![]() |
|||||
|
O Marx teológico de Enrique Dussel
Carlo Formenti (*)
Argentino de Mendoza, filósofo e expoente máximo da Teologia da Libertação, o quase nonagenário Enrique Dussel ensina Ética na UNAM na Cidade do México depois de ter vagueado entre várias universidades europeias (Madrid, Paris, Friburgo) e trabalhado durante dois anos num kibbutz israelita. Uma parte conspícua da sua monumental produção intelectual é dedicada a uma meticulosa exegese do texto marxista, que Dussel concebe como uma espécie de teologia oculta, entrelaçada e escondida atrás dos argumentos da crítica da Economia Política, numa mistura inextricável de análise científica e juízo ético sobre os males da civilização capitalista. Entre os textos traduzidos para italiano, gostaria de mencionar L'ultimo Marx (O derradeiro Marx) (Manifestolibri, Roma 2009) e Le metafore teologiche di Marx (As Metáforas Teológicas de Marx) (Shibboleth, Roma 2018). A influência da Teologia da Libertação em geral (1) e de Dussel em particular nos processos revolucionários latino-americanos das últimas décadas é inegável, ao ponto de, sem conhecer algumas das suas ideias fundamentais, ser difícil apreender o significado do processo político que na América Latina é comummente designado pelo nome de socialismo do século XXI, tal como é difícil compreender as razões porque os partidos marxistas tradicionais (sejam estalinistas, trotskistas ou maoístas) não têm estado ao leme dos processos em questão. É por isso que considero útil complementar a análise que o meu último livro (2) dedica às revoluções bolivarianas com este artigo sobre o pensamento de Dussel. Tratarei aqui, em particular, de As Metáforas Teológicas de Marx.
1. A formação teológica de Marx
A tese básica de Dussel é que as inúmeras citações do Antigo e do Novo Testamento que podem ser encontradas em todas as obras de Marx, tanto juvenis como maduras (aquilo que Dussel denomina como metáforas teológicas), não são meros dispositivos retóricos servindo apenas para clarificar conceitos filosóficos que não são fáceis de ler, mas compõem antes a trama de uma verdadeira "teologia negativa", uma estrutura ética e não apenas heurística, portanto, que tem como objetivo a desmistificação do culto fetichista do deus-capital. Onde Marx, seguindo os passos de Feuerbach, define a religião como o "ópio do povo", argumenta Dussel, o verdadeiro alvo não é a religião judaico-cristã, mas a sua versão secularizada, hibridizada e bastardizada pelos princípios e valores da Economia Política burguesa, purgada da carga subversiva do profetismo judeu e do cristianismo primitivo. Mas se o de Marx é um ateísmo sui generis, escreve Dussel, isto não significa que o filósofo de Trier seja autor de uma teologia alternativa. O seu pensamento “religioso” não vai de facto além do horizonte dessa utopia antropológica que é o comunismo realizado. Antes de aprofundar estes conceitos, porém, devemos seguir Dussel na sua tentativa de definir as fontes das quais Marx teria extraído o material para a sua teologia negativa, fontes que Dussel retraça até às experiências formativas do jovem Marx.
Depois de recordar que Marx se tinha preparado para se tornar professor associado do teólogo Bruno Bauer, um expoente máximo da esquerda hegeliana, e que na sua história familiar tinham existido muitos rabinos (embora o seu pai, ao contrário da sua mãe, se tivesse convertido ao cristianismo), Dussel acrescenta que, em criança, Marx frequentou um seminário luterano em Tubingen, conhecido pela sua proximidade com a corrente pietista. Dussel insiste fortemente nesta marca pietista, que, na sua opinião, não teve pequena influência sobre as ideias que o filósofo desenvolveria durante a sua vida posterior. Em particular, argumenta Dussel, Marx teria herdado do pietismo a prioridade da praxis (Spener, o fundador do pietismo alemão, disse que "a realidade da religião não consiste em palavras, mas em atos"); a valorização e o reconhecimento da dignidade do corpo, da carne (o sacrifício não é um sintoma de santidade, mas da falsidade dos deuses que estão a ser adorados); a busca de justiça aqui na terra, porque é da injustiça que nasce o mal, pelo que as necessidades dos que sofrem devem ser satisfeitas aqui e agora; finalmente, a profecia do advento de uma sociedade perfeita, de uma nova idade de ouro (3).
