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O Estado a que chegamos (1)
Ângelo Novo (*)
O travejamento concreto do poder político da burguesia nas formações sociais de predominância capitalista foi uma questão que os fundadores do marxismo deixaram apenas esboçada. O seu tratamento seria objeto de um volume próprio, na agenda de trabalhos com que Karl Marx imaginou dar sequência a O Capital. A vida é sempre escassa e imprevista. Mas nenhum homem ou mulher é uma ilha. Nicos Poulantzas foi um dos melhores de nós, que nos propusemos seguir no trilho inaugurado pelo gigante de Trier. Nasceu em Atenas, em setembro de 1936, numa família bem estabelecida. O seu pai era um respeitado jurista, professor de grafologia forense. O jovem Nicos frequentou o Instituto Francês, praticou jornalismo e concluiu com distinção a sua licenciatura na Faculdade de Direito da Universidade de Atenas em 1957. Aproximou-se por então do marxismo, ligando-se a uma organização estudantil na órbita do clandestino Partido Comunista Grego (KKE), bem como à organização frentista legal deste último, a Esquerda Democrática Unida (EDA). Foi detido numa manifestação de apoio ao movimento anticolonial do Chipre. Era um rapaz alegre e muito namoradeiro. Cumpriu três anos de serviço militar na Marinha, tendo sido colocado em Creta por motivos disciplinares. Ficou então legalmente habilitado a exercer advocacia, mas nunca a praticou.
Fascinado pela cultura francesa e pelo existencialismo, prosseguiu os seus estudos jurídicos em Paris, no início dos anos 1960. Fez pós-graduação, garantiu um lugar de assistente na Sorbonne e concluiu doutoramento, sempre na área da Filosofia do Direito. Ligou-se então ao círculo da revista Les Temps Modernes, onde pode conhecer pessoalmente os seus ídolos Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Maurice Merleau-Ponty, entre outros. Conheceu também aí a jovem novelista Annie Leclerc, futuramente sua esposa e mãe da sua filha Ariane. Foi investigador na área jurídica do Centre National de la Recherche Scientifique, de 1966 a 1972. Aderiu ao KKE já nos círculos de exílio grego parisiense, tendo mais tarde acompanhado a sua cisão heterodoxa “interior”, ocorrida em 1968 (2). Os seus interesses derivariam, enfim, para a área da Teoria do Estado, influenciado por Gramsci, o círculo de Galvano della Volpe e os ingleses da New Left Review. Desenvolveu, é certo, uma relação pessoal com Louis Althusser, mas não como seu discípulo. Após o maio de 1968, namorou um pouco com o maoísmo e passou a lecionar na nova Universidade de Paris VIII (Vincennes). A sua obra teórica, de leitura áspera e, por vezes, desconcertante, ganhou corpo e começou logo a ter uma grande projeção internacional, na viragem para e ao longo de toda década de 1970. Afastou-se então gradualmente da cartilha marxista-leninista em direção a um eurocomunismo marcadamente de esquerda. Integrou alguns fragmentos esparsos do discurso de Foucault. A 3 de outubro de 1979 pôs voluntariamente termo à sua vida, saltando para o vazio de um arranha-céus da cidade-luz (3).
Poulantzas teve um destino pessoal trágico não incomum entre a sua geração, que se viu engolfada num traiçoeiro redemoinho da história. Mas aportou efetivamente, em sua curta existência, algo de novo, que acresceu duradouramente ao instrumentário próprio da luta dos explorados e humilhados deste mundo. Por isso mesmo, a sua obra pôde galgar sobranceiramente a solução de continuidade que se operou no pensamento marxista no deserto das décadas de 1980 e 1990. Um reflexo disso mesmo foi a realização da Conferência Poulantzas Today em Atenas em 2009 (no 30º aniversário da sua morte), seguida da Conferência Internacional Poulantzas, na Sorbonne, em 2015, de que resultou a publicação do volume The End of the Democratic State, organizado porJean-Numa Ducange e Razmig Keucheyan. Mais recentemente, uma revista académica parisiense publicou também um número especial sobre “Actualité et inactualité de Nicos Poulantzas” (4).
Em Portugal, Poulantzas foi editado apenas nos anos 1970, um pouco antes e um pouco depois da revolução de 25 de abril de 1974 (5). Ficou de fora Les classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui (1974). Apesar de ter entrado na faculdade apenas em janeiro de 1980, ainda estudei Ciência Política por um Manual, datado de 1976/77, que o citava com alguma frequência e reverência. A cadeira havia sido tomada pelos “comunistas”, que dela ainda não tinham sido desalojados, provavelmente devido ao prestígio intelectual e às impecáveis credenciais académicas do regente, o então jovem deputado do PCP, Vital Moreira. Passados poucos anos abjurou, bandeando-se para o social-liberalismo. Assim o fez uma grande parte da esquerda marxista coimbrã, com quem partilhei tantos projetos, afinidades, enlevos e esperanças. Entre os vivos, manteve-se constante, ativo e com alguma proeminência, apenas António Avelãs Nunes. Dirigi-me a ele, recentemente, numa sessão pública, no intuito de o cumprimentar com alguma vivacidade. Não se recordou de mim, ou assim simulou. Abriu-se por ali um autêntico buraco negro no espaço-tempo. Talvez Poulantzas tenha decidido mergulhar nele voluntariamente. Certo é que, a partir dos anos 1980, até hoje, a sua presença, como a do marxismo em geral, eclipsou-se por completo, tanto no ensino como na montra pública intelectual portuguesa.
Na América Latina - onde a receção de Poulantzas fora bastante pronta e a sua fortuna crítica mais constante – este movimento revivalista e reapreciador teve a sua expressão própria, com a realização das Jornadas Internacionais Nicos Poulantzas, a primeira em Valparaíso (Chile), em 2013, a segunda em Buenos Aires, em 2014, e a terceira em Campinas (Brasil), em 2016. Nesta cidade do interior paulista realizou-se ainda, em 2019, um seminário comemorativo dos 50 anos da publicação da seminal obra poulantziana Poder Político e Classes Sociais. Na sua prestigiada universidade pública estadual, UNICAMP, situa-se, aliás, um importante centro criador e difusor de pensamento poulantziano, de que foram esteios fundadores autores como Décio Saes, Armando Boito Jr., João Quartim de Moraes e Márcio Bilharinho Naves. É desta forja, enfim, que surge o livro que nos cabe apreciar, organizado pelas unicampistas Tatiana Berringer e Angela Lazagna. É justamente da autoria da primeira delas que surge, neste volume, uma informada e esclarecedora contribuição que versa sobre a “Escola de Campinas” e o seu acervo crítico, criador de uma caraterística leitura poulantziana da política contemporânea brasileira e da história da sua formação social. É no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP que se alberga o Centro de Estudos Marxistas, editor da revista Crítica Marxista (desde 1994) e organizador dos Colóquios Internacionais Marx e Engels (desde 1999), que colocaram o marxismo académico brasileiro no respetivo roteiro mundial. Imagina-se apenas o que uma maior ligação de todo este esforço ao movimento popular poderia fazer pela formação de reais alternativas políticas transformadoras para a sofrida Terra de Vera Cruz. Helas, os abismos sociais herdados numa sociedade de raiz colonial não são facilmente vencidos por atitudes voluntaristas (6).
Tatiana Berringer e Angela Lazagna (organizadoras) A atualidade da teoria política de Nicos Poulantzas Editora UFABC, Santo André, 2022, 384 p.
O livro está dividido em cinco partes – I. Poulantzas e o Político; II. Poulantzas e o Estado de Exceção; III. Poulantzas, Imperialismo e Relações Internacionais; IV. Conflitos Sociais, Lutas de Classe e Transição Socialista; V. A Obra de Poulantzas na América Latina – com um total de catorze contribuições, para além da Introdução a cargo das organizadoras. Não nos é possível, no espaço desta resenha, resumir e debater a argumentação empregue (por vezes já de forma sintética) por todos e cada um dos expoentes. Vamos, pois, correr o risco de injustiçar alguns deles, fazendo destaques. Privilegiaremos, em especial, questões que revistam de importância política imediata, sobre outras cuja relevância seja mais do domínio académico. A validação e arrumação dos saberes é importante, mas o “que fazer” é a nossa preocupação mais ingente.
Abrindo a primeira parte, Décio Saes faz um balanço do projeto poulantziano de criação de uma teoria regional do político no modo de produção capitalista, realçando as suas aporias, diretamente derivadas das incongruências do mais abrangente projeto de Althusser. É certo que Althusser teve a sua “mão” na redação final de certas passagens de Poder Político e Classes Sociais, cujo manuscrito lhe foi confiado durante cerca de um ano. Mas não temos por tão segura assim a subsunção absoluta da investigação de Poulantzas na do círculo althusseriano. Os dois filósofos apreciavam-se mutuamente, tendo longas conversas. Althusser era bastante mais velho e consagrado. Mas Poulantzas já tinha a sua formação feita como pensador marxista quando se conheceram. Por exemplo, manteve-se sempre gramsciano, o que era contra a regra nos círculos althusserianos. Leu O Capital sem mestre. Althusser foi para ele um mero ponto de apoio num percurso que tinha já uma lógica de desenvolvimento autónoma (7). Para além disso, Saes sustenta aquilo que parece ser um artigo de fé da Escola de Campinas: a existência de uma rotura completa, senão uma traição, operada pela derradeira obra de Poulantzas O Estado, o poder e o socialismo (1977). Sobre isso teremos algo a dizer um pouco mais adiante.
Thiago Barison Oliveira confronta o projeto teórico de Poulantzas com a tradição de crítica da forma jurídica inaugurada pelo soviético Evgueni Pashukanis. A investigação marxista sobre o direito burguês, no fecundo trilho aberto por Pachukanis, conheceu uma certa voga em França nos anos 1970, com Bernard Edelman e Michel Miaille, entre outros. Constituiu-se mesmo a corrente intelectual “critique du droit” que, depois de se expressar por intermédio do editor François Maspero, daria a público, entre 1978 e 1990, a sua própria revista, intitulada Procès. Cahiers d’analyse politique et juridique (8). Não se sabe até que ponto Poulantzas acompanhou este movimento. Como salienta Thiago Barison, ele era crítico de Pachukanis, a quem apodou de “economicista” ou até de “circulacionista” nas suas conceções gerais. No entanto, replicou flagrantemente as intuições pachukanianas na sua análise das estruturas travejantes do Estado capitalista: a massa individualizada e dispersa dos sujeitos “livres e iguais”, reunida na universalidade abstrata do povo-nação servida por uma burocracia suposta representante do bem comum (“o político”). Esta estrutura profunda é revestida conjunturalmente por um determinado conteúdo institucional, onde se faz sentir o choque e a composição entre as diversas forças sociais em presença (“a política”).
Bem à maneira da pensée française, Poulantzas foi um incansável criador de conceitos, por vezes deixados displicentemente apenas em esboço. Jair Pinheiro referenciou e tentou retrabalhar cinco de entre os que, no campo de “a política”, povoam a obra magna Poder Político e Classes Sociais (1968): suporte/portador, formas de presença, interesse, ação e classe-apoio.
A parte II do livro trata do estado de exceção e, a abrir, Armando Boito Jr. propõe-se abordar o conceito poulantziano de fascismo, como exposto na obra Fascismo e Ditadura (1970). De forma muito discutível e, hoje o descobrimos, pouco avisada, Poulantzas considerava a democracia o regime-padrão de Estado burguês. O fascismo seria uma forma específica de regime de exceção no Estado capitalista, ao lado do bonapartismo e da ditadura militar ou clerical-militar, diferenciados entre si pelo ramo com presença dominante nos aparatos do poder (no fascismo, a polícia política). Creio antes que, diacronicamente, ao final, a democracia vai revelar-se ter sido um episódio localizado e pouco representativo na história do poder da classe capitalista (9). Porventura típico, isso sim, dos seus períodos e regiões onde exibiu uma mais pletórica autoconfiança e apaziguamento interno, em especial devido ao exercício de privilégios imperialistas. Estamos já a viver em pleno ocaso da democracia burguesa ocidental, de que não se vislumbra alguma possível reversão. Isso tem implicações tático-estratégicas fundamentais para o campo proletário. Vamos abordá-las mais à frente. Boito critica a substituição, nesta obra, do burocratismo e do direito burguês – centrais em Poder Político e Classes Sociais – pelos difusos aparelhos ideológicos de Estado, retomados de Gramsci via Althusser. A ideologia do recrutamento universal dos servidores do Estado, da hierarquia, promoção da competência, separação patrimonial entre público e privado, etc., passariam assim para segundo plano. Num plano mais descritivo, Poulantzas adianta ainda a existência de um partido de massas e o culto do chefe como caraterísticas gerais da ideologia política fascista. Boito entende que essas serão antes incidências do processo de crise política de que resulta caracteristicamente a emergência do fascismo.
Boito vem aprofundando o estudo do fascismo como uma tarefa de grande urgência política desde a ascensão do bolsonarismo. As suas observações são geralmente bastante judiciosas. Tem polemizado com bastante a propósito contra as conceções que vêm o fascismo como um fenómeno histórico irrepetível (Emilio Gentile) ou sustentado necessariamente por uma mesma específica fação burguesa (Atilio Borón). Concordamos em que há que buscar uma definição teórica e não meramente descritiva de fascismo. Não posso acompanhá-lo, porém, quando ele considera a democracia e a ditadura (da qual o fascismo seria uma das modalidades no capitalismo) como dois polos opostos e alternativos, presentes em todos os modos de produção históricos (10). Não consigo encontrar um exemplo de regime democrático feudal. Quanto ao esclavagismo, é hoje muito discutível considerá-lo como um modo de produção histórico (ou um tipo histórico de Estado). Será antes um fenómeno recorrente em diversas idades históricas e distintas civilizações, normalmente ligado a um estado endémico de guerra e razia. Existiu mesmo em sociedades sem classes. Quando a massa dos escravizados se torna muito grande e o seu peso económico muito importante, relativamente, terão de ser considerados uma classe social, em concorrência com outras classes exploradas. Mas não estaremos então perante um “modo de produção” específico, muito menos um que seja inserível unilinearmente numa determinada cadeia de sucessão histórica, como pretendia a vulgata estalinista. De todo o modo, a democracia da idade clássica grega nada tinha a ver com os escravos enquanto classe dominada, naturalmente. A Atenas de Péricles não exercia a dominação sobre a classe produtora escravizada de forma democrática (sequer entre aspas), como se faz presentemente com o proletariado.
