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Introdução
Durante os últimos cento e vinte anos (mas com raízes muito claras no pensamento do Marx tardio), uma luta encarniçada contra o imperialismo tem sido o objetivo e a caraterística central do movimento socialista internacional. Essa tradição manteve-se mais ou menos intacta, ao nível retórico. Eis que, à nossa geração, é dado o absoluto privilégio de assistir finalmente a um espetáculo único: a besta imunda está de joelhos, tateando em volta à procura dos óculos perdidos no chão. Pois bem, larguíssimas secções da auto-intitulada esquerda revolucionária ocidental reagem com choque e indisfarçável repulsa. A seu ver, mais (ou piores) imperialistas são afinal os outros, os remotos herdeiros das revoluções soviética e chinesa, obliterando-se assim por completo o conteúdo preciso que tem o conceito de imperialismo na teoria marxista. Para toda esta gente, Marx, Engels, Lenine, Trotsky, Rosa Luxemburgo, são, afinal, apenas marcas de água intelectuais, sobre as quais se edificaram proveitosas - senão mesmo razoavelmente proventosas - carreiras neste oh tão liberal, tolerante e panglossiano mundo ocidental. Tudo isso vai acabar, infelizmente para eles.
A cisão geopolítica em curso é irremissível. Quem optou agora pela defesa do mundo ocidental, de colisão em colisão, vai em breve descobrir que não terá nele, nunca mais, opções políticas disponíveis para além do bem emasculado consenso geral da confluência neoliberal-neofascista. Estes dois neos, cada vez mais intimamente entrelaçados, constituem a vanguarda do círculo vicioso que, movido pela ânsia de sempre mais “liberdade” (para quem pode mais), vai socavando e destruindo todos os esteios estruturadores da sociedade (que, para Thatcher, nunca existiu), mergulhando-a, por fim, na anomia e no caos. Nesse sentido, o atual regime ucraniano é um bom espelho do futuro do ocidente. Hoje apela-se à guerra contra o “brutal” Putin (elidindo, por completo, as brutalidades inaugurais desta história), amanhã erguer-se-á o braço em saudação romana (“levantar a pata” como se dizia, muito bem, nos meios antissalazaristas em Portugal), em defesa do espaço tradicional próprio e exclusivo da civilização branca – o das liberdades como e enquanto privilégios, aliás cada vez mais restringidas no que toca às classes populares e à dissidência ideológica. Pregar-se-á sem descanso o sagrado evangelho do amor aos ricos. Não faltará a criminalização infamante da mínima expressão apoio à luta do povo palestiniano. A grande humanista Ursula von der Leyen continuará a subsidiar generosamente os “push-backs” com que a polícia grega envia regularmente para o fundo do Mediterrâneo os candidatos à emigração de tez e devoção pouco confortáveis.
Quando as ditas “autocracias” estiverem na mó de cima, no confronto geopolítico mundial, como é a tendência atual, haverá nelas, certamente, muito mais liberdades públicas e autodeterminação democrática do que nas metrópoles capitalistas clássicas, uma vez que sejam estas a ser remetidas à crispação defensiva a que obrigaram anteriormente os seus adversários. Edward Snowden e Julian Assange (entre muitos outros) estão aí para dar um testemunho antecipatório disso mesmo. Na falta de perspetivas de auto-transcendência revolucionária, tudo o que o ocidente tem a oferecer ao mundo são os planos distópicos mais ou menos abertamente genocidas de Bill Gates, Yuval Harari e Klaus Schwab, o dono do Foro Económico Mundial de Davos. Aqueles que apostam, ainda hoje, na preservação da hegemonia global deste mundo ocidental para, com base nela, projetando-a ainda mais, abrir horizontes alargados de emancipação para a humanidade inteira, vivem num mundo ideal de esquematismos teleológicos unilineares, incrivelmente equivocado, dificilmente sustentável em plena boa-fé. Entretanto, O Comuneiro vai continuar a publicar autores notoriamente russófobos e/ou sinófobos, em tudo quanto entender que as suas reflexões possam ser, ainda assim, úteis e relevantes às nossas causas editoriais. Não estamos a coligir nenhum índex.
A velha ordem colonial resultante da expansão europeia foi substituída, a partir do final da II Guerra Mundial, por um arranjo neocolonial, em que os E.U.A. assumiram o encargo de garantir, em última instância manu militari, uma ordem global (a que eles hoje chamam de “sociedade internacional baseada em regras”) propiciadora de afluxos regulares de valor em benefício de todo o mundo imperialista ocidental. Isso inclui encargos globais como garantir a segurança de todas as rotas mercantis, proteger o investimento externo, impor termos de troca desiguais, gerir uma moeda de curso internacional, manter uma rede de intimidação e extorsão financeira, impor e manter regimes políticos submissos nos países periféricos, etc.. Não tendo recursos para criar a sua própria, nenhuma potência ocidental pode hoje dispensar os benefícios da adesão subalterna à rede norte-americana de poder global e muito menos arriscar-se a ser dela excluída à força. Permanecem, naturalmente, visíveis contradições inter-imperialistas neste ocidente (que inclui o Japão, a Coreia do Sul, Taiwan e a Austrália/NZ, mas exclui toda a América a sul do Rio Bravo), mas, sob os testes de stress mais exigentes, elas não conduziram à rotura do bloco, como uma vez mais agora se provou. É mais forte o que os une. Esta situação pode agora dizer-se ser uma caraterística estabilizada do sistema imperialista contemporâneo.
