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O anticolonialismo na tradição comunista
Enzo Traverso (*)
Os bolcheviques tinham uma visão muito "ocidental" sobre o atraso russo (1). Ao contrário de Marx, que no final da sua vida tinha imaginado a possibilidade de uma transição da comunidade camponesa russa (obschina) para o socialismo, Trotsky viu na "doutrina eslavófila" nada mais que "o messianismo de um país atrasado" (2). A literatura bolchevique estava cheia de referências à Revolução Francesa, a 1848 e à Comuna de Paris, mas nunca mencionou as revoluções haitiana ou mexicana. Para Lenine e Trotsky, que gostavam particularmente desta metáfora, a "roda da história" rolava de Petrogrado para Berlim, não dos campos russos para os terrenos agrícolas de Morelos e as plantações das Antilhas.
Num capítulo da sua História da Revolução Russa, Trotsky assinala que "a civilização transformou o camponês num burro sujeito à canga" e lamenta a indiferença para com ele evidenciada nos livros de História, tal como os críticos de teatro ignoram os trabalhadores que, fora de cena, acionam as cortinas e mudam os cenários: "A participação dos camponeses nas revoluções do passado permanece até agora pouco elucidada” (3). No seu livro, porém, os camponeses aparecem principalmente como uma massa anónima. Não os deixa de fora, mas observa-os à distância, com um desprendimento analítico desprovido de empatia. Trotsky não conhecia muito bem o mundo camponês, que permaneceu uma memória da sua infância em Yanovka, na Ucrânia. Vista de Viena, Paris ou Nova Iorque, as cidades onde viveu no exílio, a imensa paisagem rural russa parecia-lhe remota. Esta observação permanece isolada no seu livro. No cerne do seu grande fresco estão as massas urbanas em ação, compostas principalmente por operários, não os camponeses. Os “jacobinos negros” eram escravos e os revolucionários mexicanos eram camponeses. Os bolcheviques tinham começado a questionar a ideia, herdada dos escritos de Marx sobre o bonapartismo francês, de que o campesinato era uma classe culturalmente atrasada e politicamente conservadora, mas o seu tropismo proletário era demasiado poderoso para lhes permitir completar essa reanálise. Esta última foi obra, não isenta de conflitos teóricos e estratégicos, do comunismo anticolonial dos anos de entre as guerras. Antes do já referido trabalho histórico de C. L. R. James, The Black Jacobins, os exemplos mais proeminentes desta reapreciação vieram da China e da América Latina.
Na China, a viragem comunista para o campesinato foi o resultado da derrota devastadora das revoluções urbanas dos anos 1920 e, ao mesmo tempo, do esforço para inscrever o marxismo numa história e numa cultura nacionais. Após a repressão sangrenta infligida pelo Guomindang (GMD), as células do Partido Comunista nas cidades tinham sido quase completamente desmanteladas e os seus membros presos ou perseguidos. No final de 1927, o Partido tinha apenas 10.000 membros, de entre os 60.000 do ano anterior. Ao recuarem para o interior, onde encontraram proteção e foram capazes de reorganizar o seu movimento, muitos dirigentes comunistas começaram a olhar para o campesinato com novos olhos, abandonando o olhar ocidental que sempre tinham mantido sobre o "atraso" asiático. Esta mudança estratégica, que foi objeto de muita controvérsia entre a Internacional Comunista e a sua secção chinesa, durante a década de 1930, foi instigada por Mao Zedong no início de 1927, antes mesmo dos massacres do GMD em Xangai e Guangzhou, em abril e dezembro desse ano (4). De regresso ao seu Hunan natal, Mao Zedong escreveu um famoso relatório no qual designava os camponeses - e já não o proletariado urbano - como a força motriz da revolução chinesa. O caráter subversivo dos camponeses era tão óbvio, para ele, que não precisava de ser provado, e embora, na altura, ainda não questionasse a aliança com o GMD, já estava a reivindicar a importância de uma liderança camponesa: "Sem [os camponeses pobres], não haveria revolução. Recusar-se a reconhecer o papel dos camponeses pobres é recusar-se a reconhecer a revolução” (5). Aos olhos de Mao, os camponeses eram clarividentes e capazes de estabelecer o seu próprio poder. Certamente, a sua revolução seria uma explosão de violência, proporcional à brutalidade sem fim da opressão infligida pelos proprietários das terras. Numa passagem canonizada mais tarde, escreveu ele:
“A revolução não é um jantar de gala, não é como escrever um ensaio, pintar um quadro ou bordar uma flor. Não pode ser realizado com tal requinte, facilidade e elegância, com tal mansidão, calma, respeito, modéstia e deferência. Uma revolução é uma insurreição, o acto de violência através do qual uma classe derruba o poder de outra classe. Uma revolução no campo é o derrube pelo campesinato do poder feudal dos latifundiários. A menos que façam os maiores esforços, os camponeses nunca conseguirão derrubar o poder dos latifundiários, que foi firmemente estabelecido ao longo dos milénios. É necessário um poderoso surto revolucionário no campo para pôr em marcha milhões de camponeses que formarão uma força considerável” (6).
