Sendo todas as coisas iguais

 

 

Nancy Lindisfarne e Jonathan Neale (*)

 

 

 

O novo livro de Graeber e Wengrow é enérgico, empenhado e caleidoscópico, mas também com falhas. Isto coloca-nos um problema.

 

David Graeber morreu jovem, há apenas um ano. A sua obra-prima, Debt, pode ser ilusória em algumas partes, mas a sua ambição foi inspiradora no seu tempo. O trabalho de David Graeber como ativista e dirigente do movimento Ocuppy e por justiça social foi invulgar, e exemplar. O respeito e afeto por ele, da parte dos seus colegas do departamento de antropologia da London School of Economics falam por si. E o seu coração esteve sempre com os oprimidos.

 

Mas precisamente porque Graeber era um tipo bom e só recentemente nos ter deixado, existe o perigo de que, para muitas pessoas, The Dawn of Evewrything (A Aurora de Tudo) venha a moldar a sua compreensão das origens da desigualdade por muito tempo.

 

A contracapa do livro traz elogios de Rebecca Solnit, Pankaj Mishra, Noam Chomsky e Robin D. G. Kelley - eminentes e admiráveis pensadores, todos eles. Kelley é aqui representativo: “Graeber e Wengrow derrubaram efetivamente tudo o que eu alguma vez pensei sobre a história do mundo. Este é o livro mais profundo e emocionante que li em trinta anos".

 

O livro tem recebido considerável atenção recente na imprensa, e seria lamentável se tal elogio se tornasse a opinião geral.

 

A questão das origens da desigualdade na evolução humana e na história é muito importante para a forma como tentamos mudar o mundo. Mas Graeber e Wengrow querem mudança sem atender à igualdade e à classe, para além de que são hostis às explicações ambientais e ecológicas. Estas falhas têm implicações conservadoras.

 

Por isso, aqui vai. Esta é uma recensão parcial e vigorosamente polémica, de um enorme livro. Consolamo-nos com o conhecimento de que Graeber amou, e se distinguiu sempre na vivacidade e excitação do debate intelectual.

 

O Dilema

 

No parágrafo final do seu livro, a páginas 525-526, Graeber e Wengrow expõem claramente a sua posição. Eles escrevem,

 

"Quando, por exemplo, um estudo rigoroso em todos os outros aspetos parte do pressuposto não examinado de que existe alguma forma 'original' de sociedade humana; que a sua natureza era fundamentalmente boa ou má; que existiu um tempo antes da desigualdade e da consciência política; que algo aconteceu para mudar tudo isto; que a 'civilização' e a 'complexidade' vieram sempre ao preço das liberdades humanas; que a democracia participativa é natureza em pequenos grupos mas não pode ser elevada até algo como uma cidade ou um Estado-nação.

"Sabemos, agora, que estamos na presença de mitos".

 

Portanto, nestes pontos, os nossos desmistificadores dizem o contrário - que não havia uma forma original de sociedade humana; que não houve tempo antes da desigualdade e da consciência política; que nada aconteceu para mudar estas coisas; que a civilização e a complexidade não limitam a liberdade humana; e que a democracia participativa pode ser praticada na vida política de cidades e Estados.

 

Tais declarações categóricas, feitas com tanta ousadia, tornam atrativas as suas afirmações de que escreveram uma nova história humana. Mas há duas pedras postadas neste caminho.

 

Em primeiro lugar, os argumentos apresentados pelos autores estão em desacordo com o seu próprio projeto político. Segundo, as provas existentes não se alinham com o que eles estão a tentar dizer.

 

O seu projeto político e teoria

 

Duas das questões-chave da nossa era são:

 

- Como é que teremos uma revolução de justiça social no nosso mundo atual?

 

- E o que podemos aprender com a história da nossa espécie que nos possa ajudar a ultrapassar este impasse?

 

Estas questões têm desafiado pensadores e ativistas sérios ao longo da história. E agora, face ao aquecimento global, precisamos urgentemente de respostas convincentes. Estas são perguntas que Graeber e Wengrow também fazem e é certamente por isso que o livro tem atraído a atenção das pessoas. Há, no entanto, uma terceira pergunta que a maioria de nós faz:

 

- Como é que a sociedade humana se tornou tão grosseiramente desigual?

 

Surpreendentemente, Graeber e Wengrow não estão interessados nesta pergunta. Dizem-no explicitamente: o seu primeiro capítulo intitula-se "Adeus à Infância da Humanidade: Ou, porque é que este não é um livro sobre as origens da desigualdade".

 

Um dos argumentos centrais do livro é que a desigualdade, a hierarquia e a violência sempre foram formas possíveis de organização de qualquer sociedade humana. Não houve tempo, dizem eles, antes da desigualdade. E embora usem muito as palavras "igualdade" e "igualitária", afirmam que a igualdade é uma preocupação vazia, uma história de fadas, e falar de uma "sociedade igualitária" é não dizer nada.

 

Uma estranha pirueta

 

Há em tudo isto uma estranha pirueta. Graeber e Wengrow ignoram por completo o novo e notável campo de estudos que descreve a adaptação, ou nicho ecológico, que os nossos antepassados primatas e os primeiros seres humanos encontraram para si próprios ao tornarem-se iguais. Isto significa ainda que eles também recusam a visão anarquista e marxista clássica de que, uma vez que os humanos já foram em tempos iguais, haveria esperança de que o pudéssemos ser novamente.

