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A diplomacia norte-americana como um drama trágico
Michael Hudson (*)
Tal como numa tragédia grega cujo protagonista provoca precisamente o destino que procurou evitar, o confronto dos E.U.A./NATO com a Rússia, na Ucrânia, está a alcançar exatamente o oposto do objetivo norte-americano de impedir a China, a Rússia e os seus aliados de agirem independentemente do controlo dos E.U.A. sobre a sua política comercial e de investimentos. Nomeando a China como o principal adversário a longo prazo da América, o plano da Administração Biden consistia em separar a Rússia da China e, depois, paralisar a viabilidade militar e económica da própria China. Mas o efeito da diplomacia norte-americana tem sido o de unir a Rússia e a China, juntando-se-lhes o Irão, a Índia e outros aliados. Pela primeira vez desde a Conferência de Bandung das Nações Não-Alinhadas, em 1955, uma massa crítica é capaz de se afirmar mutuamente auto-suficiente, de modo a iniciar o processo de alcançar a independência da Diplomacia do Dólar.
Confrontados com a prosperidade industrial da China, baseada no investimento público autofinanciado em mercados socializados, os responsáveis norte-americanos reconhecem que a resolução desta luta levará várias décadas a definir-se. Armar, por procuração, um regime ucraniano cliente é apenas uma abertura para transformar a 2ª Guerra Fria (e potencialmente, ou de facto, a 3ª Guerra Mundial) numa luta para dividir o mundo em aliados e inimigos, no que diz respeito a saber se serão os governos ou o setor financeiro a planear a economia e a sociedade mundiais.
O que é eufemisticamente denominado como democracia de estilo norte-americano é uma oligarquia financeira que privatiza infraestruturas básicas, saúde e educação. A alternativa é aquilo a que o Presidente Biden chama autocracia, um rótulo hostil para referir governos suficientemente fortes para impedir a assunção do seu controlo por uma oligarquia global em busca de extração de rendimentos. A China é considerada autocrática por garantir à sua população a satisfação de necessidades básicas a preços subsidiados, em vez de cobrar o que quer que o mercado possa indicar. Tornar a sua economia mista de mais baixo custo chama-se "manipulação de mercado", como se isso fosse uma coisa má, que não tivesse sido feita antes pelos Estados Unidos da América, pela Alemanha ou por qualquer outra nação industrial durante a sua descolagem económica, no século XIX e início do século XX.
Clausewitz popularizou o axioma de que a guerra é uma extensão dos interesses nacionais - principalmente económicos. Os Estados Unidos da América vêm como seu interesse económico procurar difundir a sua ideologia neoliberal a nível global. O objetivo evangelístico é o de financializar e privatizar as economias, deslocando o seu planeamento dos governos nacionais para um sector financeiro cosmopolita. Haveria pouca necessidade de política em tal mundo. O planeamento económico mudaria das capitais políticas para centros financeiros, de Washington para Wall Street, com satélites na City de Londres, nas Bolsas de Paris, Frankfurt e Tóquio. As reuniões da direção da nova oligarquia realizar-se-iam no Fórum Económico Mundial de Davos. Entretanto, os serviços e infraestruturas públicos seriam privatizados e os seus preços suficientemente alteados para incluir lucros (e, de facto, rendas monopolistas), financiamento da dívida e taxas de gestão, em vez de serem subsidiados publicamente. O serviço da dívida e a renda tornar-se-iam os principais custos gerais para as famílias, a indústria e os governos.
O esforço dos E.U.A. para manter o seu poder unipolar de impor ao mundo políticas financeiras, comerciais e militares "America First" envolve uma hostilidade inerente a todos os países que procuram prosseguir os seus próprios interesses nacionais. Tendo cada vez menos a oferecer sob a forma de ganhos económicos mútuos, a opção dos E.U.A. na sua política externa é fazer ameaças de sanções e uma ingerência encoberta. O sonho dos E.U.A. é que uma versão chinesa de Boris Yeltsin substitua a liderança do Partido Comunista nessa nação, vendendo depois o seu património público ao maior licitador - presumivelmente depois de uma crise monetária acabar com o poder de compra interno, tal como ocorreu na Rússia pós-soviética, deixando como únicos compradores a comunidade financeira internacional.