Contrariando os agentes de Moscovo, que acreditavam que as milícias camponesas eram apenas os desencadeadores de revoltas urbanas, em 1931, Mao insistiu em construir uma república soviética em Jiangxi. Se ele não tivesse acreditado na dimensão rural da revolução chinesa, não teria organizado a Longa Marcha alguns anos mais tarde, para resistir à campanha de aniquilação do GMD. Inicialmente vista como uma derrota trágica, uma vez que, dos 90.000 soldados que tinham deixado Jiangxi em 1934, apenas 8.000 chegaram a Shaanxi no ano seguinte, este épico empreendimento lançou as bases para uma luta vitoriosa, primeiro contra a ocupação japonesa, depois contra o próprio GMD. Dois anos mais tarde, o Exército Vermelho Chinês tinha recuperado a sua dimensão original e em 1947, quando a guerra civil contra o GMD eclodiu, tinha 2.700.000 soldados. A proclamação da República Popular da China em Pequim, em 1949, foi o resultado de um processo que, desde as revoltas de 1925 até à Longa Marcha e à luta contra o Japão, teve necessariamente raízes nos acontecimentos de outubro de 1917, mas foi também o resultado de um repensar estratégico. Era uma ligação genética complexa a que unia as revoluções russa e chinesa (7).
As três principais dimensões do comunismo analisadas até agora - revolução, regime e anticolonialismo - convergem emblematicamente na revolução chinesa. Enquanto rotura com a ordem tradicional, esta revolução procurou pôr fim a séculos de opressão; enquanto desenlace de uma guerra civil, resultou na conquista do poder por um partido militarizado que, desde o início, estabeleceu a sua ditadura sob as formas mais autoritárias; como epílogo de uma luta contra a ocupação japonesa e depois contra o GMD, uma força nacionalista apoiada pelas grandes potências ocidentais, a vitória comunista de 1949 marcou, não só o fim do colonialismo na China, mas também, a uma escala mais vasta, um momento decisivo no processo global de descolonização. Enquanto na Rússia a burocratização do Partido Bolchevique e o fim da democracia soviética foram uma consequência da guerra civil, na China a militarização do comunismo começou quase vinte anos antes da sua conquista do poder, quando o Partido, composto por intelectuais desenraizados, abandonou as cidades para tomar conta de um movimento de libertação camponesa. Não há dúvida de que este processo revolucionário pôs toda a sociedade chinesa em movimento e teve também os seus episódios épicos, mesmo heroicos, a começar pela Longa Marcha. Contudo, nunca foi impulsionado pelo mesmo impulso utópico, quase libertário, que a Rússia experimentou em 1917 e nos anos seguintes. A revolução mudou a face de um enorme país, mas não deu origem a qualquer forma de autogestão ou democracia de conselho, nem a uma vanguarda estética ou a um amplo debate sobre emancipação sexual, para mencionar apenas alguns momentos decisivos nos primeiros tempos da União Soviética. Seria difícil transpor para a China o conto mítico de Eisenstein, no filme Outubro, sobre uma revolta popular, quanto mais aplicar a definição de revolução de Gustav Landauer como uma interrupção abrupta no continuum da história em que "tudo acontece incrivelmente rápido, tal como nos sonhos em que as pessoas parecem libertar-se da gravidade" (8). A revolução chinesa não foi um avanço social e político que libertou subitamente as energias e desejos reprimidos da sociedade. Foi o epílogo de vinte anos de guerras que deixaram a China devastada e sem fôlego. Nem uma insurreição emancipatória, como em 1917, nem uma "revolução vinda de cima", como o processo de assimilação estrutural da U.R.S.S. que teve lugar nos países da Europa Central ocupados pelo Exército Vermelho em 1945, a revolução chinesa foi uma síntese original entre uma mobilização vinda de baixo, o autoritarismo imposto de cima por um partido militarizado e uma poderosa ofensiva contra o imperialismo. A imagem de Mao Zedong proclamando a República Popular da China na Praça Tiananmen de Pequim, a 1 de outubro de 1949, tem a aura de um acontecimento histórico, que é certamente diferente do desfile de rotina de um regime totalitário. Tem pouco em comum, contudo, com a fúria caótica de Berlim, em janeiro de 1919, quando a cidade foi paralisada por barricadas improvisadas, ou com a excitação alegre das multidões que se alinhavam pelas ruas de La Habana, em dezembro de 1958, para acolher o exército rebelde de Fidel Castro e Che Guevara.
