A NATO e a longa guerra ao Terceiro Mundo

 

Pawel Wargan (*)

 

 

 

Dizem-me eles: Coma e beba. Fique contente por o ter!

Mas como posso comer e beber se apanho o que como

dos famintos, e

o meu copo de água pertence a um moribundo de sede?

E ainda assim como e bebo (1)

 

Bertolt Brecht

 

 

Os dois eixos da contrarrevolução

 

Pela primeira vez na longa história do capitalismo, o centro de gravidade económico global está a deslocar-se decisivamente para Leste. A balança comercial favorece agora a China e as nações do Terceiro Mundo preparam-se para o fim da era da hegemonia norte-americana, um período de desequilíbrios forçados no sistema capitalista mundial que acelerou o subdesenvolvimento das sociedades pós-coloniais. Os movimentos tectónicos desencadeados por este processo estão a enviar tremores para todo o mundo. O chamado "mundo ocidental", formado ao longo dos séculos pelo domínio do capital, é impotente face às catástrofes da fome, da pobreza e das alterações climáticas. Impossibilitadas de mobilizar o seu poder económico para a melhoria da sociedade - um processo que desafiaria a preeminência da propriedade privada - as velhas potências coloniais estão a desviar recursos para a proteção da riqueza privada. O fascismo está a erguer a cabeça e novas marcas de alvo estão a ser pintadas em nações que procuram enveredar pelo caminho do desenvolvimento soberano. Desta forma, o impulso contrarrevolucionário da velha Guerra Fria é transportado para um novo século, mais uma vez pleno de promessas e de terror em igual medida.

 

No século XX, a contrarrevolução colonial desenrolou-se ao longo de dois eixos geográficos. Um era a guerra das nações ocidentais contra o processo de emancipação em cascata desencadeado no oriente. Em 1917, homens e mulheres com sobrancelhas suadas e mãos calejadas tomaram o poder na Rússia. Conseguiriam o que nenhum povo ainda tinha sido capaz de fazer. Construíram um estado industrializado que não só podia defender a sua soberania duramente conquistada, como também a projetava para aqueles que viviam sob o jugo do colonialismo. O apelo clarividente de Outubro seria ouvido em todo o mundo. Para Ho Chi Minh, brilhava como um "sol brilhante... em todos os cinco continentes". Abriu, disse Mao Zedong, "amplas possibilidades para a emancipação dos povos do mundo e abriu caminhos realistas em direção a ela". Anos mais tarde, Fidel Castro disse que "sem a existência da União Soviética, a revolução socialista de Cuba teria sido impossível". Os descalços, os analfabetos, os famintos e aqueles cujas costas estavam marcadas pelo arado aprenderam que, também eles, podiam erguer-se contra as indignidades do colonialismo e vencer.

 

Em 1919, Leon Trotsky escreveu o Manifesto da Internacional Comunista aos Trabalhadores do Mundo, que seria adotado por cinquenta e um delegados no último dia do Primeiro Congresso da Internacional Comunista. O Manifesto discerniu, na Primeira Guerra Mundial, uma batalha para preservar o domínio do mundo colonial sobre a humanidade:

 

“As populações colonizadas foram arrastadas para a guerra europeia a uma escala sem precedentes. Índios, negros, árabes e malgaxes lutaram nos territórios da Europa - em nome de quê? Pelo direito de permanecerem escravos da Grã-Bretanha e de França. Nunca antes a infâmia do domínio capitalista nas colónias foi tão claramente delineada; nunca antes o problema da escravatura colonial fora colocado tão asperamente como o é hoje.”

 

Se essa guerra era uma expressão da rivalidade imperialista pela divisão dos despojos do colonialismo, então o principal dever do internacionalismo era atacar o imperialismo. Esta foi a mensagem que o revolucionário indiano M. N. Roy trouxe para o Segundo Congresso da Internacional Comunista. "O capitalismo europeu retira a sua força no essencial, não tanto dos países industriais da Europa, mas dos seus bens coloniais", escreveu ele nas suas Teses Suplementares sobre a Questão Nacional e Colonial (2). Uma vez que os superlucros das classes dirigentes imperialistas eram alimentados pela pilhagem sistemática das colónias, a libertação dos povos colonizados traria também um fim ao imperialismo - um desafio que os trabalhadores dos estados capitalistas, alimentados e vestidos pelo saque imperialista, não assumiriam. "A classe operária europeia só conseguirá derrubar a ordem capitalista quando [a fonte dos seus lucros] tiver finalmente sido interrompida", escreveu Roy. Informada por estas intervenções, a Internacional Comunista impôs a si própria a tarefa de organizar as massas camponesas e proletárias nas colónias. Dos nacionalistas anti-imperialistas aos pan-islamistas, estes grupos representavam a vanguarda da luta revolucionária anticolonial. A União Soviética estenderia "uma mão amiga a estas massas", disse V. I. Lenine, com o sopro da Revolução de Outubro a soprar em cheio nas suas velas (3).

 

O estabelecimento de um estado hostil ao capitalismo e à dominação colonial era intolerável para as potências imperialistas. Nas primeiras três décadas da sua existência, a União Soviética foi atirada de invasor para invasor. Nos anos de declínio da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha imperial deu lugar às potências da Entente, os Estados Unidos da América e o Reino Unido entre elas, que apoiaram o Exército Branco czarista na sua guerra para preservar o domínio burguês na Rússia. Depois veio a Alemanha de Adolf Hitler. Se o movimento nazi apanhou a Europa desprevenida, as suas raízes apodrecidas eram evidentes para os povos colonizados do mundo. Em 1900, W. E. B. Du Bois tinha avisado que a exploração do mundo colonizado seria fatal para os "altos ideais de justiça, liberdade e cultura" da Europa. Esta advertência seria ecoada, de forma furiosa e solene, por Aimé Césaire, cinquenta anos mais tarde. "Antes de serem suas vítimas", escreveu ele, os europeus foram cúmplices do nazismo: "toleraram o nazismo, antes de ele lhes ser infligido a eles próprios... absolveram-no, fecharam-lhe os olhos, legitimaram-no, porque, até então, só tinha sido aplicado a povos não-europeus".

 

É impossível extricar a missão de Hitler do longo projeto do colonialismo europeu, ou da expressão particular que este encontrou no colonialismo de povoamento norte-americano. Hitler admirava abertamente como os Estados Unidos da América. que tinham "abatido a tiro os milhões de peles-vermelhas, reduzindo-os a algumas centenas de milhares, e agora mantêm o modesto remanescente sob observação numa gaiola". A guerra de extermínio travada pelo regime nazi procurou nada menos do que a colonização da Europa Oriental e a escravização do seu povo, com o objetivo de conquistar o "Leste Selvagem", tal como os colonos norte-americanos tinham conquistado o "Oeste Selvagem". Desta forma, o nazismo prosseguiu a tradição colonial contra a promessa emancipatória lançada em outubro de 1917 - e por essa razão, o filósofo italiano Domenico Losurdo chamar-lhe-ia a primeira contrarrevolução colonial. A Alemanha, disse Hitler em 1935, seria o "baluarte do Ocidente contra o bolchevismo" (4).