Eu consideraria antes a democracia como o modo de governo livre e igualitário, próprio de um tempo anterior às sociedades de classes e, consequentemente, estatais. Nas sociedades de classes, a democracia existe apenas de forma truncada, por meio de breves e limitados afloramentos reminiscentes. Resulta da luta das classes dominadas que transportam em si essa memória ancestral. Nas civilizações antigas do Crescente Fértil, essa memória era expressa e transmitida pela tradição do profetismo. Teve uma história de martírio, mas também de alguns triunfos. A democracia assembleária ganhou expressão bem documentada nos alvores ainda municipalistas dos impérios assírio, babilónico, egípcio e hitita. Era muito comum nas cidades fenícias (Sídon, Biblos) e suas colónias, tendo sido daí que se transmitiu para a Grécia, em resultado da luta, não dos escravos (ai deles), mas da plebe laboriosa e endividada (11). Todavia, a “democracia primitiva” não existiu apenas no Médio Oriente. Floresceu um pouco por todo o mundo (12). Nem é ateniense, nem tem nada de “ocidental”. O que é tipicamente ocidental é a oligarquia plutocrática, que por vezes (bem raramente, até tempos já muito recentes), fez questão de se travestir com roupagens de democracia representativa.
A ditadura é um regime de exceção, com poderes de emergência não normalizados pelos mecanismos correntes de legitimação. Não pode ser considerada como antítese da democracia. A ditadura do proletariado será mesmo uma forma superior de democracia, segundo os fundadores do marxismo. Dentro de um esquema aproximado do proposto por Boito, eu substituiria o conceito de ditadura pelo de despotismo. Corresponde àquilo que Poulantzas (que apenas trata do capitalismo) chama de “Estado de guerra aberta contra as massas populares”. Diria então: as sociedades de classes têm oscilado entre um extremo despótico e outro em que a luta das classes dominadas impôs um certo grau de composição social, que pode chegar a incluir mecanismos participativos.
No capitalismo, então, o fascismo corresponde a um regime burguês despótico civilista. Não é uma ditadura porque não é um regime de exceção, provisório. Em Portugal durou 48 anos e só foi derrubado devido à derrota na guerra colonial. Agora que temos já outros tantos anos de democracia, continua a fazer-se sentir a terrível força de atração conformadora de um poder de partido único à direita. O espetro alargado do Estado - Forças Armadas, polícias, magistratura, Igreja, Universidades, Comunicação Social - congraçado com a banca, os monopólios rentistas, o grande e médio empresariado, as ordens profissionais, etc., são unânimes em considerar a esquerda (um social-liberalismo do mais serviçal que se possa conceber) uma intrusa na área do poder, onde só gera estagnação, nepotismo, corrupção, etc.. E as vozes que manifestam abertamente o seu enfado com o sufrágio universal começam a multiplicar-se. A extrema-direita fortalece-se, à espera da hora em que será cooptada pelo bloco no poder. A democracia não é a regra no capitalismo. Bem pelo contrário. Estamos é mal habituados.
A democracia burguesa tornou-se regime dominante apenas após a Segunda Guerra Mundial, como signo e senha da hegemonia imperialista universal anglo-saxónica, que agora está em derrocada iminente. O descarrilamento das instituições democráticas pressente-se nos próprios E.U.A. e daí alastrará de forma imparável a todos os seus domínios remanescentes. Europa incluída, naturalmente. Quem dispõe de uma posição confortável e adere sem reservas ao presente ordenamento social, não vê intuitivamente razão para que o exercício do poder político comporte opções alternativas e consulta popular sobre elas. Quem manda é quem manda, pensam eles, com a sua instintiva noção de bloco no poder. Aderem ao “jogo” democrático apenas porque esse é o modelo que lhes é imposto pelo poder imperial em que acreditam. Mas isso pode mudar muito rapidamente. Esse modelo foi instrumental, propagandisticamente, ao longo da “guerra fria”. Continua a sê-lo ainda, na presente luta contra as denominadas “autocracias”. Todavia, pode se tornar um entrave ao funcionamento do regime de acumulação imposto pela hegemonia do capital financeiro (13). Não é provável que sofra uma morte súbita, mas vai certamente prosseguir a atual senda de degradação e rarefação paulatina, de que mesmo Poulantzas chegou já a dar conta.
É claro que, para a comunicação social dominante, o Ocidente é o berço e farol da democracia. Todo o dirigente político mundial que não esteja postado rigorosamente de cócoras perante o inglês está por definição situado no campo das trevas, revestindo feições monstruosas sempre reminiscentes do hitlero-mussolinianismo. Essa gritaria intimidatória tem tudo a ver com império e nada com democracia. Na verdade, os sintomas de morbidez democrática são muito mais evidentes no interior do mundo ocidental. São os imperialistas que detêm a chancela certificadora de democracia, mas o que eles entendem por isso é liberalismo (mais liberdades para os mais fortes), que é uma coisa totalmente diversa e tendencialmente incompatível (14). A compulsão para extremar a prossecução da via liberal (que é uma via sociocida e irreversível), por fim, irá entrar inevitavelmente em choque com os princípios da soberania popular e do sufrágio universal. A isso acrescerá, ao menos na Europa, um acentuado declínio económico, austeridade, degradação dos serviços públicos, desmantelamento final do Estado Providência, maior polarização social. O poder burguês terá então de se resguardar de qualquer escrutínio democrático, coartar o direito ao protesto e as liberdades de expressão e de associação. O fascismo vai avançar, se não for devidamente oposto. Em vez de corporativismo, partidos de massas, bandos de arruaceiros fardados e dirigentes carismáticos, teremos porventura ofertas públicas de venda dos bens comuns, concursos televisivos, seitas religiosas, gurus da autoajuda, vigilância em rede 24/7, transumanismo e economia pura. O fascismo não tem uma morfologia tipificável.
O próprio Poulantzas, porém, adotava um ponto de vista historicista, situando o fascismo como fenómeno político específico da fase de transição entre o capitalismo concorrencial e o monopolista nalguns dos elos mais fracos da cadeia imperialista: Itália e Alemanha. Esqueceu-se de Portugal, Espanha, Áustria, Hungria, Polónia, Jugoslávia, Bulgária, Roménia, os três países bálticos, etc.. Mesmo a Grécia (Pangalos, Metaxás) não foi imune ao movimento fascizante que precedeu o deflagrar da Segunda Guerra Mundial. Tudo isto só na Europa (15). O fascismo histórico foi o modelo político adotado pela generalidade das burguesias europeias continentais entre as duas guerras para fazer face à ameaça comunista. Ficaram de fora apenas os países de tradição mais liberal, com influência anglo-saxónica, que não sentiram tão vivamente essa ameaça. E foi porque as potências anglo-saxónicas se viram depois na necessidade de se defenderem da, essa sim, bem real ameaça alemã (depois de fracassarem na tentativa de a dirigirem exclusivamente para leste) que transformaram propagandisticamente a II Guerra Mundial numa cruzada antifascista. Até aí o fascismo tivera sempre muitíssimo boa imprensa na Londres conservadora. Eis porque imperialismo ocidental e democracia celebraram então um contrato oportunístico de relações públicas, que se prolongou depois ao longo da guerra fria contra a União Soviética e seus satélites.
Em 1978, analisando a atualidade de então, Poulantzas caraterizou-a como sendo marcada por um “estatismo autoritário”, num plano de “declínio da democracia”. Aparentemente, para ele, esta evolução não se dirigiria já rumo ao fascismo, mas, porventura, a um outro qualquer regime de “exceção”. Ora, com tantas exceções, será já difícil reter qual é afinal a regra. A realidade é que não há qualquer regra democrática no poder da burguesia. Desde que se iniciou o atual regime de acumulação neoliberal (Poulantzas mal assistiu a esse início), o jogo democrático nos países imperialistas ocidentais tem seguido uma regra de alternância entre direita e esquerda liberal. A primeira agride sem freio, percute e socava direitos e aquisições civilizacionais. A segunda, consolida e reforça institucionalmente os ganhos alcançados na ofensiva anterior. E assim sucessivamente, sempre aprofundando cada vez mais a liberdade e a arbitrariedade do domínio da burguesia. A luta de classes prosseguia, sempre sob a iniciativa dos de cima, apenas com estilos diferenciados e reconquistas diversas. A própria alternância era instrumental para um melhor desempenho dessa luta.
Sucede, porém, que os ritmos ofensivos têm-se acelerado, sob o aguilhão imperativo da queda tendencial das taxas de lucro. A burguesia agora mal pode suportar já os períodos de “esquerda no poder”, que são considerados uma perda de tempo e de oportunidades. Há que encurtar caminhos. Por mim, considero que, no capitalismo, um poder constante e monocolor totalmente insensível às aspirações e mudanças no humor popular, limitador das liberdades de expressão, associação e manifestação, é fascismo, qualquer que seja o revestimento institucional e cerimonial que adote. É certo que, na história do capitalismo, existiu uma grande variedade de regimes despóticos anteriores à época do fascismo histórico, que seria porventura anacrónico denominar com esse termo. Isso é um problema para os historiadores. De um ponto de vista político, contra a opinião de Atílio Borón, não me parece que exista qualquer inconveniente em alargar o conceito de fascismo para abranger todos os novos movimentos e regimes políticos que surjam com caraterísticas antidemocráticas. Uma boa parte deles surge agora nos países anglo-saxónicos, que não estavam afinal geneticamente (ou memeticamente) imunizados. O fascismo não é, por natureza, antiliberal. Em sentido contemporâneo, é mesmo, tipicamente, um extremar das pulsões liberais até ao paroxismo (veja-se Berlusconi, Trump, Bolsonaro, Zelensky, Milei, etc.). A precedência do prefixo “neo” talvez ajude a convencer alguns renitentes. Neofascismo, seja.
O demoliberalismo foi um casamento de conveniência que agora termina em divórcio litigioso. A dissolução de todos laços sociais foi o que sempre esteve inscrito na lógica ocidental da chamada “sociedade aberta”. O individualismo extremado, sob o signo mercantil, produz esta pulsão dissocietária sem travão e sem regresso, que arrasta no seu vórtice partes das próprias massas populares, atomizadas e embrutecidas. A democracia passa a ser uma miragem, desde logo porque deixa de haver coisa pública sobre a qual se possa ainda exercer a soberania popular. A res publica é dissolvida. É cada um por si, apoderando-se do que puder. Vale tudo, menos estabelecer regras. O neofascismo é este próprio movimento de dissolução social e a força organizada no sentido que quebrar com violência todas as resistências que se lhe queiram opor. O imperialismo parece conseguir dispor, com facilidade, em todo o mundo, de massas urbanas prontas a serem lançadas, à sua conveniência, em movimentos insurrecionais “coloridos”. Dessas aventuras ainda não resultou o estabelecimento de nenhuma nova democracia, mas sim o de muitas guerras civis e Estados falhados.
Danilo Martuscelli, formado na Unicamp, debruça-se sobre o conceito de golpe de Estado, à luz da teoria do bloco no poder. Como é sabido, bloco no poder é o conceito poulantziano mais reconhecido, hoje em dia de uso quase generalizado entre cientistas políticos marxistas. Refere-se a um agregado de classes e/ou frações de classes, dispostas entre si numa determinada organização hierarquizada, que detêm o poder de Estado impondo a sua agenda económica e social. Tendo bem presente o derrube do governo de Dilma Rousseff, o autor entende realçar que o golpe de Estado é sempre um movimento de reposicionamento dos componentes do bloco no poder (com reforço ou redefinição da classe ou fração hegemónica), nunca podendo reduzir-se a um conflito entre determinadas personalidades ou instituições.
Na parte III, tratam-se questões de imperialismo e relações internacionais. A abrir, temos uma contribuição do único autor não latino-americano deste volume, o britânico Bob Jessop, um dos mais reputados estudiosos do pensamento de Poulantzas, que se debruça aqui sobre a contribuição deste último para a análise do imperialismo. Essa contribuição, a meu ver, não foi marcante, embora seja pontuada por algumas observações penetrantes. Parte delas perdeu atualidade, entretanto. A metáfora dos elos da cadeia, retomada de Lenine, não me parece hoje muito útil. A guerra ucraniana veio provar que o sistema imperialista está unificado, sob completo domínio dos E.U.A.. Deixou de haver quaisquer fricções interimperialistas dignas de registo, sendo quase impossível explorar fissuras no bloco. O que não quer dizer que o próprio bloco não possa ser derrotado, na íntegra.
As sucessivas campanhas de desinformação orquestradas pelos serviços secretos britânicos ou norte-americanos (Skrypal, Navalny, Bucha, etc.) gozam de uma aceitação unânime e indiscutível em todo o espaço informativo ocidental, coagindo as chancelarias dos “aliados” a atuar prontamente em conformidade. O “mundo livre” é suposto ter uma informação transparente, concorrencial e objetiva. É, deste modo, impossível disputar ou escrutinar a versão dos factos imposta pelos senhores do mundo. Uma espessa e tóxica nuvem de mentiras paira sobre todo o mundo ocidental unificado, com unção sacramental de veracidade. Vimos a Alemanha submeter-se de forma abjeta perante a destruição à bomba do seu gasoduto submarino Nord Stream 2, sob direta ordem presidencial de Joseph Biden (16). Resignou-se, consequentemente, à desindustrialização. Os seus empregos industriais mais qualificados estão a ser exportados para o país perpetrador deste ato de guerra. O seu modelo social será completamente destruído. Não foi possível imputar plausivelmente a ação aos russos, pelo que se inventou a intervenção de um agente ucraniano. A França abandonou o Níger com o rabo entre as pernas, intimada pela ação no terreno da diplomata norte-americana Victoria Nuland (já famosa pelo seu brado “fuck the EU” em Kiev). A peculiar coutada neocolonial oeste-africana gaulesa - a infame Françafrique - está agora em completa derrocada. Entretanto, bem avisadamente, os patriotas nigerinos, depois de se terem aproveitado das rivalidades franco-americanas para se livrarem da tutela parisiense, deram também ordem de despejo ao Pentágono.
