Multipolarismo, socialismo e descolonização do mundo

 

 

Antonio Castronovi (*)

 

 

 "No mundo que emerge, um mundo feito

de conflitos étnicos, de choques de civilizações,

a convicção ocidental da universalidade

da sua própria cultura acarreta três problemas:

é falsa, é imoral, é perigosa...

O imperialismo é a consequência lógica

e necessária do universalismo".

 

(S. P. Huntington,

The Clash of Civilisations and the New World Order).

 

 

O mundo está a ser abalado como nunca por um movimento telúrico que está a quebrar os injustos "equilíbrios" seculares herdados do colonialismo ocidental que saqueou, pilhou e colonizou continentes inteiros: da África à Ásia, das Américas à Austrália. Povos inteiros estão hoje a reemergir da obscuridade da história e da marginalidade, e estão a encontrar os seus próprios caminhos de redenção e a sua própria independência e soberania, acelerando a tendência para a multipolaridade.

 

A fratura que provocou este acontecimento foi causada pela decisão corajosa da Rússia de não se submeter às provocações da NATO de querer fazer da Ucrânia um posto avançado anti-russo, ameaçando assim a sua segurança. A guerra que se seguiu está a minar a ordem unipolar dos E.U.A. no mundo, acelerando os impulsos anticoloniais que se estão a libertar do hegemonismo ocidental em África, na Ásia, no Médio Oriente e na América Latina.

 

Uma nova ordem mundial multipolar está cada vez mais a tomar forma, com novas instituições, novas relações de cooperação entre Estados e países, com novos e diferentes valores alternativos e opostos aos neoliberais.

 

A pretensão do Ocidente de liderar o mundo em nome da sua civilização superior já não é aceite e tomada como certa pela maioria do mundo não ocidental.

 

O imperialismo sempre se impôs ao mundo com base na suposta superioridade da civilização ocidental, que, como tal, assumiria o fardo do homem branco, levando a cabo a sua missão "civilizadora" no mundo, à qual a esquerda ocidental, incluindo a marxista, não foi alheia (1).

 

Mas o Ocidente não é a única civilização da história da humanidade. Hoje, povos inteiros redescobrem com orgulho as suas civilizações e as suas raízes: as civilizações da Rússia, da China, da Índia, do mundo islâmico, a civilização ancestral africana, a civilização original dos povos ameríndios. Recordar estas civilizações é precisamente dizer que a civilização ocidental é uma parte, uma entre muitas civilizações da história da humanidade. E quando dizemos civilização ocidental, estamos de facto a falar da civilização anglo-saxónica, uma vez que a Europa desistiu de encontrar o seu próprio espaço e a sua própria identidade unitária ancorada na sua civilização clássica, que convergiu para a ideologia mercantil e neoliberal americanista.

 

A redescoberta destas identidades civilizacionais é agora o combustível do motor da nova revolução anticolonial e multipolar em curso.

 

O Ocidente hegemónico, se quiser e quiser desempenhar um papel no mundo multipolar em construção, terá de aprender a coexistir numa base de igualdade com outras civilizações, reconhecendo-as e renunciando ao colonialismo económico e cultural sobre o qual construiu o seu poder e a sua riqueza.

 

Mas será capaz de o fazer? Este resultado não é, nem será, um dado adquirido. A ordem constitutiva do pacto social que liga as potências ocidentais hegemónicas aos seus cidadãos assenta no pressuposto da primazia do seu próprio bem-estar sobre o do resto do mundo, ao ponto de negar a este último o direito ao desenvolvimento se este colidir com os seus próprios interesses. Esta era a filosofia da globalização neoliberal liderada pelos anglo-saxónicos, em que o desenvolvimento relativo dos países periféricos só era permitido na medida em que fosse funcional à necessidade de fornecimento de bens baratos para sustentar a sua própria procura interna.

 

A segurança nacional norte-americana baseia-se no pressuposto de que o desenvolvimento de qualquer outro país, até ao ponto de ser independente dos E.U.A., constitui uma ameaça para os próprios E.U.A..

 

A razão pela qual a China é o adversário número um e rival "sistémico" dos E.U.A. é que está a desenvolver-se de acordo com uma visão chinesa autónoma, e os E.U.A. opõem-se a qualquer desenvolvimento que não seja aquele que os interesses financeiros norte-americanos controlam e na medida por eles decidida.