Antes de se tornar socialista, escreve Dussel, Marx era um pequeno-burguês democrático radical que lutou pela liberdade contra o autoritarismo do Estado prussiano, e criticou as igrejas que tinham fomentado a confusão entre o Estado policial e a religião cristã (4), baseando a sua crítica tanto na tradição do profetismo judeu como na dos Padres da Igreja e dos teólogos medievais. A rotura com esta tradição, segundo Dussel, deve-se ao ponto de viragem a partir do qual a Igreja começou a distinguir entre usura e juro, a primeira como um vício de ganância desenfreada, a segunda como uma busca legal de lucro. Foi nesse momento que se abriu a porta à colonização da religião pelo capital, enquanto que mais tarde seriam os pais fundadores do liberalismo moderno a consagrar a santidade da propriedade no contexto de um utilitarismo "cristão" (Locke) e a sacralizar a concorrência no mercado, reconhecendo nela um campo teológico providencial (a mão invisível de Adam Smith). A "teologia negativa" do socialista Marx desmascara estes falsos profetas, revelando o rosto obsceno do deus que adoram.
2. O ateísmo como uma crítica ao fetichismo
Dussel não tem dúvidas: o conceito de fetichismo - fetichismo de mercadorias, fetichismo do dinheiro, fetichismo do capital - é o fio vermelho que solda toda a obra de Marx, desde os Manuscritos Económico-Filosóficos até à última redação de O Capital (5), num único bloco monumental, e este fio vermelho é tecido com fibras analítico-filosóficas e ético-religiosas, numa trama inextricável. O fetiche (em português feitiço, feito por uma mão humana (6)) é o trabalho e produto do homem que nele objetifica o seu próprio poder criativo, é a objetificação da vida humana que, com a afirmação das relações capitalistas de produção, se eleva como um poder autónomo, estrangeiro, perante o produtor. A natureza "sensivelmente supra-sensível" da mercadoria encena a comédia de troca de valor, relegando as relações sociais entre as pessoas (7) para os bastidores, para confiar o papel de protagonistas às relações entre as coisas; aquilo que nas sociedades pré-capitalistas apareceu como o domínio de uma pessoa sobre outra, na sociedade capitalista aparece como o domínio das coisas sobre as pessoas; enquanto anteriormente o meu trabalho era uma expressão vital, nas condições do domínio da propriedade privada é antes o sacrifício da vida, a produção do objeto em favor de um poder estrangeiro.
Para Marx, o fetichismo não permanece confinado ao mundo das mercadorias: é uma bolha que incha ao ponto de englobar a totalidade das relações sociais: é o fetichismo do dinheiro que, sendo um mero instrumento, um meio de circulação, se eleva gradualmente para se tornar o deus do mundo das mercadorias, encarnando a sua existência celestial; é o fetichismo do capital que aparece em todo o seu poder no juro, que se apresenta como a criação de valor a partir do nada, como uma "emanação" do capital que, sob esta forma, anula toda a mediação e se torna precisamente capital-fetiche; finalmente, é (e este é o aspeto menos percebido do fetichismo, nota Dussel) a fetichização do próprio trabalho vivo, na medida em que aparece, aos olhos do capitalista mas também aos do próprio trabalhador, como uma mercadoria como qualquer outra. O processo de fetichização é progressivo: há menos fetichização nos níveis mais profundos da produção; ela atinge o seu auge nos níveis mais superficiais da circulação.
