Leninismo climático e transição revolucionária

Organização e anti-imperialismo em tempos catastróficos

 

 

Kai Heron e Jodi Dean (*)

 

 

A transição é o problema do nosso tempo. Transições energéticas, transições tecnológicas, transições verdes, transições políticas, transições justas... revolução. Como as variantes da COVID-19 matam milhões, como os habitats e as espécies tremulam para fora de existência, como as casas ardem ou são varridas, como as colheitas falham e como dezenas de milhares de refugiados se afogam no Canal da Mancha ou morrem de exposição nos desertos do México, todos sabem que as coisas não podem continuar assim. Qualquer que seja a nossa persuasão política, a questão da transição é inescapável.

 

O comunismo, escreveram Marx e Engels, de forma célebre, é "o verdadeiro movimento que abole o estado atual das coisas" (1). Como este movimento, o comunismo significa transição. É a abolição da relação salarial, da forma valor, da propriedade privada, do Estado, e dos regimes racializados e de género de sustentada violência sistémica. Estas coisas não desaparecem da noite para o dia. “Entre a sociedade capitalista e a comunista", escreve Marx, noutro lugar, "existe um período de transformação revolucionária de uma na outra. A isto corresponde também um período de transição política em que o Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado" (2).

 

A transição é revolução. O empurrar e puxar da transição, os recuos e os avanços, estão no centro das tradições revolucionárias marxistas e não-marxistas. Apesar disso, os movimentos e teóricos de hoje raramente lhe dão muita atenção. A transição é uma caixa negra que fica entre o presente e as nossas visões idealizadas do futuro, quer se trate de um Novo Pacto Verde (“Green New Deal”) radical, do comunismo, ou de um futuro de decrescimento. Num extremo, alguns rejeitaram por completo a questão da transição, imaginando a implementação imediata do comunismo através de "medidas de comunização". No outro extremo, a transição é prolongada a favor da tarefa aparentemente mais urgente de lutar pela sobrevivência dentro do capitalismo.

 

Por muito inspiradoras que sejam as visões de futuro da esquerda anticapitalista, por muito que queiramos traduzir o problema da transição em medidas imediatas, e por muito compreensível que seja dar prioridade ao imediatismo da sobrevivência, todas as três evadem o problema da transição. Negam a sua duração ou negam o facto de a transição ser um comunismo em construção. A forma como partimos do capitalismo molda o nosso destino. E temos de partir do capitalismo.

 

Um laboratório de transição

 

Tal como os vinte e cinco COPs (3) que o precederam, o COP26 deveria ser o local onde os líderes mundiais encontrariam soluções políticas consensuais para a catástrofe ecológica. Neste aspeto, a cimeira fracassou. Num outro sentido, porém, a COP26 foi um sucesso. Mostrou como o pensamento capitalista está muito à frente da esquerda quando se trata de pensar na transição. Uma abordagem dialética do COP26, que presta atenção à sua forma enquanto retira o seu conteúdo capitalista, ajuda-nos hoje a abordar o problema da transição revolucionária.

 

Em vez de estar orientada para uma transição justa, a COP26 perpetuou os interesses imperialistas e capitalistas fósseis. Primeiro, o acordo de Glasgow enfatizou a "redução gradual" do carvão quando deveria ter incluído o trio dos combustíveis fósseis, carvão, petróleo e gás. O carvão continua a ser essencial para as economias da China e da Índia à medida que estas recuperam de séculos de subjugação colonial, mas não para os EUA, o principal produtor mundial de petróleo e gás. A COP imagina que a transição geopolítica e energética beneficia as potências imperialistas, não a maior parte do planeta. Os produtores de petróleo e de gás e os estados obrigados ao capital fóssil irão "compensar" as suas emissões através de "soluções baseadas na natureza", enquanto as chamadas energias renováveis entram na mistura sem substituir os combustíveis fósseis a tempo de evitar o desastre do aquecimento (4).

 

Em segundo lugar, os E.U.A., a U.E., o Reino Unido e a Austrália retiraram a estipulação sobre perdas e danos do texto final do acordo de Glasgow. Apresentada por todos os 138 países em desenvolvimento, esta estipulação é o apoio financeiro que os países mais ricos devem aos mais pobres. Uma estipulação semelhante para perdas e danos exigida pelas nações insulares foi igualmente retirada do acordo final pelos países "desenvolvidos", receosos de que tais cláusulas pudessem conduzir a responsabilidade legal por emissões passadas e abrir a porta a pedidos de reparação.

 

Sobre a paragem do aquecimento global, sobre manter os combustíveis fósseis no solo e em questões de justiça global, a COP26 foi um fracasso completo. No entanto, elementos dos procedimentos da COP26 apontam para além do seu conteúdo capitalista em direção a um horizonte comunista: exprimem uma teoria de transição verde à escala relevante. O reconhecimento, pelo COP26, de que são necessários projetos em grande escala de restauração da paisagem terrestre e marítima e um movimento em direção a práticas agrícolas ecologicamente benignas para sustentar a vida na terra são um progresso.

 

Por exemplo, as "soluções baseadas na natureza" para a crise climática foram fortemente destacadas na cimeira (5). Quarenta e cinco governos concordaram em aumentar os esforços para proteger a natureza não-humana e em avançar para práticas agrícolas sustentáveis. No total, "foram prometidos mais de 4 mil milhões de libras em novos investimentos do sector público para inovação agrícola, incluindo culturas resistentes ao clima e soluções regenerativas para melhorar a saúde do solo" com o objetivo de tornar tais práticas acessíveis a "centenas de milhões de agricultores" (6). Os ecossistemas restaurados e a agricultura regenerativa podem aumentar a biodiversidade, reparar solos deteriorados, aumentar a retenção de água no solo, reduzir as inundações, reduzir os insumos provenientes de fora da exploração agrícola, aumentar os rendimentos, melhorar a resiliência climática e empoderar os agricultores e as comunidades agrícolas. Mas, claro, no âmbito da COP26, "agricultura sustentável" e "culturas resistentes ao clima" podem também significar culturas geneticamente modificadas patenteadas e fatores de produção de fora da exploração agrícola que desapoderam os agricultores, atraindo-os para sistemas de agricultura verticalmente integrada que acumulam rendas ou capturam valor para a agro-indústria global. Pior ainda, como os líderes indígenas e pastoris sublinharam, "soluções baseadas na natureza" poderiam fortalecer as práticas de conservação que deslocam forçadamente as comunidades indígenas e pastoris das suas terras em nome da proteção de uma ideia eurocêntrica da "Natureza" como sendo imaculada e ontologicamente independente de nós.