 

Assim, o resto do mundo só pode crescer se o seu crescimento não for contrário aos interesses dos E.U.A.. Foi exatamente o que aconteceu com a China. Immanuel Wallerstein, um prestigiado historiador económico recentemente falecido, explicou bem como funciona o sistema mundial capitalista na dinâmica centro-periferia: o centro do capitalismo precisa de se desenvolver criando sempre novas periferias de onde extrair mão de obra, matérias-primas e bens de consumo baratos (2). A expansão colonial foi e é vital para a sua perpetuação. Sem o seu sistema periférico, o capitalismo não pode continuar a desenvolver-se, e atualmente há falta de periferias dispostas a serem exploradas.

 

Esta contradição sistémica não pode ser remediada pela diplomacia e daí a crise mundial que provoca conflitos e guerras ao longo da linha de fratura que divide o Ocidente do Oriente e do Sul: do Atlântico Norte e da Ucrânia, à Sérvia, ao Cáucaso, ao Irão, à Síria, à Palestina e ao Médio Oriente, até à África. Hoje, as palavras de Giulietto Chiesa ressoam profeticamente: "Os Estados Unidos estão a arrastar-nos para um confronto com a Rússia, a China e o resto dos sete mil milhões de habitantes do planeta. Só há uma razão, e é simples: os Estados Unidos não conseguem compreender que o século XXI já não pode ser 'americano'".

 

Uma alternativa anticolonial e multipolar ao universalismo-imperialismo liberal. O comunitarismo na tradição africana e o caso da Carta de Manden.

 

Ainda de acordo com Immanuel Wallerstein, existem dois tipos de sistemas-mundo: as economias-mundo e os impérios-mundo, os primeiros regidos pela economia (caracterizados pela "liberdade" de mercado), os segundos pela política (aquilo a que chamamos "autocracias", com as suas diferentes formas históricas de comando). A época iniciada com o século XVI e que se prolonga até aos nossos dias caracteriza-se pela emergência da economia-mundo capitalista que substituiu progressivamente os impérios-mundo anteriores. A esta hegemonia contrapõe-se hoje a emergência de uma alternativa assente em impérios-mundo, os grandes Estados mundiais ou Estados civilizacionais que se opõem ao domínio do globalismo neoliberal, a forma moderna de civilização capitalista na sua fase imperialista dominada pela finança.

 

Este confronto assume cada vez mais o carácter de uma guerra ideológica, como afirma Samuel P. Huntington: "Na época que estamos prestes a viver, os choques de civilizações são a maior ameaça à paz mundial, e uma ordem internacional baseada nas civilizações é a melhor proteção contra o perigo de uma guerra mundial" (3).

 

É inegável que o cenário descrito por Wallerstein e Huntington é aquele a que assistimos no mundo de hoje: um confronto que assumiu as características de uma guerra de civilizações, entre o neoliberalismo universalista consubstanciado no globalismo unipolarista liderado pelos Estados Unidos e o resto do mundo não ocidental, em particular aquilo a que podemos chamar estados civilizacionais ou estados-continentes como o russo e o chinês, herdeiros de dois grandes impérios. Lida também no jargão geopolítico, aparece como a eterna luta entre terra e mar, entre potências terrestres e potências marítimas. Nesta fratura, avançam as pulsões anticoloniais e independentistas que aspiram a libertar-se dos constrangimentos impostos pelo Ocidente ao livre desenvolvimento de povos e países subjugados por séculos de subjugação.

 

O mundo que herdámos da história é, de facto, em grande parte filho dos arranjos herdados do colonialismo europeu, que pilhou recursos e devastou economias locais, e dividiu povos, histórias, religiões e culturas afins através da partilha e da construção artificial de fronteiras.

 

Os novos movimentos anticoloniais têm agora como objetivo questionar todo o legado colonial, a começar pelo dos Estados-nação, a favor de novas configurações meso-regionais e neo-imperiais que recuperem tradições antigas e "espaços vivos".