Mas porque é que, segundo Dussel, a crítica filosófica da Economia Política não pode ser separada da crítica religiosa, a condenação ética do capitalismo como uma estrutura "satânica"? Será suficiente justapor a denúncia marxista do fetichismo do capital com a maldição de Moisés contra o bezerro de ouro, a condenação profética da rendição do povo judeu à tentação idólatra? Certamente que não, mas Dussel vai mais a fundo na sua escavação das metáforas teológicas do texto marxista: trabalho fetichizado, terra e dinheiro, transformados em mercadorias falsas (8), na tríade lucro, renda, salário, representam uma trindade satânica, as três faces de Moloch, a paródia de um cristianismo invertido. Valor que dá origem ao valor, que progressivamente assume do nada os atributos de um deus criador de si mesmo, que se ergue como um poder civilizador, fonte de liberdade, provedor de divindade; o dinheiro que se transforma em deus é o derrube de Cristo (9), é o Anticristo, é a Besta do Apocalipse, Moloch, Mammon, Baal. Ao contrário de Nietzsche, escreve Dussel, Marx não diz que Deus está morto, porque o capital é um deus vivo e respirável que exige sacrifício humano; a vida sanguínea do trabalhador é sacrificada ao fetiche e transubstanciada na vida sanguínea do capital (em trabalho morto). O cristão só pode aceitar o domínio do capital porque removeu o compromisso do cristianismo original com a libertação dos pobres e oprimidos e/ou porque a ciência económica burguesa esconde a realidade da injustiça e da exploração que está por detrás das leis "naturais" do mercado; mas assim que o crente toma consciência da contradição antagónica entre o cristianismo e o capitalismo, não tem outra escolha senão seguir o caminho traçado pela Teologia da Libertação, que não é nada mais do que a crítica marxista do capital fetichista.
A "simpatia" (em sentido filosófico-metafísico, não psicológico) entre a crítica marxista da Economia Política e a tradição judaico-cristã está enraizada, segundo Dussel, na sua comum visão materialista. Tem-se falado da valorização da dignidade do corpo no cristianismo primitivo (Cristo é o deus que se fez carne e sangue), pelo que, para Marx, o trabalhador nunca é redutível, exceto na mistificação fetichista, a uma mercadoria de força de trabalho: é pura e simples possibilidade de trabalho presente e encerrada na corporeidade viva do trabalhador; o outro do capital, aquilo que é efetivamente não-capital, é o próprio trabalho. A acumulação primitiva, o processo que, ao separar o produtor dos meios de produção, permite que o trabalho vivo se transforme em mercadoria de força de trabalho, ocupa, na teologia materialista de Marx, o lugar do pecado original.
Dito isto, Dussel não perde o facto de que o discurso de Marx não é redutível a uma espécie de religião "disfarçada" de crítica científico-filosófica (10). É verdade que ele nos convida a "compreender hermenêuticamente" o significado da densa teia de metáforas teológicas presente no texto marxista como um "sistema", ou seja, não como meros exemplos isolados, mas como fruto de uma lógica que nos permite vislumbrar uma teologia especulativa in potentia. E é verdade que ele argumenta que o Deus negado por Feuerbach e Marx é o deus-fetiche de Hegel e do capitalismo industrial e colonialista europeu, acrescentando que ser um "ateu" em relação a este deus "é uma condição para poder adorar o Deus dos profetas de Israel". É igualmente verdade, porém, que ele não pode deixar de reconhecer que, enquanto enuncia o momento negativo da dialética profética, a negação da divindade do deus fetiche, Marx não vai ao ponto de formular um momento afirmativo, exceto como uma visão antropológica de um mundo (comunismo realizado) em que o homem será libertado da opressão dos sacerdotes do deus fetiche.
Voltarei a este último ponto mais tarde. Em primeiro lugar, gostaria de antecipar algumas das conclusões políticas que Dussel tira dos argumentos apresentados até agora, conclusões de absoluta relevância no que diz respeito à influência que a Teologia da Libertação tem desempenhado e continua a desempenhar nos processos revolucionários latino-americanos. No livro que estamos a discutir, Dussel relança um tema já tratado em O derradeiro Marx: ou seja, ele pergunta o que Marx teria pensado das lutas de libertação dos povos da Ásia, África e América Latina, lutas em que a resistência ao imperialismo e ao colonialismo se baseia nos valores das religiões ancestrais profundamente enraizadas. Provavelmente, responde ele, não teria desprezado a criatividade simbólica desses povos - ao contrário dos marxistas ortodoxos da América Latina, que afastaram as massas do marxismo para se manterem fiéis a um ateísmo jacobino e burguês - mas teria raciocinado sobre como aproveitar essas energias criativas na luta anticapitalista (11). Esta questão, como já defendi em ocasiões anteriores (12), é fundamental para compreender por que razão o socialismo bolivariano não nasceu de lutas lideradas pelos partidos marxistas tradicionais, mas de revoluções "espúrias", nas quais os populismos de esquerda e os movimentos indigenistas foram os verdadeiros protagonistas, só assumindo mais tarde um carácter socialista. Mas também voltarei a este assunto mais tarde.
