Precisamos de um novo Golias?

 

 

Walden Bello (*)

 

 

 

Estaremos no meio de uma transição hegemónica global? Para abordar esta questão colocada pela minha boa amiga, a eminente Prof.ª Jayati Ghosh, do Departamento de Economia, permitam-me começar por avaliar criticamente o último livro do proeminente estudioso liberal das relações internacionais, Prof. John Ikenberry, da Universidade de Princeton.

 

Evolução da ordem internacional liberal

 

Na evolução da democracia liberal desde os finais do século XVIII, escreve Ikenberry, em sua obra A World Safe for Democracy (Um Mundo Seguro para a Democracia) (1), os seus valores e instituições têm estado enredados com o capitalismo, o império, a hegemonia e o racismo. No entanto, embora tenha sido comprometida pela sua associação histórica com estas forças, a matriz da democracia liberal e do internacionalismo liberal sempre demonstrou uma capacidade de ser "desengastada" de tais fenómenos. Esta tem sido a fonte do seu dinamismo, o que oferece uma melhor forma de organizar as relações dentro dos Estados e entre Estados.

 

O desengastamento nunca pode, contudo, ser completo, pois a matriz liberal democrática/liberal internacionalista não pode escapar às relações de poder. Uma ideologia que não seja sustentada pelo poder seria simplesmente um conjunto de ideais utópicos de livre flutuação. O poder sem ideologia seria instável porque seria considerado ilegítimo. É a sinergia de poder e ideologia que constitui a hegemonia, considera Ikenberry, seguindo Gramsci. A mistura de valores universalistas e de hegemonia de grande potência, própria do internacionalismo liberal, pode ser hipócrita, mas é, segundo Ikenberry, o melhor que se pode esperar. Essa ordem mundial liberal sustentada pela hegemonia norte-americana está agora em crise, e o último trabalho da Ikenberry procura desvendar as suas fontes, dinâmicas e consequências.

 

O período de trinta anos entre 1991 e 2021 provocará, durante muito tempo, estranheza a historiadores e outros analistas. Porque é que a ordem internacional liberal que fusionou a hegemonia política/militar dos E.U.A. com a supremacia capitalista global sob um dossel de instituições multilaterais e ideologia liberal triunfalista desceu do seu momento de triunfo após colapso do bloco soviético, com a promessa de um domínio unilateral, até à sua profunda desordem no presente.

 

As origens da crise da ordem internacional liberal

 

Uma das razões foi, ironicamente, a condição de unipolaridade, que encorajou Washington a envolver-se no estiramento imperial, levando às suas intervenções desastrosas para forçar a mudanças de regimes, particularmente no Médio Oriente.

 

Outra foi o cálculo errado de que a integração da China na economia global levaria à prosperidade mútua, o que por sua vez transformaria Pequim num parceiro na manutenção da ordem multilateral liderada pelos E.U.A. e a tornaria mais liberal e democrática, à imagem norte-americana. Em vez disso, conduziu a uma prosperidade unilateral, ou seja, a da China, falhando completamente em tornar a China mais parecida com os E.U.A. politicamente.

 

Uma terceira foi a rédea livre dada ao capitalismo neoliberal. Foi-lhe permitido destruir o contrato social que assegurava às classes subalternas dos Estados Unidos da América e de outros países do Ocidente um grau de segurança económica. Ou seja, corroeu o que Ikenberry chama de "objetivos sociais" da democracia liberal e da ordem liberal internacionalista. Isto contribuiu centralmente para a reação trumpiana contra os alicerces liberais internos e internacionais do sistema.

 

Desconcertantemente, porém, o livro termina com um salto de fé à Fukuyama: que com todos os seus problemas, a ordem internacional liberal sobreviverá. "O atual recuo político é inevitável e está condenado ao fracasso", escreve Ikenberry. E continua ele: "Não há fuga possível. As democracias liberais vão encontrar-se a fazer o que sempre fizeram em momentos de crise à procura de formas de restabelecer e reforçar as bases políticas da democracia capitalista liberal" (2).