A Rússia e o Presidente Putin não podem ser perdoados por terem lutado contra as "reformas" dos rapazes de Harvard. É por isso que os responsáveis norte-americanos planearam como criar uma perturbação económica russa, para se poder (esperam eles) orquestrar uma "revolução colorida" para reconquistar a Rússia para o campo neoliberal no mundo. Este é o carácter da "democracia" e dos "mercados livres", justapostos à "autocracia" do crescimento subsidiado pelo Estado. Como explicou o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergey Lavrov, numa conferência de imprensa de 20 de julho de 2022, sobre o violento golpe de Estado na Ucrânia em 2014,
“Os E.U.A. e outros responsáveis ocidentais definem os golpes militares como democráticos, se forem patrocinados pelos Estados Unidos da América na esperança de promoverem políticas neoliberais. Lembra-se de como se desenvolveram os acontecimentos após o golpe? Os putschistas cuspiram na cara da Alemanha, da França e da Polónia, que foram os garantes do acordo com Viktor Yanukovych. Foi espezinhado na manhã seguinte. Estes países europeus não deram um pio - eles reconciliaram-se com o curso dos factos. Há alguns anos, perguntei aos alemães e franceses o que pensavam sobre o golpe. Qual era o seu papel, se não exigiram que os golpistas cumprissem os acordos? Eles responderam: «Esse é o custo do processo democrático». Não estou a brincar. Incrível - isto eram adultos, que ocupavam o cargo de ministros dos negócios estrangeiros.”
Este vocabulário dúplice (“doublethik”) reflete até que ponto a ideologia dominante evoluiu no sentido da descrição que Rosa Luxemburgo fez, há um século atrás, da escolha civilizacional que se estava a fazer: barbarismo ou socialismo.
Os contraditórios interesses e encargos norte-americanos e europeus na guerra da Ucrânia
Para voltar à visão de Clausewitz sobre a guerra como uma extensão da política nacional, os interesses nacionais dos E.U.A. divergem nitidamente dos dos seus satélites da NATO. O complexo militar-industrial norte-americano, os setores petrolífero e agrícola estão a beneficiar, enquanto que os interesses industriais europeus estão a sofrer. Este é especialmente o caso da Alemanha e da Itália, em resultado de os seus governos bloquearem as importações de gás pelo North Stream 2 e de outras matérias-primas russas.
A interrupção das cadeias mundiais de fornecimento de energia, alimentos e minerais e a consequente inflação de preços (fornecendo um alibi para as rendas monopolistas por fornecedores não-russos) impôs enormes pressões económicas aos aliados dos E.U.A. na Europa e no Sul global. Contudo, a economia dos E.U.A. está a beneficiar disto, ou, pelo menos, setores específicos da economia dos E.U.A. estão a beneficiar. Como salientou Sergey Lavrov, na sua conferência de imprensa acima citada: "A economia europeia é impactada mais do que qualquer outra coisa. As estatísticas mostram que 40% dos danos causados pelas sanções são suportados pela U.E., enquanto os danos para os Estados Unidos da América são inferiores a 1%". O valor do dólar subiu em relação ao euro, que mergulhou para a paridade com o dólar e parece estar prestes a cair ainda mais, para os $0,80, que era o câmbio há uma geração atrás. O domínio dos E.U.A. sobre a Europa é ainda mais reforçado pelas sanções comerciais contra o petróleo e o gás russos. Os E.U.A. são exportadores de gás natural liquefeito (GNL), as empresas norte-americanas controlam o comércio mundial de petróleo, e conglomerados norte-americanas são os maiores comerciantes e exportadores mundiais de cereais, agora que a Rússia está excluída de muitos mercados estrangeiros.
Um renascimento das despesas militares europeias - para a ofensa, não para a defesa
Os fabricantes de armas dos E.U.A. estão ansiosos por obter lucros com a venda de armas à Europa Ocidental, que se desarmou quase literalmente, enviando os seus tanques e howitzers, munições e mísseis para a Ucrânia. Os políticos norte-americanos apoiam uma política externa belicosa, para promover fábricas de armas que empregam mão-de-obra nos seus distritos eleitorais. E os neoconservadores (“neocons”) que dominam o Departamento de Estado e a C.I.A. vêm a guerra como um meio de afirmar o domínio norte-americano sobre a economia mundial, a começar pelos seus próprios parceiros da NATO.
O problema com este ponto de vista é que embora os monopólios militaro-industriais, petrolíferos e agrícolas dos Estados Unidos da América estejam a beneficiar, o resto da economia dos E.U.A. está a ser espremida pelas pressões inflacionistas resultantes do boicote às exportações russas de gás, cereais e outras matérias-primas, e o enorme aumento do orçamento militar será usado como desculpa para reduzir os programas de despesas sociais. Este é também um problema para os membros da zona euro. Prometeram à NATO aumentar as suas despesas militares para os estipulados 2% do seu PIB, e os norte-americanos estão a exortar a níveis muito mais elevados, para se atualizarem para a mais recente gama de armamentos. Quase esquecido está o Dividendo de Paz prometido em 1991, quando a União Soviética dissolveu a aliança do Pacto de Varsóvia, esperando que a NATO, também ela, concluísse ter poucas razões para existir.