 

O argumento conservador é que, uma vez que a desigualdade apareceu como resultado da agricultura, da vida urbana e da complexidade económica, não haverá qualquer esperança de mudar o mundo. Graeber e Wengrow resistem a este argumento sobre a agricultura, sendo evidente a sua esperança de que a mudança é possível. E torna-se então claro que o seu inimigo não é a desigualdade, mas sim o Estado.

 

A pergunta que eles fazem é: como é que chegámos a este ponto de ser dominados por Estados autoritários, burocráticos e centralizados? E embora as desigualdades do colonialismo, da escravatura, as classes sociais, o racismo e o sexismo surjam ao longo de todo o livro, estas não são a sua preocupação central.

 

O argumento político que Graeber e Wengrow se propõem fazer é que as pessoas - desde o início dos tempos - puderam sempre escolher entre a dominação e a liberdade. Para eles, as pessoas podem escolher escapar ao que chamam de imobilismo de "pequena escala" do controlo estatal, tornando-se "pessoas livres".

 

Eles rejeitam argumentos que apontam para a existência de limites ambientais e técnicos para as escolhas que as pessoas podem fazer e fazem de facto. Para eles, em suma, as pessoas fazem a sua história em circunstâncias da sua própria escolha.

 

A vantagem desta posição é que lhes permite argumentar que, com vontade política, podemos ter uma revolução e uma sociedade dirigida por assembleias populares a trabalhar por consenso. Tudo isto soa excelente, e libertador, mas há problemas com as provas.

 

A sua argumentação - passo a passo

 

Graeber e Wengrow iniciam o livro com o objetivo de desmascarar a ideia de que havia uma sociedade humana 'original', quer fosse boa, quer fosse má. Para o fazer, ressuscitam debates antigos entre Rousseau e Hobbes.

 

Mais importante, expõem no início o seu repúdio, perfeitamente justificável, pelo darwinismo social do século XIX e pelas mais recentes teorias estalinistas sobre "estádios da história". E também aqui expressam o seu profundo desprezo pelos hobbesianos modernos da psicologia evolutiva, como Jared Diamond, Napoleon Chagnon e Steven Pinker. Tanto a teoria dos estádios da história como a psicologia evolutiva são alvos sérios e importantes, que também partilhamos.

 

Darwinismo social e teorias dos estádios da história. No darwinismo social do século XIX, de Herbert Spencer e Lewis Henry Morgan, bem como nas versões posteriores, os primeiros humanos são primitivos, depois selvagens, seguidos por horticultores e pastores bárbaros, após o que se deu o advento da agricultura, o desenvolvimento de antigas civilizações, através das idades médias até ao alvorecer da sociedade capitalista moderna. Cada passo é entendido como um sinal de progresso moral e intelectual.

 

Preconceitos explícitos e explícitos deste tipo já não são aceitáveis em muitos círculos, mas o darwinismo social espreita por todo o lado e continua a ser a pedra angular da maioria do pensamento político dominante. E continua a estar subjacente aos racismos e ao neocolonialismo da nossa era presente.

 

Para muitas pessoas, incluindo muitas à esquerda, a denúncia por Graeber e Wengrow das teorias dos estádios da história será novidade, experimentada como uma revelação e um alívio. E é fácil de ver porquê.

 

E há um golpe extra no ataque de Graeber e Wengrow. Embora não digam quase nada sobre o trabalho de Marx e Engels no seu livro, ao rejeitarem teorias dos estádios da história, também rejeitam implicitamente os relatos tradicionais marxistas sobre a evolução.

 

Isto é mais flagrante no livro de Friedrich Engels, A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado. Aí Engels argumentou que os seres humanos tinham evoluído em igualdade, mas com a invenção da agricultura sobreveio a desigualdade em todas as suas formas. Até aqui, tudo bem.

 

Contudo, Engels tirou a sua conceção diretamente de Spencer e Morgan, cujo trabalho estava saturado de racismo branco. Considere-se, por exemplo, porque é que Engels pensava que os pastores com rebanhos de animais se tornavam racialmente superiores a outros povos selvagens.

 

"O abundante fornecimento de leite e carne e especialmente o efeito benéfico destes alimentos sobre o crescimento das crianças explica talvez o desenvolvimento superior das raças ariana e semita. É um facto que os índios Pueblo do Novo México, que estão reduzidos a uma dieta quase inteiramente vegetariana, têm um cérebro mais pequeno do que os índios na fase inferior da barbárie, que comem mais carne e peixe" (1).

 

O livro de Engels está repleto de tais passagens, e ele não estava de modo algum sozinho ao escrever assim.

 

Franz Boas. Graeber e Wengrow têm toda a razão em querer destruir tais argumentos repulsivos. No entanto, apresentam-se como se estivessem entre os primeiros a fazê-lo, não é esse o caso, muito enfaticamente. Franz Boas, cuja etnografia inicial do povo Kwakiutl, da costa noroeste do Pacífico, tanto influenciou Graeber e Wengrow, já o tinha feito muito antes.

 

Franz Boas era filho de Sophie Mayer, uma feminista judia e uma das dirigentes da revolução alemã de 1848, na cidade de Minden, na Westfália. Em 1851, o seu grupo de leitura debruçava-se sobre o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels.

 

Boas tornou-se antropólogo. Fez investigação de campo no Canadá com os Innuit na ilha Baffin e os Kwakiutl na ilha de Vancouver, e acabou por se tornar professor na Universidade de Columbia, em Nova Iorque (2).

