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Preparar a ordem nova na era das distopias
Andrea Zhok (*)
1) Cursos de colisão
A era contemporânea apresenta uma reedição reforçada do sistema de contradições que tem caracterizado o sistema capitalista desde o seu início. O problema estrutural associado ao modo de produção capitalista é o seu carácter “monotónico exponencialmente crescente”, ou seja, a sua tendência intrínseca para alimentar processos de “retroalimentação (feedback) positiva”, de “interesse composto”, de crescimento ilimitado. Dito de outra forma: o mecanismo do capital, vivendo pelo seu próprio crescimento, tende a empurrar constantemente todos os fatores de produção na mesma direção, criando assim um desequilíbrio sistemático. O sistema empurra, assim, para cima da sociedade, o crescimento indefinido da produção, o crescimento indefinido da acumulação de capital, o crescimento indefinido da exploração das pessoas e da natureza.
Isto é o que na antiga língua marxista se chamava as "contradições do capitalismo". Cada uma destas tendências entra em conflito sistemático com os ordenamentos sociais humana e ambientalmente equilibrados: cresce a distância entre o topo e a base da pirâmide social, cresce o consumo e o desperdício de recursos, cresce a liquefação dos organismos coletivos (famílias, comunidades, estados, etc.) e das identidades pessoais. Enquanto o mundo e a vida podem ser concebidos no modelo orgânico dos sistemas de “retroalimentação negativa”, que restauram e corrigem as quebras de equilíbrio, o capitalismo funciona como uma proliferação ilimitada e descontrolada, literalmente como um cancro ontológico.
Historicamente, uma vez que o primeiro a compreender a natureza do problema foi Marx, associa-se esta consciência à procura de soluções “anticapitalistas”, socialistas, comunistas ou similares. A ideia, portanto, é muitas vezes que o "povo" deve ser o primeiro assunto de relevância nestas análises. Esta visão esquece um facto da realidade: aqueles que levam mais a sério as análises marxistas e pós-marxistas são, há muito, os detentores do poder dentro do sistema, fortemente preocupados que estão com tudo o que possa minar a sua posição. São os capitalistas, os "mestres do vapor", que se preocupam principalmente com os problemas do capitalismo hoje em dia.
2) Os "mestres do vapor”
Quando falamos genericamente de “capitalistas”, “oligarquias”, “elites”, etc., é inevitável levantar suspeitas de uma vagueza excessiva dos referentes. A quem se destina? Gostaríamos de poder nomear o sujeito do poder por nome e apelido, como se podia fazer no mundo pré-moderno, indicando o rei, o papa, o imperador, este senhor feudal, aquele cortesão, etc.. Hoje em dia, porém, a designação de nomes é uma falsificação da realidade. Por muito que as pessoas importem, o sistema tem uma elevada capacidade para substituir os seus membros a todos os níveis, incluindo o topo. Saber quem é o CEO da BlackRock ou da Vanguard não nos aproxima de uma compreensão de quem exerce o poder, porque não se trata aqui de como é que indivíduos específicos desempenham as suas funções.
Outro erro em que não devemos cair é o de - alimentados pela própria ideologia do poder - assumir que a existência de uma pluralidade de "mestres de vapor", e não de um único "imperador", garante de alguma forma uma diversificação de interesses e projetos, e com isso alguma "democraticidade" ao sistema (por exemplo: "a existência de diferentes capitalistas implica diferentes diretores dos órgão de comunicação e, portanto, pluralidade de informação"). Isto é uma grave ingenuidade. No dia em que o CEO da BlackRock redescobrir o espírito zapatista e o desejo de apoiar a libertação de Chiapas, deixaria de ser CEO e seria substituído (com indemnização por cessação de funções, claro). As linhas de fundo não podem mudar e estas têm apenas um objetivo infalível: a perpetuação do poder daqueles que o detêm. Também não se deve fixar numa ortodoxia “capitalista” específica. As oligarquias financeiras não são “capitalistas” pelo amor ideal do capitalismo: não é uma religião alternativa. Esta é simplesmente a forma sob a qual detêm o poder. Se abandonar este ou aquele aspeto ideológico favorecer a preservação e consolidação do seu poder, nada se interporá no seu caminho.