 

Algumas tendências de integração continentalista, anticolonial e antiliberal estão já em movimento no mundo, com o renascimento da ideia de uma união pan-africana apoiada por prestigiados líderes africanos como Thomas Sankara, Ahmed Sékou Touré, Julius Nyerere, Patrice Lumumba, Kwame Toure, Kemi Seba; com o pan-americanismo latino-bolivariano, que propõe uma união dos países da América do Sul para romper com o hegemonismo norte-americano, com base num constitucionalismo assente nos direitos dos povos indígenas e nos bens comuns da terra; e com a ideia de eurasianismo que volta a estar em voga na Rússia para apoiar o projeto de integração euro-asiática com base numa ideologia, Moscovo como a Terceira Roma herdeira de Bizâncio, que reposiciona a Rússia fora do Ocidente neoliberal, mas em continuidade com a herança filosófica e religiosa ortodoxa do Império Romano do Oriente.

 

O traço comum destas tendências é a rejeição da ideologia neoliberal e colonial ocidental e a afirmação da sua própria identidade histórica, religiosa e cultural. Kemi Seba, um prestigiado dirigente pan-africanista de origem beninense, defende uma descolonização profunda de África que, para além da libertação política e económica, implica a limpeza completa da consciência africana dos estereótipos coloniais eurocêntricos e, sobretudo, liberais-globalistas.

 

Se os primeiros panafricanistas acreditavam inicialmente que o futuro de África passava pela adoção do capitalismo, do modelo ocidental de governação, do cristianismo ou mesmo do marxismo, no início do século XXI o pan-africanismo tomou consciência de que os instrumentos e as estruturas da modernidade contribuíam para perpetuar a dependência neocolonial e a subalternidade dos africanos. Daí o regresso à Tradição, à recuperação de modelos políticos mais enraizados no seu passado, como a Carta de Kouroukan Fouga no Império Manden de 1235 codificada sob o reinado de Soundiata Keïta, que incluía os atuais Estados da Mauritânia, Senegal, Guiné, Mali, Níger, Costa do Marfim e Burkina Fasou. Talvez não seja por acaso que este é o núcleo do bloco anticolonial da resistência antifrancesa. A Constituição Manden é a mais antiga da história, certamente a primeira carta dos direitos humanos, adotada no coração de África antes mesmo das que surgiram no Ocidente, e desde 2009 classificada pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade. Trata-se de um sistema de regras, direitos e deveres que regulava a vida pública em 1235, com princípios de liberdade, solidariedade, igualdade e não discriminação codificados por uma assembleia popular. Eis um excerto da Carta: "Todos têm direito à vida e à preservação da sua integridade física/Praticar o auxílio mútuo/Todos são livres de agir respeitando as proibições das leis da sua pátria/Nunca fazer mal aos estrangeiros/A essência da escravatura extingue-se hoje de muro em muro, de fronteira em fronteira do Manden". E ainda: "Nunca ofender as nossas mulheres, as nossas mães / As mulheres, para além das suas ocupações quotidianas, devem estar associadas a todos os nossos governos" (4). Coisas de envergonhar muitas das autoqualificadas democracias ocidentais! Demonstração, esta, de como a recuperação de valores definidos como tradicionais ou conservadores pode, na verdade, ser portadora de um projeto de emancipação no presente histórico, um exemplo de revolução conservadora, comum a intelectuais europeus como Mario Tronti e à filosofia panafricana.

 

Para os novos panafricanistas, o Estado-nação e a democracia liberal são legados herdados do Ocidente e não pertencem à sua história e cultura. Mesmo a noção de "classe", que nos é cara, continua a ser um vestígio ocidental nascido com a colonização, com o objetivo de criar uma burguesia autóctone, que, no entanto, trabalhou com o colonialismo para dominar e explorar o resto da população. Tudo isto vai contra o comunitarismo africano, contra o conceito coletivo africano baseado no Ubuntu ("eu sou porque nós somos"), um comunismo "primitivo", teríamos dito noutros tempos, tão estranho à democracia liberal como à solidariedade de classe marxista.

 

No entanto, este movimento reconhece a importância do papel anticolonial que a China e a Rússia estão a assumir no contexto africano, enquanto vanguardas do mundo multipolar.

 

Com efeito, a Rússia e a China, os atuais polos de oposição ao Ocidente, são vistos como aliados lógicos e naturais do movimento anticolonial, porque a Rússia, nomeadamente com a sua guerra contra a NATO na Ucrânia, está a tornar-se o garante da multipolaridade que permite aos povos africanos aspirar a viver de acordo com as suas próprias inclinações.