 

Em 1913 fundou a antropologia moderna, demolindo ao mesmo tempo a teoria racista dos estádios da história. Em The Mind of Primitive Man (A Mente do Homem Primitivo), Boas argumentou que as pessoas 'primitivas' eram tão inteligentes, tão sábias e tão criativas como qualquer pessoa. Em 1913, Boas não estava a rejeitar as convicções políticas de sua mãe, mas como judeu e partidário da América indígena, odiava o racismo.

 

Boas foi um socialista toda a sua vida. A influência de sua mãe foi também evidente na educação que proporcionou a uma geração de mulheres antropólogas, como Ruth Benedict, Margaret Mead, Zora Neale Hurston e muitas outras. Boas e os seus discípulos resolveram o problema posto pela teoria racista dos estádios da história, decidindo simplesmente deixar de falar sobre a evolução das culturas humanas, estando esse tema tão poluído.

 

Mas já não estamos em 1913. Em 1982, o livro de Eric Wolf, ironicamente intitulado Europe and the People Without History (Europa e o Povo Sem História), lançou uma onda de antropologia anti-imperialista, antirracista e que levava a história a sério.

 

Os antropólogos foram, durante muito tempo, extremamente sensíveis ao racismo, insidiosamente derivado dos seus binários - simples e complexos, selvagens e civilizados, atrasados e avançados, progressistas e retrógrados, desenvolvidos e subdesenvolvidos, superiores e inferiores, seculares e religiosos, tradicionais e modernos. No entanto, tragicamente, estes binários continuam a ser utilizados para justificar o genocídio da América indígena, o tráfico de escravos africanos, o colonialismo dos impérios brancos e, hoje em dia, a guerra contra o Islão.

 

A nova teoria evolutiva e a adaptação humana

 

Antropólogos e arqueólogos construíram, desde então, um relato inteiramente adequado sobre as origens da desigualdade humana. As figuras-chave aqui são Kent Flannery, Joyce Marcus e James C. Scott, cujo trabalho discutimos abaixo.

 

Infelizmente, Graeber e Wengrow passam completamente ao lado do enorme corpo de novas investigações sobre a evolução humana. Ao ignorarem estes novos estudos, Graeber e Wengrow colocaram-se em oposição a uma cuidadosa, e agora extremamente bem documentada, argumentação sobre a evolução comparativa dos primatas e a adaptação humana. O seu problema é que este material desmentiria a sua afirmação de que não existiu uma sociedade humana "original", além de fazer com que os seus argumentos sobre a escolha livre parecessem bastante tolos.

 

Graeber e Wengrow não negam que os humanos outrora viviam da caça e da recolha. Mas mostram-se profundamente desinteressados pelo ambiente e pelas bases materiais da existência humana. E negam que estas sociedades fossem necessariamente igualitárias.

 

O primeiro passo na sua argumentação é dizer que a evolução humana está toda no passado, e não podemos saber ao certo o que aconteceu então. Tudo é especulação. Mas isto, simplesmente, não é verdade.

 

Ao longo dos últimos quarenta anos, a revolução científica tem sido notável, e tem havido um enorme florescimento da investigação no campo da evolução humana. Existem agora muitos novos estudos espantosos sobre primatas não humanos e comportamento de primatas, nova arqueologia de humanos primitivos e novas etnografias de caçadores-recolectores quase contemporâneos.

 

Graças a microanálises químicas, amostragens de ADN, datação por radiocarbono e uma arqueologia paciente em lares humildes, aprendemos muito sobre as pessoas que viviam em sociedades pré-classistas e, depois, nas primeiras sociedades de classes. Entre os nossos heróis estão as extensas publicações dos muito legíveis Christopher Boehm, Frans de Waal, R. Brian Ferguson, Sarah Hrdy, Martin Jones e Laura Rival.

 

Este trabalho está a transformar o estudo da evolução humana e da história humana. E o ponto de partida pode ser considerado como uma surpresa. Parece agora que nos tornámos humanos ao tornarmo-nos iguais. Esta é uma visão notável e preciosa. Mas é um discernimento que atinge o próprio núcleo fundamental do relato de Graeber e Wengrow.

 

Um breve resumo da adaptação humana

 

Dezenas de projetos de investigação de campo, a longo prazo, com diferentes símios e macacos, mostram agora, para cada espécie, como uma adaptação particularmente complexa lhe permite sobreviver num determinado ambiente. Essa adaptação inclui os detalhes sobre como as suas dietas básicas, as suas dietas alternativas em tempos maus, os seus cérebros, mãos, pés, estômagos, dentes, genitais, grunhidos, canções, relações de domínio, relações de partilha, criação de crianças, agressão, amor, aliciamento e estruturas de grupo se encaixam (3). Esta é a linha de base, e é também o nosso método para compreender a evolução humana.

 

Ao longo do tempo, juntaram-se várias partes de uma nova adaptação para produzir os seres humanos modernos. A história resumida é que os primeiros seres humanos eram primatas insignificantes. Para sobreviver, tinham de aprender a partilhar carne e vegetais, a partilhar os cuidados infantis e a partilhar a alegria sexual. Para fazer isto, tiveram de disciplinar os aspirantes a rufias e transcender as hierarquias de domínio caraterísticas dos seus antepassados primatas. E durante pelo menos 200.000 anos, viveram em sociedades igualitárias onde homens e mulheres também eram iguais.