A Rússia não tem qualquer interesse económico discernível em montar uma nova ocupação da Europa Central. Isso não ofereceria qualquer ganho à Rússia, como os seus líderes perceberam quando dissolveram a antiga União Soviética. De facto, nenhum país industrial, no mundo de hoje, pode dar-se ao luxo de colocar em campo uma infantaria para ocupar um inimigo. Tudo o que a NATO pode fazer é bombardear à distância. Ela pode destruir, mas não ocupar. Os Estados Unidos da América descobriram isso na Sérvia, Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão. E tal como o assassinato do arquiduque Ferdinand, em Sarajevo (agora Bósnia-Herzegovina), desencadeou a Primeira Grande Guerra, em 1914, o bombardeamento da NATO na vizinha Sérvia pode ser visto como o lançamento do desafio (“throwing down the gauntlet”) para transformar a Segunda Guerra Fria numa verdadeira Terceira Guerra Mundial. Esse episódio marcou o ponto em que a NATO se tornou uma aliança ofensiva e não defensiva.
Como é que isto reflete os interesses europeus? Porque deveria a Europa rearmar-se, se o único efeito disso é fazer dela um alvo de retaliação em caso de novos ataques contra a Rússia? O que tem a Europa a ganhar em tornar-se um cliente maior do complexo militaro-industrial dos Estados Unidos da América? Desviar despesas para reconstruir um exército ofensivo - que nunca poderá ser utilizado sem desencadear uma resposta atómica que acabaria com a Europa - limitará as despesas sociais necessárias para fazer face aos problemas atuais da Covid-19 e da recessão económica.
A única alavanca duradoura que uma nação pode oferecer no mundo de hoje é o comércio e a transferência de tecnologia. A Europa tem mais disto para oferecer do que os Estados Unidos da América. No entanto, a única oposição à renovação das despesas militares vem dos partidos de direita e do partido alemão Die Linke. Os partidos social-democratas, socialistas e trabalhistas da Europa partilham a ideologia neoliberal norte-americana.
As sanções contra o gás russo fazem do carvão "o combustível do futuro"
A pegada de carbono dos bombardeamentos, do fabrico de armas e das bases militares está marcadamente ausente das discussões de hoje sobre o aquecimento global e a necessidade de reduzir as emissões de carbono. O partido alemão que se autodenomina Verde está a liderar a campanha de sanções contra a importação de petróleo e gás russos, que as empresas de eletricidade estão a substituir por carvão polaco e mesmo por linhite alemã. O carvão está a tornar-se agora o "combustível do futuro". O seu preço também está a subir em flecha nos Estados Unidos da América, beneficiando as empresas de carvão norte-americanas.
Em contraste com os acordos do Clube de Paris para reduzir as emissões de carbono, os Estados Unidos da América não têm nem capacidade política nem intenção de se juntar ao esforço de conservação. O Supremo Tribunal decidiu recentemente que o poder executivo não tem autoridade para emitir regras energéticas a nível nacional; apenas os Estados individuais podem fazê-lo, a menos que o Congresso aprove uma lei nacional para reduzir os combustíveis fósseis.
Isto parece improvável, tendo em conta o facto de que, para ser presidente democrático de uma comissão no Senado ou no Congresso, é necessário ser um líder na angariação de contribuições de campanha para o partido. Joe Manchin, um bilionário dono de uma grande companhia de carvão, lidera todos os senadores na garantia de apoios das indústrias petrolífera e do carvão, o que lhe permite ganhar a licitação no seu partido para a presidência da comissão de Energia e Recursos Naturais do Senado, bloqueando a partir daí qualquer legislação ambiental seriamente restritiva.