 

Isto explica a presença de bandeiras russas nas manifestações de júbilo que acompanharam as revoluções antifrancesas no Níger, no Mali e noutros países africanos, e explica também a recomposição em curso no mundo islâmico, com um papel fundamental assumido pela China, que está a ultrapassar as divisões religiosas tradicionais entre xiitas e sunitas, o que levou à pacificação da guerra no Iémen e à entrada do Egipto, do Irão, dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita na zona dos BRICS. Acontecimentos impensáveis há um ano.

 

Quem avança no mundo multipolar, por oposição ao unipolarismo liberal, são as novas ideologias continentalistas, que defendem a transição dos Estados-nação herdados do colonialismo ocidental para Estados-continentes e Estados-civilização: espaços geopolíticos, isto é, que não se caracterizam apenas pela homogeneidade cultural ou étnica, mas que se vêm ainda antes como verdadeiras civilizações de pleno direito, profundamente diferentes da ocidental.

 

O século XXI será o século dos grandes espaços/grandes polos e dos Estados-civilizações, as potências terrestres, que acelerarão o declínio das potências marítimas coloniais. O multipolarismo emergente basear-se-á em grande parte nestes polos e não nos velhos Estados-nação de matriz europeia, inadequados para garantir o necessário equilíbrio geopolítico entre os diferentes grandes polos.

 

Esta redescoberta da dimensão meso-regional e continental é também uma base sólida para a resistência à penetração colonial e uma condição para a promoção de formas de cooperação pacífica e para a partilha de espaços comerciais e económicos comuns, com a possibilidade de criar um mercado interno sólido e de se dotarem de instrumentos financeiros independentes para escapar à escravidão da dívida e do dólar. Daí a ideia da moeda africana, um sonho não realizado de Thomas Sankara e Muammar Kadhafi, e, na América Latina, do SUR (SUD), a moeda comum agora relançada pelo Brasil e pela Argentina, mas sobre cuja cabeça paira ainda o manto da doutrina Monroe que a vincula aos interesses geoestratégicos dos Estados Unidos e aos seus nefastos condicionamentos: "Se Deus quiser, vamos criar uma moeda comum para a América Latina, porque não devemos estar dependentes do dólar", disse Lula após a sua eleição. A perspetiva meso-regional foi também acarinhada no passado recente pela União Europeia com a ideia euro-mediterrânica, que teria feito da parceria entre os países das duas margens do Mediterrâneo um dos polos possíveis do multipolarismo. Uma perspetiva que foi depois destruída com a abertura da UE ao Leste após o colapso da URSS (5).

 

A resistência ao globalismo assume, sobretudo hoje em dia, a forma do projeto chinês da Nova Rota da Seda, da S.C.O. (Organização de Xangai para a Cooperação da Ásia Central), da cooperação dos BRICS, em plena expansão, que visam contornar o controlo e o domínio do comércio mundial pela potência marítima norte-americana com a construção imponente de um gigantesco sistema de ligação intermodal de estradas e comboios super-rápidos, portos, gasodutos e oleodutos que ligará a Rússia, Índia, China, Ásia Central, Médio Oriente, Irão e África, com forte investimento chinês, por onde viajarão mercadorias e matérias-primas energéticas, e assente num modo de acordos entre governos numa lógica de benefício mútuo, segundo uma visão contra-hegemónica sintetizada no livro branco que está na base da política chinesa (6).

 

Em suma, encontramo-nos num ponto de viragem civilizacional, em que uma nova ordem multipolar se propõe substituir a antiga ordem e avança modelando novas instituições e novos valores, segundo linhas que respeitam a autodeterminação dos Estados e dos povos, as suas diferentes culturas, civilizações e religiões, as diferentes formas políticas e de governo, as diferentes tradições culturais e práticas comunitárias e democráticas.

 

Por um socialismo descolonizado e multipolar

 