O maoísmo foi um movimento revolucionário sui generis, não a versão chinesa do bolchevismo russo. Mao impôs a sua linha estratégica contra o Comintern, cuja orientação - ardentemente defendida pelos seus agentes - era simplesmente a de estender a experiência russa à China. Moscovo impôs um curso semelhante na América Latina. Nas décadas de 1920 e 1930, a Terceira Internacional estabeleceu o seu principal centro em Buenos Aires. A escolha da Argentina, o mais europeu dos países latino-americanos, refletiu uma certa indiferença pelas tradições revolucionárias continentais, apenas alguns anos após a revolução mexicana, e pelo potencial subversivo das populações indígenas. A rebelião brasileira liderada por Luiz Carlos Prestes, cuja lendária coluna atravessou o país entre 1924 e 1928, antes de organizar uma revolta em 1935 contra o poder de Getúlio Vargas, não foi o equivalente latino-americano da Longa Marcha chinesa. Na década de 1920, a "bolchevização" dos partidos comunistas reforçou o controlo russo sobre a sua liderança, e nas décadas seguintes a estratégia internacional da Frente Popular substituiu o anti-imperialismo pelo antifascismo, o que explica, entre outras coisas, porque é que em 1958 a revolução cubana não emergiu da tradição comunista (9). Nas décadas de 1920 e 1930, contudo, o bolchevismo chegou à América Latina e transformou a sua paisagem política, introduzindo um novo ator ao lado do nacionalismo, do populismo e de um liberalismo moribundo. A cultura e a imaginação revolucionária continental foram profundamente transformadas, e o bolchevismo refez os seus códigos estéticos ao misturar símbolos europeus e indígenas. A Revolução de Outubro tinha-se tornado um paradigma universal. Os artistas mexicanos criaram obras que traduziram as formas de guerra europeias para o contexto latino-americano. Os muralistas pintaram frescos como A Trincheira (1926) de José Clemente Orozco e Distribuição de Armas (1928) de Diego Rivera, enquanto Tina Modotti criou quadros como Sombrero com Foice e Martelo (1928), em que a revolução mexicana - uma guerra camponesa pela terra e pelo poder - era representada pelos emblemas do comunismo soviético.
Enquanto a revolução russa surgiu como uma espécie de estrela polar para os rebeldes do continente, uma forma autêntica de marxismo latino-americano não poderia emergir sem se afastar da ortodoxia do Comintern. José Carlos Mariátegui, o mais importante pensador marxista latino-americano da primeira metade do século XX, recusou-se a seguir instruções de Moscovo. Estava convencido de que a história das civilizações pré-colombianas não podia ser equiparada à do feudalismo europeu e, portanto, que o socialismo não podia ser simplesmente importado do velho mundo. Teve de fundir-se com a tradição ancestral do comunismo inca, que ele comparou com a da comunidade rural russa. Na sua opinião, a chave para uma revolução socialista no Peru residia na resolução do problema da terra, que era o problema da opressão dos povos indígenas. Para os Incas, a terra era uma fonte de vida, não um objeto de conquista e exploração:
“A fé no renascimento indígena não é um processo material de 'ocidentalização' da terra quechua. A alma dos índios não é despertada pela influência da civilização ou do alfabeto do homem branco, mas pelo mito, pela ideia de revolução socialista. A esperança dos índios é absolutamente revolucionária. Este mesmo mito, esta mesma ideia, é o vetor decisivo do despertar de outros povos antigos e de outras raças arruinadas: os hindus, os chineses, etc.. Hoje em dia, a história universal tende como nunca antes a seguir uma trajetória comum. Porque deveriam os Incas, que construíram o sistema comunista mais desenvolvido e harmonioso, ser os únicos a permanecerem inalterados por esta efervescência mundial? A ligação de sangue entre o movimento indígena e as correntes revolucionárias mundiais é tão óbvia que não precisa de ser provada. Como já disse, foi através do socialismo que compreendi e apreciei no seu verdadeiro sentido a questão indígena” (10).