 

Os elementos necessários para uma transição para um futuro pós-capitalista, comunista, estão lá, mesmo na COP26 imperialista. Uma vez que a temperatura da Terra já ultrapassa em um grau centígrado os níveis pré-industriais e os cortes planeados são insuficientes para reduzir as emissões de carbono aos níveis necessários (7), a única resposta apropriada é a nacionalização, regulamentação e proibição de combustíveis fósseis num quadro global em que os países imperialistas aceitam a responsabilidade pelas alterações climáticas e providenciam todo o apoio financeiro necessário que os países pobres requerem. Isto é óbvio e não é particularmente complicado, se não se for entravado por leis e suposições relativas à propriedade privada.

 

O imperialismo está a instaurar um futuro que aumenta a dívida e a dependência dos povos colonizados e anteriormente colonizados, aumentando a miséria e a exploração global. Os governos do capital fóssil não estão empenhados em soluções baseadas na natureza que exijam respeito pela soberania indígena. Os objetivos dos imperialistas são o dinheiro e o poder, o capital e o controlo. O movimento climático já não pode prosseguir como se o nosso objetivo fosse persuadir tais governos a agir.

 

A revolução é assim uma resposta prática e comedida à catástrofe climática que se está a desenrolar. Dadas as décadas de fracasso capitalista em transformar a produção enquanto ainda havia tempo para manter as temperaturas dentro de um certo grau de níveis pré-industriais, a revolução deixou de ser uma resposta possível às crises ramificantes do mundo para ser a resposta mais provável. A revolta social revolucionária resultará da migração em massa de pessoas que fogem de inundações, incêndios e secas, de tumultos por comida, abrigo e energia, e da apreensão do que é seu por direito. Resultará de reacionários armados, indignados, e racistas fartos do "alcance excessivo" do governo e dispostos a tomar o poder nas suas próprias mãos, em nome da autodefesa. A questão é a direção que as revoluções tomarão: para a abolição do eco-apartheid e o estabelecimento de sociedades equitativas e habitáveis ou para a consolidação do autoritarismo, do fascismo, e do neofeudalismo. Que esta é a questão faz da transição política a principal questão que nos confronta à esquerda.

 

A política de transição

 

Há uma década atrás no Trópico do Caos, Christian Parenti salientou o facto de que a crise climática é uma crise política. Enquanto outros estavam - e ainda estão - a apresentar as alterações climáticas em termos morais e ontológicos, Parenti reconheceu o imperativo de gerar a vontade política para assumir e derrotar o sistema capitalista que impulsiona o aquecimento global (8). Este reconhecimento permitiu a Parenti nomear a contradição subjacente. Precisamos de uma esquerda poderosa capaz de usar o poder estatal para enfrentar e corrigir os impactos grosseiros e globalmente desiguais das alterações climáticas, mas não temos tempo para construir uma.

 

Os próprios problemas estruturais que os nossos sistemas políticos colocam para enfrentar as alterações climáticas apresentam barreiras à construção de um forte contrapoder de esquerda. Os bolsos profundos do setor dos combustíveis fósseis albergam muitos políticos. Poucos funcionários eleitos estão confiantes de que a preocupação declarada dos seus constituintes com a catástrofe ambiental em curso reflete um apoio ao sacrifício ou à mudança, especialmente na sequência de décadas de austeridade imposta e da redistribuição ascendente da riqueza. Para a maioria das campanhas políticas, as alterações climáticas não são uma questão vencedora. Não admira, pois, que a única abordagem à transição tolerada pelo establishment político dos E.U.A. seja a mais simpática ao capitalismo fóssil e ao próprio interesse geopolítico dos E.U.A.; tal como as elites de outros países do centro capitalista, planeiam defender-se do pior do aquecimento global ao mesmo tempo que reforçam as suas fronteiras contra a inevitável vaga de refugiados climáticos. Este é um mundo de eco-apartheid: um regime imperialista de acumulação de capital baseado na exploração da natureza não-humana e de povos racializados em zonas de sacrifício, que se estendem das periferias aos centros.

 

Dadas as barreiras apresentadas pela política eleitoral, as manifestações de massas e a desobediência civil parecem ser uma via promissora de mudança. Por mais momentaneamente satisfatórias que estas atividades possam ser, elas não se debruçam sobre o problema que as torna disponíveis como alternativas: o fracasso das democracias capitalistas. As manifestações de massas são eficazes quando podem influenciar a tomada de decisões políticas. Mas isto pressupõe a presença de decisores dispostos a fazer escolhas difíceis e potencialmente impopulares, o que nos devolve ao impasse político geral. Para que servem os apelos à mudança se ninguém que as possa fazer os ouve?

 

Dado este impasse político, muitas mobilizações climáticas visam os atores do mercado, sejam consumidores, bancos, instituições sem fins lucrativos, ou empresas. O objetivo de visar os condutores de SUV que consomem gás, por exemplo, é gerar mudanças no estilo de vida. Esta e outras ações orientadas para o consumidor têm objetivos louváveis (9). No entanto, as despesas de consumo pessoal nos E.U.A. têm aumentado constantemente desde os anos 1970 (não obstante o acentuado declínio e a rápida recuperação em 2020 devido à pandemia). Na ausência de mudanças na produção e nas políticas, os esforços centrados em mudanças voluntárias no consumo continuarão a ser inadequados.

 

O desinvestimento surgiu como uma estratégia de movimento: ativistas pressionam universidades e museus a venderem os seus investimentos em empresas petrolíferas e de gás. O movimento obteve uma vitória visível em setembro de 2021 quando a Universidade de Harvard anunciou que iria eliminar os investimentos indiretos no sector dos combustíveis fósseis, tendo já eliminado os investimentos diretos. No entanto, os críticos do desinvestimento como estratégia apontam a sua falta de impacto no mundo real. Não apenas envergonhar as instituições de desinvestimento não impede as empresas de combustíveis fósseis de angariar capital, mas como estratégia pressupõe um corpo social unido em torno de valores partilhados, como se não houvesse pessoas energizadas pela perspetiva de mais petróleo e mais perfuração. Para cada uma das crianças da escola que faltam à escola às sextas-feiras, há igualmente muitos isolacionistas preocupados com a independência energética e condutores que associam motores à liberdade. Quando a divisão vai até ao fim, a suposição de valores partilhados não se mantém - de facto, a ausência destes valores partilhados é, precisamente, o problema que bloqueia as democracias capitalistas e torna a revolução tanto provável como necessária. Os políticos sem vergonha não podem ser envergonhados porque não estão isolados e sozinhos; têm círculos eleitorais que não se preocupam nem com a exploração capitalista e a desigualdade nem com as alterações climáticas.