3. Duas observações adicionais
Valorizando as metáforas teológicas e a atitude antidogmática do derradeiro Marx, Dussel tenta dobrar este discurso, de modo a torná-lo funcional ao seu próprio projeto filosófico, o qual não pode prescindir de um fundamento teológico no sentido estrito, e não num sentido puramente metafórico. Esta última afirmação é confirmada quando ele escreve que "a negação da divinização fetichista deve ser preparatória para a afirmação de um Absoluto alterativo que permita uma base suficiente de externalidade para poder levar a cabo novas críticas em todas as ordens futuras possíveis” (sublinhado meu). Daí deriva que: 1) O ateísmo sui generis de Marx não é suficiente, no sentido de que, para satisfazer as expetativas de Dussel, a teologia negativa do filósofo Trier deve necessariamente evoluir para uma teologia positiva; 2) Se o objetivo de uma desejada religião materialista é estabelecer o reinado de Deus aqui na Terra, o reinado em questão não pode coincidir com o comunismo, que, como exigência de salvação evocada por uma situação fetichizada, "é um limite, um horizonte contrafatual, uma ideia reguladora, um conceito utópico ou mesmo o conteúdo de uma economia transcendental, e não um momento ou figura da história"; 3) Finalmente, esta relativização do valor histórico da utopia comunista reflete a necessidade de integrar esta última num horizonte profético que não se limita a negar a dominação do capital, mas propõe liquidar todas as formas de dominação, começando pela dominação do Estado ("na origem da monarquia de Israel pode-se ver claramente o confronto entre profecia e poder político", escreve, para depois acrescenta que "o profeta é um resquício escatológico de exterioridade que permite sempre criticar o sistema").
Como podemos ver, não é tanto e apenas uma questão de criticar o dogmatismo míope dos partidos marxistas latino-americanos, mas sim toda a experiência do socialismo real que, devido à ausência de um deus alterativo, se configura como a "realização sacral insuperável de uma ordem que já não podia encontrar em nenhuma exterioridade o ponto de apoio da sua própria crítica". Em suma, a visão política de Dussel pode ser definida como uma utopia religiosa, anarco-comunista e comunitária (com clara referência ao modelo das comunidades ancestrais ameríndias). Esta definição reflete-se na curiosa tentativa de Dussel de colocar as categorias marxianas de social e comunitária em oposição. Assim escreve: "o caráter fetichista do valor é compreendido a partir do carácter social do trabalho em oposição ao carácter comunitário do trabalho"; e mais uma vez: "o carácter social - um termo negativo que indica a perversão da relação - do produto de base é-lhe dado pela não-comunidade da troca e do mercado, e a socialidade da mercadoria socializa os produtores isolados"; e finalmente: "o trabalho social é a perversão do trabalho comunitário e o produto de base é a perversão do produto imediatamente social".
Qualquer pessoa que tenha lido cuidadosamente as obras de Marx, no entanto, sabe que não há nenhuma conotação negativa nem do adjetivo nem do substantivo social nelas contidos. Pelo contrário: o processo de socialização imposto pelo modo de produção capitalista, embora com o preço da miséria e do sofrimento que impõe ao trabalhador, reduzido a um "produtor isolado", é visto como o pré-requisito para a transição para um nível de socialização mais elevado, consciente e solidário; nem pode a ideia marxista de comunismo ser equiparada à de um regresso a um comunitarismo das origens em cujo carácter idílico Marx nunca teve quaisquer ilusões. O que não diminui o facto de as provocações de Dussel poderem contribuir para a renovação de um marxismo que, especialmente aqui no Ocidente (13), está cada vez mais a afundar-se num estéril dogmatismo eurocêntrico.