 

Precisamente porque o fascismo prometeu preservar a estrutura de propriedade do capital, o Ocidente permaneceu complacente e sem princípios na sua oposição a ele antes, durante e depois da guerra. No Reino Unido, que tinha financiado a ascensão de Benito Mussolini desde o início, Winston Churchill manifestou abertamente as suas simpatias pelo fascismo como instrumento contra a ameaça comunista. Nos Estados Unidos da América, Harry S. Truman pouco fez para esconder o oportunismo cínico que ainda hoje é característico do establishment norte-americano. "Se virmos que a Alemanha está a ganhar, devemos ajudar a Rússia. E se a Rússia estiver a ganhar, devemos ajudar a Alemanha e dessa forma deixá-los matarem-se no maior número possível", disse o futuro presidente nas vésperas da Operação Barbarossa, que reclamaria 27 milhões de vidas soviéticas. O The New York Times celebraria mais tarde esta "atitude" como lançando as bases para a "política firme" de Truman como presidente. Essa firmeza envolveu o primeiro e único uso de armas nucleares na história - "um martelo" contra os soviéticos, como Truman uma vez chamou à bomba. As cinzas de Hiroshima e Nagasaki coloriram a Guerra Fria durante décadas, intoxicando os seus arquitetos com a promessa de omnipotência. Em 1952, Truman contemplou dirigir à União Soviética e à China um ultimato: o cumprimento, ou a incineração de todas as fábricas desde Estalinegrado até Xangai. Do outro lado do Atlântico, Churchill também se deslumbrou com o brilho atómico. Sir Alan Brooke, chefe do Estado-Maior General Imperial britânico, registou nos seus diários que Churchill via-se a si próprio "capaz de eliminar todos os centros da indústria russa". Com o advento da bomba atómica, a supremacia branca tinha adquirido o poder supremo (5).

 

A ameaça de aniquilação levou a União Soviética a acelerar o seu próprio programa nuclear, a um custo tremendo para o seu projeto político. A U.R.S.S. acabaria por construir a paridade militar com os Estados Unidos da América, mas as restrições impostas pela corrida ao armamento limitaram o seu desenvolvimento social. Fardos económicos e políticos acumularam-se para o jovem estado. Estes seriam absorvidos e amplificados com a "doutrina de contenção" de George Kennan - um vasto conjunto de políticas concebidas para isolar a União Soviética e limitar a "propagação do comunismo" pelo mundo. Face a um novo conjunto de contradições que não poderiam ser resolvidas militarmente por medo da destruição mútua, a política dos E.U.A. visava "aumentar enormemente as tensões" na governação soviética, para "promover tendências que devem eventualmente encontrar a sua saída, quer na desagregação quer no apodrecimento gradual do poder soviético" (6).

 

No final dos anos 1980, acelerados pelas contradições no seu processo socialista, as tensões materiais, políticas e ideológicas sobre a governação soviética tornaram-se intoleráveis. Talvez conduzida por uma fé ingénua no desanuviamento com o velho Ocidente, a administração de Mikhail Gorbachev introduziu reformas, num processo que marginalizou o Partido Comunista da União Soviética e abriu caminho para a consolidação da oposição em torno de Boris Ieltsin, que desmantelou a U.R.S.S.. O povo soviético pagaria um preço tremendo - um preço que foi particularmente severo na Rússia. Nos anos 1990, a Rússia sofreu uma queda profunda no seu nível de vida, à medida que os bens públicos eram capturados por uma burguesia que rapidamente se congraçou com o capital financeiro ocidental. O seu PIB desabou em 40 por cento. Os seus insumos industriais caíram em metade, e os salários reais caíram para metade do que eram em 1987. O número de pessoas pobres aumentou de 2,2 milhões em 1987-88 para 74,2 milhões em 1993-95 - de 2% da população para 50% em pouco mais de cinco anos (7). A esperança de vida diminuiu cinco anos para os homens e três anos para as mulheres, tendo milhões morrido sob o regime de privatização e terapia de choque, entre 1989 e 2002 (8). Nessa época de colapso e depravação, meio milhão de mulheres russas foram traficadas para a escravatura sexual (9). À medida que os instrumentos da colonização ocidental começaram a penetrar por cada fenda, greta e poro, histórias semelhantes surgiram em toda a União em desintegração. É revelador que esta tenha sido a única época em que a Rússia foi considerada uma amiga do Ocidente.

 

O assalto à União Soviética foi um dos eixos da guerra contra a libertação humana. O outro seria aguçado à medida que os Estados Unidos da América emergiam como poder hegemónico global, após a Segunda Guerra Mundial. Não esgotada no campo de batalha europeu, a Guerra Fria entre as nações orientais e ocidentais transformou-se alquimicamente num assalto épico do Norte contra o Sul. Da Coreia à Indonésia, do Afeganistão ao Congo, da Guatemala ao Brasil, dezenas de milhões de vidas foram ceifadas numa batalha que colocaria as forças populares contra um imperialismo que mudava de forma e que não tolerava nenhuma dissidência do seu impulso extrativo. Se os Estados Unidos da América e os seus aliados não conseguissem derrotar a União Soviética em confronto militar direto, exerceriam violência extrema ao serviço de uma grande estratégia que, já em 1952, procurava estabelecer nada menos que "o poder preponderante" (10). Como escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm, a violência - tanto real como ameaçada - desencadeada neste tempo poderia "ser razoavelmente considerada como uma Terceira Guerra Mundial, embora muito peculiar"; com o advento da bomba atómica, as zonas frias desta guerra mundial ameaçavam, por vezes, queimar a humanidade para lá da existência. Entre estes dois eixos da Guerra Fria, encontramos então uma batalha histórica entre motores concorrentes de emancipação e submissão.

 

Essa luta nunca terminou. Em vez disso, o projeto de libertação humana foi adiado, a sua promessa de dignidade foi posta em suspenso. De Angola a Cuba, nações que dependiam de laços de solidariedade com a U.R.S.S. foram devastadas pelo seu colapso. Se o poder soviético atuou como um controlo à beligerância dos E.U.A., o momento unipolar inaugurou uma era de impunidade. Os Estados Unidos da América encontraram-se com um domínio quase absolutamente livre para influenciar ou derrubar governos que se lhe opunham; cerca de 80% das intervenções militares dos E.U.A. após 1946 tiveram lugar após a queda da U.R.S.S.. Do Afeganistão à Líbia, estas terríveis guerras serviram tanto para revigorar o projeto militarista nos Estados Unidos da América como para sinalizar que a dissidência não seria tolerada para além das suas fronteiras. Ao fazê-lo, ajudaram a manter um equilíbrio cruel no sistema capitalista mundial, condenando os estados do Terceiro Mundo a uma posição de subdesenvolvimento permanente para proteger a voracidade dos monopólios ocidentais (11).