Ao lado do petróleo, a agricultura é um dos principais contribuintes para a balança de pagamentos dos E.U.A.. Bloquear o transporte russo de cereais e fertilizantes ameaça criar uma crise alimentar no Sul global, bem como uma crise europeia, uma vez que o gás não está disponível para fazer fertilizantes domésticos. A Rússia é o maior exportador mundial de cereais e também de fertilizantes, e as suas exportações destes produtos têm sido isentas das sanções da NATO. Mas a navegação russa foi bloqueada pela colocação de minas pela Ucrânia nos corredores marítimos através do Mar Negro, para fechar o acesso ao porto de Odessa, esperando que o mundo culpasse a Rússia pela iminente crise mundial de cereais e energia, em vez das sanções comerciais impostas à Rússia pelos E.U.A./NATO. Na sua conferência de imprensa de 20 de julho de 2022, Sergey Lavrov mostrou a hipocrisia da tentativa de relações públicas de distorcer a situação:
“Durante muitos meses, disseram-nos que a Rússia era a culpada da crise alimentar porque as sanções não cobrem os alimentos e os fertilizantes. Por conseguinte, a Rússia não precisa de encontrar formas de evitar as sanções e, por isso, deve comerciar porque ninguém se interpõe no seu caminho. Levou-nos muito tempo a explicar-lhes que, embora os alimentos e fertilizantes não estejam sujeitos a sanções, o primeiro e segundo pacotes de restrições ocidentais afetaram os custos de frete, os prémios de seguro, as autorizações para os navios russos que transportam estas mercadorias atracarem em portos estrangeiros e as de navios estrangeiros que recebem as mesmas remessas nos portos russos. Estão a mentir-nos descaradamente que isto não é verdade, e que é apenas à Rússia que compete resolver a situação. Isto é jogo sujo.”
O transporte de cereais no Mar Negro começou a ser retomado, mas os países da NATO bloquearam os pagamentos à Rússia em dólares, euros ou moedas de outros países na órbita dos Estados Unidos da América. Os países com défices alimentares, que não têm meios para pagar os preços inflacionados dos alimentos, enfrentarão uma escassez drástica, que será exacerbada ainda quando forem obrigados a pagar as suas dívidas externas denominadas em dólares norte-americanos em valorização. A crise alimentar e de combustível que se avizinha promete provocar uma nova vaga de imigrantes para a Europa em busca de sobrevivência. A Europa já foi inundada com refugiados resultantes dos bombardeamentos da NATO e do apoio dado por esta aos ataques jihadistas à Líbia e aos países produtores de petróleo do Médio Oriente. A guerra por procuração deste ano na Ucrânia e a imposição de sanções anti-russas é uma ilustração perfeita do gracejo de Henry Kissinger: "Pode ser perigoso ser inimigo da América, mas ser seu amigo é fatal".
O ricochete dos erros de cálculo dos E.U.A./NATO
A diplomacia internacional norte-americana tem como objetivo ditar políticas financeiras, comerciais e militares que irão prender outros países à dívida em dólares e à dependência comercial, impedindo-os de desenvolver alternativas. Se isto falhar, os E.U.A. procurarão isolar os recalcitrantes em relação à esfera ocidental, centrada em si próprios.
A diplomacia externa dos Estados Unidos da América já não se baseia em oferecer ganhos mútuos. Pode pretender-se que fosse esse o caso no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, quando os E.U.A. estavam em posição de oferecer empréstimos, ajuda externa e proteção militar contra a ocupação - bem como fábricas para reconstruir economias devastadas pela guerra - aos governos aliados, em troca da sua aceitação de políticas comerciais e monetárias favoráveis aos exportadores e investidores norte-americanos. Mas hoje existe apenas a diplomacia beligerante, que ameaça ferir as nações cujos governos socialistas rejeitem o impulso neoliberal dos E.U.A. para privatizar e vender os seus recursos naturais e infraestruturas públicas.
O primeiro objetivo é impedir que a Rússia e a China se ajudem mutuamente. Esta é a velha estratégia imperial de dividir e conquistar. Minimizar a capacidade da Rússia de apoiar a China abriria o caminho para os Estados Unidos da América e a Europa da NATO imporem novas sanções comerciais à China e para enviarem jihadistas para a sua região ocidental de Xinjiang Uighur. O objetivo é esgotar o inventário de armamento da Rússia, matar soldados em número suficiente e criar escassez e sofrimento na Rússia, suficientes para, não só enfraquecer a sua capacidade de ajudar a China, mas também para estimular a sua população a apoiar uma mudança de regime, uma "revolução colorida" patrocinada pelos norte-americanos. O sonho é promover um dirigente semelhante a Yeltsin, amigo da "terapia" neoliberal que desmantelou a economia russa nos anos 1990.