Quem está a perder o comboio da história em marcha é a Europa euro-atlântica e, com ela, a esquerda ocidental nas suas várias aceções: a Nova Liberal pró-NATO completamente subsumida no ocidentalismo, e a Comunista mais ou menos residual, que ainda sonha com uma revolução proletária impossível neste Ocidente, sem ter chegado a um acordo com os seus fracassos históricos e com a própria crise da ideia socialista no senso comum generalizado, e considerando também que o panorama da esquerda de mentalidade marxista em Itália e na Europa é, infelizmente, bastante problemático, com pouca capacidade de "inovação", com algumas exceções na Alemanha com Sara Wagenknecht e em França com Jean-Luc Mélenchon. A revolução socialista no Ocidente só pode voltar a ser falada depois de o andaime de poder financeiro, económico, ideológico e militar anglo-saxónico que a sustenta ter sofrido uma derrota estratégica no mundo. Por isso, a prioridade atual é apoiar plenamente o significado revolucionário da rotura que a Rússia e a China imprimiram na história mundial, com a abertura à perspetiva multipolarista, mas também a uma alternativa de civilização e de relações entre civilizações. Ainda mais incompreensíveis, para este efeito, são certas "distinções" provenientes também deste campo, como as de "nem com Putin nem com Zelensky", as de "há um agressor e um agredido", ou as de "com a Palestina sim, mas com o Hamas não", as de que "a China não é um país socialista, é uma ditadura", bem como as de que "o Irão é um regime autocrático que oprime as mulheres", ignorando o papel ativo e fundamental da Rússia, da China e do Irão no campo anti-imperialista e anticolonialista. Posições, estas, abertamente subordinadas à ideologia neoliberal, e por isso um travão objetivo, um obstáculo ao desenvolvimento da luta anti-imperialista e pelo multipolarismo no mundo.

 

Este, o multipolarismo, é, pelo contrário, a verdadeira revolução em curso da nossa época, que marcará o destino do mundo vindouro, e de cujo resultado dependerá a possibilidade de uma nova perspetiva socialista ser reaberta também no Ocidente, que, pelo contrário, vê o seu renascimento original no Sul global e no Leste, precisamente no âmbito da resistência ao globalismo e ao imperialismo norte-americano. Para isso, vale a pena recordar que as revoluções do século XX, a começar pelo outubro russo, foram revoluções contra a modernização capitalista e, portanto, antimodernas, antiprogressistas, revoluções camponesas, revoluções do povo, dirigidas por vanguardas comunistas (Gianfranco La Grassa defini-las-ia como "grupos estratégicos" empenhados em conflitos estratégicos pelo poder), em que a classe operária foi sempre minoritária ou irrelevante, e que, como no caso da China, do Vietname e de Cuba, tiveram um forte cunho anticolonial. Eram revoluções heréticas, segundo os cânones da ortodoxia marxista ocidental: revoluções das periferias contra o centro, não revoluções no coração do centro capitalista. Afinal, a fratura entre o marxismo ocidental e o marxismo oriental, entre a revolução no Ocidente e as lutas de libertação coloniais, decorre precisamente desta incompreensão que marcou a contradição do internacionalismo, ou seja, o seu fracasso em enfrentar a revolução anticolonial que, segundo Domenico Losurdo, continua a ser o problema não resolvido do marxismo no Ocidente.

 

Segundo Samir Amin, o marxismo e o socialismo só podem renascer se forem reconetados à longa luta contra o sistema colonialista e contra todos os colonialismos, se forem reconectados à luta por "um mundo multipolar", considerado "o contexto para a superação possível e necessária do capitalismo". Um mundo multipolar, para ser estável e autêntico, deve, no entanto, assentar em formas de democracia popular, por isso deve ser socialista e requerer e exigir o protagonismo dos vários "Sul" do mundo e, neste sentido, alternativo ao eurocentrismo do marxismo ocidental (7).

 

Em todo o caso, a Europa está a perder a sua alma, prisioneira de uma ideologia, a ideologia anglo-saxónica, alheia à sua história e tradição cultural clássica e à sua tradição filosófica que é grega, católica romana, germânica. Uma alma que a esquerda europeia já perdeu com os seus fracassos históricos e a sua adesão total à ideologia neoliberal, à retórica do politicamente correto, ao feminismo liberal, a um ecologismo expurgado de todas as instâncias anticapitalistas, a um pacifismo pilatesco, e com a sua oposição e hostilidade às instâncias de libertação e autodeterminação dos povos que lutam para se emanciparem do domínio do globalismo e do capitalismo financeiro e colonial. Vimos isso na guerra da NATO contra a Sérvia, contra o Iraque, contra o Afeganistão, contra a Síria, contra a Líbia de Kadhafi; na Venezuela contra Chavez e Maduro, na Ucrânia em apoio ao neonazismo de Kiev, em África contra as revoltas anticoloniais em curso, e hoje na Palestina, onde estiveram e estão na linha da frente em apoio das políticas agressivas e belicistas da NATO, dos E.U.A. e da política racista de genocídio e apartheid de Israel na Palestina. Obviamente, em nome da democracia liberal, do progressismo e dos direitos humanos!