 

Este foi o significado dos vislumbres de Lenine sobre o imperialismo e a sua aplicação ao projeto da Terceira Internacional. Numa fase avançada, escreveu Lenine, o capitalismo exportará não só mercadorias mas também o próprio capital - não só carros e têxteis, mas também fábricas e fundições, deslocando-se para o estrangeiro em busca de trabalhadores para explorar e de recursos para pilhar. Este processo disciplina os trabalhadores dos países capitalistas avançados, que são amordaçados pela ameaça de desemprego que paira sobre eles e pacificados pelo bem-estar que o saque imperialista torna possível. Os países capitalistas avançados desenvolvem-se explorando o seu próprio povo e os povos e recursos de territórios distantes. Esta relação essencialmente parasitária assegura a rentabilidade e a expansão contínua dos monopólios ocidentais como interesses nacionais, em última análise apoiados pela força bruta. Vinculados ao sistema de exploração global, os Estados do Terceiro Mundo não podem esperar alcançar qualquer nível de desenvolvimento significativo. O subdesenvolvimento económico, por sua vez, paralisa a mudança social. Um povo que não pode comer ou ir à escola, que não pode curar os seus doentes ou viver em paz, não pode fazer avançar a liberdade ou a criatividade. Este subdesenvolvimento reflete-se no carácter dos seus estados, na capacidade de se envolverem em relações com outros e de se defenderem contra ameaças. Desta forma, o poder totalizador do imperialismo distorce os processos sociais e económicos tanto no seio do bloco imperialista como nos estados que procuram enveredar por caminhos de desenvolvimento soberanos. É por isso que a luta entre o imperialismo e a descolonização deve ser entendida como a principal contradição - a batalha determinante para o futuro da humanidade (12).

 

Onde encontramos hoje esse imperialismo? Encontramo-lo entre os dois mil milhões de pessoas que lutam para comer. Encontramo-lo na fragilidade, conflito ou violência que dois terços da humanidade irão enfrentar na próxima década. Encontramo-lo nos muitos meios de subsistência que são regularmente varridos pela subida das marés, pelos campos assolados pela seca ou pelas areias galopantes dos desertos, e entre o bilião (mil milhões) de pessoas que não possuem um único par de sapatos. Encontramo-lo na árdua marcha de dezenas de milhões de camponeses de subsistência que todos os anos são forçados a abandonar as suas terras pela miséria e pela violência - uma fuga contínua ao capitalismo, inigualável até mesmo pelas mais fantasiosas contagens de "dissidentes" e "fugitivos" do comunismo. Encontramo-lo no ouro e cobalto, diamantes e estanho, fosfatos e petróleo, zinco e manganês, urânio e terras, cuja expropriação faz as sedes das corporações e instituições financeiras ocidentais crescerem para proporções cada vez mais deslumbrantes. O desenvolvimento do mundo ocidental, garantido pela sua contrarrevolução global, é a imagem em espelho da miséria do Terceiro Mundo (13).

 

A NATO e a contrarrevolução

 

Tal como o projeto fascista, a NATO foi forjada no anticomunismo. As cinzas da Segunda Guerra Mundial ainda não se tinham instalado na Europa, e os Estados Unidos da América estavam ocupados a reabilitar ditadores fascistas, desde Francisco Franco em Espanha até António de Oliveira Salazar em Portugal. (Este último tornou-se membro fundador da Aliança do Atlântico Norte). Os Estados Unidos da América e a Europa Ocidental absorveram milhares de fascistas em instituições de poder, através de amnistias que violavam os acordos aliados sobre o regresso dos criminosos de guerra. Isto incluiu figuras como Adolf Heusinger, um oficial superior nazi e associado de Hitler. Heusinger era procurado pela União Soviética por crimes de guerra, mas o Ocidente tinha desígnios diferentes. Heusinger tornou-se chefe do exército da Alemanha Ocidental em 1957 e mais tarde serviu como presidente do Comité Militar da NATO. Por toda a Europa, as operações secretas "de retaguarda" (“stay-behind”) cultivaram uma nova geração de militantes para frustrar projetos políticos de esquerda – começando, pelo menos, em 1948, a Agência Central de Informações dos E.U.A. canalizou milhões em financiamento anual para grupos de direita, só em Itália, tendo deixado claro que estava "disposto a intervir militarmente" se o Partido Comunista tomasse o poder nesse país. Centenas de pessoas foram massacradas em ataques levados a cabo por estes grupos, muitos dos quais foram ancorados à esquerda – parte de uma "Estratégia de Tensão" que aterrorizava as pessoas para que abandonassem a sua lealdade aos crescentes movimentos comunistas e socialistas. O mandato da NATO derivava explicitamente da "ameaça colocada pela União Soviética", e a popularidade crescente do comunismo fora da U.R.S.S. era da sua competência. Desta forma, a NATO condicionou as escolhas democráticas e minou a segurança dentro dos seus estados membros, resolvendo contradições políticas a favor da ordem capitalista e dos seus servidores de direita (14).

 

O mandato sombrio da NATO não se ficou por aí. Se Trotsky viu na Primeira Guerra Mundial um estratagema cínico para envolver o mundo colonizado no projeto da sua própria submissão, Walter Rodney reconheceu as mesmas forças em ação no violento empreendimento da NATO no continente africano: "Praticamente todo o Norte de África foi transformado numa esfera de operações para a NATO, com bases militares apontadas à União Soviética... Vezes sem conta, as provas apontam para esta utilização cínica de África para apoiar económica e militarmente o capitalismo e, por conseguinte, forçar a África a contribuir para a sua própria exploração " (15).

 

Juntamente com projetos como a União Europeia, a NATO transformou a ordem imperialista. Se a primeira parte do século XX parecia destinada a um conflito interimperial infindável sobre os despojos do colonialismo, na década de 1950 estava já em formação um novo imperialismo coletivo. Cada vez mais, os acordos comerciais globais e as estruturas internacionais de empréstimos, engendradas pelas velhas potências coloniais, providenciariam que os despojos da extração imperial fossem partilhados entre elas. Também reuniram os seus instrumentos de violência. Em 1965, o revolucionário guineense Amílcar Cabral descreveu como a brutalidade agregada do Ocidente fluiu para África através da NATO, apoiando as guerras do regime de Salazar contra as colónias portuguesas em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde:

 

“A NATO é os E.U.A.. Capturámos no nosso país muitas armas norte-americanas. A NATO é a República Federal da Alemanha. Temos muitas espingardas Mauser retiradas de soldados portugueses. A NATO, pelo menos por enquanto, é a França. No nosso país, há helicópteros Alouette. A NATO é também, em certa medida, o governo daquele povo heroico que deu tantos exemplos de amor à liberdade, o povo italiano. Sim, nós capturámos aos portugueses metralhadoras e granadas feitas em Itália” (16).