 

Alguns detalhes

 

Com um pouco mais de detalhe, a imagem é como segue. A linhagem do que viriam a ser os humanos inventou cavar com paus para chegar aos tubérculos enterrados no subsolo. Alguns homens tornaram-se caçadores de grandes animais, por emboscada, em que as mortes dependiam da velocidade, da resistência e das armas. Sabemos isto pelas mudanças nos dentes, braços e pernas, mas também pelo padrão de lesões fossilizadas, pela dieta e ossos encontrados nas cavernas, e pela forma como os caçadores contemporâneos sobreviventes perseguem a caça grossa.

 

O avanço que separou a linhagem humana de todos os predadores concorrentes foi uma dieta combinada e a comida cozinhada com fogo. Isto significava que eles precisavam de utilizar muito menos calorias para a digestão. Como argumentou Richard Wrangham, essas calorias extra eram capazes de servir cérebros em crescimento.

 

A caça de emboscada não era fiável, e um caçador só podia fazer uma grande matança num mês. A linhagem humana mudou a sua organização social para fazer face a esta situação. A comida era partilhada entre todo o grupo no acampamento de base. Esta mudança significou que todos consomem carne regularmente, mas em dias sem carne os caçadores podem contentar-se de novo com tubérculos e outras frutas e vegetais.

 

Os nossos antepassados primatas e os primeiros seres humanos parecem ter conseguido estas mudanças de duas maneiras. Primeiro, para garantir que todos recebessem uma parte da boa comida, encontraram formas de limitar a competição entre os caçadores e de disciplinar os potenciais rufiões.

 

Em segundo lugar, inventaram novos estilos de criação de crianças. A primatologista feminista Sarah Hrdy escreveu extensivamente sobre padrões de infanticídio em primatas, e sobre como, numa mudança chave nas relações de género, as mães passaram a confiar noutras mulheres e em homens, para cuidarem dos seus filhos pequenos. Outra mudança é que, sozinhos entre os primatas, os seres humanos de ambos os sexos vivem tipicamente para além da idade da menopausa feminina. A vantagem evolutiva parece ser, em parte, que a perícia dos idosos é valiosa, mas também que eles prestam cuidados infantis.

 

Estas e uma série de outras diferenças significam que os seres humanos podem multiplicar-se mais rapidamente do que outros símios. E, em certos períodos, foram capazes de se espalhar rapidamente por todo o mundo.

 

Esta história primitiva coincide com os tipos de sociedades que os antropólogos têm relatado a partir de grupos de caçadores-recolectores quase contemporâneos em todo o mundo (4). Nestas sociedades ninguém tem poder sobre quem quer que seja. A chave para isto é a ausência de riqueza ou de excedentes.

 

As pessoas deslocam-se regularmente. Ninguém possui mais do que aquilo que pode carregar, com uma criança na outra anca. Os bandos não são de pertença vinculativa. As pessoas estão sempre a mudar de grupo, e todos têm parentes reais ou fictícios em vários outros bandos. Quando a tensão se acumula sobre a comida, sexo ou qualquer outra coisa, alguém se muda. Isto significa que nem as mulheres nem os homens ficam presos, e nestas sociedades não há padrões regulares de desigualdade de género. E a capacidade de conter os rufiões é outro padrão importante entre os caçadores-recolectores recentes.

 

Vemos isto a partir dos relatos dos antropólogos. Mas há também a evidência das mudanças anatómicas dos nossos antepassados símios. Os grandes caninos dos machos, utilizados para combater outros machos, desapareceram, tal como as grandes diferenças de tamanho. Os machos humanos são cerca de 15% maiores do que as fêmeas. A comparação com outros primatas sugere que isto significa alguma dominação masculina, mas não muita.

 

Os genitais masculinos mudaram em muitos aspetos. Entre os primatas, e muitas outras espécies, o tamanho dos testículos indica o quão exclusivas são as parcerias sexuais. O tamanho dos testículos humanos cai na gama média, sugerindo formas habituais de monogamia temperada por algumas aventuras.

 

As mudanças ocorridas no pénis humano são muitas, e maravilhosas. Cormier e Jones argumentam, no seu livro intitulado The Domesticated Penis (O Pénis Domesticado), que todas estas mudanças são o resultado da seleção de companheiros por escolha feminina.

 

As mudanças na sexualidade feminina são ainda mais marcantes. Em outros primatas, as fêmeas só têm sexo quando ovulam. As fêmeas humanas têm relações sexuais durante todo o ano. Isto significa que podem ter mais sexo, mas significa também que a proporção entre machos e fêmeas sexualmente ativos é de um para um. Noutros macacos e primatas, varia entre 2 para 1 a 40 para 1, o que sugere que foi mais fácil criar a ligação entre pares e a igualdade de género.

 

O primatologista e antropólogo Christopher Boehm apresentou a última peça do puzzle, num artigo seminal e em dois livros influentes. Boehm argumenta que a igualdade e a partilha entre os bandos de caçadores-recolectores foram adquiridas cultural e conscientemente.

 

Ele diz que mantemos a nossa herança símia, que nos incentiva a submeter-nos, a competir e a dominar. Mas, para que os humanos sobrevivessem, tínhamos de concordar conscientemente em reprimir juntos o ciúme, a agressão e o egoísmo que se instalassem entre nós, e tínhamos de reprimir o egoísmo nos outros.

 

As ideias de Boehm são agora amplamente aceites. Tudo isso se deve não ao facto de as pessoas serem naturalmente igualitárias ou não-violentas. É porque temos esse potencial dentro de nós, e o seu oposto. Mas compreendemos que tínhamos de partilhar e ser igualitários para sobreviver.