Mas, no final, quem são estes "mestres do vapor"? A concentração de poder contemporânea é algo sem precedentes na história: algumas centenas de pessoas detêm as rédeas dos maiores grupos financeiros mundiais (anglo-americanos) e daquilo a que Eisenhower chamou o "complexo militar-industrial" norte-americano. Estes grupos têm todas as alavancas fundamentais do poder, são capazes de orientar as decisões políticas nos seus estados anfitriões (E.U.A., antes de mais nada) e, em cascata, em todos os estados a eles subordinados ou em dívida para com eles. Não existem, exatamente, poderes compensatórios, similares aos existentes fora do mundo ocidental, que possam escapar à influência dos primeiros. Noutros lugares, o poder económico, mesmo o mais inflexível, é de alguma forma dominado por instâncias politicamente motivadas (nacionalismo in primis).
Estas elites do ápice ocidental são compactadas pela motivação de manter um poder de base económica e têm capacidades de coordenação imensamente superiores a qualquer outro grupo de interesses: têm locais e modos de reunião institucionais e não institucionais, têm recursos que permitem uma pluralidade de acordos e comunicações por meios múltiplos, oficiosos ou clandestinos.
Aqueles que esperam encontrar um elenco dos reinantes e herdeiros do trono, a fim de planear um assalto ao "Palácio de Inverno", e na ausência dessa lista, preferem desclassificar o problema, reduzindo-o a conjeturas ou teorias da conspiração, são infelizmente cúmplices involuntários do poder.
Raros são os súbditos das elites do ápice que procuram o protagonismo público, e os que o fazem são os poucos, vítimas dos seus próprios ideologismos, que se convenceram de que estão a realizar operações "paternalisticamente redentoras" (os nomes habituais que circulam de Schwab, Soros, Gates, etc.). Os mais inteligentes de entre eles sabem muito bem que o seu poder não passa por um consenso público e que, portanto, revelarem-se não os fortalece, antes os expõe e enfraquece.
Estamos, portanto, perante o seguinte quadro: um pequeno grupo de sujeitos, tendo obtido uma posição eminente dentro do capitalismo contemporâneo, detém um poder com níveis de concentração nunca antes vistos, e move-se e coordena (na sua rede de particularidades pessoais) com o objetivo de manter e consolidar este poder. Ao mesmo tempo, este grupo restrito do ápice tem perfeita consciência das tendências críticas implícitas ao sistema, do qual se encontram no topo. Temos de deixar de imaginar o capitalista como um videirinho que se entrega a brincadeiras sexuais, iates e vinhos de prestígio. Quem se move neste horizonte hedonístico são, tipicamente, indivíduos da classe média, novos ricos. O capital consolidado ("dinheiro velho") forja diferentes tipos humanos, que, ou têm uma educação adequada para compreender os problemas do sistema, ou estão habituados a pagar a grupos de reflexão para fazerem esse trabalho por eles.
3) As perspetivas das elites do ápice
O que devemos, portanto, trazer à tona é o pressuposto de que as linhas de contradição dentro do sistema de capital são perfeitamente conhecidas dos "mestres do vapor". São apenas os seus assistentes de loja liberalistas que continuam a criar cortinas de fumo com o seu “mercado perfeito”, “equilíbrio geral a longo prazo” e outras engenhocas. Esta força de trabalho intelectual, generosamente financiada, ocupa frequentemente postos académicos de prestígio, e a sua função é promover um denso nevoeiro ideológico, velho de cem anos, sobre o qual se dispersam as energias dos críticos. É uma defesa de infantaria da linha da frente, para manter os seus oponentes longe da verdadeira frente. A maioria é demasiado estúpida para saber que estão ali meramente a agir como alvos fictícios.
Que a substituição acelerada dos trabalhadores por máquinas cria um desequilíbrio estrutural no sistema de produção, com um excesso de produto potencial sobre o consumo, e um excesso de procura impotente (consumidores sem poder de compra) sobre uma oferta transbordante, é bastante evidente e pacífico.
Que isto configura a existência de uma vasta população supérflua, demasiado extensa para ser útil como "exército de reserva do capital", uma multidão de bocas para alimentar e a fervilhar de descontentamento, é igualmente evidente.
Que um sistema de crescimento infinito acaba por minar todo o sistema, ambiental e social, em que vivemos, é igualmente claro.
As linhas de fratura primária que caem sob a atenção das elites são portanto: 1) fratura social (risco de revoltas); 2) fratura ecológica (risco de desestabilização dos equilíbrios ambientais); 3) fratura financeira (colapso terminal das expectativas de crescimento e, com isso, dos pressupostos do sistema).