Após a Revolução Russa, o socialismo atravessou as fronteiras da Europa e tornou-se um tema central nos debates do Sul e do mundo colonial. Foi neste novo contexto que Mao e Mariátegui repensaram o papel do campesinato como uma força insurrecional. A sua reavaliação teórica e estratégica teve lugar na altura em que outubro de 1917 lançou as bases para a descolonização. Devido à sua posição intermédia entre a Europa e a Ásia, o seu gigantesco território que se estende por ambos os continentes, povoado por uma grande variedade de comunidades nacionais, religiosas e étnicas, a U.R.S.S. tornou-se um cruzamento entre o Ocidente e o mundo colonial. O bolchevismo conseguiu chegar às classes proletárias nos países industrializados, bem como aos povos colonizados. Temos de recuar mais de um século, à ligação simbiótica entre as revoluções francesa e haitiana para encontrar um acontecimento histórico com um impacto comparável. Ao longo do século XIX, o anticolonialismo quase desapareceu no Ocidente, com exceção do movimento anarquista, cujos ativistas e ideias circularam amplamente entre o Sul e o Leste da Europa, América Latina e Ásia. Após a morte de Marx, o socialismo baseou as suas esperanças e expectativas na força crescente do proletariado industrial, composto principalmente por homens brancos e concentrado nos países capitalistas desenvolvidos (principalmente protestantes) do mundo ocidental. Todos os partidos socialistas tinham fortes correntes que defendiam a "missão civilizadora" da Europa no mundo. Podia bem condenar-se a extrema violência do colonialismo, como o extermínio do Herero na Namíbia alemã, em 1904, mas o direito histórico dos impérios europeus a colonizar África não foi questionado. Os partidos social-democratas adiaram a libertação colonial para depois da transformação socialista da Europa e dos Estados Unidos da América. Em 1907, no seu congresso de Estugarda, a Segunda Internacional aprovou uma resolução que defendia o princípio colonial. A maioria dos pensadores socialistas via o colonialismo como uma forma de progresso e uma tarefa civilizadora a ser realizada por meios pacíficos. Este era o significado da "política colonial positiva" proposta pelo socialista belga Émile Vandervelde, que procurou evitar a violência e a desumanidade do imperialismo (11). Três anos antes, no Congresso de Amesterdão, alguns socialistas norte-americanos, holandeses e australianos tinham proposto uma resolução que apelava a restringir a imigração de "trabalhadores de raças inferiores" para os países desenvolvidos, mencionando em particular os chineses e os negros. Daniel De Leon, o líder do Partido Socialista dos Trabalhadores da América, nascido em Curaçao, de uma família judaica de ascendência holandesa, espanhola e portuguesa, criticou fortemente esta posição xenófoba e racista com palavras mordazes:
“Onde está a linha que separa as raças 'inferior' e 'superior'? [::.] Para o proletariado ‘nativo’ norte-americano, os irlandeses aparecem como uma raça ‘inferior’; para os irlandeses, os inferiores são os alemães; para os alemães, os italianos; e assim por diante, com os suecos, os polacos, os judeus, os arménios e os japoneses, mesmo no fundo da linha. O socialismo é estranho a estas distinções insultuosas e injustas; não há raças ‘inferiores’ e ‘superiores’ dentro do proletariado. É o capitalismo que alimenta as brasas de tais sentimentos para manter o proletariado dividido” (12).
Os bolcheviques fizeram uma rotura radical com esta tradição. Em Moscovo, em julho de 1920, o segundo congresso da Internacional Comunista aprovou um documento programático que apelava a revoluções coloniais contra o imperialismo: o seu objetivo era a criação de partidos comunistas no mundo colonial e o apoio aos movimentos de libertação nacional. O congresso aprovou um afastamento das velhas visões social-democratas sobre o colonialismo. Pouco depois, os bolcheviques organizaram o Congresso dos Povos do Oriente em Baku, na República Socialista Soviética do Azerbaijão. Reuniu quase dois mil delegados de vinte e nove nacionalidades asiáticas e abriu com um discurso inflamado de Grigory Zinoviev, apelando a uma jihad contra o imperialismo (13). Reunindo representantes de movimentos comunistas ainda embrionários, dirigentes de sindicatos e de associações camponesas, assim como líderes de várias correntes nacionalistas que tinham emergido das ruínas do Império Otomano, este "congresso" foi na realidade uma reunião de propaganda que cumpriu várias funções. No meio da Guerra Civil russa, o seu objetivo era reforçar a influência soviética na Ásia Central e pressionar a Grã-Bretanha, obrigando Lloyd George a negociar com a U.R.S.S. sob a ameaça de movimentos revolucionários (14). M. N. Roy, o marxista indiano que tinha discutido as teses sobre a questão colonial com Lenine, recusou-se a participar na conferência, que descreveu nas suas memórias como um "circo de Zinoviev" (15). De acordo com vários relatos, o congresso realizou-se numa atmosfera confusa e animada. Durante a sua estadia em Baku, alguns delegados exibiram ostensivamente as suas armas e aproveitaram a sua visita para concluir negócios na capital do Azerbaijão. Apesar dos slogans rituais contra o imperialismo, a questão do nacionalismo não foi realmente discutida. Enver Pasha, um dos líderes da revolução dos Jovens Turcos de 1908, não foi autorizado a participar, mas enviou uma longa mensagem que foi lida e aplaudida. Embora turcos e arménios estivessem fortemente representados, enviando 235 e 157 delegados, respetivamente, o genocídio arménio nunca foi mencionado no processo. Alfred Rosmer, uma das personalidades ocidentais que participaram no congresso, descreveu nas suas memórias uma audiência de um "extremo pitoresco", composta por "todos os trajes do Oriente" formando "um quadro surpreendentemente diverso e colorido" (16).