À medida que o domínio do Ocidente sobre o mundo se foi degradando (de forma acelerada já neste século), os seus polos imperialistas menores perderam todas as réstias e veleidades de autonomia. Assustados, acoitaram-se total e definitivamente sob a proteção do periclitante “sistema americano” (Pentágono-US$dólar-FMI-Wall Street) vigente desde o rescaldo da II Guerra Mundial (17). Na verdade, chegamos a um ponto em que é o próprio sistema imperialista no seu conjunto que está agora sob assédio. Os seus inimigos tomaram a iniciativa militar - por meio das tão infamadas “agressões não provocadas” na Ucrânia, em Gaza, na Guiana Esequibo – e económica – com o alargamento e aprofundamento do grupo BRICS, da Organização para a Cooperação de Xangai, etc.. A política ocidental de “sanções” falhou espetacularmente. Na verdade, repercutiu pela culatra.
Agora sim, definitivamente, na defensiva, o imperialismo encontra-se unificado, à força (18). Não será o ultra-imperialismo caro a Kautsky, porque não estamos perante um consórcio monopolista voluntário, triunfante e pacificado consigo próprio. Também não se trata de um “imperialismo coletivo” resultado de uma interpenetração capitalista tripolar, como queria Samir Amin (19). A globalização financeira explica, a meu ver, apenas parcialmente, esta unificação do espaço imperialista, que se mantém em grande medida aparente. Na verdade, os únicos centros com uma margem real de decisão política autónoma situam-se em Washington, Londres (por privilégio de senectude) e Tel Aviv (por fantasia supremacista). Os restantes são abafados sem qualquer cerimónia. A União Europeia e o Japão são hoje meras sombras de si próprios, trémulas e exangues. O G7 é uma photo op totalmente vazia, que serve apenas para intimidar terceiros. Não há qualquer deliberação coletiva ou concertação entre potências imperialistas.
Estamos a assistir, isso sim, a uma contração surdamente litigiosa de todo o espaço de domínio imperial. Os conflitos que os imperialistas expressavam entre si de forma tão sanguinária e destrutiva, quando competiam expansivamente, já não se podem permitir, sequer por palavras, em fase de retração generalizada. De todo o modo, a lei do desenvolvimento desigual e assimétrico continua a funcionar, como que em reverso, impedindo qualquer entendimento e concertação entre as potências imperialistas. Subterraneamente, tudo funciona entre elas, como sempre, com base na intimidação, na perfídia e no golpe de força. É a guerra, mas não explícita. Toda a grande imprensa celebra em uníssono a inquebrantável unidade do mundo ocidental em defesa da democracia.
A atual derrocada do Ocidente é sumamente curiosa e plena de ensinamentos. Ficamos a saber, por exemplo, que, em civilizações de alta complexidade técnica e científica, as classes dirigentes podem se deixar embriagar pelas suas próprias secreções ideológicas, a ponto de perderem o controlo estratégico das suas reais fontes de poder. Foi deste modo que se deu a desindustrialização ocidental, na mirífica perseguição da “sociedade do conhecimento” e na presunção simploriamente racista de que os povos menos dotados do que nós se conformariam em manter-se perpetuamente ao nosso serviço, sempre situados respeitosamente um passo atrás.
Deixando de ser possível explorar contradições no seio do bloco imperialista, perdeu assim interesse, do ponto de vista político, esmiuçar a articulação entre os blocos imperialistas norte-americano, europeu e japonês (20). No entanto, há um conceito poulantziano nascido nesse contexto que viria a conhecer um grande sucesso na América Latina, em ambiente cultural marcado pela influência ocidental mas caraterizado por uma realidade geográfica periférica. Falamos do conceito de burguesia interna (doméstica), a que Jessop se refere com algum detalhe. Trata-se de uma nova burguesia, nem compradora, nem nacional, situada num grau intermédio de submissão em relação aos centros imperialistas. Não é uma mera representante de interesses externos, mas continua ligada à concentração e centralização internacional de capitais. O século XX assistiu à ascensão ao bloco no poder dessa burguesia nos países latino-americanos, onde procura manter relações de dependência, embora possa, em determinadas circunstâncias, ter uma atuação com algum grau de ambiguidade. É curioso que um conceito criado por Poulantzas tendo em vista o espaço europeu (que é um espaço imperialista) tenha ganho aceitação na caraterização do espaço latino-americano. Talvez seja sintomático de algum acréscimo da margem de autonomia das burguesias autóctones em Nuestra America. Por outro lado, a Europa que Poulantzas estudou ainda era, em grande parte, a do pós-Plano Marshall, com uma grande hegemonia das multinacionais norte-americanas. As burguesias europeias chegaram, depois disso, a sacudir o jugo económico e político-ideológico norte-americano (21). Mais recentemente, sucumbiram enfim ao seu jugo geopolítico.
Caio Bugiato aborda especificamente o papel de Poulanzas como crítico precoce das teses do declínio do Estado nacional por via da transnacionalização do capital, da terceirização ou da informatização/imaterialização do trabalho. Estas teses foram defendidas, no campo do (pós-)marxismo, por Toni Negri e Michael Hardt, autores do clássico Império (2000). Depois disso, acrescentaríamos nós, acoitou-se sobretudo na revista Multitudes, onde os restos do operaísmo italiano se congraçaram com o pensamento radical pós-estruturalista francês, revelando autores novos como Maurizio Lazzarato e Yann Moulier-Boutang. Em paralelo, surgiram as teses da “sociedade em rede” de Manuel Castells.
Os defensores da transnacionalização do capital previram a emergência de um espaço de soberania compartilhada, sob a forma de um embrionário Estado transnacional. Na viragem para o novo milénio pareceu, efetivamente, que iríamos entrar numa era de multilateralismo económico, nomeadamente na regulação das trocas internacionais, por meio da Organização Mundial do Comércio (OMC) e diversos blocos regionais, para além de tribunais arbitrais e encontros informais (Davos, Bilderberg). Tudo isso provocou mesmo uma forte reação de contestação por meio do movimento por uma alterglobalização, que tomou expressão nos anuais Fora Sociais Mundiais (também regionais e nacionais). Entretanto, a atividade destas organizações internacionais de comércio estagnou. Não por se ter intimidado com a oposição, helas. Simplesmente, porque deixou de interessar ao imperialismo, em resultado da ascensão da China, agora a única campeã da globalização. A partir da crise económica de 2007-8, os E.U.A. optaram decididamente pelo unilateralismo.
Concluímos, pois, que o aparato estatal transnacional de suporte à globalização (livre movimento de capitais, mas não do trabalho, que é feito por via clandestina) nunca foi mais do que uma fachada de conveniência para o poder imperial, que este descartou quando deixou de lhe ser útil. Retém apenas as velhas instituições de Bretton Woods – FMI e Banco Mundial – que são instrumentais à imposição do sistema de curso mundial forçado do $US dólar. Na verdade, são, isso sim, aparelhos com função extraterritorial do próprio Estado norte-americano, aliás, muito adequadamente, sedeados em Washington. A OCDE é um mero gabinete de estudos e estatísticas. A União Europeia tem um aparato estatal relativamente desenvolvido, que lhe permite aliás ser a primeira potência mundial na regulamentação. Mas trata-se de um caso único não facilmente reprodutível, muito menos globalizável. As restantes organizações políticas internacionais são meras assembleias ou reuniões de representantes nacionais, embora possam dispor de uma extensa burocracia, a exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU).
Lúcio Flávio de Almeida trata também da contribuição peculiar de Poulantzas no tratamento de várias questões na articulação entre imperialismo e nacionalismo. Aborda-se, novamente, com algum detalhe e sofisticação, a burguesia interna. Interessa-me aqui, sobretudo, tecer alguns comentários sobre a suposta integração da Rússia e da China na cadeia imperialista, seja como elos fracos ou fortes. Estaremos de acordo em que ambos estes países são capitalistas (22). Mas a questão do seu caráter imperialista é completamente distinta dessa. É verdade que ambas as nações têm uma tradição histórica imperial, que pesa ideologicamente sob a sua classe dirigente (e não só), influenciando, porventura, em alguma medida, as suas opções políticas e militares. Mas não é disso que estamos aqui a tratar. O que aqui temos em vista é o conceito marxista de imperialismo, que define uma específica fase histórica de desenvolvimento do modo de produção capitalista. A guerra na Ucrânia e a política de Pequim quanto a Taiwan, não têm, seguramente, nada a ver com imperialismo neste sentido. Rússia e China não exportam capitais para explorar força de trabalho de baixos custos, especular em mercados financeiros ou a praticar agiotagem internacional. Não exercem tutela, ameaçam ou orquestram golpes em países estrangeiros, com vista a garantir uma corrente contínua de escoamento de valor deles a seu favor.
A China tem, é claro, vastos investimentos no exterior, que tão depressa obtêm ganhos como assumem perdas. Obedecem a uma lógica diplomática de longo curso e não económica. Estão sujeitos a expropriação, não sendo protegidos pela força armada ou por ameaças de retaliação. Situam-se num plano de paridade, não criando relações de dependência ou subordinação. A Rússia tem uma carteira muito limitada de investimentos externos. Tem, sobretudo, programas de cooperação, no plano técnico e militar. A lógica aqui é, também, inteiramente político-diplomática, não económica (23). É certo que ambos países (muito mais a China) exportam produtos e se abastecem de mercadorias e matérias-primas ao preço fixado pelo mercado mundial, beneficiando, nessa medida, indiretamente, dos mecanismos de troca desigual impostos pelo imperialismo ocidental. Contas feitas, o balanço de transferências de valor não lhes confere um estatuto imperialista, mas antes o de nações semiperiféricas (24).
François Mauriac disse uma vez que gostava tanto da Alemanha que estava encantado por poder haver duas. Mutatis mutandis, poderíamos talvez dizer que os trabalhadores e os povos oprimidos de todo o mundo gostam tanto de imperialismo que ficariam encorajados por saber que, em vez de um só, há agora dois: um atlântico e outro continental euro-asiático. A competição e o afrontamento inter-imperialista sempre foram ocasiões profícuas para iniciativas emancipatórias das classes e nações ofendidas, humilhadas e exploradas. Dois, três, quatro, se possível mais imperialismos. Se assim fosse, já seria bom. Na verdade, a situação não é essa e não deve ser avaliada politicamente dessa forma. Rússia, China e Irão (também ele um império, em tempos) são potências não imperialistas, cujas iniciativas externas devem, em geral, ser encaradas com recetividade, sem reserva e sem desconfiança. É assim que se pensa em Cuba (porventura o único país socialista no mundo), na Venezuela, na Bolívia, nos martirizados Iraque, Síria, Líbano, Iémene e Palestina. No afrontamento mundial a que estamos a assistir, a nossa posição não pode ser neutral, expetante e oportunista. O triunfo e fortalecimento do bloco euro-asiático é uma condição essencial para o prosseguimento e eventual vitória da luta por um futuro sustentável e socialista. Devemos empenhar nele todas as nossas forças, uma vez que estas, claramente, por si sós, não são capazes de derrotar o imperialismo, nem neste momento nem num futuro previsível. A necessidade política não faz ciência, naturalmente. Mas não devemos deixar turvar o conceito marxista de imperialismo com reminiscências imagéticas de outras eras.
A parte IV trata de conflitos sociais, lutas de classe e transição socialista. Eliel Machado aborda a questão dos chamados “movimentos sociais”, contrastando-os com as classes sociais. É apenas enquanto teorizador destas últimas que Poulantzas é mencionado, entre outros autores. Eliel Machado faz uma tipologia dos diversos movimentos sociais contemporâneos e procura destrinçar, de entre eles, quais desempenharão necessariamente um papel de “movimentos-apoio” do bloco no poder e quais poderão eventualmente ser captados para a participação num projeto transformador.
Uma das consequências mais visíveis e nefastas da última crise do marxismo, aberta na sequência da derrocada da União Soviética, foi a negação ou desvalorização da noção de classe social enquanto agente histórico transformador. Com isso veio o abandono da problemática marxista (antes de ser leninista) do partido (25), a favor dos muito mais vagos “movimentos sociais”, que supostamente nos livrariam do dogmatismo e do dirigismo. É certo que, se quisermos pôr de parte a teleologia, temos porventura também de abandonar o mito da “missão” histórica do proletariado. Mas isso não significa que qualquer grupo social possa encarnar indiferentemente qualquer projeto político. As sociedades de classe históricas estão sempre estruturadas segundo certas linhas divisórias. As suas forças de produção e as suas relações de produção emolduram uma determinada disposição de domínio e exploração entre as classes sociais nucleares que as compõem. Cada específico modelo de organização social que daí resulta está sujeito a lutas e tensões que podem se resolver, de uma forma antecipável, em direção a certas linhas de fuga. O inconformismo das classes dominadas, num determinado quadro delimitado pelo estado de desenvolvimento das forças produtivas, pode conduzir a um certo universo de possibilidades de organização social alternativa.