 

Hoje em dia, as armas de guerra que refletem a plena diversidade do "mundo livre", encontram-se em todas as linhas de frente do imperialismo, desde a Ucrânia e Marrocos até Israel e Taiwan. Essa violência encontraria o seu motor no nódulo central do imperialismo, os Estados Unidos da América, que durante muito tempo se mantiveram na hegemonia total - uma aspiração que o desaparecimento da União Soviética tornou irresistível. A 7 de Março de 1992, o The New York Times publicou um documento que continha os planos de hegemonia dos E.U.A. na era pós-soviética. "O nosso primeiro objetivo", disse o Guia de Planeamento da Defesa, "é evitar o ressurgimento de um novo rival, quer no território da ex-União Soviética, quer em qualquer outro lugar". O documento, que ficou conhecido como a Doutrina Wolfowitz, em honra do Subsecretário de Defesa dos E.U.A. encarregado da definição de políticas, que foi seu coautor, afirmou a supremacia dos E.U.A. no sistema mundial. Apelou à "liderança necessária para estabelecer e proteger uma nova ordem" que impediria "potenciais concorrentes" de procurar um papel maior no mundo. Na sequência desta fuga de informação, a Doutrina Wolfowitz foi revista por Dick Cheney e Colin Powell tornando-se a doutrina de George W. Bush, deixando um rasto de morte e tristeza em todo o Médio Oriente (17).

 

Nessa altura, os contornos da estratégia imperial dos E.U.A. foram articulados com mais força por Zbigniew Brzezinski, um dos principais arquitetos da política externa dos E.U.A. do século XX. Em 1997, publicou The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (O Grande Tabuleiro de Xadrez: A Primazia Americana e seus Imperativos Geoestratégicos). A queda da União Soviética, escreveu ele, viu os Estados Unidos da América emergir "não só como o árbitro-chave das relações de poder euro-asiáticas, mas também como o poder supremo do mundo... o único e, de facto, o primeiro poder verdadeiramente global". A partir de 1991, a estratégia dos E.U.A. procuraria consolidar essa posição, travando o processo histórico de integração eurasiática. Para Brzezinski, a Ucrânia era um "espaço importante no tabuleiro de xadrez eurasiático" - crítico para temperar o "desejo profundamente enraizado da Rússia de um papel especial eurasiático". Os Estados Unidos da América, escreveu Brzezinski, não perseguiriam apenas os seus objetivos geoestratégicos na antiga União Soviética, mas também representariam "o seu próprio interesse económico crescente... em obter acesso ilimitado a esta área até agora fechada" (18).

 

Esse projeto seria realizado em parte através da NATO. A expansão da aliança coincidiu com a propagação gradual do neoliberalismo, ajudando a assegurar o domínio do capital financeiro dos E.U.A. e a sustentar o complexo militar-industrial voraz que sustenta grande parte da sua economia e sociedade (19). A ligação umbilical entre a adesão à NATO e o neoliberalismo foi claramente expressa pelos principais atlantistas em toda a marcha para leste feita pela aliança. A 25 de Março de 1997, numa conferência da Associação Euro-Atlântica realizada na Universidade de Varsóvia, Joe Biden, então senador, delineou as condições para a adesão da Polónia à NATO. "Todos os estados membros da NATO têm economias de mercado livre com o sector privado a desempenhar um papel de liderança", disse ele. Para além disso,

 

“O plano de privatização em massa representa um passo importante para dar ao povo polaco uma participação direta no futuro económico do seu país. Mas este não é o momento de parar. Creio que as grandes empresas estatais também devem ser colocadas nas mãos de proprietários privados, para que possam ser operadas com interesses económicos e não políticos em mente... Empresas como os bancos, o sector energético, a companhia aérea estatal, o produtor estatal de cobre, e o monopólio das telecomunicações terão de ser privatizadas” (20).

 

A adesão à aliança imperialista apela aos estados para que renunciem à própria base material da sua soberania - um processo que vemos reproduzido com precisão ao longo de todo o seu caminho violento. Numa recente proposta de reconstrução pós-guerra da Ucrânia, por exemplo, a Corporação RAND expõe o que poderia ser adequadamente descrito como uma agenda neocolonial. Desde "criar um mercado eficiente para terras privadas" até "acelerar a privatização... de 3.300 empresas estatais", as suas propostas vêm juntar-se a um vasto conjunto de políticas de liberalização implementadas com influência estrangeira e a coberto da guerra, incluindo legislação que priva a maioria dos trabalhadores ucranianos de direitos de negociação coletiva. Desta forma, a missão da expansão da NATO é inseparável do avanço canceroso do modelo neoliberal de globalização, que endurece no seio dos estados membros da NATO, tornando-se numa condição de exploração perpétua. Os estados membros da aliança são obrigados a desviar uma parte substancial do seu excedente social da habitação, do emprego e das infraestruturas públicas para monopólios militares vorazes, os maiores dos quais se encontram sediados nos Estados Unidos da América. No processo, reforçam a classe dominante doméstica, que, tal como na Suécia e Finlândia, é a principal líder de claque para a adesão à NATO e o seu principal beneficiário. Estes fatores excluem gradualmente alternativas políticas anticapitalistas e antimilitaristas: não pode haver socialismo no seio da NATO (21).

 

Para além do caos económico, a adesão à NATO traz consigo a mancha moral da violência coletiva do Ocidente. Quando a minha Polónia natal adquiriu o seu assento júnior na mesa imperialista, tornou-se um vassalo e um colaborador seguindo o modelo da França de Vichy. Éramos uma nação que, sob o socialismo, tinha ajudado a canalizar as nossas experiências na reconstrução do pós-guerra para o Terceiro Mundo. Os nossos arquitetos, urbanistas e construtores ajudaram a conceber e construir projetos de habitação de massas e hospitais no Iraque. Décadas mais tarde, enviámos tropas para sitiar as cidades que ajudámos a construir. Na base de inteligência Stare Kiejkuty, no nordeste da Polónia, acolhemos uma prisão clandestina dos E.U.A., onde os detidos eram violentamente torturados - uma clara violação da nossa constituição nacional. Budimex, uma empresa que em tempos elaborou um plano de desenvolvimento para Bagdade, concluiu agora a construção de um muro ao longo da fronteira da Polónia com a Bielorrússia - um tampão contra os refugiados do Médio Oriente que, nas palavras da classe dirigente da Polónia, infetam a nossa nação com "parasitas e protozoários". Se o fascismo é um instrumento para proteger o capitalismo da democracia, a NATO é a sua incubadora (22).