 

Os movimentos de libertação nacional e os Estados que resistem ao hegemonismo ocidental em África, nomeadamente na África francófona, na América do Sul, na Ásia, são de facto acusados pelo Ocidente e pela esquerda neoliberal, e mesmo em parte pela esquerda mais "radical", de serem portadores de uma conceção não liberal da sociedade, ancorada em valores tradicionais e, por conseguinte, definida como conservadora e antiprogressista: seja o eurasianismo russo, a civilização milenar iraniana, o socialismo confucionista chinês, o socialismo indígena e comunitário bolivariano, o socialismo pan-africano, a resistência árabe e islâmica.

 

Quais seriam então esses valores inalienáveis numa altura em que o neoliberalismo, na sua fúria totalitária e antidialética, reabilitou o nazismo e o nacionalismo racista na Europa? Numa altura em que se precipita numa deriva pós-humanista com a sua aterragem definitiva na era do domínio da Tecnologia e da I.A. sobre o Humano, com o advento do transumanismo como nova dimensão filosófica de desnaturalização do Homem através da sua hibridação com as máquinas? Chamam-lhe a Quarta Revolução Industrial ou o Grande Reinício, na realidade o delírio extremo de omnipotência das elites globalistas que correm para uma deriva niilista! Mas não se pode ser coerentemente antiliberal e anti-imperialista e, ao mesmo tempo, abraçar os valores e a ideologia daqueles que se quer combater! (8).

 

Distanciar-se e, portanto, emancipar-se do ocidentalismo, do seu pretenso universalismo de valores e da sua deriva pós-humana, é o imperativo categórico sobre o qual reconstruir um pensamento e uma nova teoria crítica no Ocidente, revolucionária, neo-humanista e neo-socialista, baseada na cultura e na tradição europeias clássicas, antipositivistas e anti-utilitaristas, e sobretudo caracterizada por uma forte visão anticolonial. O socialismo futuro terá de corresponder à história, às civilizações, às religiões e à cultura dos respetivos povos, com as suas tradições específicas, também nas formas de governo, de democracia e de justiça social que adotarem, sem pretensões universalizantes e abandonando o ideal do Homem Novo Universal como projeção do supremacismo branco ocidental. Terá de ser multipolar.

 

Para compreender os povos, é também necessário compreender os seus valores, a sua religião, os seus costumes, a sua cultura, as suas tradições, ou seja, tudo aquilo que foi durante tanto tempo ridicularizado e teimosamente ignorado pelo laicismo socialista progressista.

 

Um novo projeto de esquerda tem, pois, a obrigação de legitimar a resistência antiglobalista, combatendo, antes de mais, a falsa propaganda ideológica ocidental de que os conflitos em curso entre os movimentos de resistência contra a ordem mundial anglo-saxónica são conflitos entre democracia e autocracia, entre progresso e conservação, um capítulo da eterna guerra civilizacional entre Ocidente e Oriente, entre civilização e barbárie, entre ditadura e liberdade. É evidente que se trata de uma mentira que deve ser gritada bem alto.

 

É preciso também saber que cada civilização, mesmo as consideradas "atrasadas", tem o seu modo autêntico de "Ser", a sua verdade, a sua natureza, o seu "estar no mundo", o seu "Dasein", diria Heidegger. Na China, está encarnado no confucionismo e no conceito de "harmonia"; na Eurásia, no cristianismo ortodoxo e no patriotismo russo; na América Latina, na oposição patriótica e popular à dominação imperialista e nas suas raízes indígenas; em África, na redescoberta das tradições e no comunitarismo solidário; no mundo árabe-muçulmano, no islamismo. Todo este mundo é estranho à democracia liberal e ao socialismo ocidental, mas é um mundo autêntico que temos de aprender a respeitar. A verdadeira questão seria, de facto, a seguinte: qual é a forma autêntica de "Ser" do Ocidente, a sua ontologia? Pode ser reduzida à ontologia liberal anglo-saxónica? Existe sequer um único Ocidente? A Europa pode ser reduzida a ele? Existe uma civilização genuinamente europeia, peculiar e única? Ou serão a Europa do Norte, a Europa de Leste e a Europa Mediterrânica entidades diferentes? Questões difíceis que merecem uma resposta.