Por incrível que pareça, os estrategas norte-americanos não anteciparam a resposta óbvia dos países que se encontravam juntos na mira das ameaças militares e económicas dos E.U.A./NATO. A 19 de julho de 2022, os presidentes da Rússia e do Irão reuniram-se para anunciar a sua cooperação face à guerra de sanções lançada contra eles. Isto seguiu-se à reunião anterior da Rússia com o primeiro-ministro indiano Modi. No que tem sido caracterizado como "disparar sobre o seu próprio pé", a diplomacia dos E.U.A. está a levar a Rússia, a China, a Índia e o Irão a unirem-se, e, de facto, a estenderem a mão à Argentina e a outros países para se juntarem ao banco BRICS-mais, de forma a se protegerem.
Os próprios E.U.A. estão a acabar com o padrão do dólar nas finanças internacionais
A Administração Trump deu um passo importante para conduzir países para fora da órbita do dólar norte-americano, em novembro de 2018, ao confiscar quase dois mil milhões de dólares de reservas oficiais de ouro da Venezuela, detidas em Londres. O Banco de Inglaterra pôs estas reservas à disposição de Juan Guaidó, o marginal político de direita selecionado pelos Estados Unidos da América para substituir o presidente eleito da Venezuela como chefe de Estado. Isto foi definido como sendo democrático, porque a mudança de regime prometeu introduzir o "mercado livre" neoliberal, que é considerado a essência da definição norte-americana de democracia para o mundo de hoje.
Este roubo de ouro não foi, na verdade, o primeiro confisco deste tipo. A 14 de novembro de 1979, a Administração Carter paralisou os depósitos bancários do Irão em Nova Iorque, após o Xá ter sido derrubado. Este ato impediu o Irão de pagar o serviço programado da sua dívida externa, forçando-o a entrar em incumprimento. Isto foi visto, na altura, como uma ação única excecional, no que diz respeito a todos os outros mercados financeiros. Mas agora que os Estados Unidos da América são a autoproclamada "nação excecional", tais confiscações estão a tornar-se uma nova norma na sua diplomacia. Ainda ninguém sabe o que aconteceu às reservas de ouro da Líbia, que Muammar Gadafi tinha a intenção de utilizar para apoiar uma alternativa africana ao dólar. E o ouro e outras reservas do Afeganistão foram simplesmente tomados por Washington, como pagamento pelo custo de "libertar" aquele país do controlo russo, apoiando os talibãs. Mas quando a Administração Biden e os seus aliados da NATO, em março de 2022, arrebataram um ativo muito maior, de cerca de 300 mil milhões de dólares, de reservas bancárias estrangeiras da Rússia e do seu património monetário, oficializaram uma nova época radical na diplomacia do dólar. Qualquer nação que siga políticas que sejam consideradas contrárias ao interesse do Governo dos E.U.A. corre o risco de que as autoridades deste país confisquem as suas reservas de divisas, em bancos ou em títulos norte-americanos.
Isto foi uma bandeira vermelha, que levou os países a temer denominarem o seu comércio, poupança e dívida externa em dólares norte-americanos, bem como a evitarem utilizar, como meio de pagamento, depósitos bancários e títulos em dólares ou euros. Ao levar outros países a pensar em modos de se libertarem do sistema monetário e comercial mundial centrado nos E.U.A., estabelecido em 1945 com o F.M.I., o Banco Mundial e, subsequentemente, a Organização Mundial do Comércio, os confiscos norte-americanos aceleraram o fim da norma do Bilhete do Tesouro dos E.U.A., que tem governado as finanças mundiais desde que os Estados Unidos deixaram de utilizar o ouro em 1971.
Desde que a convertibilidade do dólar em ouro terminou, em agosto de 1971, a dolarização do comércio e investimento mundial criou a necessidade de todos países deterem a maioria das suas novas reservas monetárias internacionais em títulos do Tesouro dos E.U.A. e depósitos bancários. Como já foi referido, isso permite aos Estados Unidos da América apreender depósitos e obrigações bancárias estrangeiras, denominadas em dólares norte-americanos.
Mais importante do que isso, os Estados Unidos da América podem criar e gastar à vontade vales (“IOUs”) em dólares na economia mundial, sem limites. Não têm de ganhar poder de despesa internacional gerando um excedente comercial, como os outros países têm de fazer. O Tesouro dos Estados Unidos da América pode, simplesmente, imprimir dólares eletronicamente, para financiar as suas despesas militares estrangeiras e para comprar recursos e empresas estrangeiras. E sendo o "país excecional", não tem de pagar estas dívidas - que são, aliás, reconhecidas como sendo demasiado grandes para serem pagas. As detenções estrangeiras de valores em dólares são crédito gratuito oferecido aos Estados Unidos da América, não requerendo pagamento, da mesma forma que não se espera dos dólares em papel existentes nas nossas carteiras que nos sejam pagos (retirando-os de circulação). O que parece ser tão autodestrutivo acerca das sanções económicas dos Estados Unidos da América e das confiscações de reservas russas e outras reservas estrangeiras, é que estão, deste moso, a acelerar o desaparecimento desta boleia gratuita.