4. Algumas observações finais
Não duvido que, atribuindo um valor positivo às provocações teológicas de Dussel, posso fazer torcer o nariz os puristas, que verão nisso uma cedência a uma mistura indevida entre o diabo (a religião judaico-cristã) e a água benta (materialismo histórico e dialético), uma mistura que tem sido frequentemente utilizada por pensadores de direita para negar a natureza científica do trabalho marxista (14). No entanto, continuo da opinião, contra os adeptos da escola althusseriana, que não é possível extrair uma análise científica "pura" dos textos de Marx, separando-a do juízo moral sobre o capitalismo como "maldade". Acrescente-se a isto o facto de vários 'regimes narrativos' coexistirem em Marx, como diz Costanzo Preve (15), um dos quais tem uma aura providencialista inegável.
Mas o verdadeiro ponto é outro: Preve argumenta, mais uma vez corretamente, a impossibilidade de reconstruir o significado 'autêntico' do pensamento marxista, na medida em que a incorporação do discurso original numa espécie de neoformação ideológica (neste caso no discurso da Teologia da Libertação) “é uma forma necessária de existência do marxismo, tal como qualquer modo de produção só existe na forma concreta de incorporação numa formação socioeconómica”; tais ideologias não são descartáveis como 'falsa consciência', mas são instrumentos de luta forjados para se adequarem a contextos históricos, culturais e socioeconómicos precisos. Há pouco falei da influência da Teologia da Libertação nos processos revolucionários latino-americanos, mas a relação é dialeticamente reversível, no sentido em que a interpretação da Teologia da Libertação do pensamento marxista é fruto de cinco séculos de exploração e opressão colonial pelos colonizadores espanhóis e portugueses, de uma história em que apenas certas comunidades cristãs (especialmente jesuítas e franciscanos) defenderam, durante muito tempo, as populações indígenas, fazendo-o a fim de poderem integrar e proteger as culturas indígenas, aceitando ou até favorecendo o sincretismo entre a sua própria fé e as culturas tradicionais. Isto veio a ter por consequência que um certo "marxismo teologizado" provou ser um instrumento de luta mais eficaz do que o marxismo "engessado" dos partidos tradicionais de esquerda (que, na sua maioria, recrutam os seus militantes das fileiras da pequeno-burguesia urbana europeizada).
Isto não significa que as teses de Dussel estejam isentas de críticas. Estou a pensar sobretudo no curioso valor negativo atribuído ao termo "social" no texto de Marx (ver acima). O que é hoje provavelmente o teórico marxista latino-americano mais refinado, o antigo vice-presidente boliviano Álvaro Garcia Linera, tem o mérito de ter alargado o conceito de antagonismo de classe, incorporando nele as comunidades ancestrais andinas que, embora não estejam direta e plenamente integradas no processo de acumulação capitalista (e, portanto, comprometidas com as formas de sociabilidade abstrata que isso implica), desenvolvem uma relação de oposição antagónica com o capitalismo, na medida em que atacam as condições em que se baseia a sua possibilidade de reprodução (16). Isto está em sintonia com o ponto de vista de Dussel, embora o próprio Linera, polemizando com o extremismo "comunitário" do ambientalismo indigenista e da esquerda radical urbana (17), não hesite em apoiar as razões da socialização, entendida como conhecimento das relações entre todas as classes e como consciência da necessidade de fundir os interesses das classes subalternas num bloco social, mas também como poder estatal, uma vez que o Estado, escreve, não é o Moloch, o mal absoluto, mas sim o terreno do qual as classes subalternas podem e devem tomar o controlo para melhorar as suas condições de vida.
Mantendo-nos no mesmo tópico: é evidente que a opinião de Dussel não pode ser solidária com o caminho chinês para o socialismo, que dá ao Estado/partido controlo absoluto sobre o sistema político, económico e social. Contudo, isto é ignorar o facto de que o "socialismo de estilo chinês" é, tal como o socialismo latino-americano do século XXI, o produto de uma revolução anti-imperialista e anticolonial, baseada na mistura do marxismo-leninismo com tradições culturais milenares chinesas, tais como o confucionismo e o taoísmo. Criticá-lo do ponto de vista de um marxismo teologista e comunitarista é assumir, de facto, a mesma postura eurocêntrica pela qual Dussel censura os marxistas ortodoxos da América Latina, na medida em que a tradição judaico-cristã é assim considerada superior à tradição confucionista-taoísta.