 

A crise da democracia liberal norte-americana

 

Embora se possa concordar com alguns pontos desta análise, o seu salto de fé fukuyamiano é bastante incongruente, e deriva, a meu ver, da sua falta de apreciação da gravidade das diferentes dimensões da crise do internacionalismo liberal. Esta suposição sobre a capacidade da atual ordem mundial resistir à tempestade é, de alguma forma, algo que considero partilhado por muitos intelectuais liberais.

 

Ao avaliarmos a gravidade da crise, vamos visitar primeiro a sua dimensão económica. A financeirização e a globalização combinaram-se não só para criar uma grave desigualdade, mas também para corroer gravemente a base produtiva do poder hegemónico. E quando falamos de desindustrialização, estamos a falar não só da perda de milhões de postos de trabalho de produção, de 17,3 milhões para cerca de 13 milhões atualmente, mas também da perda dos canais de transmissão geracional de competências da força de trabalho, em indústrias semiqualificadas e algumas qualificadas.

 

Igualmente importante tem sido a perda da sinergia entre a produção e a criatividade tecnológica nas economias centrais enquanto se assiste à sua emergência nas economias em rápida industrialização. Contrariamente às expetativas de que as economias periféricas se limitariam a fornecer mão-de-obra barata, enquanto as economias centrais monopolizariam as atividades intensivas de conhecimento, a deslocalização (“offshoring”) da alta tecnologia seguiu-se à deslocalização da produção. Um importante estudo de oito economias avançadas mostrou que a deslocalização da alta tecnologia aumentou em menos de uma década de 14 por cento, no final dos anos 1990, para cerca de 18 por cento em 2006 (3). Como Branko Milanovic salientou, "as rendas de inovação, recebidas pelos líderes das novas tecnologias, estão a ser dissipadas do centro" (4). Inverter agressivamente este fluxo tecnológico foi, de facto, a peça central da economia política de Donald Trump e do seu conselheiro económico Peter Navarro. Voltarei a este assunto mais tarde, quando discutir a economia da China.

 

Passemos à dimensão ideológica da crise. O marxista britânico Paul Mason argumentou que, com o triunfo do neoliberalismo e da financeirização, no Norte global, a solidariedade e um sentido de comunidade baseado na classe económica e num estilo de vida de classe média, partilhados entre os trabalhadores, foi substituído por uma identidade individualizada como consumidores, como atores do mercado, numa sociedade de prosperidade aparentemente partilhada, mas onde o aumento do rendimento foi cada vez mais substituído pelo aumento do endividamento, como mecanismo de pacificação económica. Tendo trocado a sua identidade de classe pela de consumidores no mercado, a perda até mesmo desta última, devido à crise de 2008-2009, deixou-os ideologicamente vulneráveis, particularmente quando se tratava do seu compromisso com a crença democrática liberal na igualdade universal. Mesmo antes da crise financeira, muitos trabalhadores já se tinham sentido psicologicamente ameaçados pelos ganhos dos movimentos pela justiça racial e de género. A sua descida em sentido à insegurança económica foi o passo final na sua radicalização à direita (5).

 

O que esta combinação volátil de crise económica, vulnerabilidade ideológica e Donald Trump fez foi tornar legítima, se não respeitável, uma crença central antidemocrática que foi transmitida de forma geracional, comunitária e subversiva. Esta é a Supremacia Branca, que é agora informalmente a ideologia dominante do Partido Republicano.

 

Finalmente, vamos à crise política. Não creio que haja muitos que queiram opor-se à nossa caracterização da democracia liberal norte-americana como estando em crise. Penso que a disputa seria apenas sobre o quão grave é essa crise. No seu livro How Civil Wars Start (Como Nascem as Guerras Civis), Barbara Walter escreve:

 

“Onde estão hoje os Estados Unidos da América? Somos uma anocracia facciosa [uma democracia degenerada] que se aproxima rapidamente da fase de insurreição aberta, o que significa que estamos mais próximos da guerra civil do que qualquer um de nós gostaria de acreditar. O 6 de Janeiro foi um grande anúncio por parte de pelo menos alguns grupos... de que estão a avançar para uma violência total... De facto, o ataque ao Capitólio pode muito bem ser a primeira série de ataques organizados numa fase de insurreição aberta. O seu alvo eram as infraestruturas. Havia planos para assassinar certos políticos e tentativas de coordenar as atividades” (6).

