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Introdução
O mundo já mudou, embora não se saiba ainda em que exata extensão. De todo o modo, o homem branco - mestre insuperável da cobiça, da agressão nua, da conquista, da opressão, da espoliação da natureza e do seu próximo, da dissimulação e da hipocrisia - já deixou, finalmente, de ser o seu senhor absoluto. A guerra pôs a nu, de uma forma caricata, o gigantesco descompasso entre a força real do mundo ocidental – a nível de pujança demográfica, coesão social, disciplina, capacidade de sacrifício, produção industrial – e a sua ilimitada arrogância política, diplomática e mediática. É a sociedade do espetáculo em todo o seu esplendor e miséria. A catástrofe financeira está ao virar da esquina. A palavra a pesquisar é: derivativos. A fé no deus mercado está muito próximo de precipitar o ocidente coletivo pelo barranco dos cegos. Mas precisamente neste abismo existente entre as expetativas loucas de mando e o poder efetivo da tríade imperialista, que encolhe como a pele de Chagrin do romance de Balzac, residem ainda, seguramente, enormíssimos perigos para a paz mundial. É muito cedo para celebrar.
No final, se o pior puder ser evitado, teremos um mundo multipolar, potenciador da cooperação livre e de trocas mais equilibradas, em lugar do atual condomínio fechado ocidental, pirâmide implacável de exploração e asfixia para os povos, bem como de ruína para o conjunto da ecosfera terrestre. Deixaremos de ter jardim de um lado e selva do outro, para desgosto do inefável Sr. Borrell. O imperialismo pode ter a sua espinha quebrada, sim. Foi um longo processo histórico, que levou um pouco mais de um século a cumprir-se, com alguns retrocessos a meio do percurso. Por fim (e não conseguimos dizê-lo sem uma ponta de emoção), a visão de Lenine pode estar em vias de triunfar. Por uma dessas férteis e fecundas ironias da história, fá-lo-á pela mão de um seu sucessor menor, em grande parte inconsciente, que se limitou a ser um estadista competente e arrojado, no que excedeu, é certo, largamente, os seus adversários.
A derrocada do sistema imperialista de dominação anglo-americana (e sionista) será um desfecho histórico de alcance extraordinário. Devemos regozijar-nos com ela, com uma alegria incontida e esfusiante que atravessa os cinco continentes. Para um socialista revolucionário, manter equidistância e indiferença neste confronto, é sinal seguro de inconsciência, má-fé ou diletantismo. O movimento socialista mundial, a internacional dos trabalhadores e dos povos oprimidos, não teria força, neste momento, para semelhante cometimento. Terá contribuído alguma coisa, em especial pela resistência de povos latino-americanos teimosamente empenhados na prossecução de projetos socialistas. Quem o pode conseguir, em embate frontal, é uma aliança ou alinhamento muito sólido de potências semiperiféricas, que viraram as costas à globalização financeira para melhor garantia da prossecução dos seus objetivos nacionais e soberanistas.
Não é indiferente nem coincidência que estas potências ascendentes tenham tido grandes revoluções socialistas. Foram ambas inimigas juradas do imperialismo que, quando, vencidas, quiseram (re)ingressar no seio do sistema mundial capitalista, descobriram que só o poderiam fazer em condições de humilhação e espoliação nacional. Foram relembradas do que é a essência do imperialismo. Recusaram esses termos, mantendo sistemas, entre si diversos, de extensa propriedade pública, bem como de controlo e planeamento estatal sobre o processo nacional de acumulação capitalista, a fim de lhe dar coerência e garantir a autonomia. A China Popular mantém formalmente o desígnio de rumar ao socialismo, após um gigantesco percurso de NEP. A própria Federação Rússia poderá ver-se forçada, face à pressão exterior, a buscar rumos mais socializantes. Estamos prestes a ver para que lado cairá, desta feita, o Muro de Berlim.