 

Em 2011, Parenti enfrentou de frente o problema político que as alterações climáticas representam para as democracias capitalistas:

 

“O facto é que o tempo se esgotou com a questão climática. Ou o capitalismo resolve a crise, ou destrói a civilização. Ou o capitalismo começa a lidar com a crise agora, ou enfrentamos o colapso civilizacional a partir deste século. Não podemos esperar por uma revolução neoprimitiva socialista, ou comunista, ou anarquista, ou profundamente ecológica; nem por uma conversão localista baseada na nostalgia de volta à mítica economia de pequenas cidades da América pré-industrial, como alguns avançam” (10).

 

Estávamos fora do tempo há uma década atrás. Mas Parenti era demasiado otimista mesmo nessa altura. Mesmo quando a sua análise detalha as formas como o imperialismo aumenta o impacto mortal das alterações climáticas no conjunto de países eviscerados pelo colonialismo e militarismo, Parenti pensa que o capitalismo com que estamos presos pode ajudar a resolver alguns problemas, especialmente se for acompanhado por uma apreciação da necessidade de ação estatal e de avanços tecnológicos no sequestro de carbono (11). Parenti implica um ou/ou entre capitalismo e colapso civilizacional, como se o próprio capitalismo não fosse um destruidor de culturas e comunidades, como se a sua continuação não fosse o motor do colapso. Ele tem razão quando diz que o tempo se esgotou. Ele tem razão no seu argumento mais amplo sobre a necessidade do Estado. E tem razão em que há elementos do atual sistema que podem e devem ser implantados numa transição comunista verde. Onde Parenti fica aquém é no abandono do projeto de uma tomada socialista do Estado e reconstrução da sociedade.

 

É uma fantasia pensar que o capitalismo pode gerir uma transição dos combustíveis fósseis para as chamadas "energias renováveis" de uma forma que não signifique morte e catástrofe para muitos milhões de vidas humanas e não humanas. A Aliança Financeira Global para o Zero Líquido (GFANZ, no acrónimo em inglês) anunciou na COP26 que se comprometeu a disponibilizar até 130 biliões de dólares para financiar a transição para além dos combustíveis fósseis (12). A análise de Whitney Webb revela a predação imperialista subjacente à iniciativa. Compreendendo os bancos mais poderosos do mundo, a GFANZ está a criar "uma arquitetura financeira internacional" que irá investir enormes quantidades de capital em projetos específicos por países. Os bancos multilaterais de desenvolvimento (MDBs), tais como o Banco Mundial, desempenharão um papel crítico na direção destes investimentos. Os países em desenvolvimento ficarão presos em dívidas e as suas dívidas serão usadas para os forçar "a desregulamentar os mercados (especificamente os mercados financeiros), privatizar os ativos do Estado e implementar políticas de austeridade impopulares" (13). As alterações climáticas são a nova justificação para impor políticas aos países em desenvolvimento, políticas que beneficiam o capital enquanto desmantelam os sectores públicos e empobrecem as populações. A resposta capitalista às alterações climáticas é um do imperialismo intensificado, verde e predatório. É o capitalismo como um colapso civilizacional.

 

A indústria de combustíveis fósseis e os maiores produtores mundiais de petróleo e gás resistirão a quaisquer cortes reais na produção com tudo o que têm. Até agora, os acordos internacionais e as mudanças políticas pouco têm feito para alterar o equilíbrio de poder. Nos dias imediatamente a seguir à COP26, o chefe do executivo da BP, Bernard Looney, pareceu pouco impressionado com os acordos para atingir o zero líquido. "Pode não ser popular dizer que o petróleo e o gás vão estar no sistema energético durante décadas, mas essa é a realidade", disse ele à CNBC (14). A menos que haja uma revolução, as próximas décadas serão definidas por uma luta entre capitais concorrentes - capital fóssil, de um lado, capital "verde" do outro, com o capital financeiro a tentar a sua sorte com ambos - lutando por uma maior quota-parte de um uso da energia no mundo cada vez maior e insustentável. A EIA (Administração da Informação sobre Energia dos E.U.A.) prevê que o consumo global de energia aumentará em 50% até 2050 (15), algo que os estudos sobre decrescimento nos mostram que não nos podemos permitir, mesmo que uma parte maior provenha das chamadas energias renováveis (16).

 

No entanto, pelo menos num ponto concordamos com os capitalistas verdes, empresários tecnológicos e dirigentes mundiais imperialistas que sonham com uma transição sem fricções para sistemas de energia renovável, explorações agrícolas verticais de alto rendimento, carnes de laboratório e a dissociação do "crescimento" (acumulação de capital) do rendimento material: uma transição de algum tipo é inevitável. Nunca é demais dizer isto. A transição tornou-se a questão do nosso tempo, tanto para o capitalismo - à medida que as crises ecológicas agravadas começam a corroer a ficção da compatibilidade do capital com a prosperidade humana e não humana - como para os movimentos radicais e revolucionários.

 

Uma, duas, muitas recusas da transição

 

O problema da transição faz-se sentir através de uma proliferação de imaginários pós-capitalistas. Coletivamente temos imaginado Novos Pactos Verdes (“Green New Deals”), Futuros de Decrescimento, um Pacto Vermelho (“Red Deal”), um Futuro de Pequenas Quintas (“Small Farm Future”), o Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado (“Fully Automated Luxury Communism”), o Socialismo Meia-Terra (“Half-Earth Socialism”), Horizontes Feministas Descolonizados, matrizes agroecológicas, e muito mais. No entanto, cada um destes projetos salta por cima, evita ou adia o problema da transição. Como é que vamos passar daqui, de um mundo em chamas, para ali, para um mundo que se regenera lenta mas seguramente de séculos de violência, pilhagem e exploração? Qual é a nossa estratégia? Quais são as nossas táticas imediatas? Este é um problema que não pode ser evitado.