 

A teoria de Boehm também se adequa aos nossos grandes cérebros. Há muito que os cientistas assumiram que estes tinham a ver com mãos, caça, armas e ferramentas. Mas como em todos os outros primatas, o melhor preditor do tamanho do cérebro é o tamanho do grupo.

 

Entre a maioria dos primatas, colocar-se numa hierarquia de dominância depende da capacidade de construir alianças num mundo político complexo e em constante mudança. E a possibilidade dos machos se reproduzirem depende da sua posição nessa hierarquia. A inteligência social é crítica. Num grupo de dez, existem 45 relações diferentes a ter em conta. Num grupo de 20, existem 190 relações diferentes. Numa aldeia de 200 - faça você as contas.

 

E talvez, com as pessoas, a capacidade de conter os rufiões, de viver em igualdade e de partilhar, tenha sido a realização crucial da nossa inteligência social. Os cérebros que podem ser usados para competir podem ser usados para cooperar.

 

Em suma

 

Em suma, o trabalho feito por estudiosos, em muitos campos, permite hoje apresentar uma imagem coerente de uma adaptação humana a um nicho ecológico particular, que evoluiu ao longo de dois milhões de anos e levou ao aparecimento de seres humanos há cerca de 200.000 anos. Contudo, para além de breves desacordos manifestados com Sarah Hrdy e Christopher Boehm, Graeber e Wengrow lidam com esta impressionante gama de material novo, ignorando-a.

 

De facto, se a tivessem aceite, teriam então de aceitar tanto o carácter igualitário desta adaptação como a medida em que ela está intimamente ligada às específicas condições materiais de ambientes, e tudo isto atirariam pela janela fora os seus argumentos sobre os seres humanos que escolhem a liberdade.

 

Para se agarrar ao seu compromisso com a livre escolha, mantendo intacto o seu projeto político, a sua argumentação coxeia e mergulha.

 

A escrita é densa, mas cheia de florescências e aparente autoridade. O livro ruge a um grande ritmo. A exemplificação adequada é cansativa, sendo difícil desfazer os non-sequiturs e as ligeirezas mentais. O leitor deve ser avisado de que a utilização das provas pelos autores não é, muitas vezes, fiável. É também algo como um grande monturo etnográfico - por isso deseja-se boa sorte aos não iniciados, que nunca conheceram os Hadza, os Montagnais-Naskapi, os Shilluk ou os Nuer, pois que há loucura nos detalhes.

 

O advento da agricultura

 

A transformação da igualdade para a hierarquia, e da igualdade de género para uma marcada desigualdade de género, está geralmente associada à agricultura, e isto coloca problemas consideráveis a Graeber e Wengrow. Devido ao seu interesse na livre escolha, parecem determinados a evitar argumentos materialistas ou a considerar as formas pelas quais as condições ambientais condicionam e limitam as escolhas que as pessoas têm para fazer.

 

A agricultura foi inventada independentemente em muitos lugares do mundo, começando há cerca de 12.000 anos. Os caçadores-recolectores partilhavam os seus alimentos, e ninguém podia possuir mais do que aquilo que podia transportar. Mas os agricultores instalaram-se e passaram a ser investidos nos seus campos e colheitas. Isto criou um potencial para que algumas pessoas tomassem para si mais do que a sua parte dos alimentos.

 

Com o tempo, grupos de rufiões e bandoleiros puderam juntar-se e tornar-se senhores. Fizeram-no de muitas maneiras: roubo e pilhagem, arrendamento, partilha, contratação de mão-de-obra, impostos, tributo e dízimo. Qualquer que fosse a forma que isto assumisse, tal desigualdade de classes dependia sempre da violência organizada. E é sobre isto que tem decorrido a luta de classes, até muito recentemente: quem trabalhava a terra e quem recebia a comida.

 

Os agricultores eram vulneráveis, de uma forma que os caçadores não eram. Estavam ligados à sua terra, ao trabalho que tinham realizado para limpar e irrigar os campos, e aos celeiros das suas culturas. Os caçadores-recolectores podiam partir. Os agricultores não podiam.

 

No entanto, Graeber e Wengrow empenharam-se contra esta narrativa - que os agricultores eram capazes de produzir e armazenar um excedente, o que tornava possível a sociedade de classes, a exploração, o Estado e, como são as coisas, também a desigualdade entre os géneros - e fazem-no, novamente, face a notáveis novos materiais arqueológicos e outras descobertas.

 

Flannery e Marcus. Em 2012, os arqueólogos Kent Flannery e Joyce Marcus publicaram um brilhante livro sobre The Creation of Inequality (A Criação da Desigualdade). Eles traçam os caminhos pelos quais a agricultura tem levado à desigualdade em muitas partes diferentes do mundo.

 

Mas eles insistem em que esta associação não foi automática. A agricultura tornou possível a divisão em classes, mas muitos agricultores viviam em sociedades igualitárias. Em alguns lugares, o fosso entre a invenção da agricultura e a invenção das classes foi medido em séculos e, nalguns outros lugares, mesmo em milhares de anos.

 

Flannery e Marcus também mostram, através de exemplos cuidadosos, que onde os bandoleiros ou senhores locais tomaram o poder, de qualquer modo, tinham sido mais tarde derrubados. Em muitas vilas e cidades, as elites aparecem no registo arqueológico, depois desaparecem durante décadas, para aparecer novamente mais tarde. Com efeito, a luta de classes nunca para (5).