Não caraterizamos estas potências ascendentes como imperialistas. Quem o faz, não se refere, certamente, o conceito marxista de imperialismo. Não surpreende. Muitos deles sustentaram já que esse mesmo conceito marxista de imperialismo tinha “perdido operacionalidade”, para concluírem que deixou de se aplicar aos E.U.A. e seus satélites. De onde resulta que os inimigos do império são imperialistas, da mesma forma que os seus súbditos constituem o “mundo livre”. O Mecanismo Europeu de Apoio à Paz financia, naturalmente, a guerra. Orwell viu bem, premonitoriamente. Derrubado o imperialismo (ou o “império”, para quem prefira), a libertação do jugo do capital estará mais próxima, mas ainda assim muito distante. Só é possível com a luta firme, organizada, constante, confluente, doutrinada, estrategicamente orientada, do proletariado internacional, da inteligência livre, dos zeladores do bem público e do bem comum, das mulheres trabalhadoras e cuidadoras, dos povos laboriosos (com destaque para camponeses e indígenas) e das grandes massas marginalizadas e oprimidas de todo o mundo.
Abrimos este número de O Comuneiro com nova contribuição de um dos nossos pensadores contemporâneos favoritos, John Bellamy Foster. É uma vindicação do materialismo dialético, uma tradição de pensamento que remonta aos fundadores do marxismo mas que, durante muitas décadas, foi desvalorizada (e atribuída exclusivamente a Friedrich Engels) pelos superiormente sapientes “marxistas ocidentais”. Foi preciso que a realidade nos compelisse a pensar dialeticamente e isso foi, em grande medida, efeito da crise ecológica atual. Ivonaldo Leite, sustentando-se em Lukács, Althusser e Lefèbvre, faz também uma defesa cerrada do método de Marx, inclusivamente contra os seus piores inimigos que são, bastas vezes, os corifeus encartados.
Pensar o nosso tempo de forma relevante não requer muito esforço discursivo nem esoterismos forçados. Basta pensar claro, com os conceitos certos. Domenico Moro faz isso mesmo sobre a acumulação capitalista, numa peça modelar pelo seu didatismo, “esquemática” mas bem esclarecedora. Costas Lapavitsas também não inventa, faz incidir o bisturi da análise marxista sobre a atual conjuntura inflacionista e encontra o verdadeiro culpado, para lá dos regateios do costume: a fraqueza da oferta agregada provocada pela crise de lucratividade do sistema. Alejandro Pérez Polo, pela sua vez, não faz ciência, mas tem suficiente agudeza impressionística para sugerir, como causa profunda por detrás do surto da extrema-direita nos países ocidentais, o medo, o pressentimento do fim de um mundo.
Pawel Wargan faz um excelente historial do real projeto civilizacional do Ocidente, epitomizado hoje em dia pela NATO. É uma história de agressão continuada, espoliação, senhorio, opressão sorvedora e exclusivismo. Paris Yeros crê que estamos no limiar de uma era revolucionária, sendo necessário e urgente criar uma grande frente internacional dos trabalhadores e dos povos, capaz de impor, pela luta, uma nova ordem social e económica para a humanidade. Andrea Zhok crê que os dirigentes reais (ocultos) do mundo capitalista estão conscientes da crise estrutural que percorre o sistema, mas isso não os demove de procurar impor a sua sobrevivência a todo o custo. Para isso vão socorrer-se de planos de um inconfessável recorte distópico, reminiscentes do nazismo. A luta antifascista, para ter o sucesso que lhe falhou nos anos 1930, deve despertar a consciência das massas para a criação de uma nova ordem social para além do capital. Michael Roberts recenseia dois livros recentes, um apontando para a necessidade de um decrescimento comunista mundial, outro indicando os instrumentos de cálculo económico necessários a essa opção. Walden Bello saúda o declínio do império norte-americano, mas interroga-se sobre se será mesmo necessário substituí-lo por uma nova potência hegemónica mundial.
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Os Editores
Ângelo Novo
Ronaldo Fonseca
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