O erro dos herdeiros da primeira linha de análise crítica, a marxista, é pensar que o reconhecimento destas tendências implica, em si mesmo, a adesão a uma perspetiva de "superação do capitalismo", com a procura de formas sociais que escapem à desumanização, à alienação, que restabeleçam um sistema em equilíbrio ("de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades").
Esta é outra ingenuidade grave. As elites do ápice do sistema contemporâneo conhecem as contradições do sistema, mas isto não significa de modo algum que pretendam abandoná-lo. Não há nada de estranho nisto, nenhum bloco de poder na história alguma vez deixou o poder espontaneamente. A questão aqui é compreender bem quais são as perspetivas que se abrem do ponto de vista deste poder, pois que isso pode mostrar-nos o espetro dos riscos subterrâneos da era contemporânea (aqueles riscos que, muitas vezes, acabam por ser expressos de forma confusa, e portanto desacreditados, sob a forma de "teorias da conspiração").
3.1) Levar o seu tempo com soluções de mercado
A primeira perspetiva é a menos radical e a mais fraca, mas é também a que pode ser afirmada apertis verbis (de forma clara e explícita), sem hesitação. Trata-se de fazer passar a ideia de que para cada problema existe potencialmente uma resposta, que as soluções tecnológicas do mercado serão capazes de fornecer. Esta ideia é proposta pelos palradores dos mass media como se fosse uma opção realista, quando na realidade apenas serve para atrasar certos processos, ao mesmo tempo que permite uma continuação da acumulação de capital. Assim, para responder a um problema ambiental único e cuidadosamente selecionado (aquecimento global?), é de tempos a tempos exibida nos meios de comunicação simbólicos a perspetiva salvífica dos carros elétricos, ou da energia nuclear, ou da Norma Euro 7, etc.. Este enfoque seletivo dá a impressão de que se trata sempre de resolver um problema preeminente, tornando plausível a procura de soluções técnicas; isto permite ganhar algum tempo numa área, distrair a atenção do público, dando esperança, e dirigir as políticas públicas de uma forma rentável.
Evidentemente, estas operações setoriais, partilhando o impulso estrutural para a inovação perene e o crescimento perene da produção, continuam a alimentar o processo de desestabilização sistémica. Na melhor das hipóteses, as soluções tecnológicas ad hoc podem colmatar temporariamente uma lacuna, ao mesmo tempo que se abrem outras dez, sob a forma de externalidades sistémicas.
3.2) A guerra como higiene do mundo
A segunda perspetiva é uma linha clássica e mais radical de solução, que permite conter temporariamente os danos ao longo de várias linhas de falha. Quando uma guerra pode ser fomentada, é, pelo menos no que diz respeito aos países envolvidos, uma solução eficaz, uma vez que simultaneamente: arregimenta as populações, bloqueando o protesto social; cria uma área de consumo frenético (e, portanto, de renda de capital) sem necessidade de conferir poder de compra à população; abranda outros processos sociais, reduzindo a "pegada ecológica" humana, e na melhor das hipóteses, também reduz a população. Esta solução funciona idealmente tanto melhor quanto maior for o número de países envolvidos. Se um conflito for militarmente muito circunscrito, não haverá impacto no número de habitantes, mas será ainda assim eficaz noutros aspetos (arregimentação e disciplina social + drenagem económica num "potlatch" pós-moderno, onde vastos recursos são queimados para mover a máquina do consumo).
Uma guerra mundial duradoura e de baixa tensão seria de facto uma solução perfeita: permitiria idealmente: 1) quebrar toda a resistência ou revolta social em nome da santa oposição ao inimigo externo; 2) concentrar energias na produção infinita destinada ao consumo infinito, que ignora toda a saturação do mercado; 3) reduzir progressivamente a população.
No entanto, esta perspetiva é altamente instável e não é fácil de manipular, mesmo para as elites do ápice, por mais poderosas que possam ser. Provocar uma série de conflitos em áreas já sofridas e politicamente débeis é relativamente fácil, mas uma condição de guerra mundial duradoura e de baixa voltagem não é diretamente orquestrável, e arrisca-se continuamente a efervescer ou a criar uma escalada nuclear, na qual mesmo as elites do ápice acabariam por se ver envolvidas, até certo ponto.