Ricochete resultante do isolamento imposto pelos E.U.A./NATO aos seus sistemas económicos e monetários
É difícil ver como é que expulsar países da órbita económica dos E.U.A. possa servir os seus interesses nacionais a longo prazo. Dividir o mundo em dois blocos monetários limitará a diplomacia do dólar à esfera dos seus aliados e satélites da NATO.
O ricochete que agora se desenrola em resultado da diplomacia norte-americana começa com a sua política anti-Rússia. Previa-se que a imposição de sanções comerciais e monetárias impedisse os consumidores e as empresas russas de comprar as importações dos E.U.A./NATO a que se tinham habituado. Confiscar as reservas de moeda estrangeira da Rússia era suposto destruir o rublo, "transformando-o em escombros" (“rubble”), como prometeu o Presidente Biden. A imposição de sanções contra a importação de petróleo e gás russos para a Europa deveria privar a Rússia das receitas de exportação, provocando o colapso do rublo e aumentando os preços de importação (e, consequentemente, o custo de vida) para o público russo. Em vez disso, esse bloqueio de exportações russas criou uma inflação mundial dos preços do petróleo e do gás, aumentando acentuadamente as receitas de exportação russas. A Rússia exportou menos gás mas ganhou mais - e com dólares e euros bloqueados, exigiu o pagamento das suas exportações em rublos. A sua taxa de câmbio subiu em vez de cair, permitindo à Rússia reduzir as suas taxas de juro.
Forçando a Rússia a enviar os seus soldados para a Ucrânia oriental, para defender os falantes de russo sob ataque em Luhansk e Donetsk, juntamente com o impacto esperado das sanções ocidentais que se seguiram, deveria fazer com que os eleitores russos pressionassem para uma mudança de regime. Mas, como quase sempre acontece quando um país ou etnia é atacado, os russos ficaram horrorizados com o ódio ucraniano aos seus cidadãos russófonos e à cultura russa, e com a russofobia do Ocidente. O efeito de países ocidentais proibirem a música de compositores russos e romances russos nas bibliotecas - com o limite a ser atingido pela Inglaterra, ao banir os tenistas russos do torneio de Wimbledon - foi fazer com que os russos se sentissem sob ataque simplesmente por serem russos. Eles reuniram-se em torno do Presidente Putin.
As sanções comerciais da NATO catalisaram a agricultura e a indústria russas a tornarem-se mais autossuficientes, obrigando a Rússia a investir na substituição de importações. Um sucesso agrícola bem divulgado foi o desenvolvimento da sua própria produção de queijo, para substituir a da Lituânia e de outros fornecedores europeus. A sua produção no ramo automóvel e outras produções industriais estão a ser forçadas a afastar-se das marcas alemãs e outras marcas europeias, para os seus próprios produtores e para produtores chineses. O resultado é uma perda de mercados para os exportadores ocidentais.
No domínio dos serviços financeiros, a exclusão da Rússia do sistema de compensação bancária SWIFT não conseguiu criar o caos nos pagamentos previstos. A ameaça tinha sido tão forte, durante tanto tempo, que a Rússia e a China tiveram muito tempo para desenvolverem o seu próprio sistema de pagamentos. Isto proporcionou-lhes a criação de uma das condições prévias para os seus planos de separarem as suas economias das dos E.U.A./NATO/Ocidente.
Como se tem verificado, as sanções comerciais e monetárias contra a Rússia estão a impor os seus custos mais pesados aos países da Europa ocidental - sendo suscetíveis de se espalhar pelo Sul global - levando-os a pensar se os seus interesses económicos residem mesmo na adesão à confrontacional diplomacia do dólar dos E.U.A.. A perturbação está a ser sentida mais seriamente na Alemanha, causando o encerramento de muitas empresas em consequência da escassez de gás e de outras matérias-primas. A recusa da Alemanha em autorizar o gasoduto North Stream 2 fez com que a sua crise energética se tornasse mais grave. Isto levantou a questão de quanto tempo mais os partidos políticos alemães podem permanecer subordinados às políticas de Guerra Fria da NATO, à custa da indústria e dos lares alemães, que enfrentam aumentos acentuados nos custos de aquecimento e eletricidade.