Para além da sua confusão ideológica e dos seus objetivos propagandísticos, o congresso de Baku foi o espelho de uma mutação significativa na cultura revolucionária. Apesar do seu número muito reduzido entre os delegados, as mulheres desempenharam um papel importante nos debates. A feminista turca Nadjia Hanum salientou que não poderia haver libertação nacional sem a emancipação das mulheres e apelou à plena igualdade civil e política para as mulheres no Oriente. A sua luta, sublinhou, foi muito além do "direito de sair sem véu" (17). Numa altura em que as mulheres estavam excluídas do sufrágio na maioria dos países ocidentais, Hanum apresentou estas exigências:
“Completa igualdade de direitos. Direito das mulheres a receberem a mesma educação geral ou profissional que os homens, em todos os estabelecimentos de ensino. Igualdade de direitos para homens e mulheres no casamento. Abolição da poligamia. Admissão sem restrições de mulheres em todos os cargos administrativos e em todas as funções legislativas. Organização em todas as cidades e aldeias de comités para a proteção dos direitos da mulher” (18).
Como salienta Brigitte Studer, o congresso de Baku foi o primeiro ato público em que o movimento comunista tentou articular, com a sua própria linguagem, as categorias de raça, género e classe num único discurso político, prefigurando aquilo a que agora se chama intersecionalidade (19).
Na imprensa ocidental, os ecos do evento tiveram um tom muito diferente. A 23 de setembro, o Times descreveu o congresso como "o espetáculo de dois judeus [Zinoviev e Radek], um deles um carteirista condenado, incitando o mundo do Islão a uma nova jihad" (20). Escrevendo de Moscovo, como jornalista inglês, H. G. Wells mencionou "um congresso em Baku", no qual "Zinoviev e os seus acólitos" tinham reunido "pessoas de pele branca, negra, castanha e amarela, costumes asiáticos e armas surpreendentes" com o objetivo de "jurar ódio eterno ao capitalismo e ao imperialismo britânico" (21). Para além destes relatos desdenhosos e xenófobos, contudo, o governo britânico considerou o congresso uma séria ameaça: em março de 1921, uma das condições que estabeleceu para um acordo comercial com a U.R.S.S. foi que esta pusesse fim à sua agitação antibritânica no Oriente, da qual a assembleia de Baku era a ilustração perfeita (22). Confusão estratégica e ideológica, realpolitik soviética, objetivos diplomáticos, parcerias ambíguas e paradoxos culturais - apelos à emancipação das mulheres alternando com elogios ao islamismo tradicional - marcaram este acontecimento, cujas consequências imediatas foram negligenciáveis. Era evidente que os bolcheviques davam as ordens e os delegados seguiam as suas instruções; cinco anos antes das revoltas comunistas em Xangai e Cantão, os oito delegados chineses não desempenharam qualquer papel nas discussões de Baku.
No entanto, um exame retrospetivo não pode ignorar a dimensão simbólica deste congresso. No seu discurso inaugural, Zinoviev declarou explicitamente que a Internacional Comunista estava a romper com as velhas conceções da social-democracia sobre o colonialismo, segundo as quais a "Europa civilizada" podia e devia "assumir o controlo da 'bárbara' Ásia" (23). A revolução já não era mais vista como o domínio exclusivo dos trabalhadores "brancos" europeus e americanos, e o socialismo não poderia ser imaginado sem a libertação dos povos colonizados:
“Dizemos que não há apenas no mundo homens brancos, que não existem apenas os europeus, por quem a Segunda Internacional se preocupava exclusivamente. Para além dos europeus, centenas de milhões de homens de outras raças habitam a Ásia e a África. Queremos pôr fim à dominação do capital em todo o mundo. Estamos convencidos de que só poderemos abolir definitivamente a exploração do homem pelo homem se acendermos o fogo revolucionário, não só na Europa e na América, mas em todo o mundo, se formos seguidos pela parte da humanidade que povoa a Ásia e a África” (24).