 

Pois bem, o perfil de Barbara Walter não é propriamente o de alguém que grita por lobo. Ela não é alguém que fale pela esquerda. Na verdade, ela é muito bem situada no aparelho do poder, uma especialista em comparatística das guerras civis que utilizou várias bases de dados, a mais importante das quais é a Equipa de Tarefa sobre Instabilidade Política da CIA, da qual ela faz parte.

 

Para ela e para os seus colegas da CIA, a etnicidade surgiu nos seus estudos globais comparativos como o principal preditor da suscetibilidade de uma sociedade à guerra civil, e nos E.U.A., os radicais brancos armados estão na vanguarda. No entanto, a etnicidade por si só não produz conflitos. Precisa de desencadeadores ou "aceleradores", e estes são a emergência de grupos étnicos hegemónicos ou "superfações", a exacerbação de conflitos por "empresários etnonacionalistas" e a mobilização frenética de cidadãos comuns que sentem que só as milícias étnicas armadas se interpõem entre eles e aqueles que os destruiriam e ao seu mundo. E para passar de A a Z, as redes sociais, em particular o Facebook, tornaram-se uma arma central de radicalização. O tópico do fervilhar irado em curso nas salas de chat de nacionalistas brancos, nos dias de hoje, é a "Grande Teoria da Substituição", que diz que os brancos são vítimas de uma conspiração em curso, urdida por negros, feministas, LGBTQIA’s, migrantes, e democratas, para os transformar numa minoria e eventualmente destruí-los numa guerra racial.

 

Pois bem, a razão pela qual passei algum tempo a detalhar as dimensões ideológicas e políticas da crise da ordem internacional liberal é que, quando muitas pessoas falam de declínio hegemónico, consideram principalmente a sua dimensão económica. Igualmente importantes são as dimensões política e ideológica. Quando alguns analistas especularam sobre a possível perda da hegemonia dos E.U.A. para o Japão, no final dos anos 1980, tinham em mente apenas a dimensão económica. Embora esta fosse a consideração central, a sua negligência relativamente às dimensões política e ideológica da relação foi uma das razões pelas quais se desencaminharam as suas previsões sobre o Japão suplantar os Estados Unidos da América.

 

O que distingue a atual crise do poder hegemónico da situação vivida na década de 1980 é a combinação fatal de grave deslocação económica, profunda desafeição ideológica e forte instabilidade política. A hegemonia global é difícil de exercer se, além de ficar para trás na frente económica, o poder hegemónico se aproxima também da guerra civil e um setor significativo da sociedade perdeu a fé na ideologia democrática liberal que legitima a sua primazia económica global. É aí que os Estados Unidos da América se encontram hoje.

 

Irá a China substituir os E.U.A. como poder hegemónico global?

 

Passemos agora à questão de saber se algum outro poder está a mover-se para substituir os Estados Unidos da América no palco central. A China é, evidentemente, aquilo de que todos falam como o principal candidato, sendo na frente económica que o seu desafio é mais forte.

 

No seu livro The Great Convergence (A Grande Convergência), Richard Baldwin tenta explicar como é que a China se transformou, não só de país industrial não competitivo, mas também de um estranho no sistema capitalista global, nos anos 1970, para se tornar a principal superpotência industrial do mundo em pouco mais de duas décadas. A China, diz ele, foi suficientemente inteligente para capitalizar o facto de ter aderido à economia mundial capitalista na altura em que aquilo que ele chama de "segunda desagregação" da globalização estava a ter lugar. Esta foi a rotura do processo produtivo globalmente tornado possível pelos avanços na tecnologia da informação, resultando numa inovação revolucionária: a cadeia de valor global das empresas. A característica chave deste processo tem sido a dispersão da difusão de alta tecnologia das economias dos centros capitalistas ricos em conhecimento para os países periféricos com excedentes de mão-de-obra, como já referi (7).