3.3) Sociedade de controlo
A terceira perspetiva há muito já que se manifesta e tem tudo a ver com uma transformação do modelo ideológico liberal num modelo autoritário, sem alterar um pouco sequer a sua aparência. A sociedade ocidental contemporânea (mas não apenas a ocidental) é mais regulamentada, legislada e policiada do que qualquer outra sociedade na história. Não só existem mais leis do que no passado, e mais detalhadas, sobre áreas de comportamento que no mundo pré-moderno não eram objeto de atenção legislativa, mas a maior capacidade tecnológica permite níveis sem precedentes de implementação e controlo do cumprimento destas normas absolutamente inéditas.
Dado que cada poder tem um incentivo intrínseco para aumentar a sua capacidade de controlo, no mundo liberal isto ocorre de uma forma paradoxal, com base na pretensão de trabalhar para uma "promoção da liberdade". A fim de transformar uma ideologia de liberdade numa ideologia de controlo, o neoliberalismo apoia-se sistematicamente na ideia de “vitimização” ou “vulnerabilidade” de um grupo. Uma vez que um determinado grupo tenha sido identificado como potencialmente ofendido, violado nos seus direitos naturais ou humanos, podem ser praticados atos coercivos em nome das "vítimas", talvez para evitar a sua potencial vitimização. Este mecanismo pode ser feito funcionar tanto dentro de um país como no exterior. Pode-se intervir coercivamente na liberdade de expressão sob o pretexto de "proteger as sensibilidades" deste ou daquele grupo, pode-se intervir com a medicalização forçada (ou certificados verdes) para "proteger os frágeis", tal como se pode intervir como "polícia internacional" para "defender os direitos humanos" nesta ou naquela região do mundo. A mesma lógica permite a disseminação de câmaras de vigilância em qualquer local de acesso público ou a violação de qualquer comunicação privada em nome da “proteção de segurança”, etc..
É importante estar alerta para o facto de que as tecnologias de controlo atualmente disponíveis são extraordinariamente sofisticadas e que, uma vez quebrada a barreira da justificação legal, a capacidade de vigilância (e sanção) é quase ilimitada.
O interesse das elites do ápice num sistema total de vigilância, controlo e sanção é evidente por si mesmo. É e será sempre apresentada como uma "defesa dos vulneráveis", quando na realidade é uma forma de bloquear na raiz a possibilidade de aqueles desprovidos de poder se tornarem uma ameaça para aqueles que o têm.
3.4) Despovoamento
Enquanto a vigilância e o controlo podem neutralizar o perigo colocado pelo descontentamento das massas (descontentamento que, enquanto se mantiver a um nível baixo, pode ser contido com simples sistemas de distração e entretenimento), o problema colocado pelo excesso de população economicamente "inútil e prejudicial" invoca outra tentação, que não deve ser subestimada simplesmente porque soa "escandalosa". Os países sem um quadro ideológico liberal, como a China, podem permitir-se lidar explicitamente com questões de controlo demográfico, como aconteceu com a "política de um só filho". No Ocidente liberal, esta possibilidade de intervenção aberta está excluída, uma vez que exigiria trazer para a linha da frente questões embaraçosas (a começar pelo "consumo conspícuo") para as elites. Mas isto não significa que a tentação de intervir a partir de cima não esteja bem presente.
Sobre esta questão é impossível ir além de conjeturas e inferências, mas subestimar a tentação da utilização clandestina de soluções tecnológicas para limitar a fertilidade ou aumentar a mortalidade (de preferência para aqueles que já não estão em idade de trabalhar) seria errado.
3.5) Neofeudalismo ou nazismo 2.0?
Todas as "soluções" anteriores permanecem dentro do quadro capitalista, com os seus mecanismos e as suas contradições internas. Isto significa que, na sua essência, são sempre empurrões para a frente com o objetivo de ganhar tempo, atrasando certos processos, ou voltando atrás os ponteiros do relógio histórico. Uma solução radical de saída do modelo capitalista, pelo próprio poder capitalista, só é concebível com a promessa de cristalização das atuais relações de poder (uma saída em direção de uma democracia socialista não é, portanto, particularmente popular).