Quanto mais tempo demorar o restabelecimento do comércio com a Rússia, mais as economias europeias sofrerão, juntamente com os seus cidadãos em geral, e mais a taxa de câmbio do euro cairá, estimulando a inflação em todos os seus países membros. Os países europeus da NATO estão a perder não só os seus mercados de exportação, mas também as suas oportunidades de investimento para ganharem com o crescimento muito mais rápido dos países euroasiáticos, cujo planeamento governamental e resistência à financeirização provaram ser muito mais produtivos do que o modelo neoliberal dos E.U.A./NATO.
É difícil ver como é que qualquer estratégia diplomática pode fazer mais do que jogar com o tempo. Isto envolve viver a curto prazo, não no longo prazo. O tempo parece estar do lado da Rússia, da China e das alianças comerciais e de investimento que elas estão a negociar para substituir a ordem económica neoliberal ocidental.
O problema real dos E.U.A. é a sua economia pós-industrial neoliberal
O fracasso e os ricochetes da diplomacia dos E.U.A. são o resultado de problemas que vão para além da própria diplomacia. O problema subjacente é o empenho do Ocidente no neoliberalismo, na financeirização e na privatização. Em vez do subsídio governamental dos custos de vida básicos necessários à manutenção e reprodução do trabalho, toda a vida social está a tornar-se parte do "mercado" - um mercado singularmente thatcherista, desregulamentado à maneira dos "Chicago Boys", no qual a indústria, a agricultura, a habitação e o financiamento são desregulados e cada vez mais predatórios, ao mesmo tempo que se subsidia fortemente a valorização dos ativos financeiros e titulares de rendas - principalmente a riqueza dos um por cento mais ricos. O rendimento é obtido cada vez mais através da procura de rendas financeiras e monopolistas. As fortunas são feitas através de ganhos de "capital", alavancados pela dívida, em ações, obrigações e bens imobiliários.
As empresas industriais norte-americanas têm visado mais a "criação de riqueza" através do aumento do preço das suas ações, utilizando mais de 90 por cento dos seus lucros na compra de ações e no pagamento de dividendos, em vez de o investirem em novas instalações de produção e contratarem mais mão-de-obra. O resultado de um investimento de capital mais lento é desmantelar e canibalizar financeiramente as empresas industriais, de modo a produzir ganhos financeiros. E na medida em que as empresas empregam trabalho e montam nova produção, esta é feita no estrangeiro, onde a mão-de-obra é mais barata.
A maioria da mão-de-obra asiática pode permitir-se trabalhar por salários mais baixos porque tem custos de habitação muito mais reduzidos e não tem de pagar dívidas de educação. Os cuidados de saúde são um direito público e não uma transação de mercado financeirizada, e as pensões não são pagas antecipadamente por assalariados e empregadores, mas são públicas. O objetivo na China, em particular, é evitar que o sector rentista da Finança, Seguros e Imobiliário (“Finance, Insurance and Real Estate – FIRE”) se torne uma sobrecarga cujos interesses económicos diferem dos de um governo socialista.
A China trata o dinheiro e a banca como um serviço público, a ser criado, gasto e emprestado para fins que ajudem a aumentar a produtividade e o nível de vida (e cada vez mais para preservar o ambiente). Rejeita o modelo neoliberal patrocinado pelos E.U.A., imposto pelo FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio.
A fratura económica global vai muito além do conflito da NATO com a Rússia na Ucrânia. Quando a administração Biden tomou posse, no início de 2021, a Rússia e a China já tinham discutido a necessidade de desdolarizar o seu comércio e investimento estrangeiros, utilizando as suas próprias moedas. Isto envolve o salto quântico de organizar uma nova instituição de compensação de pagamentos. O planeamento não tinha progredido para além das linhas gerais de como um tal sistema funcionaria, mas o confisco das reservas estrangeiras da Rússia pelos E.U.A. tornou esse planeamento urgente, a começar por um banco BRICS-mais. Uma alternativa euroasiática ao FMI eliminará a capacidade deste de impor "condicionalidades" de austeridade neoliberal para forçar os países a baixar os pagamentos ao trabalho e a dar prioridade à remuneração dos seus credores estrangeiros, acima da alimentação do seu povo e do desenvolvimento das suas próprias economias. Em vez de um novo crédito internacional ser concedido principalmente para pagar dívidas em dólares, fará parte de um processo de novo investimento mútuo em infraestruturas básicas, concebido para acelerar o crescimento económico e o nível de vida. Outras instituições estão a ser concebidas, enquanto a China, a Rússia, o Irão, a Índia e os seus possíveis aliados, representam uma massa crítica suficientemente grande para "se lançarem por si próprios", com base na sua própria riqueza mineral e poder de produção.