Mas o nó problemático para o qual gostaria de chamar particular atenção é o da utopia comunista. Foi dito que Dussel fala de "uma ideia reguladora, um conceito utópico ou mesmo do conteúdo de uma economia transcendental, não de um momento ou figura da história". Parece-me claro que esta des-história do horizonte utópico não se deve ao facto de Dussel não querer sacralizar uma expectativa 'terrena', pois isso contradiria a sua teologia materialista, a sua pretensão de que o reino de Deus, entendido como a libertação dos últimos de todo o sofrimento, deve ser realizado aqui e agora, na Terra e não no Céu. Creio que a verdadeira razão é a desconfiança de Dussel em relação ao poder político que aspira a realizar a utopia. O seu ponto de vista, como já vimos, coloca, tanto o domínio do capital com o domínio do Estado, como duas figuras do mal, de modo que a "parusia" do comunismo deve ser empurrada para um futuro indefinido, para que a sua proclamação possa atuar como motor de um processo de auto-emancipação das massas.
A fim de explicar porque acredito que esta visão está errada, mas ao mesmo tempo contém elementos de verdade, vou retomar aqui brevemente as reflexões que, em trabalhos anteriores (18), desenvolvi a partir de uma comparação entre o pensamento de Ernst Bloch (19) e o do derradeiro Lukács (20). Bloch aborda o tema da utopia armado com toda a sua vasta erudição: ele parte da Grécia antiga para chegar a Owen, Fourier e Proudhon, passando por Joachim de Fiore, Thomas More e Campanella, todos seguindo o fio vermelho da ideia de que a fé no advento de um mundo novo e melhor é o primus movens de todo o projeto revolucionário. Então, embora não ignorando a reticência de Marx em descrever - exceto em linhas gerais - as características de uma sociedade comunista, ele não se abstém de exaltar as suas maravilhas em tons enfáticos (21): ele escreve que será um mundo caracterizado por uma comunidade "absolutamente não-antagonista", de "um único movimento de avanço no mundo que transforma e implica a felicidade". No final do túnel do presente, do qual emergiremos graças à luta de classes, acrescenta, brilha "a paz distante, a oportunidade distante de sermos solidários com todos os homens, amigos de todos"; "de todas as dissonâncias do tempo nasce a quietude cristalina, como a quietude do fim da história"; um futuro de abundância, paz, amor universal e felicidade muito semelhante à terra prometida das grandes religiões "onde o leite e o mel fluem real e simbolicamente". A sua narrativa assume assim uma flagrante entoação religiosa, em que a utopia socialista aparece como o momento culminante de um processo de secularização/humanização do messianismo, enquanto algumas das suas frases parecem estar em plena sintonia com o pensamento de Dussel, como quando escreve que "o ateísmo é tão pouco inimigo da utopia religiosa a ponto de formar o seu pressuposto: sem ateísmo o messianismo não tem lugar". A diferença é que, ao contrário de Dussel, Bloch não afasta para longe a parusia, não reduz o comunismo a uma ideia reguladora, mas estava convencido de estar a viver no limiar da sua realização terrena. Em vez disso, acabará amargamente desapontado com a experiência do socialismo real, ao ponto de se distanciar dele, quase como se concordasse com as advertências de Dussel.
De um teor totalmente diferente são as reflexões sobre a utopia dos últimos anos da vida de Lukács, o grande filósofo marxista que, embora nunca deixando de criticar o estalinismo, nem sequer se alinhou com o coro de intelectuais dissidentes, cultivando até à morte a esperança de que seria possível reformar o sistema socialista a partir de dentro (o que implica que nunca partilhou o ponto de vista daqueles que demonizam o poder político e estatal enquanto tal). Comecemos por dizer que a sua abordagem ao assunto se baseia na centralidade absoluta que o trabalho assume no seu sistema filosófico: a fundamentar a possibilidade (não a necessidade! Lukács rejeita a visão determinista, segundo a qual o comunismo seria o resultado necessário de supostas "leis" históricas) de uma forma social mais avançada do que o capitalismo está o facto de o trabalho conter em si, desde o início, a possibilidade de produzir mais do que é necessário para a mera reprodução da pessoa que realiza o processo laboral. A possibilidade de tempo 'libertado' (que é, em última análise, o que Lukács identifica, seguindo Marx, com o comunismo) baseia-se nesta peculiaridade do trabalho.