No seu discurso, Radek salientou que "nada [poderia] deter a torrente de trabalhadores da Pérsia, Turquia, Índia, se eles [se unissem] à Rússia soviética... A Rússia soviética [poderia] produzir armas e armar não só os seus próprios trabalhadores e camponeses, mas também os camponeses da Índia, Pérsia e Anatólia, todos os oprimidos, conduzindo-os a uma luta comum e a uma vitória comum". E acrescentou: "A política oriental do governo soviético não é uma manobra política... Estamos ligados a vocês por um destino comum" (25). A relação conflituosa entre comunismo e nacionalismo tornar-se-ia mais clara nas décadas seguintes, mas a Revolução de Outubro foi um momento inaugural: na década de 1920, o anticolonialismo passou subitamente do domínio das possibilidades para o da estratégia política e da organização militar. A conferência de Baku anunciou esta mudança histórica (26).
É certo que esta viragem teve, sem dúvida, várias dimensões, tanto estratégicas como epistemológicas. Dentro da esquerda, envolveu a reconfiguração da relação entre raça e classe, alargando assim aos povos colonizados o estatuto dos sujeitos políticos. Esta mudança teve lugar no quadro teórico do marxismo e fez do comunismo no século XX uma nova etapa na trajetória do Iluminismo radical: o comunismo reunia em si, redefinindo-os, o humanismo, o anticolonialismo e o universalismo. À direita, esta viragem dos acontecimentos conduziu a uma racialização do próprio bolchevismo. Desde a Guerra Civil Russa e as revoltas revolucionárias na Europa Central, a propaganda nacionalista começou a retratar os bolcheviques como selvagens, como a encarnação de uma perigosa forma de "barbárie asiática" que ameaçava o Ocidente (27). Sob a República de Weimar, o pangermanismo considerava os povos eslavos como uma raça inferior e descrevia os bolcheviques como os líderes de uma gigantesca revolta de escravos, recordando uma antiga "profecia" de Nietzsche. Os estereótipos racistas, desde as origens asiáticas de Lenine ao mito de um tcheka chinesa (28), inundaram a literatura anticomunista. Na década seguinte, o nacional-socialismo completou o quadro, retratando o bolchevismo como a coligação de uma sub-humanidade não branca dirigida por uma intelligentsia judaica revolucionária. Num famoso discurso proferido em Düsseldorf em 1932, para uma audiência de industriais alemães, Hitler apresentou a U.R.S.S. como uma grande ameaça à "raça branca" e à "civilização ocidental" (29). Durante várias décadas, o colonialismo, o antissemitismo e o anticomunismo foram componentes essenciais da cultura política conservadora, ao longo de um largo espectro que ia de Churchill até Hitler.
A aliança entre comunismo e anticolonialismo atravessou vários momentos de crise e tensão, ligados tanto a conflitos ideológicos como aos imperativos de política externa da U.R.S.S.. Na década de 1930, a viragem antifascista do Partido Comunista Francês produziu uma estranha simbiose entre o estalinismo e o republicanismo nacional, que colocou a revolução russa na tradição do jacobinismo e do internacionalismo socialista, na missão civilizadora universal da França. O anticolonialismo foi assim deixado para trás. No final da Segunda Guerra Mundial, o PCF participou num governo de coligação que reprimiu violentamente as revoltas anticoloniais na Argélia (1945) e em Madagáscar (1947). Na década seguinte apoiou o primeiro-ministro Guy Mollet no início da Guerra da Argélia (30). Na Índia, o movimento comunista foi marginalizado por suspender a sua luta anticolonial durante a Segunda Guerra Mundial, a fim de apoiar o Império Britânico, um aliado da U.R.S.S. contra as forças do Eixo.
Embora estes exemplos mostrem claramente as contradições do anticolonialismo comunista, não põem em causa o papel histórico da U.R.S.S. como base de retaguarda para muitas das revoluções anticoloniais. O processo de descolonização teve lugar no contexto da Guerra Fria, no meio de um equilíbrio de poder criado pela existência da U.R.S.S.. Em retrospetiva, a descolonização aparece como uma experiência histórica na qual as duas dimensões do comunismo já mencionadas - emancipação e autoritarismo, revolução e ditadura - estavam constantemente entrelaçadas. Na maioria dos casos, as lutas anticoloniais foram concebidas e organizadas como campanhas militares lideradas por exércitos de libertação, e os regimes políticos por elas estabelecidos foram, desde o início, ditaduras unipartidárias. No Camboja, após uma guerra feroz, a dimensão militar da luta anticolonial asfixiou completamente qualquer política emancipatória: a conquista do poder pelos Khmers Vermelhos deu origem, desde o início, ao estabelecimento de um poder genocida (31). A alegria da insurreição de La Habana a 1 de janeiro de 1959 e o terror nos campos de arroz cambojanos são, assim, os dois polos dialéticos do comunismo como anticolonialismo.