É aqui que intervém – desde que o marxismo abriu ao conhecimento humano o continente História - o elemento consciente do processo. Cabe às classes exploradas dotarem-se dos instrumentos teóricos para desenhar estrategicamente a sua própria emancipação. Com a ciência disponível, sim, e também um certo grau de inspiração profética. Depois é uma questão de organização, de agregação de forças. Assim como há um bloco no poder, também tem de haver um bloco revolucionário. Formado assim o partido (no sentido do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels), tem de se lhe dar uma certa forma estruturada, dotando-o de um processo deliberativo democrático. A partir daí começa a intervenção política quotidiana, com base numa leitura tática das diversas situações, subordinada aos objetivos estratégicos definidos anteriormente. No mundo de hoje, o nosso partido terá de ser mundial. Embora tenha configurações diferenciadas, conforme as diferentes realidades geográficas (formações sociais) em que se inserem os seus ramos nacionais e regionais, o seu desígnio estratégico global é fixado ao nível planetário.
O movimentismo social já foi experimentado na prática. Fracassou por completo. Refiro-me, naturalmente, ao processo dos Fora Sociais Mundiais. O não-diretivismo e o processo deliberativo por consenso assegurou, previsivelmente, o seu completo fiasco. Tornou-se numa montra periódica de descontentamentos variados e multiformes, da qual não saiu uma única ideia para a criação de uma alternativa revolucionária ao estado a que chegamos, que agora ameaça abertamente a própria sobrevivência da humanidade. É como se disséssemos, “outro mundo é possível”, mas, helas, não podemos assumir a responsabilidade de uma iniciativa para transformar este, pois que, quando o tentamos no passado, deu mau resultado (26). A esquerda anti-sistémica (sobretudo a ocidente) continua prisioneira de um absurdo sentimento de culpa e de fracasso. Chama a atenção para os problemas, mas fica-se ao nível da lamúria ou da súplica, mesmo quando recorre à desobediência civil e à violência (largamente simbólica). Temos que regressar urgentemente à forma partido. Nesse sentido, terá de surgir uma nova organização, armada com um aparato teórico renovado, que consiga fazer explodir e absorver depois todos os estilhaços sectários remanescentes, herdeiros de velhas cisões do movimento socialista ocorridas ao longo da última vaga revolucionária, a do século XX. A classe operária será um dos componentes (não necessariamente o hegemónico) deste bloco revolucionário.
De seguida vamos tratar da parte do livro que, pessoalmente, mais interesse me suscitou: o diálogo contraditório que (voluntariamente ou não) se estabelece entre as contribuições de Angela Lazagna e Luiz Eduardo Motta sobre a unidade da obra de Poulantzas. Devo, aliás, admitir aqui, numa confissão de interesses, que esta preferência tem a ver com a minha própria trajetória intelectual e os meus presentes interesses políticos. Objetivamente (se isso existe) os pontos mais fortes do livro podem bem ser outros.
Angela Lazagna começa por sumariar as teses essenciais de Poder Político e Classes Sociais (1968), servindo-se, em parte, da particular leitura feita desta obra por Décio Saes. O Estado organizador da dominação de classe burguesa produz um duplo efeito ideológico para criar as condições necessárias à reprodução das relações de produção capitalista. Por um lado, produz um efeito de isolamento ou individualização, que converte membros de classes sociais em sujeitos formalmente livres e iguais. Por outro lado, há um efeito de unidade promovido pelo burocratismo, a ideia de que o aparelho de Estado é preenchido por pessoal selecionado e promovido exclusivamente pelo seu mérito, independentemente da sua origem social, representando o “interesse geral” do povo-nação (27). Esta uniformização burocrática confere uma certa objetividade ao caráter classista do Estado. Este não é um mero instrumento nas mãos da classe capitalista - que o manipulará a seu bel prazer - essencialmente pronto para ser apropriado, chave na mão, por outra classe qualquer. O Estado é, na verdade, como que o próprio domínio dessa mesma classe organizado de uma forma unitária e objetiva. Como tal, é dotado de uma certa autonomia relativa para com a própria classe dominante, sobretudo para com este ou aquele membro ou fação particular dessa mesma classe (28).
Para Angela Lazagna, o último livro de Poulantzas, O Estado, o Poder, o Socialismo (1978), com antecedentes em A crise das ditaduras (1975), marca um corte radical com a sua obra anterior. A unidade e objetividade do domínio de classe burguês, encarnada pelo Estado capitalista, seria incompatível com a nova conceção “relacional” do Estado, como a “condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe”. Como vimos já, esta é a posição da Escola de Campinas. Décio Saes é novamente citado, como também Danilo Martuscelli. Em França, a última conceção poulantziana do Estado foi asperamente criticada por Henri Weber e Bernard Fabrègues. O autor defenderia com ela uma transição ao socialismo por via pacífica e democrática, em lugar da revolução. Esta posição é equiparada a teses revisionistas de Karl Kautsky e Emil Vardervelde já em seu tempo criticadas por Lenine.
Numa recensão ao meu livro Outro Mundo (29), Angela Lazagna já anteriormente lamentou a adoção que aí se faz do conceito relacional do Estado (colhido do último livro de Poulantzas), considerando-a contraditória com a simultânea defesa da ditadura do proletariado e da perecibilidade do Estado. Após alguns anos, vou finalmente aproveitar este ensejo para expor porque penso que não é assim, de uma forma necessariamente breve e esquemática. A conceção relacional do Estado capitalista não implica que este, com tempo e paciência, possa ser tomado paulatinamente pelas forças populares e posto ao seu serviço. Repudio completamente essa noção e não creio que alguma vez Poulantzas a tenha defendido. Essa é, efetivamente, a estratégia da chamada “democracia avançada”, defendida pelos teóricos do Capitalismo Monopolista de Estado e pelos eurocomunistas de direita e centro. Em Portugal foi imposta por Álvaro Cunhal (no entanto, adversário do eurocomunismo e leal servidor da União Soviética até ao amargo fim) e ainda hoje é doutrina oficial e consagrada do PCP (30).
O Estado burguês tem, obviamente, a sua rigidez óssea. Não é feito de plasticina. É “relacional” até um certo ponto. Melhor dito, a “condensação da relação de forças” que o constitui tem uma certa espessura e densidade, que o torna relativamente inflexível. As conquistas que as classes populares arrancam do Estado são na verdade concessões, dentro de um equilíbrio de coisas julgado aceitável pelo bloco no poder. Os efeitos de isolamento e unidade continuam a funcionar em pleno, se possível de forma ainda reforçada. Para que as classes populares tenham acesso real ao poder, é necessário destruir o Estado burguês, instaurando um novo poder, investido de atributos novos e capacidades repressivas de emergência, que lhe permitam consolidar uma situação que será necessariamente muito fluida e indefinida durante algum tempo. O poder não pode ser partilhado entre classes antagónicas, nem desliza de uma para a outra num plano contínuo e na maior paz, como propõem alguns vendedores de banha da cobra.
Não se toma o poder pela via eleitoral. A democracia do tipo ocidental pressupõe, muito precisamente, que a questão do poder esteja previamente decidida e estabilizada. As eleições podem, eventualmente, servir apenas para formalizar alguns reajustes menores no bloco no poder e a transição entre diferentes modelos de acumulação capitalista. De resto, oferecem tipicamente uma opção (ou seu simulacro) entre diversos grupos de serventuários do poder, de lealdade já devidamente certificada. Na maior parte do tempo é pura farsa. No entanto, o sistema democrático deve, ainda assim, ser reclamado e preservado por nós, sendo correto participar nas eleições, até porque estas estão ligadas a um sistema de liberdades públicas que nos importa defender. As eleições são sempre ocasião para transmitir e reafirmar um projeto político alternativo. Ocorrendo por ocasião de uma crise revolucionária, podem também proporcionar um veículo facilitador de uma rotura efetiva de poder ou, enfim, forçar a burguesia a tomar medidas de exceção que a desmascarem. Entretanto, não se ganha nada em participar correntemente em eleições burguesas como se estas fossem efetivamente jogo limpo, iludindo o povo quanto ao que se pode efetivamente alcançar nelas, se ao menos ele tivesse o arrojo de votar maciçamente em nós. Isso só vai espalhar a descrença e a resignação, validando a mensagem de que o domínio da burguesia (e imperialista) é legítimo e consentido.
O poder tem de ser tomado à força (não necessariamente armada), com um golpe súbito ou com uma sequência breve de sacudidelas consolidadas. A isto se chama uma revolução. A questão é como é que podemos lá chegar. Penso que a estratégia de duplo poder não é a única possível. Não só penso isso, como penso mesmo que ela está ainda largamente por provar na prática. Não conhecemos um único exemplo histórico claro em que as estruturas de poder paralelo subversivo se tenham tornado, depois, as estruturas efetivas do novo poder pós-revolucionário. Os sovietes russos, como é sabido, esvaziaram-se muito rapidamente, tendo a seu poder sido na prática exercido pelo partido bolchevique. Uma fixação purista na exigência de novidade absoluta do novo poder nascente pode ser um fator de divisão e de paralisia das forças revolucionárias.
É impossível tomar o poder exclusivamente por dentro do aparato estatal burguês. A sua tessitura não tem uma capilaridade capaz de permitir isso. Mas para que um assalto só por fora tenha êxito, é necessária uma conjugação de fatores muito rara, sobretudo em sociedades de elevada complexidade. Já Gramsci se debateu com esse problema. A via mais promissora é tentar tomar o poder, por dentro e por fora. Um pouco como os maoistas falam em “caminhar com ambas as pernas”. Com um amplo, continuado e implacável movimento de massas, é possível tomar posições dentro do Estado burguês e, simultaneamente, criar fora dele um polo de poder alternativo que o golpeie, desgaste e esfacele, até lhe quebrar a espinha dorsal. A caixa craniana, onde se instalava o bloco no poder, é, por fim, seccionada e dispersa.
O Estado burguês será destruído, embora partes isoladas do seu aparelho (inclusivamente certos mecanismos de democracia representativa) possam ser aproveitadas, depois de sofrerem as devidas adaptações. Em termos próprios da tauromaquia portuguesa, isto será como pegar o touro de cernelha e não de caras. Não é tão espetacular, mas por vezes é necessário. Depende das caraterísticas do touro e da disposição dos forcados. Vemos assim que a conceção relacional do Estado não tem de ser um alçapão em direção ao reformismo. Pode ser um instrumento teórico muito profícuo para a revolução, na parte em que esta dependa de lutas posicionais dentro do aparelho de Estado burguês com vista criar condições que possam levar à sua destruição controlada. O poder será, por fim, outro. Mas é inevitável que acabe por cooptar muito do saber técnico e administrativo anterior. O novo poder proletário (ou popular) não se exerce sobre uma nova classe dominada, mas sim contra as tentativas de restauração da dominação anterior. Com o esbatimento das classes sociais, também esse poder, por sua vez, deperecerá.
O que também defendo é que, antes de tudo isto, as forças populares vão ser chamadas a defender, no marco constitucional, esta democracia burguesa e certas provisões sociais mínimas, porque elas estão sob assalto de forças neofascistas do extremismo liberal. O meu uso da conceção relacional do Estado capitalista é sobretudo no âmbito de uma postura de entrincheiramento defensivo. Porque é preciso pensar nisso também. Não estamos sempre na ofensiva. Na verdade, temos estado quase sempre na defensiva há muito tempo já, pelo menos na Europa. Dizer que não temos nada a ver com este Estado, que estamos, perante ele, numa posição de exterioridade absoluta, pode redundar em entregá-lo ao neofascismo com um encolher de ombros. Vi camaradas fazer isso mesmo no Brasil, aquando da exitosa ofensiva bolsonarista. A defesa da democracia burguesa pode ser uma escola de luta muito importante para nos abrir perspetivas revolucionárias futuras. A conceção relacional do Estado burguês é muito operativa, em ambas estas fases de combate social e político.
O que de democracia possa efetivamente existir hoje no Ocidente (para além do puro simulacro), é sempre uma democracia do privilégio e da exclusão. Como já era, aliás, a do seu apregoado modelo ateniense. São democracias contra o outro, sobre o qual se erguem; democracias do jardim contra a selva, para tomar de empréstimo a tão amável definição (e advertência) de Josep Borrell. Baseiam-se num entendimento de cooptação das próprias classes populares, com base numa distribuição ou redistribuição de réditos imperialistas captados no exterior (agora também, cada vez mais, resultantes da sobre-exploração de imigrantes residentes clandestinamente no interior). Quando os dirigentes imperialistas falam da defesa da democracia, falam, muito naturalmente, à cabeça, senão exclusivamente, da defesa dos privilégios imperiais sobre os quais aquela se ergue. Um pré-requisito indispensável ao estabelecimento de uma verdadeira democracia mundial, entre povos iguais e fraternos, e no seio deles, será a superação desta falsa democracia senhorial.
Democracia ocidental significa também, hoje em dia, poder político fraco e imediatamente servil aos interesses dos grandes monopólios. Qualquer poder político forte é imediatamente taxado de ditatorial, sobretudo se tiver pretensões de intervencionismo na economia. Desta forma, ao sufrágio popular só é submetido aquilo que for absolutamente insignificante e cosmético. Mercado livre e não falseado é o dogma absoluto, a ponto de se prejudicar a independência do Estado e a sua função de direção coordenada ao serviço dos interesses coletivos da burguesia. Daí resulta uma total ausência de planeamento, desnorte estratégico total e a inevitável decadência. A ganância privada entregue a seu livre arbítrio começa a roer as próprias entranhas, socavando os próprios fundamentos do seu poder.