O reinado da liberdade, escreve Lukács, citando Marx, no Livro III de O Capital, "só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela finalidade externa". Isto não pode acontecer no socialismo, onde a liberdade só pode consistir no controlo (necessariamente mediado politicamente!) dos produtores associados sobre o processo de produção, ou seja, na superação de uma condição em que os domina como uma força cega. Mas será o salto para o reino da liberdade (que em Lukács não evoca significados religiosos) uma perspetiva concreta ou apenas uma ideia reguladora, como diz Dussel?
A resposta de Lukács a esta pergunta é indireta e deve, na minha opinião, ser procurada onde o filósofo húngaro escreve que a impossibilidade da utopia de se traduzir em realidade "não significa, contudo, que não exerça uma influência ideológica. De facto, todas as utopias que se movem no nível filosófico não podem (e geralmente não querem) afetar simplesmente o futuro imediato de uma forma direta [...] a objetividade e a verdade direta da utopia podem também ser muito problemáticas, mas é precisamente nesta problemática que o seu valor para o desenvolvimento da humanidade está sempre em ação, embora muitas vezes de uma forma confusa". Para concluir: para Lukács, a utopia comunista é de facto uma ideia reguladora, mas não no sentido teológico que Dussel lhe atribui, mas sim no sentido de uma ideologia política (para Lukács, como para Gramsci, a ideologia é potência material) que pode orientar a luta das classes subalternas para melhorar as suas condições de vida, mas que nunca chegará ao "fim da história" sonhado por Bloch, a um mundo ideal, um paraíso na terra livre de todos os conflitos.
(*) Carlo Formenti (n. 1947) é um jornalista e escritor italiano de formação marxista. Licenciado em Ciências Políticas em Pádua, nos anos 1970 foi militante do Grupo Gramsci, nascido da dissolução do Pcd'I. De 1970 a 1974 trabalhou como militante sindical na Federação dos Metalúrgicos, como responsável provincial dos trabalhadores administrativos e técnicos. Após a dissolução do Grupo Gramsci, participa na fase inicial da experiência da Autonomia Operaia, da qual se afasta progressivamente na segunda metade dos anos setenta. De 1980 a 1989, foi chefe de redação do mensário cultural Alfabeta. Trabalhou depois na redação cultural do L'Europeo e na do Corriere della Sera. Em 2002, foi professor adjunto de Teoria e Técnica dos Novos Media na Universidade de Lecce. Desde 2006, é investigador e professor adjunto na mesma faculdade. Em 1980, publicou La fine del valore d'uso para a Feltrinelli, dedicado às transformações da organização do trabalho induzidas pela tecnologia. Em 1991, publicou Piccole apocalissi (Raffaello Cortina Editore), sobre traços de divindade no ateísmo contemporâneo. Com o volume Incantati dalla Rete (Raffaello Cortina Editore, 2000), começou a sistematizar a sua análise da dinâmica das redes. No ensaio seguinte, Mercanti di futuro. Utopia e crisi della Net Economy (Einaudi, 2002), aborda a nova economia, a liberdade da rede e a relação com o capitalismo. Para encerrar a trilogia sobre as mutações económicas e antropológicas provocadas pela difusão da Internet, escreve Cybersoviet. Utopie postdemocratiche e nuovi media (Raffaello Cortina Editore, 2008). Com o livro Felici e sfruttati. Capitalismo digitale ed eclissi del lavoro (Egea, 2011) aborda a questão do trabalho cognitivo e da sua exploração. Escreveu numerosos outros livros, inclusive de ficção. Em maio de 2020, aderiu ao Partito Comunista, sendo a primeira vez que tira um cartão de membro de partido. O presente ensaio foi publicado, em fevereiro de 2023, no portal Sinistrainrete.