 

Embora Baldwin pareça considerar este processo como inevitável, o facto é que, no caso da China, esta difusão foi facilitada por políticas de transferência forçada de tecnologia impostas por Pequim. As corporações norte-americanas ficaram de pelo eriçado com a isso, mas o cumprimento foi a condição do seu acesso à mão-de-obra chinesa super barata. Quando Trump e Peter Navarro tentaram impedir as sensíveis transferências de alta tecnologia em 2017, já era demasiado tarde; a China já tinha passado de um recetor passivo de alta tecnologia para ser um inovador ativo de alta tecnologia. Um estado forte, note-se, que era muito mais forte devido às suas origens revolucionárias do que os estados clássicos de desenvolvimento da orla Ásia-Pacífico, tinha feito a diferença.

 

Em qualquer caso, a China é agora o centro da acumulação global de capital ou, na imagem popular, a "locomotiva da economia mundial", representando, segundo o FMI, 28% de todo o crescimento mundial nos cinco anos de 2013 a 2018, mais do dobro da quota dos Estados Unidos da América (8).

 

Pois bem, é certamente verdade que a economia chinesa é marcada por várias crises, tais como o surgimento de grandes desigualdades de rendimentos, enormes capacidades excedentárias, disparidades regionais e problemas ambientais. No entanto, vejo estas crises como manifestações do crescimento desequilibrado que Albert Hirschman via como uma característica necessária do rápido desenvolvimento industrial sob o capitalismo (9). Estas são crises de crescimento, em contraste com as crises de declínio que marcam a economia dos E.U.A..

 

Mas passemos às dimensões política e ideológica da economia política da China. Em contraste com a visão simplista de uma população acobardada pela repressão, os protestos políticos têm sido comuns na China, tanto no terreno como na internet, embora alguns digam que houve um declínio em números nos anos Xi Jin Ping. Mas poucos afirmam que o regime no poder está a atravessar uma crise de legitimidade. Os protestos têm sido dirigidos a problemas locais como a ocupação de terras, baixos salários ou poluição ambiental, sem que nenhum movimento de descontentamento se consiga atingir numa massa crítica em todo o país. Assim, há poucos desafios à hegemonia política do PCC, exceto por parte de ativistas da democracia e dos direitos humanos que, por corajosos e exemplares que possam ser considerados, são poucos e distanciados uns dos outros. Certamente, o tipo de polarização que se vê nos E.U.A. é inexistente.

 

Agora, à questão da ideologia. A legitimidade ideológica repousa sobre a capacidade do PCC de cumprir economicamente, fornecer estabilidade política e convencer a população de que é central para alcançar o que Xi Jin Ping chamou de "rejuvenescimento nacional". A corrupção é uma ameaça constante, mas não pode realmente ser eliminada, uma vez que, como afirmou Milanovic, está enraizada no sistema de tomada de decisão discricionário ou de aplicação seletiva da lei que, paradoxalmente, acompanha o impulso tecnocrático do que ele chama de "capitalismo político". No entanto, não se pode permitir que a corrupção se propague sem controlo, uma vez que isso iria subverter totalmente a racionalidade tecnocrática, que é a peça central do sistema, militar contra o crescimento económico e corroer a legitimidade da elite governante do PCC. Assim, tal como acontece com a extremamente popular campanha de Xi Jin Ping contra a corrupção, agora já com dez anos de duração, deve haver esforços periódicos para a conter. Sacrificar altos funcionários apanhados com os dedos na caixa é muitas vezes o preço pago para estabilizar o sistema (10). A corrupção é uma ameaça, mas está longe de ser do tipo de ameaça representado por uma ideologia rival, tal como a que se coloca à democracia liberal pela bem sucedida ideologia subversiva da Supremacia Branca, que capturou o Partido Republicano nos Estados Unidos da América.

 

Olhando para a sua influência política e ideológica global, a China tem sido capaz de conquistar aliados, especialmente no Sul global, com a sua diplomacia económica. Através do comércio e da assistência ao desenvolvimento, Pequim tem sido capaz de fornecer um contrapeso ao Ocidente e às suas instituições multilaterais, proporcionando aos países de todo o Sul global o espaço de manobra para a prossecução de políticas externas mais independentes. Tendo fornecido quase um trilião (milhão de milhões) de dólares de financiamento a dezenas de países, a China, como Kevin Gallagher observa ironicamente, é agora "o maior banco de desenvolvimento do mundo" (11). E em contraste com a ajuda e empréstimos bilaterais e multilaterais ocidentais, que implicam direitos humanos e condicionalidades neoliberais, uma das principais atrações da ajuda chinesa é que faz poucas tentativas para alterar o carácter ou influenciar as políticas internas dos seus beneficiários, sejam eles autocráticos, semidemocráticos, ou democráticos.