Tudo isto nos leva, inevitavelmente, por fios diversos, à questão da ditadura do proletariado. Louis Althusser afirmou, não sabemos informado por quem, que Álvaro Cunhal, dirigente do PCP, em 1974, propôs eliminar esta expressão do programa partidário, mantendo contudo o conceito, como preceito orientador (31). A sua posição era assim, neste ponto, bastante semelhante à minha, que Pedro Felipe Narciso criticou em resenha à edição brasileira do meu livro Outro Mundo (32). Althusser qualificou esta mesma atitude política, em Cunhal, de maquiaveliana. O problema é que nada na prática política posterior do PCP indiciou, ou sugeriu, levemente que fosse, inclusivamente numa conjuntura agudamente revolucionária, e até hoje, a retenção do conceito de ditadura do proletariado (33). Donde se conclui que, infelizmente, de nós dois, só eu posso ser considerado autenticamente maquiavélico…
Na verdade, o que se passa aqui é que, simplesmente, precisamos de dessacralizar o uso de certas palavras, pois que a sua repetição ritual não se traduz necessariamente em efeitos milagrosos garantidos. Marx cunhou esse nome como podia ter cunhado muitos outros para o mesmo sentido. Quem se obstina encarniçadamente em ostentá-lo, é muitas vezes quem mais depressa o trai. Posto isto, continuo efetivamente a fazer uso desse nome. Não o expurguei. Isto enquanto ensaísta independente. Não o usaria como dirigente político, que felizmente não sou. Não aconselharia nenhum camarada nosso em funções políticas a empregá-lo em documentos partidários, comícios eleitorais, debates ou entrevistas televisivas. Em primeiro lugar, porque não teria tempo para explanar o conceito, na era do soundbite. Seria imediatamente trucidado. Mesmo que conseguisse explicar-se, ninguém iria gostar da conversa. Quem defende uma ditadura não tem lugar na democracia, seria a resposta inevitável. O público não tem educação marxista e acharia isso perfeitamente lógico. É um afundanço como se diz em basquetebol. A evolução semântica tem sido absolutamente contrária a esta expressão e seria infantil insistir nela como se de uma fórmula sacramental se tratasse. Mais vale empregar a nossa coragem em enfrentamentos reais e de desfecho mais promissor.
É também preciso ter sempre bem presente a noção de que estamos a jogar em campo adversário. A direita pode permitir-se ser alarve e desbocada, conseguindo até proveitos fáceis com isso. A esquerda não pode responder no mesmo tom. Não vamos dizer que queremos ocupar fábricas, prender patrões abusadores, fuzilar sumariamente assassinos e torcionários do povo. Todas as matilhas mediáticas, judiciárias e policiais estão prontas para nos saltar imediatamente à jugular com todo o seu peso. Quando fala a extrema-direita, de forma equiparável (ou bem pior), elas apenas exibem um sorriso irónico ou, quanto muito, dão ténues sinais de algum desconforto. O Estado burguês é isso mesmo.
Há ainda uma outra razão porque a esquerda revolucionária não pode permitir-se hoje em dia esse falar verdade e sem peias. Gostaria de ter suficiente talento literário para me explicar aqui o melhor possível. No ocidente liberal, as forças dispersivas predominam sobre a solidariedade, a sociabilidade franca, a convivialidade sã e fraterna. Esses valores tinham muito peso nos meios populares, até há uma ou duas gerações atrás. Infelizmente, isso não se verifica facilmente hoje em dia. Quando a situação aperta, já não é aceite instintiva e naturalmente o apelo para a luta coletiva, de baixo para cima. Pode bem resultar mais depressa outro tipo de apelos, mais dispersivos ainda. O povo não é eterno. Pode ser socavado até ao fundo pela girândola mercantil, destroçando-se por completo a sua identidade e sentido de pertença. Temos muito trabalho de campo a fazer, para restabelecer como corpo coletivo e solidário o grande exército dos humilhados e ofendidos. Até lá, não podemos partir do princípio que ele existe e está sempre pronto para ser mobilizado. Tem de ser construído de novo. Uma personalidade carismática pode ser uma ajuda preciosa. Mas o trabalho de mobilização e doutrinação em proximidade é absolutamente indispensável.
Enfim, a expressão ditadura do proletariado nunca devia ter tido lugar em programas partidários, que não são manuais teóricos. O que ali deve constar são medidas concretas, não proclamações doutrinais. O erro foi tê-la colocado lá inicialmente, o que tornou a sua retirada, necessariamente, um ato politicamente significativo e condenável. Colocá-la agora lá novamente era repetir o erro, num círculo vicioso infernal. Quem primeiro teve a iniciativa de colocar a ditadura do proletariado num programa partidário foi Georgy Plekhanov, no Partido Social-Democrata Russo, em 1903. Bem diz o ditado popular português que “quem mais jura mais mente”.
E eis que Luiz Eduardo Motta vem dizer que, não, O Estado, o Poder, o Socialismo não é um livro reformista. Precisamente aquilo que queríamos ler. Para além disso, não há uma rotura clara na obra de Poulantzas, mas uma evolução, com criação de novos conceitos e uma diferente acentuação e articulação entre eles. Afinal, o conceito de condensação material de relações de forças sempre lá esteve, desde Poder Político e Classes Sociais, ganhandocada vez maior clareza e centralidade nas obras seguintes. Não tenho conhecimentos aprofundados da obra de Poulantzas nem, talvez, qualificações exegéticas que me permitam tomar aqui um partido informado. Mas a demonstração, com citações em apoio, parece-me convincente. Mesmo em O Estado, o Poder, o Socialismo (suposta bíblia do reformismo), nega-se muito explicitamente que as classes dominadas, pelas suas lutas no seio do Estado, possam desafiar ou participar no poder da classe dominante. Lutam, sim, mas enquanto dominadas, pelos termos dessa mesma dominação. É certo que se refuta aí a ditadura do proletariado e a necessidade do duplo poder. Mas a referência do seu projeto de socialismo democrático é Rosa Luxemburgo (a que criticou a dissolução da Assembleia Constituinte pelo poder soviético em janeiro de 1918), não Karl Kautsky. Também a sua crítica do “estatismo autoritário” é imprópria de um pensamento reformista. Aliás, o reformismo é explicitamente recusado e denunciado como um perigo. Mantém-se a perspetiva do deperecimento do Estado, por meio da ascensão de múltiplas e articuladas formas de autogestão e de mecanismos de democracia representativa e direta.
Faltam-me dados biográficos para o substanciar, mas a minha perceção é que Poulantzas, longe de se mover pela influência de convívios intelectuais de ocasião, fixava diretamente e deixava-se moldar pelas necessidades que percecionava na atualidade política para o seu objetivo inamovível de participar no movimento revolucionário de emancipação das classes dominadas. Um pouco como Lenine, dobrava a vara conforme os ditames da situação. Talvez esteja errado, mas o facto de Poulantzas se ter suicidado, faz-me ter uma confiança inquebrantável na sua integridade política e intelectual. Ele não estava a deslizar num plano inclinado em direção ao reformismo para salvaguarda inconsciente das suas próprias melhores conveniências pessoais. Vi muitos casos desses, com desenlace prolongado ou súbito. Este não corresponde ao tipo (34).
Um carreirista não se tortura mentalmente a si próprio por questões relativas ao mérito da sua obra. Poulantzas não era um renegado nem estava a caminho de o ser. Tinha dúvidas e inquietações intelectuais, sempre contidos bem dentro dos objetivos políticos a que dedicara a sua vida (35). Sobretudo, participava intensamente na vida política do seu tempo. Da forma como o vejo, pensava sempre politicamente em função das necessidades ditadas pelas circunstâncias de tempo e espaço em que ia vivendo. Nunca como um puro intelectual ou académico. Esta é uma perspetiva que não é abordada em nenhuma das contribuições deste volume e sobre a qual julgo que vale a pena dizer alguma coisa, de forma necessariamente muito resumida.
O ano de 1956 foi de roturas no campo do socialismo. Ocorreu o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (com o famoso relatório secreto de Khrutschev), a invasão soviética da Hungria, a crise gerada pela nacionalização do canal do Suez, o desembarque do Granma. No ano anterior dera-se a Conferência de Bandung. A Revolução Chinesa acentuava os seus traços de autonomia doutrinária e estratégica. Moscovo deixou, em definitivo, de ser o centro indisputado de fé e emulação para os seguidores de Marx e Engels. 1968 foi outro ano marcante, iniciado com a ofensiva de Têt no Vietname e pontuado pelo maio francês, revoltas estudantis um pouco por todo o lado e a invasão da Checoslováquia por forças do Pacto de Varsóvia. Foi no final desse ano que nasceu o eurocomunismo (36).
Poulantzas enfileirou desde a primeira hora na “nova esquerda”, surgida da confluência de todos estes novos sinais dos tempos. Detestava os apparatchiks soviéticos, hieraticamente perfilados na muralha do Kremlin, antes de recolherem às suas dachas conduzidos no banco traseiro dos seus ZIL. Talvez por isso usasse o cabelo tão comprido. O eurocomunismo, para ele, foi apenas a forma que achou de se integrar regionalmente, na Europa ocidental, com reverência ao seu estimado Gramsci, no seio de um partido de massas com tradição e prestígio (e não numa seita insignificante), no novo mundo multiforme e policêntrico das lutas socialistas, num espírito de plena solidariedade internacionalista cosmopolita (37). Sempre foi anti-imperialista e interessado pela Teoria da Dependência. Não participou, de forma alguma, da visão do mundo displicente e egoisticamente eurocêntrica que comumente se associa a esta corrente política.
O eurocomunismo conhecera dois anos auspiciosos em 1976 e 1977. Em junho de 1976 o Partido Comunista Italiano (PCI) obteve um excelente resultado eleitoral, conseguindo um terço dos votos. A abertura política que se seguiu à morte de Franco fez afluir ao Partido Comunista de Espanha (PCE) muitos militantes, sobretudo oriundos das Comissiones Obreras. A União de Esquerda em França parecia prestes a aceder ao poder, pela primeira vez desde a Frente Popular, quarenta anos antes. O movimento eurocomunista foi julgado uma ameaça intolerável de ambos os lados da Guerra Fria. Por parte da CIA e da NATO, foi objeto de um implacável tratamento sistemático de repressão, boicote, intriga e sabotagem. Houve mesmo recurso a operações terroristas de assassinato em massa no âmbito da “estratégia de tensão” orquestrada pela rede Gladio. Está disponível na rede o relatório da CIA, de outubro de 1985, desclassificado já neste século, em que se declara debelada a ameaça (38). Fosse porque razão fosse, a desilusão e o declínio começaram ainda em vida de Poulantzas, que certamente se teria demarcado se tivesse assistido aos extremos de oportunismo e liquidacionismo a que se chegou depois.
Como é sabido, Poulantzas militou no KKE nos anos 1960, de longe, nos círculos do exílio parisiense, mas de forma muito absorvente. Depois do golpe militar de 1967, acompanhou a cisão anti-moscovita do KKE-Interior, ocorrida no ano seguinte. Os pontos de contenção principais foram a invasão da Checoslováquia e a atitude ambígua do KKE-Exterior para com a junta militar, ditada por conveniências soviéticas relativas à sua frota mediterrânica. As suas convicções eram então claramente revolucionárias, dentro de um marxismo clássico. Mas ele acreditou sempre numa política real, não meramente proclamatória. A partir de 1969 acompanhou mais de perto a cena política francesa, na órbita do PCF, naturalmente. Curiosamente, no campo sindical, colaborava, não com a comunista CGT, mas com a socialista autogestionária CFDT. Acreditou no “Programa Comum” de Governo da Union de la Gauche, que vigorou de 1972 a 1977, incluindo a apertada derrota de François Mitterrand na eleição presidencial de 1974 (39). Até ao fim da vida acreditou na recomposição desta plataforma política. Não estava, naturalmente, a pensar a política francesa em termos de dualidade de poderes nem numa tomada do Palácio do Eliseu por assalto armado.
Um papel muito especial na sua evolução teórica e estratégica foi desempenhado pelo ocaso das ditaduras do sul mediterrânico europeu, em meados da década de 1970. Impressionou-o muito que estes regimes não tivessem caído em resultado de levantamentos populares, mas sim por processos inteiramente gizados pelas suas burguesias internas, com apoio da pequena burguesia e cavalgando desenvoltamente o descontentamento das classes trabalhadoras (40). Voltou a envolver-se fortemente com a política grega a partir da derrocada do regime dos coronéis em 1974. Iniciou-se então uma transição democratizante conhecida como metapolitefsi. Poulantzas regressou ao seu país e empenhou-se na sua vida académica, política e jornalística. Foi candidato - num lugar discreto, inelegível - nas listas do KKE-Interior às eleições legislativas de 1977. O partido teve um resultado catastrófico. A política por ele apoiada passava, também aí, por um entendimento frentista com o PASOK de Andreas Papandreou. Por esta altura, Mitterrand e Papandreou exibiam ambos personalidades políticas muito fortes e vincadas, com projetos claros, profundos e detalhados de transição ao socialismo. Eram comparáveis a Allende. De forma alguma os políticos burgueses convencionalíssimos em que se tornariam depois, já no poder e numa conjuntura político-económica em que o imperialismo norte-americano tinha, novamente, ganho um ascendente avassalador.
É preciso termos presente que, nesse tempo, existia o campo socialista com a União Soviética à frente. Poulantzas não a amava. Como também Althusser, tinha os seus flirts com o maoísmo, mas basicamente acreditava numa transição ao socialismo na Europa Ocidental (incluindo a Grécia), no desenvolvimento de uma coexistência pacífica entre os dois blocos. Se neutralizado o principal centro difusor agressivo do imperialismo, as coisas poderiam encaminhar-se para uma confluência, aproximadamente nas linhas previstas pela doutrina do Capitalismo Monopolista de Estado. Esta convergência entre os dois campos eliminaria, por fim, o capitalismo da face da Terra, conferindo também ao socialismo realmente existente uma maior transparência e democraticidade. Nada disso se passou assim, como sabemos. Mas a esperança é atrevida. E teimosa.
A crise capitalista de 1973 deixara as suas mossas. Os E.U.A., batidos no Vietname, pareciam enfraquecidos. A minúscula e assediada Cuba atravessou o Atlântico para lhes infligir (e à África do Sul racista) uma derrota estratégica em Angola! O socialismo era uma força ascendente em todo o sul europeu. A evolução teórica de Poulantzas, inclusive na sua visão estrutural do Estado burguês, refletirá (ainda que impercetivelmente) as modificações que iam ocorrendo na sua perceção das perspetivas estratégicas globais para uma transição ao socialismo. Considerando todo o campo de forças mundial, preferia claramente, sobretudo no que diz respeito à Europa, avanços democráticos graduais a grandes roturas, as quais envolviam também riscos de derrotas catastróficas.