(*) Enzo Traverso (n. 1957) é um académico, filósofo e historiador das ideias de origem italiana, atualmente professor na Cornell University, em Nova Iorque. Natural do Piemonte, graduou-se na Universidade de Génova, mas prosseguiu a sua carreira universitária, durante vinte e cinco anos, em França. Entre 1989 e 1991 trabalhou também no International Institute for Research and Education (IIRE), em Amesterdão. Entre as suas áreas privilegiadas de investigação estão a teoria crítica, o marxismo, o holocausto, a memória e a historiografia contemporânea. Publicou diversos livros, com destaque para Les Marxistes et la question juive, La Brèche-PEC, Montreuil, 1990; L'Histoire déchirée, essai sur Auschwitz et les intellectuels, Éditions du Cerf, Paris, 1997; Le Totalitarisme: Le XXe siècle en débat, 2001; À Feu et à sang: De la guerre civile européenne, 1914-1945, Stock, Paris, 2007; Mélancolie de gauche: La force d’une tradition cachée (XIXe-XXIe siècle), La Découverte, Paris, 2016 e Les nouveaux visages du fascisme, Textuel, 2017. O texto aqui publicado constitui um capítulo do seu novo livro Revolution: An Intellectual History, publicado por Verso Books (outubro de 2021). A tradução é de Ângelo Novo a partir da versão em língua francesa publicada pela revista Contretemps.
__________________ NOTAS:
(1) Ver Karl Korsch, «The Marxist Ideology in Russia» (1938), Living Marxism, vol. 4, n.° 1, fevereiro de 1938. Eric Hobsbawm salientou "o paradoxo do marxismo russo": por um lado, herdou a tradição revolucionária do populismo; por outro, utilizou os escritos de Marx, na esteira dos chamados "marxistas legais", para provar que "a Rússia tinha de passar pela fase do capitalismo": «The Influence of Marxism 1880 1914», in How to Change the World. Reflections on Marx and Marxism, New Haven, Yale University Press, 2011, p. 220.
(2) Léon Trotski, Histoire de la révolution russe. Points, Vol. 1, p. 43. Sobre as discussões entre Marx e os populistas russos, ver Theodor Shanin (dir.), Late Marx and the Russian Road. Marx and the Peripheries of Capitalism, New York, Monthly Review Press, 1983.
(3) Léon Trotski, Histoire de la révolution russe. Vol. 2, p. 371.
(4) Para um relato resumido do processo revolucionário na China, ver Rebecca Karl, Mao Zedong and China in the Twentieth-Century World, Durham, Duke University Press, 2010, capítulos 3, 4, e 5.
(5) Mao Zedong, «Rapport sur l’enquête menée dans le Hounan à propos du mouvement paysan» (1927), in Œuvres choisies de Mao Tsé-toung, vol. 1 (1926 1937), Pékin, Éditions en langues étrangères, 1966, p. 33.
(6) Ibid., p. 28. É interessante notar que, em 1932, Trotsky salientou a necessidade de reconstruir células comunistas nas cidades e expressou grande ceticismo em relação ao Exército Vermelho camponês criado por Mao em Jiangxi. Ver Leon Trotsky «La guerre des paysans en Chine et le prolétariat (Lettre aux bolcheviks‑léninistes chinois du 22 septembre 1932)», Écrits 1928-1940, Paris, Éditions Marcel Rivière, 1955, vol. 1. Sobre a importância da "intuição" maoísta de 1927, "em oposição à tradição marxista, a todos os marxismos", ver Roland Lew, 1949. Mao prend le pouvoir, Bruxelles, Complexe, 1999, p. 112-114.
(7) Segundo Perry Anderson, "a revolução chinesa surgiu diretamente da revolução russa e permaneceu ligada a ela, vendo-a como uma inspiração e uma lição, até ao seu momento comum de verdade no final dos anos 80". Ver Perry Anderson, «Two Revolutions. Rough Notes», New Left Review, n.° 61, 2010, p. 60.
(8) Gustav Landauer, La Révolution, trad. Margaret Manale e Louis Janover, Arles, Sulliver, 2006, p. 153.
(9) Ver Manuel Caballero, Latin America and the Comintern, Cambridge, Cambridge University Press, 1986.
