo e apostada em promover a cooperação económica e comercial.

 

Com a Índia e o Paquistão agora parte do grupo, a SCO emerge como uma das maiores organizações do seu género, com três potências mundiais significativas, a Rússia, a China e a Índia, sob o seu guarda-chuva. Abrange 44% da população mundial, 25% do PIB mundial e três dos cinco países BRICS. O objetivo principal do agrupamento é a coordenação contra o terrorismo e tudo o que está relacionado com ele. A SCO criou uma Estrutura Regional Antiterrorismo (RATS) com sede em Tashkent, capital do Uzbequistão. O presidente chinês, Xi Jinping, falando na cimeira da SCO, sublinhou que “a segurança é o pré-requisito para o desenvolvimento”. O Presidente Xi, num artigo assinado, escrito para um jornal cazaque, afirmou que a SCO “ativou mecanismos para combater o terrorismo, o separatismo, o extremismo, as drogas e os crimes transnacionais” (10).

 

O difícil e contraditório processo de cooperação pan-asiática está agora a consolidar-se e a fortalecer-se em muitas frentes, a começar pelas novas Rotas da Seda, tornando cada vez mais relevante e concreta a intuição leninista relativamente à atual superioridade asiática em relação ao mundo reacionário e imperialista ocidental, com os seus estados vassalos e as suas marionetas espalhados por todo o planeta.

 

Tendo esta perspetiva e quadro geral em mente, torna-se perfeitamente compreensível que tenha sido desenvolvida, ainda que parcialmente, uma teoria sobre o caminho “infraestrutural” para o socialismo à escala asiática e global.

 

Foi avançado numa fase embrionária pelo marxista chinês Cheng Enfu, quando este último, nas páginas da conceituada revista chinesa International Critical Thought, destacou explicitamente como o projeto global da Nova Rota da Seda não representa apenas um plano infraestrutural - como vemos claramente também no Ocidente - mas "assume a face de uma iniciativa para a construção global do socialismo com características chinesas" e, portanto, de uma operação global de soft power com a qual "os comunistas chineses contribuem para o fortalecimento e desenvolvimento do movimento comunista a nível internacional” (11).

 

No entanto, não foi apenas o centro de gravidade do processo revolucionário global que se deslocou gradualmente para o Oriente e, finalmente, para a Ásia, como Lenine tinha previsto entre 1902 e 1920, sendo esta última data a da publicação do seu excelente ensaio intitulado A Doença Infantil do «Esquerdismo» no Comunismo. As coordenadas tecnocientíficas, produtivas e energéticas do continente asiático também se expandiram e dilataram enormemente ao longo do último século.

 

Uma nova centralidade da Ásia foi agora também estabelecida nestes domínios: um continente onde vivem atualmente quase dois terços da população mundial, que representa e pesa metade do produto interno bruto global (em paridade de poder de compra) e no qual reside o principal arco dos recursos mundiais de hidrocarbonetos, que vai desde a zona sul da Península Arábica até ao Irão/Iraque e ao Mar Cáspio, atravessando a Ásia Central e finalmente alcançando a secção oriental da Sibéria (12).

 

Como bem disse o grande filósofo Heráclito, tudo flui e tudo se transforma: até o equilíbrio e a correlação do poder geoeconómico do planeta, claro...

 

 

 

 

 

(*) Roberto Sidoli (n. 1961) é licenciado em Direito pela Universidade Estatal de Milão, tendo-se tornado um investigador e ensaísta independente com uma paixão pelas ciências sociais como a filosofia, a história, a política e a sociologia. É autor, nomeadamemte, de Uomini Rossi; Cina e Socialismo (com Massimo Leoni) e Il ruggito del leone (também com Massimo Leoni).

Daniele Burgio é um filósofo marxista italiano, autor de L’effetto di sdoppiamento nella religione occidentale; Filosofi di frontiera e Pitagora, Marx e i filosofi rossi (2014).

Não nos foi possível recolher informações seguras sobre Massimo Leoni, para além de que é coautor dos volumes acima referidos em colaboração com Roberto Sidoli.

Estes três autores colaboram entre si muito habitualmente e já têm uma apreciável obra publicada em volume conjuntamente, de que destacamos Ratzinger o fra Dolcino, (2012); Leggi economiche universali e comunismo (2013); Il volo di Pjatakov. La collaborazione tattica tra Trotskij e i nazisti (2017); Cento miliardi di galassie. Per un realismo resiliente della praxis (2021); Microsoft o Linux? Scienza, tecnologia ed effetto di sdoppiamento; Il Covid è nato negli USA? (2021); Il pensiero di Xi Jinping come marxismo del XXI secolo (2023), Terza guerra mondiale? Il fattore Malvinas (2024).

Os artigos deste triúnviro autor comunista aparecem também regularmente em Marx21.it, l’Antidiplomatico, Mondorosso ou la città futura.

Este artigo foi publicado originalmente em L’Antidiplomatico, a 16 de janeiro de 2024, sendo reproduzido depois em Sinistrainrete, onde pode ser lido sem poluição publicitária. A tradução é de Ângelo Novo.

 

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NOTAS:

 

(1) J. V. Stálin, O Marxismo e o Problema Nacional, capítulo VII, em marxists.org.

 

(2) V. I. Lénine, “Friedrich Engels”, outono de 1895, in marxists.org; V. I. Lenin, Que Fazer?, capítulo I.

 

(3) V. I. Lenin, “L’Europa arretrata e l’Asia avanzata”, 31 maggio 1913, em resistenze.org.

 

(4) V. I. Lénine, “É Melhor Menos, mas Melhor”, 4 de março de 1923, in marxists.org.

 

(5) P. Hopkirk, “Avanzando nell’Oriente in fiamme”, p. 15-16, ed. Mimesis.

 

(6) A. B. Ulam, Storia della politica estera sovietica, p. 178–179, ed. Rizzoli.

 

(7) A. Ulam, op. cit., p. 177-178.

 

(8) K. Rakhimov, “Asiacentrism: Russia in search of a new identity”, 19.12.2022, in valdaiclub.com; Michelguglielmo Torri, “Eurocentrismo, asiacentrismo e orientalismo. La critica di Giorgio Borsa" , gennaio 2008, in jstor.org.

 

(9) V. I. Lenin, “À Memória de Herzen”, 8 de maio de 1912, em marxists.org.

 

(10) Y. Chemarapally, “L’India entra all’Organizzazione della Cooperazione di Shanghai”, in Contropiano.

 

(11) D. Burgio, M. Leoni e R. Sidoli, Il pensiero di Xi Jinping come marxismo del XXI secolo, ed. Lantidiplomatico.

 

(12) A. Galiani, “Tra 9 mesi torneranno gli equilibri economici globali del 1700”, 27 marzo 2019, in agi.it; A. Amighini, “Con la RCEP la Cina chiude il cerchio”, 17 novembre 2021, em lavoce.info.