 

No seu livro Corona, Climate, Chronic Emergency (Corona, Clima, Emergência Crónica), Andreas Malm sugere que nem o horizontalismo anarquista nem a social-democracia são capazes de descarbonizar a sociedade com rapidez suficiente para evitar as terríveis consequências do colapso ecológico. Retomando uma familiar crítica marxista ao anarquismo, Malm considera esta tradição de pensamento político demasiado descentralizada, demasiado oposta a programas, à disciplina e ao potencial do Estado como instrumento de transição revolucionária. A social-democracia está igualmente mal adaptada à crise, devido à sua incapacidade de agir rápida e decisivamente. "A social-democracia", escreve Malm, "funciona no pressuposto de que o tempo está do nosso lado. Tem de haver muito tempo". O problema - e aqui Malm está correto - é que o tempo não está do nosso lado. Mesmo supondo que outros Bernie Sanders ou Jeremy Corbyn aparecessem no próximo ciclo eleitoral, e mesmo supondo que fossem eleitos por maioria esmagadora, um sistema social-democrata com um progressista ao leme teria de ir para além de si próprio para responder a tempo à crise ecológica. Teria de implementar medidas extraordinárias. Precisaria de agir com o tipo de pressa que não se viu nas social-democracias fora de condições de guerra.

 

Se nem o anarquismo nem a social-democracia estão à altura da tarefa, então com que nos quedamos? A resposta de Malm pretende ser provocadora: o eco-leninismo e o comunismo de guerra. Inspirando-se na mobilização em massa da Rússia revolucionária, entre 1918 e 1921, Malm propõe um projeto de nacionalização rápida, dissolução de classes e de privilégios, bem como de redistribuição da terras e da riqueza. Tudo isto, diz Malm, foi conseguido pelos bolcheviques e pelos camponeses e trabalhadores da Rússia, sob as circunstâncias mais inóspitas, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, sem acesso a recursos essenciais e durante uma invasão imperialista anti-revolucionária. Poderá algo semelhante ser possível nas atuais circunstâncias inóspitas e contra as nossas próprias forças de reação? Não podemos imaginar uma resposta comunista de guerra ao colapso ecológico? O comunismo de guerra, para Malm, funciona como um mapa cognitivo, uma forma de os movimentos anticapitalistas de hoje se orientarem num mundo de inevitáveis convulsões, revolução e contra-revolução.

 

Da nossa perspetiva, a proposta de Malm escamoteia o problema da transição revolucionária. O comunismo de guerra é um plano para o que vem depois de um movimento revolucionário ter tomado o poder ou depois de os movimentos sociais terem, implausivelmente, persuadido os estados capitalistas a agir através de uma campanha coordenada de desobediência civil em massa e sabotagem (como sugere o argumento de Malm no seu livro How to Blow Up a Pipeline). O que precisamos é de uma forma de construir as nossas forças e capacidades políticas no presente, de nos apoiarmos uns aos outros ao longo das catástrofes que se avizinham e de ganhar um futuro comunista. O comunismo de guerra é suposto espelhar a nossa situação difícil e, ao fazê-lo, mostrar a distância que temos de percorrer. Mas precisamos de mais do que espelhos; precisamos de uma política que funcione a partir das condições materiais de luta que nos confrontam, e não de uma política que se distancie delas. Precisamos de uma política de transição revolucionária.

 

O ensaio do coletivo Out of the Woods (OWC) "Disaster Communism" transforma as tarefas da sobrevivência quotidiana em meios para construir esta política (17). O OWC habita na realidade confusa do colapso ecológico. O coletivo inspira-se no estudo de Rebecca Solnit sobre "comunidades de catástrofe", relações temporárias de ajuda mútua e solidariedade que surgem na sequência de catástrofes sócio-naturais como o furacão Katrina ou o COVID-19. Os estudos de Solnit mostram que no rescaldo imediato das catástrofes as pessoas têm mais probabilidades de pôr de lado as diferenças e os interesses próprios do que de descer a cenários de Mad Max. Cozinhas comunitárias, donativos, fundos de solidariedade e o empréstimo de itens essenciais para sobreviver e reconstruir criam um sentido mais profundo de coletividade e de socialidade.

 

Mas as comunidades de catástrofe são coisas fugazes. O Estado capitalista, orientado para a proteção da propriedade privada, a forma salarial e as hierarquias racial e de género, intervém invariavelmente para reimpor a sua ordem, atacando a auto-organização e a solidariedade. A questão do coletivo torna-se assim a de como "desmantelar as ordens sociais que tornam as catástrofes tão desastrosas, ao mesmo tempo que tornam ordinários os comportamentos extraordinários que elas provocam" (18). Como ultrapassar as comunidades de catástrofes efémeras para realizar um "comunismo de catástrofes" duradouro? O coletivo não sugere que sejam necessários mais desastres para incitar o comunismo de desastres; pelo contrário, a aposta do OWC é que as comunidades de desastres podem tornar-se desastres para o capitalismo. O que é necessário, escrevem eles, é um "processo revolucionário de desenvolvimento da nossa capacidade coletiva de suportar e prosperar que emerge destas lutas. O comunismo das catástrofes é um movimento dentro, contra e para além da catástrofe capitalista em curso" (19).

 

A insistência da OWC na questão de como abrir um espaço para além do capitalismo dentro do capitalismo é essencial. É a questão que os organizadores laborais colocam sempre que os trabalhadores estão prontos para a greve: como podemos criar solidariedade fora da competição quando a sobrevivência está em jogo? Ao mesmo tempo, as propostas práticas do coletivo continuam a ser impressionistas. Elas apelam à "apreensão dos meios de reprodução social", à ajuda mútua e à extensão e sustentação de momentos de coletividade e abundância comunitária. "O comunismo do comunismo de catástrofe", escrevem eles, "é uma mobilização transgressiva e transformadora" (20). Mas as questões de quem faz a mobilização, com que formas de organização e como não são abordadas.

 

Alguns podem pensar que é injusto esperar respostas a tais perguntas. A auto-organização das classes trabalhadoras irá responder-lhes na e através da luta. Contudo, esta genuflexão familiar ao facto de a revolução produzir as suas próprias formas de luta coloca a revolução à distância em relação a nós, como se fôssemos observadores e não participantes nas lutas do nosso tempo. Sugere que, de alguma forma, não nos compete a nós agir, tomar partido, correr riscos, nomear movimentos, sujeitos e formas organizacionais que possam realizar uma transição revolucionária hoje em dia. Esta é uma distância que não nos podemos permitir numa época de catástrofe sócio-ecológica generalizada.