Num quadro de capitalismo financeiro, como o contemporâneo, as concretizações de poder podem ser fugazes, porque uma certa capitalização depende em primeiro lugar e sobretudo das expectativas de consumo. Aqueles que possuem grandes quantidades de ativos líquidos possuem um poder de compra potencial que depende inteiramente das perspetivas de disponibilidade de ativos e da confiança pública em títulos de crédito. Este poder é o mesmo que o exercido por uma nota de banco, um objeto virtual que pode tornar-se papel de entulho no momento em que deixe de ser considerado capaz de mediar o fornecimento de bens. Por esta razão, devido à necessidade de cuidar das aparências, das expectativas, o capitalismo financeiro deve prestar especial atenção à governação do aparelho de comunicação social. Mas em qualquer caso, existem limites à governação das expectativas, uma vez que os próprios mecanismos da concorrência económica geram constantemente convulsões desestabilizadoras.
No mundo capitalista, o poder “líquido” é muito mais poderoso (devido à sua máxima mobilidade e transformabilidade) do que qualquer poder “sólido” (a propriedade de bens reais). Contudo, os ativos reais conferem uma estabilidade a longo prazo que o capital líquido não permite. Portanto, a perspetiva de uma possível saída "pós-apocalíptica" do modelo capitalista com as suas contradições é concebível, para as elites do ápice, apenas em termos de uma transição para uma espécie de "neofeudalismo", em que o poder líquido é transformado novamente em propriedades materiais (terra, bens imóveis, armamento, tecnologia, etc.).
No entanto, surge aqui um problema que muda completamente o quadro. O feudalismo histórico funcionou com base num sistema de legitimação (incluindo a legitimação da propriedade) dependente da tradição e da religião. O mundo atual varreu estes dois fatores como conferentes de legitimidade. Então a questão aqui é: como poderia funcionar um sistema de legitimação do poder e da propriedade num "neofeudalismo" desprovido de tradição e religião?
O poder, na história humana, sempre foi, mesmo nas culturas mais autoritárias, determinado pelo reconhecimento médio da legitimidade do poder. Enquanto a maioria das pessoas reconheceu ou, pelo menos, não contestou a legitimidade de um poder, este permaneceu funcional. Este poder funcionava transmitindo-se com continuidade, por passagens intermédias, do cume até à base (do rei aos vassalos, dos senhores feudais aos cavaleiros, dos camponeses aos servos). Mas se a própria matriz da legitimação se perde, como pode o poder ser exercido de uma forma capilar, de cima para baixo? Num sistema capitalista, a riqueza é poder, sem necessidade de reconhecimento, porque o poder se carateriza como poder de aquisição, garantido pelo sistema económico. Se o sistema se avariar, essa forma de reconhecimento do poder impessoal falha. Como poderia um novo poder funcionar sem o reconhecimento da sua legitimidade?
Tecnicamente, a resposta é simples: teria de suplantar o poder dos "meios", representados pelo dinheiro, com outro meio externo adequado ao fim a que se destina. Concretamente, a perspetiva mais plausível é que isto seria feito através da manipulação de meios capazes de incutir medo, um medo que os poucos devem ser capazes de incutir diretamente aos muitos.
Uma tal perspetiva era inacessível no passado, mas o progresso tecnológico alimentou, de há algum tempo, esta possibilidade, nomeadamente a possibilidade de que um centro circunscrito se imponha sobre a multidão, através de um grande reforço de efeitos. Uma espada poderia impor-se talvez a cinco pessoas desarmadas, uma pistola a dez, uma bomba a mil; e com o aumento técnico do poder, a dificuldade de o usar também diminuiu: hoje em dia é mais fácil detonar uma bomba do que outrora foi empunhar uma espada. Mas não devemos imaginar o poder tecnológico simplesmente como o exercício da força bruta. Pensemos antes na situação atual como uma generalização da existência de sementes geneticamente modificadas, sob patente, que não permitem que as suas unidades sejam replantadas na próxima colheita, limitando a possibilidade da sua aquisição a um único fornecedor central. A linha de fundo deste mecanismo de poder é simples: trata-se de tornar um grupo estruturalmente dependente, para a sua própria existência, do acesso a uma tecnologia que não é reproduzível de modo autónomo, mas administrada de forma central. Numerosos mecanismos deste tipo podem ser inventados, basta tornar as pessoas dependentes de um bem tecnologicamente escasso e não reproduzível de forma autónoma (uma terapia?). Tal mecanismo pode, em princípio, permitir que o poder seja exercido de forma direta, “neofeudal”, sem a necessidade de mecanismos de intermediação e de legitimação.