 

James C. Scott. O magnífico estudo comparativo de Flannery e Marcus foi antecipado pelo trabalho de Edmund Leach, no seu livro de 1954, Political Systems of Highland Burma (Sistemas Políticos dos Planaltos Birmaneses), que mudou radicalmente a antropologia, e, mais recentemente, pelo trabalho do cientista político e antropólogo anarquista James C. Scott (6). Em 2009, Scott publicou The Art of Not Being Governed: An Anarchist View of South-East Asia (A Arte de Não Ser Governado: Uma História Anarquista do Sudeste Asiático). Esta obra cobriu séculos em toda a região.

 

Scott interessa-se pelas multidões de agricultores de arroz nos reinos das planícies que fugiram para as montanhas. Ali reinventaram-se como novos grupos étnicos de cultivadores de "corte e queimada" em permanente deslocação. Alguns deles criaram sociedades de classes mais pequenas, enquanto outros viveram sem classes. Todos eles tiveram de resistir aos contínuos ataques militares e escravizadores dos reinos e Estados situados mais abaixo.

 

Tecnologia. De certa forma, Graeber e Wengrow baseiam-se no trabalho de Leach, Scott, Flannery e Marcus. Wengrow, afinal, tem tomado parte nas mudanças na arqueologia que Flannery e Marcus estão a resumir. E a influência de Scott nota-se por todo o lado em The Dawn of Everything (A Aurora de Tudo).

 

Mas Graeber e Wengrow não gostam das ligações que os outros autores fazem entre tecnologia e ambiente, por um lado, e entre a mudança económica e política.

 

Flannery, Marcus e Scott são muito cuidadosos, dizendo que a tecnologia e o ambiente não determinam a mudança. Eles tornam a mudança possível. Do mesmo modo, a invenção da agricultura de cereais não conduziu automaticamente à desigualdade de classes ou ao Estado. Mas tornou essas mudanças possíveis.

 

As Relações de Classe e a Luta de Classes. As mudanças na tecnologia e no ambiente prepararam o terreno para uma luta de classes. E o resultado dessa luta de classes determinou se a igualdade ou a desigualdade triunfaram. Graeber e Wengrow ignoram este ponto crucial. Em vez disso, estão constantemente a implicar com a tosca teoria dos estádios que torna tais mudanças imediatas e inevitáveis.

 

Esta alergia ao pensamento ecológico é, provavelmente, uma das coisas por detrás da sua recusa em lidar com a nova literatura sobre a evolução humana.

 

Toda essa literatura tenta compreender como os animais que se tornaram a humanidade construíram uma adaptação social ao ambiente que habitavam, aos corpos que tinham, aos predadores concorrentes, à tecnologia que puderam inventar, e às formas como ganhavam o seu sustento. Verifica-se que construíram sociedades igualitárias a fim de fazer face a essa ecologia e a essas circunstâncias. Esse não foi um resultado inevitável. Mas foi uma adaptação.

 

Graeber e Wengrow, por outro lado, não são materialistas. Para eles, pensar na ecologia e na tecnologia ameaça tornar impossíveis as escolhas e a revolução que querem. É por isso, por exemplo, que não estão satisfeitos com o livro de Scott sobre a antiga Mesopotâmia, porque enfatiza as razões materiais pelas quais a agricultura de cereais, em particular, levou à desigualdade.

 

Esta não é uma questão trivial. A crise climática que agora enfrentamos coloca em grande relevo a questão de como a humanidade pode mudar a sociedade para se adaptar a uma nova tecnologia e a um novo ambiente. Qualquer política de igualdade ou de sobrevivência humana deve agora ser profundamente materialista.

 

A Ausência do Género. Temos visto que Graeber e Wengrow têm pouco interesse no ambiente e nas bases materiais da existência humana.

 

Da mesma forma, observam uma evasão quase religiosa do conceito de classe, de discussões sobre relações de classe e da luta de classes. Graeber certamente, e presumivelmente Wengrow, têm uma compreensão das relações de classe e da luta de classes. Eles sabem o que significa a classe, e, de facto, a que classe eles próprios pertencem, mas não podem, ou não querem, tratar as relações de classe como um motor da mudança social.

 

Igualmente impressionante é a falta de interesse de Graeber e Wengrow na construção social do género. De passagem, reproduzem um arremedo de Bachofen sobre o matriarcado na Creta Minóica, por um lado. Por outro, incluem uma dispersão de estereótipos patriarcais, em que as mulheres são nutridoras e os homens são rufiões.

 

Porque sustentam que a desigualdade sempre esteve connosco, Graeber e Wengrow não têm quase nada a dizer sobre as origens da desigualdade de géneros entre os seres humanos.

 

Existem, basicamente, três escolas de pensamento sobre a evolução das relações entre os sexos. Primeiro, há os psicólogos evolucionistas cujos argumentos são profundamente conservadores. Jared Diamond, Napoleon Chagnon e Steven Pinker argumentam que a desigualdade, a violência e a competição são fundamentais na natureza humana. Dizem que isto se deve ao facto de os homens serem programados pela evolução para competir com outros homens, de modo a que os mais fortes possam dominar as mulheres e conceber mais filhos. Isto é lamentável, diz Pinker, e felizmente a Civilização Ocidental domou parcialmente tais sentimentos primitivos.

 

A grande bióloga e ativista trans, Joan Roughgarden, descreveu corretamente estas ideias como "narrativas de violação levemente disfarçadas". Estes argumentos são, de facto, repugnantes, e certamente foram rejeitados por Graeber e Wengrow apenas por esta razão.