 

Nos últimos anos, a construção de bases tornou-se outra resposta popular a estas questões (21). A construção de bases vê corretamente as limitações de passar em claro o problema da transição. Os seus proponentes argumentam que, em vez de projetarmos os nossos imaginários em futuros distantes, deveríamos desafiar o capital "através de sindicatos industriais ou de organizações de inquilinos, associações de ajuda mútua e cooperativas para construir um "duplo poder" contra o Estado capitalista, criando uma sociedade de trabalhadores à base de organizações de massas independentes de qualquer partido político capitalista" (22). As lacunas do pensamento de Malm e do OWC sobre a transição desaparecem. Quem é que se mobiliza? "Um pequeno e empenhado grupo de pessoas com uma ideia partilhada de socialismo e construção de bases deve estar disposto a unir-se e a dedicar-se ao trabalho de construção de bases socialistas" (23). Que mobilização é necessária? "Organizar os desorganizados" através da ajuda mútua, de organizações de inquilinos, visitas porta a porta, programas alimentares e mais (24).

 

No entanto, por mais importante que este trabalho possa ser, os construtores de bases estão decididamente confusos quanto à questão de como a satisfação das necessidades materiais imediatas dos trabalhadores e comunidades dentro do capitalismo transita para a luta revolucionária. Dada a devastação provocada por trinta anos de austeridade neoliberal, como é que o esforço para resolver os problemas reais das pessoas transita para uma política que reconhece o capitalismo como a causa subjacente?

 

Os construtores de bases estão cientes disto. Escrevendo no seu livro Regeneration, Teresa Kalisz, do agora extinto Marxist Center, observa que a construção de bases como tática não é intrinsecamente revolucionária; é uma tarefa estratégica que "todas as organizações políticas saudáveis devem assumir, sejam elas comunistas, socialistas ou anarquistas; até mesmo os grupos liberais se envolvem frequentemente na construção de bases" (25). O problema é que "ao não ir além destas táticas ligando-as a uma visão política", a esquerda marxista "corre o risco muito real de se apresentar e envolver as suas organizações de uma forma apolítica". A transição é adiada, posta de lado no meio das intermináveis exigências das incessantes necessidades quotidianas. "Solidariedade, não Caridade!" é o apelo dos construtores de bases, mas na prática a linha entre solidariedade e caridade nem sempre é fácil de definir e, assim, o que a construção de bases ganha sobre Malm e o OWC, por um lado, perde, por outro. Reconhece os limites de passar em claro o problema da transição, apenas para se debater, na direção oposta, com o adiamento da transição.

 

Saltos e roturas

 

O desafio inevitável da transição, de irmos de onde estamos para onde precisamos de estar, é um desafio político. Como Christian Zeller argumentou, o "nós" tem de ser produzido, gerado, construído (26). Tem de durar para além das semanas e meses iniciais de um desastre e estender-se para além das vizinhanças, relações pessoais e dos membros de uma comunidade que se envolvem em ajuda mútua (devemos observar aqui como a linguagem da comunidade obscurece as divisões, especialmente as de classe - os terratenentes e proprietários não precisam de partilhar). O "nós" necessário para uma abordagem anti-imperialista às alterações climáticas, para uma transição justa, comunista, tem de estar consciente de si próprio como um "nós".

 

Além disso, esta consciência tem de estar ligada a uma compreensão partilhada de onde estamos e onde precisamos de estar, bem como a um reconhecimento de que só podemos chegar onde precisamos de estar através de uma ação organizada e coletiva. Este "nós" deve ser legível para si próprio e para os outros como uma unidade prática. Finalmente, para além destes requisitos de resistência, escala, e consciência coletiva, este "nós" deve estar disposto e ser capaz de agir coletivamente, como um todo, um desafio que obriga à produção do "nós" que pressupõe. Reunimo-nos porque é a única forma de vencer. E temos de vencer - a prosperidade das pessoas e do planeta depende da nossa resposta ao desafio de uma transição justa.

 

A política climática global enfrenta problemas de escala e de coordenação. A dimensão da escala é fácil de ver: precisamos de formas de luta que sejam mais do que assembleias de habitantes locais e comunidades experimentais de resistência. Precisamos de abordagens organizacionais que operem à escala nacional e internacional, que possam adotar perspetivas e estratégias nacionais e internacionais.

 

Como tomamos decisões sobre estratégias, táticas e prioridades, a uma escala nacional e internacional? Que pressupostos orientam as nossas deliberações a estas escalas maiores? É aqui que os valores partilhados e os princípios comuns têm uma enorme importância. É aqui que entra a questão da nossa política: qual é a linha que temos em comum, os princípios com os quais estamos empenhados em lutar? Todos sabemos que à medida que a catástrofe climática se intensifica, o mesmo acontecerá com os etno-nacionalismos. Precisamos agora de estabelecer um compromisso internacional anti-imperialista irrevogável que dê prioridade às regiões e povos mais imediata e fortemente impactados pelas alterações climáticas. Isto inclui, naturalmente, acolher refugiados climáticos e fornecer todo o apoio material e financeiro necessário para uma transição justa.

 

O desafio da transição empurra-nos, assim, para aquela forma de organização política que perdura, dá escala, apoia uma consciência coletiva e permite uma ação coordenada. A teoria e a prática de Lenine apontam para uma tal forma - o partido. A forma do partido é uma resposta específica a um desafio específico, nomeadamente, o imperativo de preparação para uma situação que nunca pode ser totalmente prevista nem determinada. A esquerda não estava preparada para a crise financeira e a Grande Recessão de 2008. Não estava preparada para os seus sucessos em 2011 e, portanto, foi incapaz de os defender e alargar. Não estava preparada para a pandemia da COVID, uma crise ecológica planetária para a qual nenhum poder esquerdista tinha a capacidade de construir. Já não temos o luxo da espontaneidade. Para impedir que a mudança climática intensifique a opressão e acelere a extinção, temos de construir e aderir a organizações adequadas ao desafio do pensamento e da ação transicionais.

 

O imperativo da forma de partido surge de uma análise da nossa conjuntura: como podemos perdurar, colocar à escala e estrategizar? Como podemos vencer? Não podemos esperar que as manifestações de massas exerçam pressão suficiente para levar os governos a decretar as mudanças necessárias para uma transição justa. As manifestações podem pressionar os governos a fazer algo, mas esse algo protegerá a propriedade e os lucros das classes dirigentes e promoverá os interesses das potências imperialistas. Dada a inevitabilidade dos incêndios, inundações, secas, fomes e migrações em massa, temos de esperar que os governos mudem. Haverá insurreições. A revolução está em cima da mesa. Temos de construir o poder organizacional capaz de utilizar estas oportunidades para aproveitar o Estado e orientar a reestruturação da energia, da produção e da sociedade. Se em nada mais, Malm e o Colectivo Zetkin estão absolutamente corretos quando enfatizam que o próximo período será de polarização e confrontação cada vez mais intensas (27). A política anti-clima da extrema-direita deve quebrar qualquer ilusão remanescente de que os combustíveis fósseis podem ser libertados através de algum tipo de transição suave e fundamentada. O facto deste conflito significa que temos de nos preparar para uma transição caótica, incerta e revolucionária.