 

A Rússia e o Terceiro Mundo

 

Em 1987, Mikhail Gorbachev apresentou uma visão para uma "Casa Comum Europeia": uma doutrina de contenção para substituir uma doutrina de dissuasão, como ele mais tarde a caraterizou, o que tornaria impossível um conflito armado na Europa. Apenas três anos mais tarde, a promessa de uma nova ordem de segurança fundada nas propostas de Gorbachev começou a tomar forma. Pode ter parecido, durante algum tempo, ao nosso alcance. A Carta de Paris para uma Nova Europa, adotada pelos países da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) em Novembro de 1990, continha as sementes de uma arquitetura de segurança partilhada assente nos princípios de "respeito e cooperação" estabelecidos na Carta das Nações Unidas. Este novo modelo de segurança mútua teria incluído os países da ex-União Soviética, entre os quais a Rússia (23).

 

Publicamente, os membros da NATO apoiaram o processo e reafirmaram os compromissos assumidos por James Baker a Gorbachev em 1990 de que a NATO "não se expandiria um centímetro" para leste. O Der Spiegel da Alemanha descobriu recentemente os registos britânicos de 1991, nos quais funcionários norte-americanos, britânicos, franceses e alemães eram inequívocos: "Não podíamos... oferecer a adesão à NATO à Polónia e aos outros" (24). Mas, em privado, o governo dos E.U.A. estava ocupado a conspirar a sua era de hegemonia. "Nós prevalecemos, eles não", disse George H. W. Bush a Helmut Kohl em fevereiro de 1990, no mesmo mês em que os Estados Unidos da América deram luz verde ao processo da CSCE. "Não podemos deixar os soviéticos arrancarem uma vitória das mandíbulas da derrota". Nenhuma organização iria "substituir a NATO como garante da segurança e estabilidade ocidentais", disse Bush ao Presidente francês François Mitterrand, em abril desse ano, referindo-se, sem dúvida, a propostas que estavam estão a tomar forma na Europa. Ondas sucessivas de expansão da NATO corroeram gradualmente a ideia de que uma arquitetura de segurança comum - fora da esfera de domínio dos Estados Unidos da América - poderia emergir no continente europeu (25).

 

Ainda assim, já em 2006, o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov falou sobre a participação numa "NATO transformada", com base em propostas de desmilitarização e cooperação igualitária, segundo as linhas propostas ao abrigo da Carta de Paris em 1990. Mas a NATO expandiu-se para as fronteiras da Rússia - não com ela, mas contra ela. Esta política expansionista visava minar os processos de integração regional que estavam então a ganhar força. Após a crise financeira de 2007-2008, a Rússia e a China começaram a acelerar drasticamente a construção de novas infraestruturas para a cooperação regional. Paralelamente, a China levou a cabo reformas sísmicas para aumentar a sua independência dos mercados norte-americanos, estabelecendo programas de desenvolvimento e instituições financeiras que poderiam operar fora da esfera de influência norte-americana. Juntamente com o Brasil, Índia e África do Sul, a Rússia e a China puseram em marcha o processo dos BRICS, em 2009. A Iniciativa Correia e Estrada ("Belt and Road") foi lançada apenas quatro anos mais tarde. Estes processos coincidiram com um aumento nas vendas de energia russa, tanto à China como à Europa, e com a participação de muitos estados europeus na Iniciativa Correia e Estrada. A persistência da viciosa política de austeridade da União Europeia viu os seus estados membros voltarem-se para a China, à medida que os seus portos e pontes se desmoronavam, após anos de subinvestimento. Estes desenvolvimentos marcaram a primeira vez em séculos que o comércio dentro da Eurásia teve lugar fora de um contexto adversário, sobre princípios de parceria e não de dominação (26).

 

Isto ameaçou a base da chamada ordem internacional baseada em regras, o conjunto informal de normas que sustentam o domínio económico e político dos E.U.A.. Desde a era soviética, os estrategas norte-americanos têm reconhecido a ameaça particular que o comércio de energia entre a Europa e a Rússia representaria para os interesses dos E.U.A. - um aviso que foi repetido por todas as administrações norte-americanas desde Bush até Biden. O imperativo claro, então, era interromper este processo. Os contornos desta estratégia tornaram-se mais claros à medida que a marcha do Ocidente sobre a periferia oriental da Europa continuava. Relatórios como Extending Russia: Competing from Advantageous Ground (Esgotando a Rússia: Competindo de um Plano Vantajoso), publicado em 2019 pela RAND Corporation, deu definição aos imperativos estratégicos identificados por Brzezinski mais de duas décadas antes. Desde parar as exportações de gás da Rússia para a Europa e armar a Ucrânia, ao avanço da mudança de regime na Bielorrússia e ao agravamento das tensões no Sul do Cáucaso, o relatório definiu uma série de medidas destinadas a despedaçar a Rússia pelas costuras. Se a Rússia não se curvasse voluntariamente aos interesses do Ocidente, seria coagida a fazê-lo, mesmo que a Eurásia inteira tivesse de pagar o preço. A neocolonização da Ucrânia - um objetivo que justificava 5 mil milhões de dólares de gastos dos E.U.A. antes de 2014 - representou, como Brzezinski tinha previsto, uma jogada crítica no tabuleiro de xadrez euro-asiático (27).

 

A ameaça óbvia que estas políticas representavam para a segurança russa era visível para a liderança dos E.U.A. já em 2008. "Os peritos dizem-nos que a Rússia está particularmente preocupada com o facto de as fortes divisões na Ucrânia relativamente à adesão à NATO, com grande parte da comunidade étnico russa contra a adesão, poderem conduzir a uma grande cisão, envolvendo violência ou, na pior das hipóteses, uma guerra civil", escreveu o diretor da CIA William Burns ao embaixador dos E.U.A. em Moscovo. "Nessa eventualidade, a Rússia teria de decidir se interviria; uma decisão que a Rússia não quer ter de enfrentar" (28).