 

Mas ainda mais do que a grandeza do seu comércio e ajuda, o que atrai os governos para a China é o modelo de liderança tecnocrática, flexível mas eficaz, que parece prometer um crescimento rápido na fase inicial do desenvolvimento e satisfazer o desejo popular de níveis de vida mais elevados, mesmo que o custo seja o aumento da desigualdade e a propagação da corrupção. Este apelo aumentou à medida que cresceu a perceção de que a democracia capitalista liberal, com os seus conflitos políticos descontrolados, falhas de mercado e estagnação económica, já não oferece uma alternativa significativa para o Sul global.

 

No entanto, apesar de alardeado as contribuições da China para o mundo em desenvolvimento, Pequim tem sido muito cautelosa em apresentar o caminho da China como o que os países do Sul global deveriam seguir. Nem se moveu para substituir as agências multilaterais criadas pelo Ocidente para servir de canópia da governação global, nem procurou substituir o dólar pelo renminbi como moeda de reserva mundial. A China tem, de facto, feito esforços diligentes para não ser vista como aspirante a entrar no lugar dos Estados Unidos da América, não só para evitar provocar estes últimos, mas também para evitar ser sobrecarregada com as tarefas que se prendem com a liderança global, e, talvez o mais crítico, porque Pequim acredita que o seu caminho de desenvolvimento não é para exportação, ou para o colocar na frase clássica de Deng Xiao Ping, é "socialismo com características chinesas".

 

A última carta dos E.U.A.

 

Embora a relutância chinesa desempenhe um grande papel, o maior bloqueio a que a China substitua os E.U.A. e assuma o papel hegemónico é a capacidade que têm os norte-americanos de recorrer a esse único trunfo onde ainda gozam de absoluta superioridade: o poder militar para restabelecer o equilíbrio de poderes, de modo a manter o seu estatuto hegemónico cada vez mais frágil. Enquanto a China tem vindo a modernizar as suas forças armadas, tem evitado envolver-se com os E.U.A. numa corrida ao armamento. Nos últimos anos, a despesa militar dos E.U.A. tem sido consistentemente superior à da China numa proporção de três para um. O arsenal nuclear estratégico de Pequim é pequeno em comparação com o dos Estados Unidos da América. A sua capacidade ofensiva naval é proporcionada por três porta-aviões com um design da era soviética. A sua orientação estratégica, como até o Pentágono admite, é defensiva. Isto não significa que em certas áreas a China não se envolva na ofensiva tática, sendo este o caso do Mar do Sul da China, onde a postura de Pequim é alargar o seu perímetro defensivo para o exterior para proteger o seu centro industrial costeiro no Sul e no Sudeste da China. Em suma, Pequim não está a dedicar a sua atenção e comparativamente poucos dos seus recursos a jogar estrategicamente a apanhar os E.U.A. (12).

 

Em contraste, os E.U.A. têm dezenas de bases à volta da China localizadas no Japão, Coreia do Sul, Guam e Filipinas, além da Sétima Frota que navega no Mar da China do Sul dez meses em doze. O seu poder ofensivo naval é aportado por onze forças-tarefa agrupadas em torno de porta-aviões modernos como o USS Gerald Ford. Washington implantou armas nucleares intermédias no Pacífico, na sequência da sua retirada do Tratado das Forças Nucleares Intermediárias. Em contraste com a postura estratégica da China, a postura estratégica do Pentágono tem sido sempre incessantemente ofensiva e a sua atual estratégia de combate de guerra chama-se Air Sea Battle (Batalha Ar-Mar), que tem explicitamente como alvo a China. Um analista resume um documento-chave da Air Sea Battle como detalhando como, em caso de conflito com a China, haveria "ataques cinéticos e não cinéticos" (por outras palavras, tanto explosivos como eletrónicos) contra centros de comando terrestres, sistemas de radar e instalações de recolha de informações, ataques contra instalações de produção e armazenamento de mísseis e operações "cegantes" contra satélites chineses. Dizia também que os “fluxos comerciais marítimos da China seriam cortados, com vista a exercer um grande desarranjo sobre a economia chinesa e, eventualmente, desarranjo interno" (13).