A política básica dos E.U.A. tem sido a de ameaçar desestabilizar os países e talvez bombardeá-los até estes concordarem em adotar políticas neoliberais e privatizar o seu domínio público. Mas enfrentar a Rússia, a China e o Irão é de uma ordem de grandeza muito superior. A NATO desarmou-se da capacidade de travar guerra convencional, entregando o seu inventário de armamento - reconhecidamente largamente desatualizado - para ser devorado na Ucrânia. Em qualquer caso, nenhuma democracia no mundo atual pode impor o recrutamento militar nacional para travar uma guerra terrestre convencional contra um adversário grande ou significativo. Os protestos contra a Guerra do Vietname, no final dos anos 1960, puseram fim ao recrutamento militar nos E.U.A. e a única forma de realmente conquistar um país é ocupá-lo por meio da guerra terrestre. Esta lógica implica também que a Rússia não está mais em posição de invadir a Europa Ocidental do que os países da NATO estão de enviar recrutas para combater a Rússia.
Isso deixa as democracias ocidentais com a capacidade de combater apenas um tipo de guerra: a guerra atómica – ou, pelo menos, bombardeamentos à distância, como foi feito no Afeganistão e no Médio Oriente, sem necessidade de empregar soldados ocidentais. Ora, isto não é diplomacia de todo. É apenas desempenhar um papel de demolidor. Mas esta é a única tática que permanece disponível para os Estados Unidos da América e para a Europa da NATO. É espantosamente semelhante à dinâmica da tragédia grega, onde o poder conduz à arrogância (“hubris”) que é prejudicial para os outros e, portanto, em última análise, antissocial - e autodestrutiva no final.
Como podem, então, os Estados Unidos da América manter o seu domínio mundial? Desindustrializaram-se e aumentaram a sua dívida externa oficial muito para além de qualquer previsível capacidade de pagamento. Entretanto, os seus bancos e detentores de obrigações exigem que o Sul global e outros países paguem rigorosamente aos detentores estrangeiros de obrigações em dólares, malgrado terem de fazer face simultaneamente à sua própria crise comercial, resultante do aumento galopante dos preços da energia e dos alimentos causado pela beligerância anti-russa e anti-chinesa dos Estados Unidos da América. Este padrão dúplice (“double standard”) é uma contradição interna básica que vai ao cerne da atual visão neoliberal do mundo ocidental.
Descrevi os cenários possíveis para resolver este conflito no meu recente livro The Destiny of Civilization. Finance Capitalism, Industrial Capitalism and Sacialism (O Destino da Civilização: Capitalismo Financeiro, Capitalismo Industrial ou Socialismo). Foi agora também publicado em formato de livro eletrónico pela Counterpunch Books.
(*) Michael Hudson (n. 1939) é um economista norte-americano, professor de Economia na Universidade do Missouri, em Kansas City, pesquisador do Levy Economics Institute do Bard College e Presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET). O ISLET dedica-se à investigação sobre finanças nacionais e internacionais, rendimentos nacionais e contabilidade de balanço no que diz respeito a bens imóveis. Envolve-se também na história económica do antigo Próximo Oriente. Estudou e meditou extensamente e em profundidade sobre história e teoria económica, nas suas diversas escolas, incluindo a fisiocrática, a economia política clássica, marxista, neoclássica, keynesiana, pós-keynesiana, a teoria monetária moderna, etc.. Dedicou particular atenção ao problema da dívida, pública e privada. Foi analista financeiro em Wall Street e conselheiro económico, sobre finanças e direito fiscal, de governos de todo o mundo, incluindo a Islândia, a Letónia e a China, para além de muitas organizações não-governamentais. É autor de numerosos livros, entre os quais The Myth of Aid – The Hidden Agenda of the Development Reports (1971), Global Fracture: The New International Economic Order (1977), Super-Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (2003), Trade, Development and Foreign Debt – A history of theories of polarisation and convergence in the international economy (2009), The Bubble and Beyond (2012), Killing the Host - How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (2015), J is for Junk Economics: A Guide to Reality in an Age of Deception (2017), …and forgive them their debts – Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee year (2018) e Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism (2021) entre muitos outros. O presente artigo foi publicado originalmente no blogue do autor. A tradução é de Ângelo Novo.
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