Uma última observação: falar aqui de “neofeudalismo” é usar uma expressão enganosa. Lidamos aqui com um sistema em que, é certo, estamos perante uma sociedade hierárquica fechada, como o feudalismo, baseada em poderes e bens reais, e não líquidos, mas todos os outros aspetos são profundamente diferentes e não num sentido melhorado. Seria um mundo em que uma casta superior exerce o seu poder através do medo, tendo substituído, como fonte última de autoridade, o que no feudalismo era Deus, pela Tecnologia. Seria uma sociedade de comando direto, não mediada por qualquer adesão ideológica, uma sociedade que adora a eficiência técnica e concebe a infra-humanidade situada fora da casta superior como simples matéria-prima a ser eliminada à vontade.
Este quadro não faz, de facto, lembrar o feudalismo, mas sim uma experiência muito mais próxima de nós, nomeadamente o nazismo. O nazismo, com efeito, para além dos seus tons esotéricos e pagãos, foi essencialmente uma veneração de força direta, atribuída a uma casta superior, e exercida com rigorosa eficiência produtivista, concebendo o próprio homem como um meio manipulável (eugenia) e como recurso escravizado (campo de concentração).
Poderíamos assim descobrir, um belo dia, que a dúzia de anos em que o nazismo fez a sua breve e inglória aparição na história foram apenas a primeira experimentação de instâncias e tendências destinadas a adquirir uma solidez completamente diferente, um século mais tarde.
4. Preparando a nova ordem mundial
Para definir o nosso espaço histórico de possibilidade é necessário compreender o lugar que ocupamos na trajetória da nossa civilização. Todos nós, italianos, europeus, ocidentais, nos encontramos dentro de uma fase de crise epocal, potencialmente terminal, do mundo liberal que tomou forma há pouco mais de dois séculos.
Em meados do século XIX, já tinha sido esclarecido, pela análise marxista, que esta forma de civilização, diferentemente de todas as que a precederam, era afetada por contradições internas autodestrutivas. Os principais elementos internamente contraditórios ficaram claros desde então, embora Karl Marx concentrasse o seu olhar na linha de fratura social (tendência à concentração oligopolista e à pauperização das massas), enquanto, por razões históricas óbvias, lhe faltasse a perceção de outras saídas críticas inerentes às mesmas contradições (não existia a consciência da possibilidade de uma extinção da espécie pela via da guerra, que se tornou uma possibilidade após 1945, nem a ideia da relevância do impacto degenerativo do progressismo capitalista no sistema ecológico).
Um sistema que só vive se crescer e que, ao crescer, consome indivíduos e povos inteiros, como meios indiferentes, para o seu próprio crescimento, sempre produz, necessária e sistematicamente, tendências ao colapso. A leitura marxista, talvez muito condicionada pelos seus próprios desejos, previa, como forma da derrocada vindoura, uma derrocada revolucionária, na qual as maiorias empobrecidas se revoltariam contra os oligopólios plutocráticos. A derrocada que se apresentou aos olhos da geração seguinte foi a guerra, uma guerra mundial como conflito final na competição imperialista entre estados que tinham realmente se tornado “comités de negócios da burguesia”.
A fase atual apresenta tendências muito semelhantes às do início dos anos 1900: uma sociedade aparentemente progressista e opulenta, secularizada e cientificista, na qual as margens de crescimento (“mais-valia”), entretanto, tinham se estreitado e tinham levado à busca de fontes de recursos alimentares e matérias-primas cada vez mais distantes, em países colonizados. Isso até as ambições individuais de crescimento começarem – cada vez com mais frequência – a colidir no plano internacional, pressionando para que se façam preparativos para um possível conflito, por meio de tratados secretos de alianças militares que deveriam ser acionados na presença de um casus belli.
Que o resultado da crise atual seja uma guerra mundial total, no modelo da Segunda Guerra Mundial, é apenas uma possibilidade.
Poderiam prevalecer as pressões para tornar uma guerra mais parecida com a Primeira, onde a frente é a Ucrânia e as retaguardas, encarregadas de fornecer meios para o combate, são a Europa e a Rússia. Na Primeira Guerra Mundial, os civis não estavam diretamente envolvidos nos eventos de guerra, exceto nas zonas de contato, mas o envolvimento geral em termos de empobrecimento e carestia foi enorme. Entre 1914 e 1921, a Europa perdeu entre 50 e 60 milhões de habitantes, dos quais “apenas” entre 11 e 16 milhões (dependendo do método de contagem) morreram diretamente durante o conflito.