 

Face aos resultados limitados trazidos pelo aperto comercial e tecnológico de Trump e Navarro sobre a China, a administração Biden deslocou o foco para a frente militar, sendo a sua mais recente mudança a deslocação de vasos navais da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) da Europa para patrulhar regularmente o Mar da China do Sul, juntamente com navios do Japão, Coreia do Sul, Filipinas e Austrália. Os críticos lamentaram, com razão, a escalada, tanto da retórica agressiva como dos destacamentos militares efetivos, como sendo um reforço da possibilidade de conflito armado, uma vez que, sem regras de engajamento, a colisão de um navio poderia facilmente transformar-se numa forma mais elevada de conflito.

 

Lembrar claramente à China de moderar as suas ambições ou enfrentar uma ameaça existencial não é, contudo, o único objetivo da política chinesa cada vez mais militarizada da administração Biden. Provavelmente mais importante é o impacto simbólico de uma demonstração de força, ou seja, o seu impacto na política interna da China. É provável que este tenha sido o objetivo da visita de Nancy Pelosi a Taiwan, que teve lugar poucos dias depois de um destruidor norte-americano ter passado pelo Estreito de Taiwan. Foi o desencadeamento de um acontecimento altamente simbólico, implicitamente apoiado pelo poder militar, para provocar uma crise política na China - neste caso, a desestabilização do papel de liderança do Xi - mostrando que os E.U.A. poderiam a qualquer momento rasgar a sua política de Uma China e apoiar descaradamente Taiwan, sem que Pequim pudesse fazer alguma coisa devido ao seu medo do poder dos E.U.A.. O calendário não poderia ser mais crítico, pois dois meses e meio antes do Congresso do Partido, em meados de outubro, Xi Jin Ping deverá procurar um consenso para a sua iniciativa de abolir o limite informal de 10 anos de mandato de um presidente. Diz-se que há relatos de insatisfação significativa com a resposta relativamente suave e largamente simbólica de Xi à provocação Biden-Pelosi em certos quadrantes do partido, dos militares, e do público (14).

 

Transição hegemónica ou impasse (stalemate) hegemónico?

 

Mas para voltar à nossa principal preocupação, com uma China economicamente forte e muito hesitante em afirmar a liderança global e uns Estados Unidos da América económica e politicamente enfraquecidos, que procuram desesperadamente consolidar a sua posição, lançando em redor a sua superioridade militar absoluta, será que podemos realmente falar de uma transição hegemónica?  Não deveríamos antes falar de um impasse hegemónico ou de um vácuo hegemónico?

 

Talvez, para comparação, devêssemos olhar não tanto para uma transição hegemónica como para a emergência de um vácuo hegemónico semelhante mas não exatamente igual ao que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, no século XX, quando os Estados enfraquecidos da Europa Ocidental deixaram de ter a capacidade de restaurar a sua hegemonia global anterior à guerra, enquanto os E.U.A. não deram seguimento ao impulso de Woodrow Wilson para que Washington afirmasse uma liderança política e ideológica hegemónica.

 

Num tal vácuo ou impasse, a relação E.U.A.-China continuaria a ser crítica, mas sem que nenhum dos atores fosse capaz de gerir de forma decisiva tendências, tais como eventos climáticos extremos, crescente protecionismo, a decadência do sistema multilateral que os Estados Unidos da América puseram em prática durante o seu apogeu, o ressurgimento de movimentos progressistas na América Latina, a ascensão de Estados autoritários e a provável emergência de uma aliança entre eles para deslocar uma ordem internacional liberal vacilante, e tensões cada vez mais descontroladas entre regimes islamitas radicais no Médio Oriente e Israel e regimes árabes conservadores.

 

Crise e oportunidade

 

Tanto os responsáveis políticos conservadores como os liberais pintam este cenário para sublinhar a razão pela qual o mundo precisa de um poder hegemónico, com os primeiros a defenderem um Golias unilateral que não hesita em usar a ameaça e a força para impor a ordem e os segundos a preferirem um Golias liberal que, para rever ligeiramente o famoso ditado de Teddy Roosevelt, fala docemente mas carrega um grande bastão.