(10) José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, Lima, Amauta, 2005 (1928), p. 35-36. Ver Robert Paris, La formación ideológica de José Carlos Mariátegui, Mexico, Pasado y Presente, 1981, e a introdução de Michael Löwy à sua antologia Le Marxisme en Amérique latine, La découverte, 1980.
(11) Ver Georges Haupt, La Deuxième Internationale et l’Orient, Paris, Cujas, 1967, p. 25-34.
(12) Daniel De Leon, «Flashlights on the Amsterdam Congress», Daily People, 27 de novembro de 1904, citado em David S. Herreshoff, The Origins of American Marxism. From the Transcendentalists to De Leon, New York, Monad Press, 1973, p. 169.
(13) Ver a transcrição estenográfica do discurso inaugural de Zinoviev in L’Internationale communiste et la libération de l’Orient. Le premier congrès des peuples de l’Orient, Bakou 1920, Petrograd, Éditions de l’Internationale communiste, 1921; réédition en fac similé, Paris, La Brèche et Radar, 2019, p. 50. Ver também Pierre Broué, Histoire de l’Internationale communiste 1919-1943, Paris, Fayard, 1997, p.181-182; Serge Wolikow, L’Internationale communiste (1919-1943). Le Komintern ou le rêve déchu du parti mondial de la révolution, Paris, L’Atelier, 2010, p. 35-37; e Pierre Frank, Histoire de l’Internationale communiste 1919-1943, Paris, La Brèche, 1979, vol. 1, p. 104-107.
(14) Ver Stephen White, «Communism and the East. The Baku Congress, 1920», Slavic Review, vol. 33, n.° 3, 1974, p. 492-514.
(15) M. N. Roy, Memoirs, Ajanta Publications, p. 392.
(16) Alfred Rosmer, Moscou sous Lénine, Paris, Pierre Horay, 1953, capítulo XVI.
(17) L’Internationale communiste et la libération de l’Orient, op. cit., p. 180.
(18) Ibid., p. 182.
(19) Brigitte Studer, Reisende der Weltrevolution. Eine Globalgeschichte der Kommunistischen Internationale, Frankfurt, Suhrkamp, 2020, p. 125.
(20) Citado in Stephen White, «Communism and the East», loc. cit., p. 502.
(21) H. G. Wells, La Russie telle que je viens de la voir, Paris, Éditions du progrès civique, 1921, p. 89.
(22) Voir Stephen White, « Communism and the East », loc. cit., p. 493 et p. 503.
(23) L’Internationale communiste et la libération de l’Orient, op. cit., p. 38.
(24) Ibid, p. 21 22.
(25) Citado in The Communist International 1919-1943. Documents, éd. Jane Degras, Londres, Oxford University Press, 1956, vol. 1, p.105.
(26) Segundo Matthieu Renault, que banaliza o significado do congresso de Baku, este último confirmou, no entanto, o abandono, já operado por Lenine em 1914, de uma "lógica cronotópica, evolutiva", em direção a uma conceção "multilinear" do processo histórico. Ver Matthieu Renault, L’Empire de la révolution. Lénine et les musulmans de Russie, Paris, Syllepse, 2017.
(27) Para Hitler, o bolchevismo era «uma doutrina humana de ares asiáticos ou bárbaros». Citado in Ernst Nolte, Streitpunkte. Heutigeund künftige Kontroversen um den Nationalsozialismus, Berlin, Propyläen, 1993, p. 371.
(28) A origem do mito da "jaula dos ratos" - uma tortura alegadamente levada a cabo por uma Tcheka chinesa - pode ser rastreada até um panfleto da Guarda Branca publicado por Sergei P. Melgunov em 1924, que foi rapidamente traduzido para várias línguas ocidentais: La Terreur rouge en Russie, 1918-1924, tradução de Wilfrid Lerat e Antoinette Roubichou-Stretz, Genève, Éditions des Syrtes, 2019. Durante a “controvérsia dos historiadores" na Alemanha Federal dos anos 1980, foi ressuscitada por Ernst Nolte, Der europäische Bürgerkrieg 1917-1945. Nationalsozialismus und Bolschewismus (Frankfurt: Ullstein, 1987), p. 115, bem como numa longa nota de rodapé na p. 564. Ver também Hans‑Ulrich Wehler, Entsorgung der deutschen Vergangenheit? Ein polemischer Essay zum Historikerstreit, Munich, Beck, 1988, p.147‑154.
(29) Citado in Ernst Nolte, Streitpunkte, op. cit., p. 356.
(30) Jakob Moneta, Le PCF et la question coloniale, Paris, François Maspero, 1971.
(31) Ver Ben Kiernan, The Pol Pot Regime, Yale University Press, 2008 (3.ª edição).
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