Da guerra emergiu uma classe industrial específica, mais rica e mais poderosa do que antes. Era ela que, direta ou indiretamente, estava envolvida no abastecimento da frente. Os países mais distantes da frente, e não diretamente envolvidos, saíram da guerra ainda mais ricos e comparativamente mais poderosos.
Esta é, naturalmente, também a perspetiva e a esperança daqueles que hoje alimentam o conflito à distância.
A experiência de entrar na guerra, com a cumplicidade de fato de quase todos os partidos socialistas e social-democratas, representou um trauma do qual se tirou um ensinamento fundamental, ensinamento este que, se atualizado, poderíamos traduzir como: a esquerda do sistema não tem nenhuma capacidade nem vontade real de se opor à degradação do sistema. Em resposta a esse trauma, Antonio Gramsci, em 1919, fundou uma revista com um nome altamente simbólico, A Nova Ordem (“Ordine Nuovo”); e dois anos depois, com base no aparente sucesso da Revolução Russa, nascia o P.C.I., com a intenção de ser justamente um antídoto para o que aconteceu: uma força “antissistema” capaz de derrubar os paradigmas sociais e produtivos que tinham levado à guerra (e que permaneciam intactos).
No mesmo ano, tomou forma o movimento dos Fasci di Combattimento, cujo Manifesto “Sansepolcrista” (junho de 1919) pode surpreender quem conhece a evolução posterior do regime fascista italiano (1).
Também aqui, a onda da experiência do pré-guerra e da guerra empurrava para uma direção de renovação radical, do “antissistema”. Encontramos aí o pedido de sufrágio universal (também feminino), a jornada de trabalho de oito horas, o salário-mínimo, a participação dos trabalhadores na administração da indústria, um imposto extraordinário sobre o capital de natureza progressiva com expropriação parcial de todas as riquezas, a apreensão de 85% dos lucros de guerra etc..
Em poucos anos, porém, o movimento dos Fasci di Combattimento perderá todas as instâncias socialmente mais radicais e será reabsorvido pelo sistema, obtendo em troca o apoio económico dos agrários e da grande indústria, que o utilizarão em operações anticomunistas e antissindicais. Com uma leitura atualizada (e naturalmente forçada, dada a vastidão das diferenças históricas), poder-se-ia dizer que a cisão do protesto antissistema (fomentada pelo capital) conseguiu neutralizar o caráter de ameaça ao próprio capital, mantendo apenas um caráter de revolucionarização externa.
Em quase perfeito paralelismo com a publicação do Manifesto “Sansepolcrista”, Antonio Gramsci abria as páginas de A Nova Ordem (maio de 1919) com um célebre apelo: “Instruí-vos, porque precisaremos de toda a nossa inteligência. Agitai-vos, porque precisaremos de todo o nosso entusiasmo. Organizai-vos, porque precisaremos de toda a nossa força”.
Antonio Gramsci tinha para si perfeitamente claro que as possibilidades de sucesso de uma força que desejasse o derrube de um sistema capitalista, saído quase ileso do maior conflito de todos os tempos, com certeza exigiria a agitação e o protesto (não difícil de obter, numa Itália onde o descontentamento pós-guerra era enorme), mas exigia sobretudo “estudo” (formação) e “organização”.
Um século se passou. Muitas coisas mudaram, mas o sistema socioeconómico é o mesmo e a fase é semelhante: passados por uma profunda revisão, no rescaldo de 1945, nos recolocamos nos velhos trilhos, de forma acelerada, a partir dos anos 1980.
Hoje, estamos numa situação que lembra, em muitos aspetos, a de 1914: o início, perfeitamente inconsciente, de uma longa e destrutiva crise.
Sair dela mais ou menos como em 1918, com uma condição de empobrecimento generalizado e uma sociedade mais violenta, mas sem a destruição da guerra diretamente em casa, é o cenário que acredito ser o mais otimista. Com alguns anos de crises energética, alimentar e industrial, a Europa ficará reduzida a ser fornecedora de mão de obra qualificada de baixo custo para as indústrias norte-americanas. Este é o melhor cenário.