 

Numa manifestação do movimento Extinction Rebellion, em novembro de 2021, o ambientalista e radialista canadiano David Suzuki anunciou, "vai haver pipelines rebentados se os nossos dirigentes não prestarem atenção ao que se está a passar" (28). Ele tem razão; havê-los-á. Mas este facto não nomeia uma política; não indica uma linha política. O que decorrerá destes atos, para além da escalada imediata da violência e repressão do Estado? Será que os cidadãos, observadores, rejeitarão imediatamente o uso da força por parte do Estado ou serão influenciados por décadas de propaganda antiterrorista? Irão algumas pessoas reagir imitando a tática e espalhando o descontentamento? Irão outros, então, dar uso ao seu arsenal pessoal de espingardas de assalto em nome da autodefesa?

 

O leninismo climático obriga-nos a prepararmo-nos politicamente para estes eventos, a concebê-los como táticas empreendidas por um partido após uma análise da correlação de forças. A perspetiva da revolução deve ser adotada como o ponto de vista para avaliar meios e fins, estratégias e táticas, uma avaliação conduzida por uma organização com a capacidade de a executar. Temos de assumir a atualidade da revolução e planear a sua eventualidade. Mais uma vez, não podemos saber quando e onde se irá desencadear e como se irá desenrolar. No entanto, tal como as agências de inteligência e os grupos de reflexão das potências imperialistas, também nós temos de contar com o facto de que as alterações climáticas conduzirão a convulsões sociais extraordinárias. Já o fez, como demonstram mais de uma década de crises de refugiados e guerras sobre recursos.

 

Assim, usamos o leninismo climático como o nome da política necessária nesta conjuntura de imperialismo e emergência climática. O partido revolucionário é a sua premissa básica. Aqui antecipamos uma objeção familiar: a construção de um partido revolucionário - especialmente no presente contexto de anticomunismo generalizado - levará demasiado tempo (como o dirão muitos partidários desapontados).

 

Por um lado, isso é verdade. A construção de um partido pode ser um trabalho lento, o recrutamento de um e dois, quando são necessários milhões. Por outro lado, a mudança acontece em convulsões e arranques. A história move-se, como diz Daniel Bensaïd, seguindo Lenine, através de saltos e roturas (29). Ninguém poderia ter previsto, antes do Verão de 2019, que os E.U.A. iriam experimentar os seus maiores protestos em massa de sempre (mais de 35 milhões de pessoas) na sequência do assassinato de George Floyd.

 

Quando uma forte base partidária é estabelecida e um período de convulsões políticas está em curso, o crescimento pode ser rápido e dramático. Os bolcheviques cresceram dez vezes entre fevereiro e setembro de 1917 (de 20.000 para 200.000 membros). Uma vez reconhecida a não linearidade do tempo político, podemos aceitar a necessidade de utilizar os refluxos no movimento, o tempo de paragem política, para construir e preparar, para adquirir as competências e fazer as ligações que nos permitirão agarrar as oportunidades quando estas surgirem. Este reconhecimento permite-nos formular o leninismo climático, mais precisamente, como estado de preparação mais não-linearidade, dentro das condições materiais dadas, por outras palavras, a organização de uma coletividade com capacidade para responder à emergência climática.

 

Como ligar, então, a construção de partidos à catástrofe climática, ou, à luz da nossa discussão tida mais acima, como combinar as melhores perceções de Malm, do coletivo Out of the Woods e dos construtores de bases? Por outras palavras, como é que o trabalho de construção de partidos também faz o trabalho de luta contra o clima ou como é que transformamos as práticas de movimento em progresso em duas frentes, a construção de partidos e a militância climática?

 

A formulação das perguntas direciona-nos para os terrenos em que as respostas irão surgir. A variedade de táticas familiares aos atores do movimento - bloqueios, ocupações, marchas, comícios - torna-se um meio para recrutar quadros do partido, construir alianças coerentes e tecer uma ligação invisível (“red thread”) através dos movimentos. Do mesmo modo, experiências na agricultura, jardinagem urbana, e micro-iniciativas semelhantes, orientadas para a sobrevivência, podem ser expandidas para o repertório das práticas partidárias, tratadas como oportunidades para a construção de competências e camaradagem. Em cada caso, atividades anteriormente separadas - um bloqueio aqui, um acordo de ajuda mútua ali - tornam-se conscientemente integradas numa teoria maior e planeiam a construção do poder necessário para efetuar uma transição justa.

 

A transição política, económica, energética e social requer um planeamento centralizado. Os capitalistas reconhecem este facto. Um editorial do Financial Times, por exemplo, apelava a um órgão central de planeamento para formular planos de transição em energia, transportes, edifícios, indústria e agricultura, porque "o mecanismo de preços tem dificuldade para coordenar uma rápida transformação a esta escala" (30). Uma transição justa, anti-imperialista e orientada para as lutas dos oprimidos, exige ainda mais coordenação e planeamento: temos um inimigo capitalista a derrotar e a sua hegemonia a desfazer.

 

Por esta razão, os partidos revolucionários organizados e interligados são indispensáveis. Tais partidos facilitam a formação e a coordenação; aprendemos uns com os outros. Este trabalho de coordenação é o mesmo trabalho necessário para responder à crise climática. A construção de organizações políticas que lutem por uma transição justa, desenvolve as capacidades, as infraestruturas humanas e organizacionais de que necessitamos para a sua realização. Centralizar as lutas climática, antirracista, anti-imperialista e outras num partido, torna a análise e a preparação disciplinadas numa escola para o planeamento necessário à implementação das medidas que a transição justa requer. Em suma, o partido é uma forma de construir alianças e quadros de formação a longo prazo, requisitos para qualquer política de mudança climática que reconheça a atualidade da revolução.

 

A construção de bases e comunidades de sobrevivência não consegue colocar à escala, porque o seu foco é local; eles trabalham arduamente para resolver problemas locais. Um partido - e uma Internacional - vêm a partir de perspetivas mais amplas: o nacional, o regional e o global. Estas perspetivas maiores são as que a crise climática nos impõe. E são vitalmente necessárias para travar uma luta política que nos prepare para os desafios futuros.