___________________ NOTAS:
(1) Ver também H. Assmann, Idolatria del mercato. Saggio su economia e teologia, Castelvecchi, Roma 2020.
(2) C. Formenti, Guerra e rivoluzione, Meltemi, Milão 2023. Ver, em particular, o terceiro capítulo da Parte Um do Volume Dois.
(3) Diz-se que Marx herdou do pietista Oetinger a visão de uma sociedade sem conflitos, na qual a função do Estado seria superada.
(4) Confusão da qual encontramos vestígios na Filosofia da Religião de Hegel.
(5) Neste sentido, a visão de Dussel é radicalmente diferente da dos autores que justapõem o "idealista" Marx dos seus escritos juvenis ao "científico" Marx de O Capital.
(6) Isto é o que os navegadores portugueses chamavam aos ídolos adorados pelas tribos africanas com as quais entraram em contato.
(7) Dussel fala do "relacionalismo" de Marx: sempre que algo se constitui como um absoluto, o problema ontológico do fetichismo é desencadeado: uma entidade só se pode constituir como um absoluto na medida em que a sua "relação com" tenha sido removida.
(8) Sobre o conceito de mercadorias falsas ver K. Polanyi, La grande trasformazione, Einaudi, Torino, 1974.
(9) No sentido de que, enquanto Cristo se faz a si próprio servo, o dinheiro, de ser servo, transforma-se num deus.
(10) Embora, em algumas passagens, Dussel esteja muito próximo de ceder a esta tentação, por exemplo, quando afirma que uma espécie de "inconsciente religioso" estaria a trabalhar em Marx.
(11) "O derradeiro Marx” que Dussel evoca nos seus livros, e a quem atribui uma flexibilidade mental muito maior que a dos seus maus alunos, é o Marx que dialoga com os populistas russos, disposto a considerar o potencial revolucionário da cultura comunitária ancestral do campesinato russo (cf. K. Marx e F. Engels, India Cina Russia, Il Saggiatore, Milano, 1960; ver também, P. Poggio, L’Obščina. Comune contadina e rivoluzione in Russia, Jaka Book, Milano, 1976).
(12) Ver, em particular , Guerra e rivoluzione, op. cit., vol. II, Parte I, cap. 3.
(13) Ver D. Losurdo, Il marxismo occidentale. Come nacque, come morì, come può rinascere, Laterza, Roma-Bari, 2017.
(14) Ver, entre outros, E. Voegelin (Il mito del mondo nuovo, Rusconi, Milano 1976), autor que compara o imaginário marxista ao das mitologias gnósticas, o que seria particularmente verdadeiro para a heresia valentiniana, que confiou ao homem a missão de redimir uma divindade caída, alheia à sua identidade original (cf. a este respeito o meu Immagini del vuoto, Liguori, Napoli, 1989). Uma relação indireta entre marxismo e religião também pode ser extraída da justaposição entre profetismo e carisma religioso e profetismo e carisma político, operada por Max Weber (cf. Sociologia della religione, Edizioni di Comunità, Milano, 1982).
(15) Cf. La filosofia imperfetta. Una proposta di ricostruzione del marxismo contemporaneo, Franco Angeli, Milano, 1984.
(16) Cf. Forma valor y forma comunidad, Traficantes de sueños, Quito, 2015.
(17) Cf. Democrazia, stato, rivoluzione, Meltemi, Milano, 2020.
(18) Cf. Ombre rosse, Saggi sull'ultimo Lukács e altre eresie, Meltemi, Milano, 2020; ver também Guerra e rivoluzione, ob. cit., Volume I, Capítulo 1.
(19) Cf. E. Bloch, Il Principio Speranza, 3 vols. Mimesis, Milano-Udine, 2019.
(20) Cf. G. Lukács, Ontologia dell’essere sociale (4 vols.), PGRECO, Milano, 2012; ver também o meu Prefácio à nova edição da obra, a publicar em breve por Meltemi.
(21) Note-se que, quando escrevia estas coisas, Bloch ainda tinha experiência direta do socialismo real e cantava os seus louvores, mesmo que mais tarde acabasse por se distanciar dele.
|
||||
|
|||||
![]() |