 

Há, contudo, aqueles, e eu sou um deles, que encaram a atual crise de hegemonia dos E.U.A. como oferecendo, não tanto a anarquia, mas sim a oportunidade. Embora haja riscos envolvidos, um impasse hegemónico ou um vácuo hegemónico, abre o caminho para um mundo onde o poder poderia ser mais descentralizado, onde poderia haver maior liberdade de manobra política e económica para atores mais pequenos, tradicionalmente menos privilegiados, do Sul global, onde uma ordem verdadeiramente multilateral poderia ser construída através da cooperação, em vez de ser imposta através de uma hegemonia unilateral ou liberal.

 

Sim, a crise pode conduzir a uma crise ainda mais profunda, mas também pode conduzir a oportunidades.

 

 

 

 

 

(*) Walden Bello (n. 1945) é um académico, ativista social e político filipino. Enquanto estudante na Universidade de Princeton (E.U.A.) participou no movimento anti-guerra (Vietnam) e contra a ditadura de Marcos no seu país, dirigindo pessoalmente ações de grande radicalismo. Militou no Partido Comunista das Filipinas, de que se afastou devido à sua prática de execuções sumárias. Deu aulas na Universidade da Califórnia (Berkeley). Foi fundador, diretor executivo e analista da organização Focus on the Global South, sediada em Bangkok, que se especializou no estudo e combate da globalização neoliberal. Pertence à direção do Center for Economic and Policy Research, colaborando também com o Transnational Institute. Foi congressista nas Filipinas pelo partido Akbayan (2009-2015). É atualmente professor de Sociologia na State University of New York, em Binghamton. Entre as suas numerosas obras publicadas, as mais influentes e globalmente discutidas são Deglobalization: Ideas for a new world economy (2002); Dilemmas of domination: The unmaking of the americam empire (2005); The Food Wars (2009); Capitalism’s last stand? Deglobalization in the age of austerity (2013); Paper Dragons: China and the Next Crash (2019). Este ensaio resulta de uma palestra no Departamento de Economia da Universidade de Massachusetts, Amherst, MA, a 28 de setembro de 2022. O original está publicado em International Development Economics Associates-IDEAS. A tradução é de Ângelo Novo.

 

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NOTAS:

 

(1) John Ikenberry, A World Safe for Democracy (New Haven: Yale University Press 2020).

 

(2) Ibid., p. 285.

 

(3) Ionnis Bournakis, Michaela Vecchi e Francesco Venturini, “Off-shoring, Specialization, and R&D”, Review of Income and Wealth, Vol 64, N.º 1, pp. 727-744. Citado em Branko Milanovic, Capitalism Alone (Cambridge: Harvard University Press, 2019), p. 152.

 

(4) Ibid.

 

(5) Paul Mason, How to Stop Fascism (United Kingdom: Allen Lane, 2021).

 

(6) Barbara Walter, How Civil Wars Start (New York: Crown, 2022), pp. 159-160.

 

(7) Richard Baldwin, The Great Convergence (Cambridge: Harvard University Press, 2016).

 

(8) John Kemp, “China Has Replaced the US as Locomotive of the Global Economy”, Reuters, Nov 5, 2019.

 

(9) Albert Hirschman, The Strategy of Economic Development (New Haven: Yale University Press, 1958.

 

(10) MIlanovic, ob. cit., pp. 67-128.

 

(11) Kevin Gallagher, “China’s Role as the World’s Development Bank Cannot be Ignored”, National Public Radio, Oct 11, 2018 .

 

(12) Dados comparativos detalhados sobre a força e as posturas militares da China e dos E.U.A. são reunidos em Walden Bello, China: An Imperial Power in the Image of the West (Bangkok: Focus on the Global South, 2019), pp. 67-82.

 

(13) Sumariado em Bill Hayton, The South China Sea: The Struggle for Power (New Haven: Yale University Press, 2014), p. 218.

 

(14) Ler “China Disappointment at Taiwan Response Puts Pressure on Xi”, Bloomberg, Aug 2, 2022.