 

Poderá uma perspetiva socialista vir do Oriente?

 

Segundo Michael Hudson, economista norte-americano, professor de Economia na Universidade de Missouri-Kansas City e autor de The Fate of Civilisation: Financial Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism, "o mundo está a dividir-se em duas partes, Ocidente versus Oriente". Hudson continua: "A atual divisão global está a dividir o mundo entre duas filosofias económicas diferentes. No Ocidente dos E.U.A./NATO, o capitalismo financeiro está a desindustrializar as economias e transferiu a produção para a liderança euro-asiática, especialmente a China, a Índia e outros países asiáticos, juntamente com a Rússia, que fornece matérias-primas básicas e armas. Estes países são uma extensão popular do capitalismo industrial que está a evoluir para o socialismo, ou seja, uma economia mista com um forte investimento governamental em infraestruturas, no fornecimento de educação, cuidados de saúde, transportes e outras necessidades básicas, tratando-as como serviços de utilidade pública, com serviços subsidiados ou gratuitos para estas necessidades". Hudson conclui: "Os países centrais da Eurásia, em rápido crescimento, estão a desenvolver novas instituições económicas baseadas numa filosofia social e económica alternativa (ao Ocidente neoliberal). Uma vez que a China é a maior economia e a que regista o crescimento mais rápido na região, as suas políticas socialistas são suscetíveis de influenciar a formação deste sistema financeiro e comercial não ocidental emergente".

 

Segundo Hudson, portanto, a crise do mundo financeiro globalizado está a abrir as portas não só ao multipolarismo, mas também a uma perspetiva socialista que, paradoxalmente, vem do chamado Oriente autocrático que, em nome da regulação pública do crédito, o financiamento e a manutenção do monopólio público dos bens naturais e públicos, não permite à chamada democracia de mercado os lucros privados fáceis dos rentistas e dos especuladores.

 

O que Hudson delineou parece-me um bom ponto de partida para uma reflexão séria por parte de todos aqueles que ainda se referem ao socialismo na Europa e não sabem por onde começar. O multipolarismo e o socialismo não estão tão distantes. No entanto, é necessário que a Europa redescubra a sua "alma", a sua peculiar identidade histórica e filosófica, que é greco-romana e germânica, divorciando-se da ideologia liberal e colonial anglo-saxónica para redescobrir o caminho perdido das suas origens, o seu Espírito, entendido de forma hegeliana, como a sua História, a sua autêntica civilização. Este cenário poderia abrir espaços de liberdade para restabelecer um novo pensamento crítico neo-socialista em Itália e na Europa que se ligue ao movimento de descolonização do mundo e abra a perspetiva de lutar por uma Europa autónoma fora do ocidentalismo e da jaula do Aço U.E./NATO.

 

 

 

 

(*) Antonio Castronovi foi dirigente sindical da CGIL e faz presentemente parte da redação da revista l’interferenza. É também colaborador habitual da revista Comune. É autor de Il lavoro tra globalizzazione e bene comune, Futura, 2007. O presente texto foi publicado em Gabriele Germani (org.) L’era multipolare: competizione o cooperazione?, La Città del Sole, 2024.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Cf. Antonio Castronovi, “La sinistra occidentale e il fardello dell’uomo bianco”, l'interferenza, 30 de maio de 2022.

 

(2) V. Immanuel Wallerstein, O Sistema Mundial Moderno, Vols. I e II, Afrontamento, Porto, 1990-94.

 

(3) V. Samuel P. Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, Lisboa, 1999.

 

(4) Ver “La Costituzione più antica del mondo”, Giustizia, Pace, e Salvaguardia del Creato.

 

(5) Cf. Bruno Amoroso, Europa e Mediterraneo. Le sfide del futuro, Ed. Dedalo.

 

(6) V. The State Council Information Office of the People’s Republic of China, A Global Community of Shared Future: China's Proposals and Actions, Ministry of Foreign Affairs of the People's Republic of China.

 

(7) Cf. Samir Amin, Por Un Mundo Multipolar, El Viejo Topo, Barcelona, 2006.

 

(8) Antonio Castronovi,L’ ideologia new-liberal e la deriva nichilista dell’Occidente”, l'interferenza, 29 de agosto de 2022.