É nessa conjuntura que se dá a sua adesão ao eurocomunismo, na sua ala esquerda (41). Recorde-se que, por essa altura, havia uma vibrante cena intelectual eurocomunista de esquerda, com impecáveis credenciais marxistas, reunindo figuras como Christine Buci-Glucksman (sua colaboradora em Paris-VIII), Lucio Magri, Rossana Rossanda, Pietro Ingrao, Fernando Claudin, Göran Therborn (42). O próprio Louis Althusser participava também, embora de forma desalinhada. Os seus pontos de contato com os eurocomunistas eram a defesa da união de esquerda, da liberdade de discussão e da transparência decisória e organizativa (43). Em Paris, Poulantzas participava de um grupo de reflexão à esquerda, denominado ‘Mélusine’, que reunia intelectuais de espírito independente, do Partido Socialista até à extrema-esquerda, tais como Regis Debray, Robert Fossaert, Alain Joxe, Daniel Lindenberg, Jean-Marie Vincent e Henri Weber. Esteve sempre aberto à rebeldia e à heterodoxia. No ano final da sua vida, eram já bem visíveis e crescentes os sinais que levariam à derrocada de todas as suas esperanças. Margaret Thatcher estava no n.º 10 de Downing Street. Paul Volcker tomara posse como presidente da Federal Reserve Board. Em França campeavam os “nouveaux philosophes”. Mesmo em Paris VIII, o marxismo via-se isolado e os foucaultianos organizavam boicotes às suas aulas.
Depois de ter tentado assim, tão canhestramente, contribuir para a absolvição póstuma de Poulantzas dessa nefanda acusação, vou agora ousar o verdadeiramente impensável: dizer algumas palavras em defesa do reformismo. Contrariamente a uma certa tradição de pensamento que remonta as suas fontes de autoridade sobretudo a Rosa Luxemburgo e Lenine, não existe, sempre e em todas as circunstâncias, uma bifurcação inexorável e irremediável entre reforma e revolução. A existência de bons e honestos reformistas é útil ao progresso social e, em última instância, à revolução. O reformismo social não é o nosso inimigo. O nosso inimigo é a burguesia, com as suas incessantes campanhas de espoliação, a sua eterna pulsão de acumulação “primitiva”. Contra ela, os reformistas podem e devem ser nossos aliados.
O reformismo é um problema para nós apenas em épocas em que a revolução está na ordem do dia, é uma questão premente e inadiável. Aí o reformismo perdeu toda a sua utilidade, limitando-se a espalhar ilusões e desmoralização. É preciso fazer um corte absoluto com ele, demarcarmo-nos dele com todo o rigor, denunciá-lo vigorosamente. Tudo o que Lenine pensou e escreveu, ao logo de toda a sua vida adulta até 1917, foi sob o aguilhão de uma revolução iminente. Numa perspetiva macro-histórica, de uma longa transição ao comunismo, reforma e revolução são irmãos gémeos, preto e branco, yin e yang, cara e coroa de uma mesma moeda lançada ao ar contra a eternidade (44).
É certo que nem sempre é possível adivinhar onde e quando é que a “velha toupeira” vai assomar da próxima vez. Marx e Engels esperaram-na ansiosamente toda a vida. Mas é um pouco tonto, por reverência mimética para com ídolos nossos do passado, sentirmo-nos obrigados a esconjurar o reformismo sempre e em qualquer circunstância. Vejamos pois. Há aqueles de nós (nos quais me incluo, naturalmente) que pensam que a atual ordem social deve ser transformada por meio de uma revolução. E há aqueles que acham que ela deve ser objeto de melhoramentos graduais a cumulativos em favor das classes mais desfavorecidas. Temos muita margem para entendimento com estes, em tempos de calmaria. Nós tentamos acumular forças para forçar uma rotura revolucionária. Eles tentam obter concessões das classes dominantes, para isso apontando para a existência da nossa ameaça. Sem nós, eles serão completamente impotentes. Os mais inteligentes sabem-no bem. Como diz um velho ditado: “uns abanam as árvores e outros apanham os frutos”. Se o conseguirem, é bom para nós. Aumenta a nosso prestígio. Podemos dizer que foi a nossa força, a credibilidade da ameaça revolucionária, que arrancou concessões aos opressores. Mais pessoas se juntam a nós. Cresce a nossa presença e autoridade.
Para que este círculo virtuoso funcione é preciso que os reformistas alcancem resultados concretos. É necessário que da sua ação resultem melhorias tangíveis para a vida das pessoas comuns e que, de alguma maneira, nós apareçamos associados a isso. Ou seja, nós precisamos tanto dos reformistas como eles de nós. Um revolucionário consciencioso tem sempre uma linha coerente de intervenção continuada nos debates e nas lutas políticas dos regimes democráticos burgueses. Nem está excluído à partida que se candidate a funções legislativas ou que assuma mesmo cargos executivos. Na vida política corrente, entendimentos explícitos ou tácitos entre reformistas e revolucionários são uma necessidade evidente. Só quando for inadiável um desenlace revolucionário é que será imperativo cortar relações com os reformistas. Estes passarão então ao campo inimigo, o da defesa da situação.
Um problema adicional resulta do facto de que, na ordem constitucional burguesa, só são admitidos partidos políticos que jurem fidelidade ao conjunto da institucionalidade demoliberal. Na prática, isto significa que, à esquerda no espetro político do regime, vamos encontrar, lado a lado no mesmo partido, reformistas convictos e revolucionários, estes últimos tendo feito juramentos de cristãos-novos. Aos olhos do público (senão deles mesmos) não será evidente quem são uns e outros. À aproximação de uma crise revolucionária, será necessário fazer uma cisão nesses partidos. Não há, nem haverá, provavelmente, na esmagadora maioria dos países, partidos de massas integralmente revolucionários, a quem aplicar o receituário leninista (45).
É impossível formar um partido que se mantenha, por princípio, afastado da vida política corrente (ou com um papel puramente tribunício), por longos períodos, sem que caia na irrelevância. Haverá, quanto muito, um conjunto de seitas rivais, de fraca dimensão, desligadas das massas, que não poderão, por esse facto, aparecer subitamente a conduzir uma revolução vitoriosa e a preencher todos os seus indispensáveis quadros dirigentes e intermédios. No momento em que for necessário lançar a palavra de ordem revolucionária, quem o fizer terá de ser uma voz conhecida e respeitada. Senão ninguém o seguirá, por mais desesperada que seja a situação. Bem mais árduo que lançar anátemas ociosos ao reformismo é resolver este conjunto de questões insofismáveis para uma prática revolucionária real.
A parte V e final do livro aborda o impacto da obra de Poulantzas na América Latina. Para além da colaboração da organizadora Tatiana Berringer, estão presentes, em língua castelhana, os chilenos Leandro Sanhueza Huenupi e Marcelo Rodriguéz Arriagada, por um lado, e os argentinos Mabel Thwaites Rey e Andrés Tzeiman, por outro. Quase todos eles autores jovens. É particularmente interessante a sorte que teve a obra de Poulantzas na América Latina, que é, simultaneamente, uma paisagem geográfica e social periférica mas culturalmente integrada no mundo ocidental. Ele ainda pôde apreciar e colher disso satisfação em vida. No entanto, a sua merecida projeção foi sobretudo póstuma. Para além da indiscutível penetração e capacidade operativa dos seus conceitos, atrevo-me a dizer que isso tem um pouco a ver, precisamente, com a tensão existente na sua obra entre reforma e revolução, institucionalidade e subversão.
A América é um continente estuprado, marcado a ferro e fogo pelo genocídio e pelo esclavagismo. Ainda hoje a construção nacional é aí um processo em curso e a consulta democrática encontra constantemente obstáculos poderosos. O comunismo é uma visão ainda bem distante, porque as forças da agressão, da anomia e da dispersão têm um indiscutível ascendente sobre o holismo e a civilidade (46). Na sua metade de colonização ibérica, a isto acresceram resquícios de mentalidade senhorial na sua classe dirigente. É neste difícil enquadramento que se coloca o problema estratégico da transição ao socialismo.
Para abreviar, vamos passar por cima de toda a primeira metade do século XX e de figuras como Farabundo Martí, Lázaro Cárdenas, Haya de la Torre, Luiz Carlos Prestes, Rómulo Betancourt e Jorge Eliécer Gaitán. Na década de 1950, Cuba tentou com sucesso a via insurrecional. Este enorme acontecimento histórico gerou uma onda de emulação que atravessou verdadeiramente todo o continente, de Porto Rico ao país Mapuche. Apenas foi possível garantir uma única réplica exitosa, na pequena Nicarágua. O resto foram derrotas penosas, com custos bem dolorosos. Alertado, o inimigo criou, com apoio do imperialismo norte-americano, um movimento continental de reação reminiscente do fascismo europeu. Foram os tempos das ditaduras militares e da Operação Condor. A transição socialista foi tentada com inteiro respeito pela institucionalidade burguesa, pela Unidade Popular, no Chile, sob a presidência de Salvador Allende, em 1970-73. As consequências deste terrível erro foram ainda mais trágicas, se possível.
A via mais promissora, mas ainda bem longe de provada, é agora a que foi encetada por Hugo Chávez na Venezuela e por Evo Morales na Bolívia, na viragem para este século. Ela combina a luta de massas, o acesso ao poder pela via constitucional burguesa e uma subsequente transformação aprofundada do Estado. Não a sua destruição, decerto. Estamos muito distanciados ainda do socialismo. Mas a construção nacional-democrática conheceu avanços indiscutíveis, contra a oligarquia compradora, o racismo e o imperialismo. Poulantzas teria aprovado, sem a menor hesitação (47). Tão só isto já é fruto de lutas duríssimas, que neste momento estão a ser perdidas no Equador, no Peru, no Chile, em El Salvador, no Paraguai, no Uruguai e na Argentina. Muitas dificuldades persistem no México, Honduras, Nicarágua, Guatemala, Colômbia e Brasil.
Temos que ir constantemente à brecha, de forma organizada. Subvertendo todos os interstícios estatais. Retemperando todos os nódulos de condensação das relações de força sociais. Utilizando todos os mecanismos legais e forçando continuamente o seu alargamento em nosso favor. Atuando para lá deles, sempre que oportuno e justificado. Abrigando-nos sob a sua proteção, em caso de necessidade. Guerra de posições, sempre. Ofensiva e defensiva. Guerra de movimento, quando possível sem riscos incomportáveis. Vamos assim acumulando forças e consciências, dentro e fora do Estado. Preparando um momento de rotura revolucionária que nos permita um grande salto em frente, com um alargamento decisivo dos espaços de deliberação e execução democrática – direta ou por representação - sobre todos assuntos de interesse público e na produção e distribuição da riqueza social.
O Estado, sob a capa de uma mudança de regime político, pode até manter alguns aparentes traços de continuidade democrática. Na verdade, foi destruído e substituído por um outro, o dos trabalhadores associados. Será um pouco como na teoria do equilíbrio pontuado na evolução das espécies animais (48). A acumulação de mutações quantitativas dá subitamente origem a um salto qualitativo. Quando as sociedades humanas superarem, enfim, a divisão em classes, o Estado deperecerá. A nossa melhor ciência indica que este será uma “espécie” em extinção. Não corresponderá, porventura, a mais que uma fugaz anomalia, considerada toda a extensão da história da humanidade.
O imperialismo está a ser enfraquecido por causas internas e por um conjunto de choques político-militares que lhe foram desfavoráveis, ocorridos sobretudo noutros continentes. Não tem recursos suficientes – humanos, industriais, sequer financeiros - para sustentar a constante pressão intimidatória e destrutiva que se vê obrigado a manter sobre as suas fronteiras. Corre assim o risco de colapsar sobre si próprio. Mas a luta contra as oligarquias compradoras e as burguesias dependentes na América Latina (e alhures) é difícil e renhida (estamos agora a descobri-lo) mesmo com o imperialismo debilitado. A selvajaria do “espírito americano” continua muito presente nas massas populares. Isso e a praga das igrejas neopentecostais fazem com que vastas porções delas alinhem ideologicamente contra os seus interesses objetivos. Há muito trabalho a fazer, com cólera, método e paciência. E mais paciência. Nos campos e nas cidades. Em todos os bairros, em todos os locais de trabalho. Concentrar os nossos esforços numa estratégia de duplo poder e num plano de assalto frontal único é completamente irrealista neste momento histórico. É viver agarrado ao mundo dos livros. Quem fez trabalho revolucionário sério e continuado ao longo das últimas décadas – vem-me à cabeça João Pedro Stédile – sabe bem que não é assim que as coisas se passam no mundo real.
Tatiana Berringer faz uma exposição do que é a “Escola de Campinas” de análise da história socio-política brasileira e como ela recorre, de forma central, a conceitos poulanzianos, em especial os de bloco no poder, fação burguesa e burguesia interna. Embora não tenha apresentado uma periodização nova para a história política brasileira, a Escola de Campinas cunhou e utilizou novas chaves interpretativas, que a distinguem de outras abordagens canónicas no marxismo brasileiro, como as do PCB, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso/Enzo Faletto ou Ruy Mauro Marini. Embora com outro instrumental, as suas conclusões aproximam-se mais das de Jacob Gorender. São matérias de que tomei nota atentamente, mas onde não me sinto à vontade para emitir opinião própria.