 

Durante muito tempo, uma segunda escola de pensamento manteve-se entre as antropólogas feministas. Esta também essencializou as diferenças entre mulheres e homens, e aceitou alguma forma de desigualdade entre os géneros como um dado adquirido em todas as sociedades.

 

A terceira opção é a que subscrevemos. Há uma característica marcante do registo histórico, antropológico e arqueológico. Em quase todos os casos em que as pessoas viviam em sociedades económica e politicamente igualitárias, mulheres e homens também eram iguais. E onde quer que tenham existido sociedades de classe, com desigualdade económica, aí também os homens dominaram as mulheres.

 

A questão que nos tem obcecado é: Porquê?

 

Graeber e Wengrow não abordam esta questão. Não têm qualquer explicação para o sexismo, nem estão interessados em saber como ou porquê as relações de género mudam. Mas eles não são sexistas. Mencionam muitas vezes casos de opressão das mulheres, mas de passagem. Simplesmente, não é uma questão central para as suas preocupações. Portanto, o que nos parece uma congruência impressionante, é para elas uma miragem.

 

Caçadores-recolectores complexos

 

Na sua determinação em minimizar as ligações entre a agricultura, a desigualdade de classe e o surgimento de Estados, uma parte essencial do relato de Graeber e Wengrow centra-se em grupos de caçadores-recolectores que tiveram desigualdade de classe, guerra e mesmo escravatura. Os arqueólogos chamam-lhes "caçadores-recolectores complexos" ou "forrageiros complexos".

 

Graeber e Wengrow tomam estas pessoas como prova de que os pré-históricos podiam ser, tanto não-estatais e igualitárias, como violentas e desiguais. Não é isso que as provas mostram (7).

 

Os exemplos clássicos são os Kwakiutl, estudados por Franz Boas, e os seus vizinhos na costa ocidental do Canadá e nos rios Columbia e Frazer. Os rios e a costa viram enormes corridas de salmão. Quem controlasse um número limitado de pontos de asfixia e locais de pesca poderia acumular um enorme excedente. Os Galles, no rio Columbia, são um exemplo. Houve dias em que um pequeno grupo de pessoas podia apanhar 45.000 kg de salmão.

 

Isso era excecional. Havia variações de local para local. Mas ao longo da costa e dos rios, quanto maior era a abundância de salmão, mais desigualdade de classe se revela na arqueologia e nos relatos escritos. Desigualdades de riqueza eram frequentemente extremas. Estas pessoas tinham também uma tecnologia militar complexa, com grandes canoas de guerra que transportavam um grande número de guerreiros e exigiam muitos meses para serem fabricadas, por diversos artesãos.

 

Com efeito, estas pessoas eram aprisionadas por locais de pesca, tal como os agricultores eram aprisionados pelos seus campos. E, tal como os agricultores, o armazenamento era essencial para estes pescadores de salmão. Durante muito tempo, no registo arqueológico, o exame dos seus ossos e dentes mostra que entre 40% e 60% da sua dieta anual provinha do salmão. O peixe corre apenas durante algumas semanas por ano, de modo que a maior parte dessa dieta deve ter provindo de salmão seco.

 

Tal como com os agricultores, as restrições ambientais e as novas tecnologias estavam a abrir a possibilidade da sociedade de classes. Nada deste processo é visível em The Dawn of Everything (A Aurora de Tudo). Em vez disso, obtemos o relato padrão sobre os Kwakiutl para estudantes universitários que se fazia há cinquenta anos atrás, como aquela gente gananciosa e esbanjadora das festas do potlatch. Este relato ignora a grande quantidade de estudos que se fizeram desde então.

Sabemos agora que essas festas caóticas eram uma celebração da vida tradicional, gerida por uma classe dominante que tentava desesperadamente manter o seu poder, entre pessoas que tinham perdido cinco sextos da sua população devido à varíola e à sífilis, que tinham sido conquistadas e depois invadidas por garimpeiros de ouro, e cujas festas de potlatch acabaram por ser proibidas pelo governo canadiano. Uma tragédia profundamente material foi relatada como uma farsa irracional (8).

 

Os pescadores da costa ocidental não eram os únicos "caçadores-recolectores complexos". Existem outros exemplos à volta do mundo. Mas é digno de nota o quão poucos eles eram. Além disso, os arqueólogos não encontraram nenhum com mais de 7.000 anos, a contar do presente. Nenhuma prova de guerra existe antes de 14.000 anos atrás.

 

O pequeno número e a origem recente dos caçadores-recolectores complexos pode ser uma questão de tecnologia. Certamente, os Chumash, ao longo da costa da Califórnia, não desenvolveram desigualdade e guerra antes do ano 600 da nossa era, quando aprenderam a construir grandes canoas de prancha oceânica, o que lhes permitiu caçar grandes mamíferos marinhos e dominar militarmente as aldeias costeiras (9). Graeber e Wengrow ignoram os Chumash, tomando em vez disso o exemplo dos Yurok, menos bem compreendidos e localizados mais para o interior.

 

Eles escolhem um terceiro exemplo de "caçadores-recolectores complexos", os Calusa, do sul da Florida. Em certo sentido, estes eram também povos pescadores com chefes, guerreiros, desigualdade de classes, escravatura, canoas de guerra caras e uma dependência da pesca de mamíferos marinhos, jacarés e grandes peixes.

 

Graeber e Wengrow descrevem os Calusa como "um povo não-agrícola". Mas, como eles reconhecem, os pescadores Calusa eram o grupo dominante numa comunidade política muito maior. Todos os outros grupos eram agricultores, e prestaram tributo aos governantes Calusa de grandes quantidades de alimentos, ouro, europeus escravizados e cativos africanos. Essa comida permitiu à elite dos Calusa e a 300 guerreiros a tempo inteiro viverem sem trabalhar (10).