 

Coligação internacional dos oprimidos

 

O apelo à criação de um partido revolucionário pode parecer a resposta demasiado familiar aos impasses da democracia capitalista. Mas o leninismo climático não pode aplicar mecanicamente as prescrições políticas de Lenine. O leninismo climático deve significar algo mais expansivo. Deve situar-se no seu interior e inspirar-se com toda a tradição de pensamento e luta revolucionária que se posicionou como uma continuação da Revolução Russa. Isto inclui revolucionários anticoloniais que, nas palavras de Frantz Fanon, descobriram que devem "esticar" Lenine e as lições da revolução, remodelando-as para o seu próprio tempo e contexto: intelectuais e organizadores como Walter Rodney, Amílcar Cabral, Samir Amin, José Carlos Mariátegui, Antonio Gramsci, A. M. Babu, Harry Haywood, Sam Moyo e Rossana Rossanda. Inclui lutas na China, no Vietname, na Guiné-Bissau, em Angola, na ilha da Irlanda, no Burkina Faso, em Cuba e muitos mais lugares. O que une estes pensadores e movimentos, através das suas diferenças, é o reconhecimento da necessidade da revolução, da tomada do Estado e do papel dos camponeses, trabalhadores, mulheres e minorias nacionais. A própria Revolução Russa teria sido impossível sem o desenvolvimento de uma tal "coligação de oprimidos", como Lenine o disse.

 

Estas coligações não podem ser tidas por certas. Devem ser compostas em e ao longo de lutas partilhadas, actos de solidariedade e de construção de partidos. O leninismo climático exige a construção de coligações entre povos indígenas, trabalhadores do Norte global, pequenos agricultores e pastores, mulheres, comunidades racializadas e outros grupos oprimidos e explorados em questões de importância ecológica, económica e política.

 

O leninismo climático lembra-nos que não podemos - como fazem muitos marxistas - fetichizar os trabalhadores industrializados e sindicalizados do Norte global ou prosseguir programas nacionais de transição verde sem considerar o seu impacto nas terras e na mão-de-obra do Sul global. Um relatório recente descobriu que a resistência indígena tem evitado 25% das emissões anuais previstas dos E.U.A. e do Canadá, o que equivale a aproximadamente quatro centenas de novas centrais elétricas alimentadas a carvão. Estima-se que os povos indígenas, compreendendo cerca de 5% da população mundial, defendem 80% da biodiversidade mundial. O leninista peruano José Carlos Mariátegui compreendeu bem as lutas dos povos indígenas e a sua importância para a revolução. Os povos indígenas, argumentou ele, não podiam corrigir a sua opressão e o roubo das suas terras através de reformas legislativas ou de um apelo moral. Apenas a socialização em massa dos sistemas fundiários e alimentares, guiada pelo "socialismo prático" vivido pelos povos indígenas, seria suficiente (31).

 

Da mesma forma, os pequenos agricultores e pastores do Sul global produzem cerca de um terço dos alimentos do mundo, com gastos de combustíveis fósseis e emissões de carbono muito inferiores aos da agricultura industrializada, tudo isto remando contra a maré de décadas de intervenções económicas destinadas a minar os seus modos de vida, conhecimentos ecológicos práticos e o seu lugar na Terra. Thomas Sankara reconheceu o papel revolucionário dos pequenos agricultores. Imediatamente após chegar ao poder, Sankara proclamou a criação do Conselho Nacional da Revolução e apelou aos camponeses e trabalhadores para que formassem comités populares. O primeiro destes surgiu nos bairros pobres da capital do Burkina Faso, antes de se espalhar a outras cidades e localidades rurais. Foi estabelecida uma relação de responsabilização e luta partilhada entre o partido e as organizações democráticas locais. Foi formada uma dialética de transição. No seu discurso O imperialismo é o incendiário dos nossos fogos e savanas, Sankara mostra como a luta anti-imperialista e a luta ecológica são uma e a mesma. Em pouco mais de um mês, o governo de Sankara ministrou cursos básicos de gestão económica e ambiental a mais de 35.000 camponeses. O Burkina Faso de Sankara também plantou milhões de árvores para fazer recuar a ameaça de desertificação, presidiu a uma bem sucedida campanha de vacinação e literacia, e conseguiu enormes aumentos na produtividade agrária e na irrigação. Tudo isto foi possível porque o partido e o povo trabalharam à escala para realizar uma transição revolucionária.

 

O leninismo climático hoje em dia deve inspirar-se nestas lutas. Deveria ouvir os signatários do Acordo do Povo de Cochabamba e ser solidário com os contínuos apelos à soberania económica e alimentar de movimentos camponeses como a Via Campesina e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra do Brasil, bem como com os apelos à autodeterminação nacional e ao regresso à terra dos povos indígenas e colonizados de todo o mundo. Tais lutas e as suas exigências de desligamento em relação às divisões globais de trabalho impostas pelo capital devem ser o ponto de partida para uma política climática anticapitalista radical, no Norte e no Sul globais. Seguindo pensadores como Max Ajl e Keston Perry, o leninismo climático deveria colocar as reparações climáticas e as transferências de tecnologia no centro do seu internacionalismo.

 

Num recente boletim de investigação da Rede Agrária do Sul (Agrarian South Network), Paris Yeros propôs que os movimentos anticapitalistas mundiais deveriam lutar por uma nova conferência de Bandung. Esta seria "uma frente de solidariedade internacional de camponeses, trabalhadores e povos", que se concentraria em "reiniciar e reforçar uma transição socialista mundial na primeira metade do século XXI". O objetivo seria "estabelecer um quadro de diálogo sistemático entre movimentos e partidos e fornecer apoio ideológico, político e logístico às lutas à medida que estas evoluem" (32). Ambiciosamente, Yeros apela a uma reunião internacional de representantes dos partidos socialistas existentes, movimentos de libertação nacional, movimentos sociais de camponeses, trabalhadores, povos indígenas e outros povos tradicionais, em 2025, "calendarizada para comemorar o 70.º aniversário da conferência afro-asiática de Bandung".

 

Este é um apelo urgente. Contém uma teoria de transição revolucionária leninista climática: construção de partidos, anti-imperialismo e uma coligação global dos oprimidos. Uma COP26 para os anti-imperialistas. A mesma forma - transições planetárias, aspirações planetárias - com um conteúdo diferente, revolucionário.