Leandro Sanhueza Huenupi e Marcelo Rodriguéz Arriagada distinguem três fases na receção de Poulantzas na América Latina, cada uma com o seu enfoque problemático específico: 1) do final dos anos 1960 até aos anos 1970, com as ditaduras militares; 2) do final dos anos 1970 até à entrada dos anos 1990; 3) no novo século até à atualidade. Começou a ser publicado em Cuba ainda em 1967, na revista Pensamiento Crítico. Poder político y clases sociales é publicado pela editora Siglo XXI, no México, em 1969. Também ainda pertencente à primeira fase esteve a única ocasião em que Poulantzas esteve na América Latina, para participar num seminário no México, em dezembro de 1971, evento muito marcado pelo processo chileno da Unidad Popular. Foi aí confrontado por Fernando Henrique Cardoso (49), José Calixto Rangel Contla e Manuel Castells. Na segunda fase, valorizou-se sobretudo o livro Fascismo e Ditadura e a questão da passagem ao socialismo por uma via democrática e nacional-popular. Poulantzas aparece muito associado a Gramsci em torno do conceito de hegemonia. Avultam sobretudo as leituras feitas pelos argentinos Ernesto Laclau, Emilio de Ípola e José Aricó e pelo mexicano Carlos Pereyra. O terceiro período é já marcado pela denominada maré rosa, com a guinada à esquerda de diversos governos sul-americanos na sequência da revolução bolivariana. Agora o livro favorito é O Estado, o Poder, o Socialismo e o seu defensor principal é o boliviano Álvaro García Linera.
Mabel Thwaites Rey e Andrés Tzeiman encerram este volume com novo artigo que retraça alguns percursos da presença latino-americana de Poulantzas, ligados aos sucessivos ciclos políticos que atravessaram a região. Neste milénio, um especial destaque final é dado à via democrática ao socialismo, exposta em O Estado, o Poder, o Socialismo. Contra o fundamentalismo do duplo poder, a tecnocracia social-democrata ou o autonomismo libertário anti-estatal, surge esta aposta numa modificação das relações de força no seio do próprio Estado – pelos canais institucionais correntes, pela luta de massas e por iniciativas autogestionárias e de democracia direta - , que conduza, a dado passo, a um momento de rotura em direção a um poder inteiramente novo. Esta foi a última esperança do grego afrancesado, cidadão do mundo Nicos Poulantzas. A paz esteja com ele, que caiu. A fúria incessante e metódica nos acompanhe a nós, que persistimos em vida, em todas as longas batalhas que nos esperam. Como pregou William Blake:
I will not cease from Mental Fight, Nor shall my sword sleep in my hand
Não desertarei na Luta Mental, Nem a minha espada dormirá na minha mão.
(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica O Comuneiro. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente Vértice, Última Geração e Política Operária. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000 e Outro Mundo, Estratégias Criativas, Porto, 2019 e Lutas Anticapital, Marília-SP, 2021, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.
___________ NOTAS:
(1) Às primeiras horas de 25 de abril de 1974, após a passagem da senha radiofónica, o capitão Salgueiro Maia, mandou levantar e reunir os homens sob seu comando na maior sala do quartel da Escola Prática de Cavalaria de Santarém. Tomando a palavra, tentou convencê-los da necessidade de derrubar o velho e carcomido regime fascista português. Para não parecer demasiado solene, dentro de um certo espírito de caserna, disse-lhes por fim: - Como devem saber, há vários tipos de Estado: o liberal, o social-democrata, o socialista. Mas o pior de todos eles, é o Estado a que chegamos. Quem discordar disto, não é obrigado a seguir-nos. Ninguém quis ficar para trás. Cf. Salgueiro Maia, Capitão de Abril, Editorial Notícias, Lisboa, 1995, p. 87.
(2) Sem dúvida devido a esta opção, a sua herança intelectual foi reivindicada pelo partido da nova esquerda Synaspismos, depois fundido no Syriza. Em consequência, o Instituto Poulantzas é hoje um think tank desta mais do que falida agremiação social-democrata, que obviamente nada tem que ver com o seu pensamento e as suas aspirações.
(3) Todas as informações biográficas usadas neste artigo, nestes parágrafos iniciais ou mais adiante, foram colhidas em Bob Jessop, Nicos Poulantzas. Marxist Theory and Political Strategy, MacMillan, 1985, em espacial no capítulo 1 “The life and times of Poulantzas”, pp. 3-24.
(4) Leia-se Terrains/Théories, N.º 18, 2024, Actualité et inactualité de Nicos Poulantzas, editado por Ioanna Bartsidi, Yohann Douet e Matteo Polleri.
(5) Poder Político e Classes Sociais foi publicado em dois volumes, pela Portucalense Editora, do Porto, em novembro de 1971, numa tradução de Francisco Silva. A mesma tradução seria reeditada num só volume, pela Dinalivro, de Lisboa, em janeiro de 1977, agora com o título retocado de Poder Político e as Classes Sociais. Em ambos os casos, na folha de rosto, ao título foi acrescentado “do Estado Capitalista”. A mesma Portucalense Editora publicou Fascismo e Ditadura em julho de 1972, numa tradução de João G. P. Quintela. A crise das ditaduras foi publicado pela Editorial Presença, de Lisboa, em outubro de 1975, numa tradução de Maria do Carmo Cary. O Estado, o poder, o socialismo foi publicado por Moraes Editores, Lisboa, em novembro de 1978, numa tradução de José Saramago. Alguns outros volumes coletivos com participação de Poulantzas foram também publicados nesta mesma década. A única exceção (com um desvio muito ligeiro) é Alan Hunt e Nicos Poulantzas, Classes e Estrutura das Classes, Edições 70, Lisboa, 1982, que reúne contribuições a uma conferência organizada em 1976 pelo Grupo de Sociologia do Partido Comunista da Grã-Bretanha.
(6) Quando o próprio autor destas linhas participou no Colóquio Marx e Engels de 2005, ficou graciosamente alojado num simpático condomínio fechado. No evento, a camaradagem era esfusiante, quase irreal de tão edénica. Vinham à memória os versos de Zeca Afonso: “Em cada esquina um amigo”. No entanto, quando me propus conhecer a cidade de Campinas, isso foi-me vivamente desaconselhado. É outro mundo. Tem muita malandragem aí, cara! Senti nos meus hospedeiros uma viva e solícita inquietação pela segurança deste ingénuo alienígena, ali aportado das longínquas e apaziguadoras paisagens do Velho Continente.
(7) Cf. Bob Jessop, Nicos Poulantzas (ob. cit.), pp. 14-15. Para mais pormenores sobre a relação pessoal e intelectual entre Poulantzas e Althusser, com extensa investigação testemunhal e documental, leia-se Anthony Crézégut, “Le maître et l’élève”, Terrains/Théories, N.º 18, 2024. O título do artigo é enganador (talvez irónico). O que ressalta é uma relação muito complexa, por vezes abertamente contenciosa.
(8) Uma coleção completa desta revista pode ser hoje consultada em linha nos Archives Critiques du Droit. Nas margens da minha própria Alma Mater, a sombria Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ainda no rescaldo da revolução de abril, esse movimento foi acompanhado, tendo expressão, nomeadamente, na publicação da coleção “Pespectiva Jurídica” da revolucionária editora Centelha (Iskra), animada por Alfredo Soveral Martins (certamente um dos mais inconvencionais docentes que aquela escola já conheceu na sua história multissecular). Aí se publicou, entre outros, Pachukanis, Stucka, Edelman. Do catalão Juan Ramón Capella (recentemente falecido, ainda há pouco ativo redator da revista mientras tanto), traduziu-se um título tão cativante, para um jovem estudante, como Sobre a extinção do direito e a supressão dos juristas. O produto intelectual mais acabado surgido desta incubação intelectual, para além de algumas páginas admiráveis de Orlando de Carvalho, seria a tese de doutoramento de Henrique Seixas Meireles, Marx e o direito civil: para a crítica histórica do "paradigma civilístico", Almedina, Coimbra, 1990. Aqui pela Europa tudo isto são hoje saudosas memórias de outros tempos. Felizmente, no Brasil, esta reflexão tem continuado a produzir os seus frutos já bem dentro deste século, de que são exemplos o trabalho de Márcio Bilharinho Naves e o dossier “A crítica pachukaniana do direito” na revista Crítica Marxista, n.º 52 (2021), apresentado pelo próprio Thiago Barison.
(9) Procurei demonstrar isso mesmo em Ângelo Novo, “Democracia, capitalismo e revolução”, publicado em duas partes na revista O Comuneiro (março e setembro de 2016), incluído em Outro Mundo, Estratégias Criativas, Porto, 2019 e Lutas Anticapital, Marília, 2021.
(10) V. Armando Boito Jr., “Porque caracterizar o bolsonarismo como neofascismo?”, Crítica Marxista, n.º 50, p. 114.
(11) A obra fundamental e insubstituível é G. E. M. de Ste. Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek World, Cornell University Press, New York, 2010. Leia-se também M. I. Finley, Economia e Sociedade na Grécia Antiga, Martins Fontes, São Paulo, 1989.
(12) Leia-se Benjamin Isakhan e Stephen Stockwell (eds.), The Secret History of Democracy, Palgrave Macmillan, New York, 2011. A obra clássica aqui é a do filipino Raul S. Manglapus, Will of the People: Original Democracy in Non-Western Societies, Greenwood Press, Westport, 1987.
(13) Leia-se, por todos, Michael Hudson, The Destiny of Civilization: Financial Capitalism, Industrial Capitalismo or Socialism, Islet Verlag, 2022.
(14) Para a genealogia da ideia liberal, leia-se Andrea Zhok, Critica della ragione liberale, Meltemi, Milano, 2020. Para o seu percurso político, leia-se o magistral Domenico Losurdo, Contra-História do Liberalismo, Ideias & Letras, São Paulo, 2015 (2ª edição).
(15) Leia-se Fernando Rosas, Salazar e os fascismos. Ensaio breve de história comparada, Tinta da China, 2019.
(16) Leia-se Seymour Hersh, “How America Took Out The Nord Stream Pipeline”.
(17) Sobre a construção, arquitetura e resistência do sistema imperial norte-americano, a obra clássica é Leo Panitch e Sam Gindin, The Making of Global Capitalism, Verso Books, London-New York, 2013.
(18) Nesse sentido, vejo-me obrigado a precisar, senão mesmo a corrigir, a opinião ainda dubitativa e condicional que, em agosto de 2004 (na sequência da invasão do Iraque), exprimi em “Notas sobre o estado actual da questão imperialista” in Outro Mundo, Estratégias Criativas, Porto, 2019, pp. 69-84. Anteriormente, expressara uma posição ainda mais decididamente leninista em “O ultra-imperialismo revisitado”, reunido em O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000, pp. 57-71. Afinal, tenho de reconsiderar. Mas não é porque tivesse havido transnacionalização do capital ou porque os imperialismos tivessem se congraçado harmoniosamente. Simplesmente, eles colapsaram uns sobre os outros sob o domínio agressivo dos E.U.A.. Chirac e Schroeder (que já não eram De Gaulle nem Willy Brandt) não têm equivalente na atualidade. É impressionante a velocidade com que se degradou a autonomia política europeia, com reflexo da qualidade intelectual e fibra moral dos seus dirigentes.
(19) Opinião que começou a ser defendida em Samir Amin, L’empire du chaos, L’Harmattan, Paris, 1991, p. 8-9. De forma independente, foi também teorizada e sustentada empiricamente por Kees van der Pijl e William I. Robinson, entre outros.
(20) Nicos Poulantzas ocupou-se longamente das relações E.U.A.-Europa no pós-guerra em Les classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui, Seuil, Paris, 1974 e A crise das ditaduras, Presença, Lisboa, 1975.
(21) Leia-se, por exemplo, Michel Albert, Capitalismo contra Capitalismo, Livros do Brasil, Lisboa, 1992, onde se contrasta o “modelo neo-americano”, individualista e imprevidente, com o “modelo renano”, que privilegia a concertação social e o planeamento a prazo.
(22) No entanto, quanto à China Popular, essa caraterização é vivamente contestada, com argumentos que merecem ponderação, e cuja correta avaliação vai depender, em grande medida, da sua evolução futura. Leia-se, por exemplo, Rémy Herrera e Zhiming Long, A China é Capitalista?, Página a Página, Lisboa, 2019. Domenico Losurdo, Samir Amin, Michael Hudson, Prabhat Patnaik e John Bellamy Foster (todos eles autores que muto consideramos) manifestaram também a sua opinião aberta à expetativa de um futuro desenvolvimento no sentido da consolidação de uma via socialista.
(23) Leia-se, sumariando a questão, ainda que de um ponto de vista notoriamente tingido pelos habituais preconceitos russófobos ocidentais, Renfrey Clarke e Roger Annis, “Perpetrator or victim? Russia and contemporary imperialism”. Para maiores desenvolvimentos, ler Radhika Desai, Alan Freeman e Boris Kagarlitsky (eds.), Russia, Ukraine and Contemporary Imperialism, Routledge, 2019.
(24) Leia-se, quanto à China Popular, Minqi Li, “China: Imperialism or Semi-Periphery?”, Monthly Review, Volume 73, N.º 3 (Julho-Agosto de 2021). A Rússia é muito mais autárcica e menos exportadora do que a China. Aprendeu a ser autossuficiente com o longo assédio sancionatório do Ocidente. Não terá, certamente, um largo benefício de trocas desiguais com o exterior.
(25) Leia-se a monumental obra de Hal Draper, Karl Marx’s Theory of Revolution, em quatro volumes, Monthly Review Press, New York, 1977 a 1990.
(26) Numa altura em que ainda acreditava na possível emergência de uma “esquerda de Porto Alegre” (a exemplo da de Zimmerwald), escrevi um pequeno ensaio culminando com um conjunto de ideias programáticas. V. Ângelo Novo, “Que outro mundo é possível?”, em O Comuneiro, n.º 7, março de 2007.
(27) Leia-se Nicos Poulantzas, Poder Político e as Classes Sociais, Dinalivro, Lisboa, 1977, pp. 418-430.