 

A Rússia chegaria ao ponto de ver que apenas dois caminhos estavam pela sua frente: a submissão ao estatuto periférico que lhe foi imposto nos anos 1990, ou o aprofundamento da integração com outros estados da Eurásia. Estas possibilidades bifurcadas refletiam duas tendências no seio da classe dirigente russa. Uma delas esperava uma integração mais estreita com o capital financeiro ocidental ao longo do modelo dos anos 1990, que viu a riqueza de uns poucos ascender a proporções extraordinárias. Esta tendência encontrou líderes de claque em figuras como Alexey Navalny, cujo associado Leonid Volkov delineou uma estratégia política que iria marginalizar a esquerda, num projeto de mudança de regime que visava reinstalar a classe compradora pró-ocidental, com o apoio da crescente classe média profissional nas metrópoles da Rússia. A outra representava uma tendência estatal-capitalista que procurava uma maior centralização do poder económico e poderia, eventualmente, encontrar a sua saída numa governação económica mais socializada. Durante muito tempo, o governo de Vladimir Putin navegou por entre estas duas tendências, num carrossel precário entre o neoliberalismo agressivo e a busca da soberania económica. Todavia, à medida que as contradições desencadeadas pela beligerância ocidental se acentuavam, a trajetória do desenvolvimento russo começou gradualmente a resolver-se em direção a esta última tendência - hoje evidenciada pela forma espetacular como as sanções ocidentais têm retroagido. A Rússia eleva agora regularmente a China socialista como um modelo a ser emulado (29).

 

Apontamentos desta direção puderam ser vistos em 2007. Nesse ano, Putin proferiu um discurso na Conferência de Segurança de Munique. A erosão do direito internacional, a projeção do poder dos E.U.A., e o "uso descontrolado da força" estavam, disse, a criar uma situação de profunda insegurança em todo o mundo. Ligou estes desenvolvimentos à dinâmica da desigualdade global e à questão da pobreza, expondo um dos principais mecanismos do imperialismo: "os países desenvolvidos mantêm simultaneamente os seus subsídios agrícolas e limitam o acesso de alguns países a produtos de alta tecnologia", uma política que sustenta o subdesenvolvimento grave no Terceiro Mundo. Para Putin, a política de projeção unilateral do poder militar, encarnada não só na NATO mas noutras formações do poder militar dos E.U.A. em todo o mundo, serviu para expandir uma política de subordinação.

 

Se a agressão ocidental levou a Rússia a dar prioridade ao desenvolvimento soberano, esse processo histórico também a empurrou para o alinhamento com o projeto mais vasto do Terceiro Mundo. O que foi a ameaça de um "regresso aos anos noventa" na Rússia, senão a perceção do perigo de as condições da sua soberania económica serem desmanteladas, produzindo os tipos de indignidades experimentados pela maioria das nações do mundo? Isso, por sua vez, iria endurecer a unipolaridade liderada pelos E.U.A., minando as capacidades de um multilateralismo significativo no sistema mundial. A resposta da Rússia tem sido a de acelerar a integração euro-asiática - fomentando uma relação vigorosa com a China, a Índia e os seus vizinhos regionais - ao mesmo tempo que expande alianças com o Irão, Cuba, Venezuela, e outros estados sufocados pelo joelho do imperialismo dos E.U.A.. Da América do Sul à Ásia, muitas nações têm respondido em espécie. Se o estado russo e a sua identidade tivessem historicamente cuidado entre as tendências orientais e ocidentais - a sua águia nacional enfrentando ambiguamente em ambas as direções - a Rússia viria a situar firmemente tanto o seu passado como o seu futuro dentro do Terceiro Mundo. "O Ocidente está pronto a atravessar todas as linhas para preservar o sistema neocolonial que lhe permite viver à custa do mundo", disse Putin em 2022. Está preparado "para o pilhar graças ao domínio do dólar e da tecnologia, para recolher um verdadeiro tributo da humanidade, para extrair a sua fonte primária de prosperidade não conquistada, a renda paga ao poder hegemónico" (30).

 

Os imperativos materiais partilhados pela Rússia e pelo Terceiro Mundo explicam o isolamento das potências ocidentais na sua guerra de condenação e de cerco económico contra a Rússia. Enquanto os líderes ocidentais anunciaram a emergência da unidade global na condenação da invasão - "a União Europeia e o mundo estão com o povo ucraniano", disse Olof Skoog, representante da UE nas Nações Unidas - os números da Assembleia Geral da O.N.U. pintaram cada vez mais um quadro diferente. Na sessão de emergência para votar uma resolução sobre a "Agressão contra a Ucrânia" da Rússia, em março de 2022, 141 nações votaram a favor, trinta e cinco abstiveram-se e cinco votaram contra. Os quarenta países que se abstiveram ou votaram contra a resolução - incluindo a Índia e a China - constituem, coletivamente, a maioria da população mundial. Metade destes estados eram do continente africano (31).

 

Se as nações do mundo estavam divididas no gesto de condenação, continuam unidas na recusa de aderir à guerra económica contra a Rússia. Aqui, os países do velho Oeste encontram-se totalmente isolados. Dos 141 países que condenaram as ações da Rússia na Ucrânia, apenas as trinta e sete nações do antigo bloco imperialista e os seus substitutos implementaram sanções contra ela: os Estados Unidos da América, o Reino Unido, Canadá, Coreia do Sul, Suíça, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Taiwan, Singapura, e os vinte e sete estados da União Europeia. As sanções não são um "mecanismo para gerar paz e harmonia", disse o Ministro dos Negócios Estrangeiros argentino Santiago Cafiero. "Não vamos tomar qualquer tipo de represália económica porque queremos ter boas relações com todos os governos", disse o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (32). Em novembro, oitenta e sete estados abstiveram-se ou votaram contra uma resolução que apelava à Rússia para oferecer reparações à Ucrânia. O Terceiro Mundo não quer participar nas intrigas do eixo do Atlântico Norte.

 

Isolado e ignorado, o Ocidente virou-se mais uma vez para a coação, perorando e incitando as nações mais pobres do mundo a juntarem-se ao coro de condenação moral e de guerra económica contra a Rússia. No seu mais flagrante, as exigências acarretam a pena de retaliação. Os Estados Unidos da América ameaçaram sanções contra a Índia, China, e outros estados que continuam a fazer negócios com a Rússia, mesmo quando procuraram reabilitar brevemente o venezuelano Nicolás Maduro num estratagema para amortecer os efeitos do aumento dos custos do petróleo. O que é isto, senão uma tentativa de chantagear as nações do mundo para que apoiem mais uma vez os seus opressores? (33)

 

Nesta Nova Guerra Fria, como nas guerras coloniais do século passado, as aspirações dos muitos de construir vidas dignas atravessam as linhas de falha ideológicas. Hoje em dia, os laços entre os países do Terceiro Mundo estão a endurecer contra a ameaça imperialista. O Xi Jinping da China e o Narendra Modi da Índia, mundos à parte nos seus projetos e convicções políticas, estão a rejeitar a "mentalidade da Guerra Fria". Tal como os estados sul-americanos. Quando os Estados Unidos da América convocaram a Cimeira das Américas - excluindo Cuba, Venezuela, e Nicarágua - os presidentes do México e da Bolívia boicotaram o evento. Outros manifestaram a sua indignação perante a exclusão. A "integração de toda a América", disse López Obrador, é a única forma de enfrentar o "perigo geopolítico colocado ao mundo pelo declínio económico dos Estados Unidos da América" (34).