São mínimas as possibilidades de travar o comboio em movimento rumo ao abismo O que se pode fazer é prepararmo-nos para estar à altura dos eventos, para guiar as peças em queda livre de modo que se disponham como fundação para um futuro edifício.
E isso requer, como dizia Antonio Gramsci, antes de tudo, uma formação adequada para interpretar os acontecimentos, para sair do dogmatismo e da rigidez que nos impedem de compreender a força e o caráter do “sistema”. Nesta fase, aqueles que permanecem ancorados nos reflexos condicionados de direita e de esquerda, com os seus relativos dogmas, santinhos e demonizações aos montes, são parte do problema. O sistema de dominação do capitalismo financeiro mundial, em bases anglo-americanas, é uma potência em crise, sim, mas ainda é a maior potência do planeta e sobreviveu já a outras grandes crises.
É capaz de persuadir quase qualquer um, de quase tudo, por meio de um minucioso controle capilar dos principais nós mediáticos. É capaz de corromper quem tenha um preço e de ameaçar quem não o tenha.
Também pode mudar rapidamente de pele em questões “decorativas” e “superestruturais”, como todos os vários direitocivilismos e direitohumanismos, que ora brande como santos-e-senhas, quando servem, mas que pode fazer desaparecer num instante, como um conto de fadas ad hoc, se uma estratégia diferente lhe for útil.
Ter uma consciência cultural do que é essencial e do que é contingente é aqui crucial.
E em segunda instância, ainda com Antonio Gramsci, é preciso organização. Quem aspira, não a “derrubar o sistema” (hoje em dia ninguém tem a physique du rôle (2) para fazê-lo de maneira direta, “revolucionária”), mas a acompanhar o parcial colapso endógeno, para trazer à luz uma nova forma de vida, tem alguma possibilidade de fazê-lo apenas se levar terrivelmente a sério as obrigações de uma organização coletiva.
O que o “sistema” alimenta conscientemente é a inconsciência (ignorância, desorientação) e a fragmentação (caída no privado, desconfiança mútua). Quem tenta desafiá-lo deve remar com todas as forças na direção oposta.
(*) Andrea Zhok é licenciado e doutorado em filosofia pela Universidade de Milão, onde é neste momento professor de Metafísica (Filosofia Teórica) e Filosofia Moral. Possui ainda um mestrado pela Universidade de Essex (2000). Entre os seus livros publicados destacamos Il concetto di valore: dall’etica all’economia, Mimesis, Milano 2002, Lo spirito del denaro e la liquidazione del mondo. Antropologia filosofica delle transazioni, Jaca Book, Milano 2006, Introduzione alla storia come narrazione e come azione, Cuem, Milano, 2007,Libertà e natura. Fenomenologia e ontologia dell’azione, Mimesis, Milano, 2017, Critica della ragione liberale. Una filosofia della storia corrente, Meltemi, Milano, 2020. Este ensaio foi originalmente publicado em duas partes distintas no portal L’Antidiplomatico, aqui e aqui. O primeiro destes artigos tem uma versão em castelhano publicada na revista El Viejo Topo, n.º 421 (fevereiro de 2023), com a qual pudemos cotejar. A junção dos dois artigos é da nossa responsabilidade, com o acordo do autor. A tradução é de Ângelo Novo.
_______________________ NOTAS;
(1) [NOTA DO TRADUTOR] Fasci di Combattimento (Feixes de Combate) era o nome dos bandos de arruaceiros armados que prepararam o caminho para a tomada de poder pelos fascistas italianos, tendo inclusivamente dado nome ao movimento. Foram criados num comício na Piazza San Sepolcro, em Milão, a 23 de março de 1919, onde foram proclamados os seus dez princípios, depois publicados, em junho, no jornal fascista Il Popolo d’Italia. É este o “manifesto sansepolcrista”, que reclamava equidistância entre esquerda e direita, contendo, porém, propostas reformistas avançadas de conteúdo claramente socialista.
(2) [NOTA DO TRADUTOR] Physique du rôle é uma expressão francesa, de uso corrente na língua italiana, para expressar adequação entre o porte físico de um ator ou agente e o papel por ele desempenhado. O autor quer aqui dizer, de forma certamente discutível, que nenhuma organização política no mundo ocidental (ao que parece) estará neste momento em condições de dirigir uma revolução socialista.
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