 

 

 

 

 

 

(*) Kai Heron é um jovem académico inglês, que já ensinou na Universidade de Manchester e na Universidade de Liverpool. Foi associado de investigação pós-doutoramento na Universidade de Leicester e bolsista de pré-doutoramento 2017-2018 no Fisher Centre for the Study of Gender and Justice, nos Hobart William Smith Colleges, em Nova Iorque. Atualmente é professor de Política no Birkbeck College, na Universidade de Londres. Escreve, ensina e investiga na intersecção das áreas da teoria política contemporânea, economia política global e geografia crítica, com enfoque nas lutas pela terra, lutas pelo clima e futuros ecologicamente regenerativos. É associado no grupo de reflexão progressista Common Wealth e editor associado na revista Contention. Colabora regularmente em órgãos como New Left Review, Science & Society e Roar Magazine.

Jodi Dean (n. 1962), natural dos E.U.A., é licenciada em História pela Universidade de Princeton em 1984. Recebeu o seu Mestrado e Doutoramento pela Universidade de Columbia em 1992. Ensinou ainda na Universidade do Texas, em San Antonio. Tem realizado visitas de investigação ao Instituto de Ciências Humanas em Viena, Universidade McGill em Montreal e Universidade de Cardiff, no País de Gales. Atualmente é professora de Ciência Política, nos Hobart William Smith Colleges, de Nova Iorque. É militante do Party for Socialism and Liberation (Partido para o Socialismo e a Libertação). É autora de muitos livros, incluindo Solidarity of Strangers: Feminism after Identity Politics (University of California Press, 1996), Aliens in America: Conspiracy Cultures from Outerspace to Cyberspace (Cornell University Press 1998), Publicity's Secret: How Technoculture Capitalizes on Democracy (Cornell University Press 2002), Democracy and Other Neoliberal Fantasies (Duke University Press 2009), The Communist Horizon (Verso Books, 2012), Crowds and Party (Verso Books, 2016) e Comrades: An Essay on Political Belonging (Verso Books, 2019).

O presente artigo foi publicado originalmente na revista Spectre. A tradução é de Ângelo Novo. 

 

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NOTAS:

 

(1) Karl Marx e Friedrich Engels, The German Ideology, originalmente publicado em 1932.

 

(2) Karl Marx, Critique of the Gotha Program, originalmente publicado em 1890-91.

 

(3) [Nota do Tradutor] COP - Conference of the Parties (Conferência das Partes). O COP é o órgão supremo de tomada de decisões da Convenção das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas. Todos os Estados que são partes na convenção estão representados na COP, na qual analisam a implementação da convenção e quaisquer outros instrumentos jurídicos que a COP adote. Foram realizadas já vinte seis COP’s, com início no já distante ano de 1995. A última realizou-se em Glasgow em outubro-novembro de 2021.

 

(4) COP26: World headed for 2.4º C warming despite climate summit - report, BBC News, 9 november 2021.

 

(5) United Nations – Climate Action, COP26 Day 7: Sticking points and nature-based solutions.

 

(6) UK Government, UK leads 45 governments in new pledges to protect nature.

 

(7) Kate Abnett, “World heading for 2.4º C of warming after latest climate pledges – analysts, Reuters, november 9, 2021.

 

(8) Christian Parenti, Tropic of Chaos, Bold Type Books, 2012, 226.

 

(9) “COP26: Activists deflate tyres on ‘luxury’ cars in Glasgow”, BBCNews, 12 November 2021.

 

(10) Parenti, Tropic of Chaos, 241.

 

(11) Parenti, C, A Left Defence of Carbon Dioxide Removal: The State Must be Forced to Deploy Civilization-Saving Technology, Has It Come to This? Editors: J.P Sapinski, Holly Jean Buck, Andreas Malm, pp. 130-143.

 

(12) “COP26: ‘Not blah blah blah’, UN Special Envoy Carney presents watershed private sector commitment for climate finance”, U. N. News, 3 November 2021.

 

(13) Whitney Webb, “UN-backed banker alliance announces ‘green’ plan to transform the global financial system”, MROnline, 12 November 2021.

 

(14) Holly Ellyatt, “Oil and gas will be in the global energy system ‘for decades,’ BP chief says”, CNBC, 15 November 2021.

 

(15) EIA projects nearly 50% increase in world energy usage by 2050, led by growth in Asia , EIA, september 24, 2019.

 

(16) Joel Millward-Hopkinsa, Julia K. Steinbergerab, Narasimha D. Rao, Yannick Oswalda,Providing decent living with minimum energy: A global scenario”.

 

(17) Out of the Woods Collective. ‘The Uses of Disaster’. Commune, 22 October 2018.

 

(18) ibid.

 

(19) ibid.

 

(20) ibid.

 

(21) See Derek Wall, Climate Strike: The Practical Politics of the Climate Crisis (The Merlin Press, 2020).

 

(22) Marxist Centre, “Base-building is an essential step on the path to dual power. Where do we begin?

 

(23) The Left Wind,It’s All About That Base: A Dossier on the Base-Building Trend”.

 

(24) Tim Horras, “Base-Building: Activist Networking or Organizing the Unorganized?, The Philadelphia Partisan.

 

(25) Teresa Kalisz, “Everyday Ruptures: Putting Basebuilding on a Revolutionary Path, Regeneration, may 29, 2020.

 

(26) Christian Zeller, “Revolutionary Strategies on a Heated Earth, Spectre, december 31, 2021.

 

(27) Zetkin Collective, White Skin, Black Fuel: On the Danger of Fossil Fascism, Verso, 2021, p. xvii.

 

(28) Kristoffer Tigue, “‘Pipelines Will Be Blown Up,’ Canadian Environmentalist Warns”, Inside Climate News.

 

(29) Bensaïd, Daniel. ‘“Leaps! Leaps! Leaps!”’, in Budgen, ed. Lenin Reloaded: Toward a Politics of Truth, Sic Vii: 07. Traduzido por Fernbach. Durham: Duke University Press, 2007. Pp. 148-163.

 

(30) Max Krahe, “For Sustainable Finance to Work, We Will Need Central Planning, Financial Times, 11 July 2021.

 

(31) José Carlos Mariátegui, Seven Interpretative Essays on Peruvian Reality, Essay two: “The Problem of the Indian e Essay three: "The Problem of Land".

 

(32) Paris Yeros, “Elements of a New Bandung: Towards an International Solidarity Front”, pp. 11-12, Agrarian South, 21 october, 2021.