 

A resistência determinada ao canto das sereias da Nova Guerra Fria realça a urgência da multipolaridade. É um antídoto para os desequilíbrios forçados no capitalismo mundial que caracterizaram grande parte dos últimos quinhentos anos, e que o momento unipolar tinha assegurado. Para que a humanidade tenha uma oportunidade de resolver as crises civilizacionais do nosso tempo - da pandemia à pobreza, da guerra à catástrofe climática - tem de construir uma política externa baseada no desenvolvimento soberano e na cooperação contra o impulso subalternizador do imperialismo. Essa cooperação, na medida em que toma forma, torna-se uma profunda reprimenda às tecnologias de conquista divisivas utilizadas durante séculos pelas potências colonialistas e imperialistas. Vai contra a lógica da ordem mundial neoliberal, restringindo o seu campo de movimento e enfraquecendo o seu domínio sobre as economias das nações mais pobres do mundo. A multipolaridade é um passo, por outras palavras, no sentido da articulação de projetos políticos alternativos fora da esfera do capitalismo monopolista. E por essa razão, é a ameaça mais profunda que o Ocidente coletivo alguma vez enfrentou. "O cenário mais perigoso", escreveu Brzezinski em The Grand Chessboard, é de uma coligação "'anti-hegemónica' unida não pela ideologia mas por queixas complementares". Brzezinski, é claro, estava a pensar da perspetiva da geopolítica, não da economia política. Mas as queixas complementares que estão a surgir são materiais no seu cerne. Dizem respeito a questões básicas de dignidade - de sobrevivência. É por isso que, do pan-africanismo à integração eurasiática, os projetos de cooperação tornam-se os primeiros alvos da punição imperialista.

 

Três teses para a esquerda

 

Em 1960, o revolucionário ganês Kwame Nkrumah proferiu um discurso nas Nações Unidas. "A grande maré da história flui", disse ele, "e à medida que flui transporta para as margens da realidade os factos teimosos da vida e das relações do homem, uns com os outros". O que significa para os internacionalistas abordar os factos teimosos da vida? Que tipos de relações, entre povos e nações, podem encontrar respostas para as grandes crises do nosso tempo?

 

Estas perguntas vêem-me regressar, vezes sem conta, aos debates da Terceira Internacional. Sem dúvida, as condições mudaram hoje em dia. As velhas potências coloniais, não mais presas nas garras da guerra infindável contra os seus pares, operam através de um imperialismo coletivo. Têm novas estratégias para drenar os recursos dos povos e das nações. Nas armas nucleares e na crise ecológica, encontramos o espectro iminente do omnicídio a pairar cada vez mais sobre as nossas sociedades. Mas uma visão obstinadamente permanece: o capitalismo não pode ser superado a menos que as artérias da acumulação imperialista sejam cortadas à escala global. Como Roy argumentou há mais de um século e a história tem demonstrado amplamente, enquanto as potências ocidentais puderem alimentar-se nos canais do trabalho e riqueza do Terceiro Mundo, o capitalismo continuará a sua marcha destrutiva. Esse caminho, hoje, é assegurado por poderosas forças armadas preparadas para pisar as pessoas e destruir nações.

 

O que significa isto para aqueles de nós que vivem e se organizam no núcleo imperial? Gostaria de apresentar três breves teses que se seguem à análise anterior:

 

(1) A revolução já está em curso. Desde que as primeiras lutas anticoloniais se desenrolaram, a revolução contra o imperialismo - ou capitalismo na sua dimensão internacional - tem vindo a avançar por um caminho sinuoso através do projeto do Terceiro Mundo. Ao manterem a capacidade de deter os fluxos de extração imperial que fizeram o nosso mundo, os povos do Terceiro Mundo são os motores da mudança progressiva para a humanidade.

 

(2) Os que vivem no Ocidente não são os principais protagonistas da revolução. A revolução europeia foi brutalmente esmagada por uma poderosa classe dominante apoiada pela pilhagem imperial. Sem poder estatal, a esquerda nos estados imperialistas não pode ditar os termos dos processos tectónicos em curso, e não deve tentar dirigi-los de forma a dar cobertura ideológica às nossas classes dirigentes. Demasiado terreno foi cedido aos imperialistas na busca de estreitos ganhos eleitorais ou estratégias parlamentares. Nenhum poder pode ser construído visando as nossas limitadas capacidades políticas contra os inimigos oficiais das nossas classes dominantes.

 

(3) A esquerda anti-imperialista no Ocidente opera dentro do monstro. A fraqueza da esquerda ocidental é uma imagem espelho da força das suas classes dominantes. Num momento em que a burguesia ocidental enfrenta um desafio histórico à sua hegemonia, a tarefa não é a de reafirmar o seu poder através de reformas tíbias que reforçam o capitalismo contra as suas contradições calamitosas, mas a de lutar pela sua derrota final. É um inimigo que partilhamos com a maioria dos povos do mundo e do planeta que habitamos.

 

A nossa tarefa mais importante, portanto, é recuperar o anti-imperialismo socialista como uma categoria de pensamento e ação - trabalhando com o grão da mudança revolucionária e não contra ele. Isto exige nada menos do que a recuperação da audácia política que perdemos no chamado fim da história, quando as posições do socialismo global recuaram e a ideologia imperialista se proclamou tão inevitável como o oxigénio. A História não foi a lado nenhum. Hoje em dia, ela pede-nos que sejamos claros na nossa crítica ao imperialismo, implacáveis no nosso ataque contra ele, e ousados na visão de uma alternativa ao capitalismo que responda aos gritos das classes trabalhadoras nas nossas sociedades - gritos que estão a ser novamente satisfeitos pelo canto de sereia da extrema-direita.

 

A aposta não poderia ser maior. Irá o Terceiro Mundo erguer-se, e desmantelar o domínio secular das potências colonizadoras sobre a grande maioria dos povos do mundo, abrindo pelo menos a possibilidade de um projeto político diferente à escala global? Ou será que as forças do imperialismo coletivo continuarão a conduzir-nos por um caminho de guerra e de colapso ambiental? A resposta depende do nosso empenho firme e determinado num destes caminhos, que se encontram em oposição dialética um com o outro. Depende de nós estudarmos a história da herança sangrenta do Ocidente, e aprendermos com as forças que lhe resistiram. Construído nas nossas lutas, esse conhecimento detém a chave para refazer o nosso mundo. Permite-nos construir com e marchar a par das lutas vivas e corajosas do Terceiro Mundo contra o domínio enfraquecido das classes dirigentes do Ocidente coletivo. Não podemos responder aos clamores da humanidade se tirarmos aquilo que comemos aos famintos.