Os bons dos humanistas universalistas ocidentais (que os há) não vêm isto, naturalmente, e não conseguem compreender certas coisas. Certas verdades, se as pudessem entrever, gelar-lhes-iam o coração. Os povos ex-coloniais e semicoloniais (aí incluídas todas as suas elites com alguma ponta de brio, mesmo que insistentemente vendidas e revendidas, por grosso e atacado), não querem aprender absolutamente nada deles. Na verdade, querem apenas vê-los pelas costas e esquecê-los, para sempre, o mais depressa possível. Tudo o que necessitam ainda de aprender é-lhes acessível por outros meios. Os modos e termos negociais do ocidente causam-lhes permanente escândalo e revolta. A sua sentenciosidade moralista e zelo disciplinador, isso aí, então, gera-lhes tremendíssimos apertos de agonia e vómito. Os estadistas e diplomatas ocidentais não fazem a mínima ideia do esforço titânico que custa sorrir para um brinde de circunstância com eles. Quando tentam promover a causa ucraniana nestas latitudes “terceiro-mundistas”, escapa-se-lhes, por completo, como, por essas ruas, onde se fazem saudar, se anseia, de coração apertado, mas vigilante, a fremir por todas as carótidas, ofegantemente, pronto a estourar de alegria, à notícia confirmada de que o homem branco, supremacista e intrinsecamente neocolonialista, foi finalmente espancado, como tanto merece, há tanto tempo, e que estourou de vez, deixando de mandar neste nosso globo terrestre. A quem acha que isto é o “fim do mundo”, a nossa a resposta é: sim, é esse mesmo o mundo ao qual buscamos dar fim, antes que seja tarde de mais.
O confronto geopolítico em curso entre o mundo ocidental e o bloco euro-asiático é, na verdade, uma disputa pela hegemonia mundial entre dois modelos de acumulação capitalista, diz-nos Michael Hudson. De um lado, temos o modelo neoliberal, que privatizou todas as fontes de riqueza, assim minando as próprias bases para a continuação do processo de acumulação. Do outro lado, temos um modelo que mantém o controlo do poder político sobre o crédito, a política industrial, a educação, a saúde e serviços públicos essenciais, o que lhe permite embaratecer o investimento, manter a coesão social e dar maior coerência estratégica ao seu desenvolvimento económico. Este ensaio, de excecional penetração, não deve, contudo, a nosso ver, ser interpretado como uma tentativa de revisão do materialismo histórico, colocando o crédito no lugar do binómio forças produtivas / relações de produção.
Como Marx notou, certa vez, os burgueses gostam de considerar que houve história até à sua chegada ao poder, mas deixou de a haver a partir daí. John Bellamy Foster tenta resgatar um futuro para a história que fazemos, com uma proposta de intervenção política estratégica eco-revolucionária. Alejandro Pedregal e Juan Bordera, para essa mesma perspetiva política, propõem um conteúdo de decrescimento económico global, em que o menos será mais, melhor e, sobretudo, melhor distribuído. Ainda na mesma linha interventiva, Kai Heron e Jodi Dean propõem uma estratégia de transição revolucionária com base no conceito de leninismo climático.
Do veterano, sempre arguto e mordaz, Terry Eagleton, não resistimos a publicar aqui uma pequena obra-prima, não só de crítica literária, como sobretudo de análise política. Kevin B. Anderson, numa exposição muito sucinta, sobre um tema já por ele tratado alhures com inexcedível exaustão, explica-nos porque razão Karl Marx nunca poderá ser considerado um pensador eurocêntrico. E a intervenção política de inspiração marxista, ao longo de todo o século XX, seguiu exatamente essa linha promotora da emancipação dos povos oprimidos pelo colonialismo, conforme nos dá conta Enzo Traverso.
Do nosso querido mestre Prabhat Patnaik, compilamos uma peça analítica sobre o imperialismo contemporâneo e alguns dos seus mistérios. Dada a sua excecional argúcia e pertinácia, como observador do momento histórico atual, publicamos, pela primeira vez, dois artigos do mesmo autor num único número de O Comuneiro. A distinção cabe a Michael Hudson que, nesta sua segunda intervenção, com inexcedível ironia, nos explica porque razão a frenética política de sanções, prosseguida pela administração norte-americana, está de facto a cavar ainda mais o declínio e isolamento da atual potência mundial super-hegemónica. Do nosso editor Ângelo Novo, publicamos, enfim, a primeira parte de um trabalho histórico que vai tentar, por último, fazer um balanço crítico da experiência socialista moçambicana.
Agradecemos toda a divulgação possível do conteúdo deste número de O Comuneiro, nomeadamente em listas de correio, portais, blogues ou redes sociais de língua portuguesa. Comentários, críticas, sugestões e propostas de colaboração serão bem-vindos. Agradeceríamos em particular a ajuda voluntária e graciosa de tradutores.
Os Editores
Ângelo Novo
Ronaldo Fonseca
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