(28) O caráter objetivo do domínio classista estatal foi talvez o principal ponto de discórdia no debate que Poulantzas manteve com Ralph Miliband nas páginas da revista inglesa New Left Review. Leia-se Nicos Poulantzas e Ralph Miliband, Debate sobre o Estado Capitalista, Afrontamento, Porto, 1975. Na verdade, Miliband estava bem consciente dessa objetividade, mas o seu método de exposição tingido pelo empiricismo britânico e particulares objetivos polémicos que perseguia na altura fizeram-no parecer mais instrumentalista do que era na realidade. Leia-se Ralph Miliband, O Estado na Sociedade Capitalista, Vols. I e II, Editorial Presença, Lisboa, 1977.
(29) V. Angela Lazagna, “Outro Mundo – Ângelo Novo”, Crítica Marxista, n.º 52, ano 2021, pp. 175-177. A autora apreciava, nesse ponto, o meu ensaio “Democracia, capitalismo e revolução”, atrás citado (nota 9), também publicado, em duas partes, na revista O Comuneiro, no n.º 22 e no n.º 23.
(30) O meu bater de porta em relação ao PCP, na sua atual configuração político-doutrinal, está em Ângelo Novo, “PCP: o estado das coisas” e Ângelo Novo, “PCP: o legado de Cunhal”. Tendo sido, durante quinze anos, colaborador regular da revista Política Operária, absorvi, em parte, a crítica de Francisco Martins Rodrigues, de quem fui amigo e companheiro. No mais, limitei-me a trabalho de restauro de acordo com o marxismo clássico. Nunca fui “m-l”.
(31) Leia-se Louis Althusser, “Conferência sobre a ditadura do proletariado” (1976), Lutas Sociais, Vol. 18, n.º 33, p. 39. Althusser estava, claramente, mal informado. Este congresso do PCP não foi o X, mas o VII. Não se realizou na clandestinidade, mas em outubro de 1974, alguns meses após a revolução de abril. Dispomos de informação acessível sobre esse congresso e a referida intervenção está publicada na íntegra. V. Álvaro Cunhal, “A situação política e as tarefas do partido no momento actual”. A passagem citada está entre os parágrafos finais, justificativos das mudanças estatutárias e programáticas propostas que seriam, naturalmente, prontamente aprovadas.
(32) V. Crítica Marxista, n.º 54 (ano 2022), pp. 127-129.
(33) Álvaro Cunhal defendeu, durante trinta anos, a tese do derrubamento do fascismo português por meio de um levantamento nacional, o que ele expôs de forma mais acabada em Rumo à Vitória (datiloscrito, 1964). Enganou-se. O regime efetivamente desagregou-se internamente, uma expetativa que ele sempre criticou asperamente. Leia-se Álvaro Cunhal, “O desvio de direita nos anos 1956-1959”. Por causa disso, deu um combate feroz ao seu rival político interno Júlio Fogaça, que foi repetidamente humilhado e, por fim, remetido ao opróbrio pessoal e ao ostracismo, para sempre, apesar da sua longa, abnegada e imaculada folha de serviços revolucionários. Por fim, o fascismo foi efetivamente derrubado por um golpe militar clássico, dirigido por oficiais intermédios experientes de um conjunto de guerras perdidas em África. O povo saiu à rua depois, em festa. O golpe militar teve imediatamente uma grande adesão popular, sem dúvida. Mas isso não faz dele uma revolução popular, que deixaria outro tipo de marcas nas relações sociais de poder. O PCP aproveitou a liberdade política assim aberta para reunir à luz do dia um congresso extraordinário, onde apressadamente riscou a ditadura do proletariado do seu programa. Porquê nesta ocasião? Na clandestinidade, o PCP previa um levantamento popular e tinha inscrita no seu programa a ditadura do proletariado. Derrubada a ditadura fascista, por ação de outros, o PCP logo pressurosamente se desfaz dessa expressão programática, para evitar embaraços no debate político legal. Mas não deixou de tentar fazer algum uso do receituário da “revolução democrática e nacional”, em especial a proclamada “destruição do Estado fascista”. Foi assim que denominou, algo pomposamente, a tomada por assalto de lugares no aparelho de Estado existente, que lhe seriam aliás retomados, com firmeza, pouco tempo depois. Em resposta a sucessivas arremetidas contrarrevolucionária (de motivação sobretudo neocolonial), o país conheceria em seguida uma situação efetivamente revolucionária. Vastas massas populares urbanas criaram espontaneamente alguns mecanismos embrionários de poder paralelo. O PCP não se envolveu minimamente com isso. Mas tinha apreço pelas nacionalizações e pela reforma agrária. Pactuou, enfim, com o thermidorismo de 25 de novembro de 1975, segundo ufana admissão do seu próprio secretário-geral. Ver Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, Avante!, Lisboa, 1999, p. 228-229. A revolução decidiu-se entre homens fardados. Nesse particular, Vasco Gonçalves e a “esquerda militar” atuaram sempre de forma completamente autónoma. A avaliar pelas suas declarações da época (folheie-se, ao acaso, os vols. VI e VII das suas Obras Escolhidas, Avante!, Lisboa, 2015-2023, com intervenções dos anos de 1976 e 1977), Cunhal não se apercebeu de que a revolução tinha terminado por ali. Julgou, porventura com alívio, que se livrara, enfim, de movimentações populistas improvisadas e de “esquerdalhos”, estando o palco nacional pronto para se fazer uma ordeira transição ao socialismo, entre democratas e gente séria, no quadro constitucional. Com o benefício do conhecimento posterior, isto parece-nos agora algo faceto. Valha a verdade, porém, que, nestes mesmos anos, esperanças desse tipo eram partilhadas também por Poulantzas (para a França e para a Grécia), que era um homem de outra geração, com uma formação política e cultural muito diversa. Cunhal não tinha um temperamento revolucionário. Para concluir isso, basta observar atentamente a sua linguagem corporal e compará-la com a de Lenine, Castro, Machel, entre outros. Houve ainda uma outra razão porque, após alguma hesitação, ele embarcou, enfim, na aquietação político-militar novembrista. Ele não acreditava que fosse possível em Portugal, dada a debilidade da sua burguesia, uma democracia liberal do tipo ocidental, sob o domínio económico dos monopólios. A situação resolver-se-ia, assim, inevitavelmente, no seu entendimento, seja por um retrocesso ao fascismo monopolista (que ele achava que os militares do “grupo dos 9” não permitiriam), seja por um avanço em direção a uma democracia popular antimonopolista de novo tipo. Leia-se David Martelo, 25 de Abril. Do golpe militar à revolução na forma tentada, Edições Sílabo, Lisboa, 2020, pp. 225-238. Enganou-se novamente. E assim se tornou, involuntariamente, num dos principais fundadores do atual regime político português, no qual não acreditava. Por cruel que possa parecer dizê-lo, a revolução de abril apanhou de surpresa e, com a possível exceção regional do Alentejo, acabou por passar praticamente ao lado do PCP. Desde então, ao longo de cinquenta anos, em erosão e envelhecimento constantes, este partido tem apenas procurado vender o mais caro possível sucessivas e cada vez mais graves derrotas e recuos, políticos e sociais, enquanto vai sempre incitando, de punho no ar, a avançar, avançar, avançar. Como mais destacado e inapreciável mérito tem tido, enfim, o de nunca se ter rendido ao imperialismo e ao ar dos tempos para procurar tornar-se mais interessante.
(34) Os motivos para a brutal morte que Poulantzas infligiu a si próprio são desconhecidos e vão continuar a sê-lo. Aparentemente, a causa (ou consequência?) da sua depressão tinha a ver com dúvidas e, por fim, uma autoavaliação negativa sobre o valor da sua obra. Algumas informações muito interessantes são dadas numa entrevista de Michael Löwy de março de 2015. Leia-se “Michael Löwy: The Nicos Poulantzas I knew”. Outras possíveis causas que podem ter contribuído para o estado depressivo de Poulantzas – incluindo desilusões políticas, desgostos académicos e problemas familiares - são esmiuçadas no livro de Christopher Wilkes, A Biography of the State, que não li.
(35) Leia-se, por exemplo, uma das suas últimas entrevistas em Rafael Khachaturian, “The Loss of Nicos Poulantzas: The Elusive Answer”.
(36) Leia-se Manuel Azcárate (um participante), “What is Eurocommunism?”, Marxists Internet Archive.
(37) A ideia de policentrismo (que remonta a declarações de Palmiro Togliatti em 1956) como central ao eurocomunismo é realçada em Lawrence Gray, “Eurocommunism: a brief political-historical portrait”.
(38) Leia-se “Western Europe: The Decline of Eurocommunism. An Intelligence Assessment”.
(39) O Poulantzas frentista tem a sua máxima expressão num volume coletivo que organizou e prefaciou para as Presses Universitaires de France em 1976. Leia-se Nicos Poulantzas (dir.), A Crise do Estado, Moraes, Lisboa, 1978 (tradução de José Saramago). Trata-se, claramente, de um trabalho político de reflexão no âmbito da “união de esquerda”.
(40) Leia-se Nicos Poulantzas, A crise das ditaduras. Portugal, Grécia, Espanha, Editorial Presença, Lisboa, 1975. Esta edição, seguindo o original francês da Maspero desse mesmo ano, analisa os acontecimentos apenas até fevereiro de 1975. De fora ficou, assim, toda a maré alta da revolução portuguesa, que decorreu entre 11 de março e 25 de novembro de 1975. Numa segunda edição do livro, Poulantzas acrescentou-lhe um extenso posfácio intitulado “De março de 1975 a junho de 1976”. Este documento é extremamente curioso, sobretudo no que respeita a Portugal (os outros países são tratados muito sumariamente), onde, aliás, permanece inédito. Leia-se Nicos Poulantzas, The crisis of the dictatorships. Portugal, Greece, Spain, New Left Books, London, 1976, pp. 134-162. O objetivo do posfácio é, claramente, tentar defender, face à exuberância dos acontecimentos revolucionários portugueses do ano transato, a sua tese de que o que estava em causa, nestes três processos, era apenas uma transição democrática, que não podia desenvolver-se sem solução de continuidade numa transição ao socialismo. O máximo que podia estar em causa era uma eventual hegemonia popular no processo de democratização. Mesmo isso, porém, revelou-se ser uma impossibilidade, entre outras razões por falta de um partido que conduzisse a revolução nesse sentido. Em novembro de 1975, a burguesia lusitana tomou definitivamente as rédeas da situação, que lhe escapara do controlo apenas por um breve período. A demonstração é convincente. Poulantzas revela ter-se informado bem sobre os acontecimentos, evitando alguns erros factuais comprometedores que polvilham a sua exposição sobre o processo português no corpo principal do livro. O autor continua a acreditar na revolução socialista. Simplesmente, na sua análise implacavelmente lúcida e realista, achava que este não era o seu tempo e lugar. A tragédia do Chile estava bem presente. O comunismo grego tinha também atrás de si todo um rosário de pesadas derrotas em 1936, 1944, 1946-49 e 1967.
(41) As inferências que tirei quanto à evolução teórica de Poulantzas a partir dos seus dados biográficos disponíveis são inteiramente da minha responsabilidade. Sobre o eurocomunismo de esquerda leia-se Yoahann Douet, “L’eurocommunisme, Gramsci et les althusseriens”, Décalages, Volume 2, Issue 1, 2016 e, de uma perspetiva crítica trotskista, Philip Spencer, “The ‘left’ face of Eurocommunism”, International Socialism, Summer 1979.
(42) Deste último, leia-se What does the ruling class do when it rules?, New Left Books, London, 1978, uma ambiciosa tentativa de criação de uma teoria do Estado abrangendo os modos de produção feudal, capitalista e socialista. Procurou ir mais longe, diacronicamente, do que Poulantzas se julgou habilitado a tentar.
(43) A posição dos althusserianos dentro do comunismo francês à época pode ser escrutinada em Louis Althusser, O 22.º Congresso, Estampa, Lisboa, 1978, Louis Althusser, O que não pode mais perdurar no Partido Comunista Francês, Editora Vega, 1978, Marxists Internet Archive e Étienne Balibar, Sobre a ditadura do proletariado, Moraes, Lisboa, 1977. Novamente uma tradução de José Saramago. Depois de despedido da direção do Diário de Notícias, na contrarrevolução, Saramago ganhava a vida fazendo traduções. Mas devia ter algum poder de escolha sobre elas. É, sem dúvida, significativo que ele tenha traduzido esta obra de Balibar nesta conjuntura política, três anos depois de o PCP, assomando da clandestinidade, em antecipação ao PCF, ter retirado a ditadura do proletariado do seu programa. Por alguma razão Álvaro Cunhal o considerava “esquerdista”.
(44) Para um conspecto bastante sumário, abrangendo os últimos trezentos anos de história mundial, leia-se Thomas Piketty, Uma breve história da igualdade, Temas e Debates, Lisboa, 2022. Este é, aliás, um bom exemplo de um autor reformista com o qual vale bem a pena manter diálogo intelectual.
(45) Sou insuspeito de qualquer desrespeito para com Lenine, que para mim é um titã histórico incomparável (e inimitável). Procurei fazer dele uma espécie de autobiografia intelectual inautorizada e muito inconvencional, nas partes II e III da minha série ensaística “Outubro e nós”, O Comuneiro, n.os 26 e 27, março e setembro de 2018.
(46) Para o espaço norte-americano, leia-se Mike Davis, Prisoners of the American Dream, Verso Books, London-New York, 2007.
(47) Porventura, tiraria também alguma justificada satisfação por se ver reconhecido como inspirador de alguns destes projetos. Leia-se Álvaro García Linera, “El Estado y la vía democrática al socialismo”, Nueva Sociedad, n.º 259, Septiembre - Octubre 2015.
(48) V. Stephen J. Gould, Quando as galinhas tiverem dentes (Hen’s teeth and horse’s toes), Gradiva, Lisboa, 1989, em especial pp. 183-248.
(49) A sua apresentação aí feita, bem como a crítica de Fernando Henrique Cardoso (ao seu althusserianismo) podem ser lidas em Nicos Poulantzas, Teoria das classes sociais, Escorpião, Porto, 1976.
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