 

 

 

 

(*) Paweł Wargan é um organizador e investigador com sede em Berlim e coordenador do secretariado da Progressive International. Cofundou e coordena a campanha Green New Deal para a Europa. Faz parte do coletivo coordenador do Movimento Democracia na Europa (DiEM25). Publica regularmente em Jacobin, New Statesman, Tribune e Politico. O presente ensaio foi originalmente publicado em Monthly Review, Volume 74, N.º 8, janeiro de 2023. Todos os direitos reservados. A tradução aqui publicada é de Ângelo Novo.

 

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NOTAS:

 

(1) Bertolt Brecht, “To Posterity, Chicago Labor and Arts Festival (blog), chilaborarts.wordpress.com.

 

(2) Minutes of the Second Congress of the Communist International, Fourth Session, July 25, 1921, Marxists Internet Archive, marxists.org.

 

(3) V. I. Lenin, “Report of The Commission on The National and The Colonial Questions”, in The Second Congress of The Communist International (Publishing House of the Communist International, 1921).

 

(4) Robert J. Miller, “Nazi Germany and American Indians”, Indian Country Today, Agust 14, 2019. Ler Pedro Marin, “Domenico Losurdo interviewed by Opera Magazine (2017), February 22, 2022, redsails.org.

 

(5) Tom Kingston, “Britain ‘secretly backed’ Mussolini’s March on Rome”, The Times, October 3, 2022; Alden Whitman, “Harry S. Truman: Decisive President, The New York Times, December 27, 1972; Michael S. Sherry, In the Shadow of War (New Haven: Yale University Press, 1995), 182; Arthur Bryant, Triumph in the West (London: Collins, 1959), 478.

 

(6) George Kennan, “The Sources of Soviet Conduct”, Foreign Policy, July 1, 1947.

 

(7) Branko Milanovic, Income, Inequality, and Poverty During the Transition from Planned to Market Economy (World Bank, 1997).

 

(8) David Stuckler, Lawrence King, and Martin McKee, “Mass Privatisation and the Post-Communist Mortality Crisis: A Cross-National Analysis,” Lancet 373, n.º 9661 (2019).

 

(9) Mary Buckley, “Human Trafficking in the Twenty-First Century”, in Gender Politics in Post-Communist Eurasia, ed. Linda Racioppi and Katherine O’Sullivan (East Lansing: Michigan State University Press).

 

(10) Memorandum by the Director of the Policy Planning Staff (Nitze) to the Deputy Under Secretary of State (Matthews), Office of the Historian (Washington, DC: U.S. Department of State, 1952).

 

(11) Barbara S. Torreon and Sofia Plagakis, “Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, 1798–2022,” (Washington, DC: Congressional Research Service, 2022).

 

(12) V. I. Lenin, Imperialism: The Highest Stage of Capitalism (London: Penguin Classics, 2010); Walter Rodney, How Europe Underdeveloped Africa (London: Verso, 2018).

 

(13) World Health Organization, The State of Food Security and Nutrition in the World 2021 (2021); Vijay Prashad, “Solely Because of the Increasing Disorder: The Thirty-Sixth Newsletter,” Tricontinental, September 9, 2021.

 

(14) Ronald Landa, “Previously Unpublished Draft Defense Department History Explores U.S. Policy toward Italy, Spotlights Role of Flamboyant Envoy, Clare Boothe Luce,” National Security Archive, February 7, 2017.

 

(15) Rodney, How Europe Underdeveloped Africa, 189.

 

(16) Amílcar Cabral, “The Nationalist Movement of the Portuguese Colonies, Marxist Internet Archive, marxists.org.

 

(17) Patrick E. Tyler, “U.S. Strategy Plan Calls for Insuring No Rivals Develop, The New York Times, March 8, 1992.

 

(18) Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard (New York: Basic, 1997), 51, 209.

 

(19) James M. Cypher, “The Political Economy of Systemic U.S. Militarism”, Monthly Review 73, no 11 (April 2022): 23–37.

 

(20) The Debate on NATO Enlargement, Hearings Before the Committee on Foreign Relations, 105th Congress, vol. 4, 373 (1997).

 

(21) William Courtney, Khrystyna Holynska, and Howard J. Shatz, “Rebuilding Ukraine”, The RAND Blog, April 18, 2022; “Arms production”, Stockholm International Peace Research Institute (2020), acessado June 15, 2022; Lily Lynch, “Joining the West, Sidecar (blog), New Left Review, May 20, 2022.

 

(22) Jan Cienski, “Migrants Carry ‘Parasites and Protozoa,’ Warns Polish Opposition Leader,” Politico, October 14, 2015.

 

(23) Christian Nünlist, Juhana Aunesluoma, and Benno Zogg, The Road to the Charter of Paris (Vienna: OSCE, 2017); Charter of Paris for a New Europe (Paris: OSCE, 1990).

 

(24) Klaus Wiegrefe, “Neuer Aktenfund von 1991 stützt russischen Vorwurf,” Der Spiegel, February 18, 2022.

 

(25) Mary E. Sarotte, “A Broken Promise? What the West Really Told Moscow About NATO Expansion,” Foreign Affairs 93, no. 5 (2014): 90–97.

 

(26) Vijay Prashad, “The United States Wants to Prevent a Historical Fact—Eurasian Integration,” Tricontinental, July 7, 2022.

 

(27) James Dobbins et al., Extending Russia: Competing from Advantageous Ground (Santa Monica: RAND Corporation, 2019).

 

(28) “Nyet Means Nyet: Russia’s NATO Enlargement Redlines, cable from William J. Burns, 2008, Wikileaks.

 

(29) Alexey Sakhnin, “The February Theses—The Left and the Political Crisis in Russia”, Progressive International, April 21, 2021.

 

(30) “Signing of Treaties on Accession of Donetsk and Lugansk People’s Republics and Zaporozhye and Kherson Regions to Russia”, Office of the President of Russia, September 30, 2022.

 

(31) Farnaz Fassihi, “The U.N. General Assembly Passes a Resolution Strongly Condemning Russia’s Invasion, The New York Times, March 2, 2022.

 

(32) Bala Chambers, “Argentina Rejects Sanctioning Russia: Foreign Minister,” Anadolu Agency, March 4, 2022; Jalen Small, “Mexico, Brazil Leaders Ignore Their UN Delegates, Refuse to Sanction Russia, Newsweek, April 4, 2022.

 

(33) Jordan Fabian and Josh Wingrove, “India to Face Significant Cost If Aligned with Russia, U.S. Says, Bloomberg, April 7, 2022; Michael Martina, “U.S. Says China Could Face Sanctions If It Supports Russia’s War in Ukraine, Reuters, April 6, 2022; Marianna Parraga and Matt Spetalnick, “U.S. Ties Easing of Venezuela Sanctions to Direct Oil Supply, Reuters, March 9, 2022.

 

(34) “López Obrador pide a América Latina un frente común por el declive de EU ante China, SinEmbargo, July 5, 2022.