 

Ser contra o Estado

 

Seguindo Flannery e Marcus, Scott, et al., para nós, a luta política central em todas as sociedades de classes, até há pouco tempo, era sobre quem trabalhava a terra e quem se apropriava dos alimentos. Graeber e Wengrow vêem as coisas de forma diferente. Para eles, a questão central é o poder e o inimigo central é o Estado. Isto leva-os a ignorar as classes de várias maneiras. Isto não se deve ao facto de eles serem anarquistas. A maioria dos anarquistas sempre foi capaz de manter em foco simultaneamente as classes e o poder.

 

Mas as omissões de The Dawn of Everything são importantes. Graeber e Wengrow parecem tão ansiosos por impulsionar um argumento a favor de assembleias consensuais e participativas que nos deixam com uma série de puzzles. Quatro breves exemplos podem ilustrar o problema.

 

Os autores não estão interessados no aumento da desigualdade de classe nas aldeias, que tão frequentemente precede os estados nas cidades, e rejeitam a literatura. Também não estão interessados em pequenos reinos, lordships e baronies. Desde que não haja estados grandes e centralizados, tudo bem. Vimos algumas reviravoltas e reviravoltas que isto criou no seu relato sobre os foragidos complexos. Estes reaparecem numa série de outros exemplos.

 

O Industão. Eles apontam, com toda a razão, o espantoso e importante exemplo da antiga cidade de Mohenjo-Daro no Industão, onde cerca de 40.000 pessoas viviam sem desigualdade de classes ou sem um Estado.

 

Sugerem então, tal como os historiadores Hindutva, que Mohenjo-Daro estava de facto organizada segundo as linhas de castas do Sul da Ásia. Mas, dizem Graeber e Wengrow, estas eram linhas de castas igualitárias. Inicialmente, a mente fica confusa, mas o que eles realmente querem dizer é que a desigualdade de castas sem reis é aceitável (11).

 

Natchez. Eles minimizam constantemente o poder dos reis tradicionais. O reino nativo de Natchez, no Mississippi, é um bom exemplo. Graeber e Wengrow dizem que o poder e a viciosa crueldade do rei sol não se estendiam para além da sua aldeia. Contudo, na realidade, Natchez era uma força regional importante no comércio de escravos ao serviço dos plantadores brancos (12).

 

Sacrifícios Humanos. Graeber e Wengrow enfatizam, com razão, o facto importante de que festivais públicos cruéis de sacrifício humano se encontram, nos primeiros Estados, em todo o mundo. Dúzias ou centenas foram sacrificados, muitas vezes cativos de guerra, mulheres jovens ou os pobres.

 

Eles estão, com razão, indignados. Mas sentem também que o objetivo destes sacrifícios era aterrorizar os seus inimigos, os povos de outros Estados. Pensamos, pelo contrário, que o principal objetivo era aterrorizar com o derramamento de sangue o próprio público, os súbditos do cruel Estado local.

 

De facto, esta é provavelmente a razão porque uma tal crueldade é característica da história inicial de cada Estado. Era o tempo em que a legitimidade do Estado ainda era fraca, e o terror mais necessário. É também provavelmente por isso que os espetaculares sacrifícios públicos desaparecem à medida que o poder do Estado se consolida, embora a guerra e os inimigos continuem.

 

Assembleias. As próprias Assembleias são um exemplo final importante. Graeber e Wengrow apontam, muito corretamente, para o poder das assembleias nos reinos e Estados da antiga Mesopotâmia. Dizem que isto é uma prova de que os reis não eram todo poderosos. Nisto eles têm razão. Seria preciso ser muito ingénuo para acreditar que a luta de classes parou nesses reinos.

 

Mas, depois, Graeber e Wengrow dão um salto. Eles sugerem que essas assembleias de cidades se assemelhavam às assembleias do Occupy e de outros movimentos pela justiça social, com democracia participativa.

 

Não há provas, a favor ou contra, sobre a existência de qualquer forma de democracia participativa na antiga Mesopotâmia. Mas temos abundantes provas da existência de assembleias municipais e nacionais em outras sociedades de classes. Todas elas foram dominadas pelos homens mais ricos e por famílias poderosas. Na antiga Esparta, os proprietários de terras dominavam. O mesmo acontecia no Senado romano. E com o Rei João e os seus barões. Até muito recentemente, os eleitores de todos os parlamentos da Europa estavam limitados aos ricos.

 

Esta miopia é importante. Como muitos outros, entendemos os reinos e os Estados como a forma de as classes dominantes, em sociedades desiguais, se unirem para consolidar e fazer cumprir as regras. Em The Dawn of Everything esse processo é invisível.

 

* * *

 

Graeber e Wengrow estão zangados. Há uma energia nesta raiva que agradará aos leitores, como nós, que desesperam com a desigualdade mundial, odeiam a política da elite global e temem o caos climático.

 

Em muitos aspetos, o seu livro é um vento uivante de ar fresco. E nós partilhamos a sua hostilidade para com todos os Estados existentes. Mas, no futuro, para travar a mudança climática, precisamos de uma compreensão da condição humana que inclua a importância central das classes e do ambiente.

 

 

 

 

 

 

(*) Nancy Lindisfarne ensinou Antropologia na School of Oriental and African Studies (SOAS), em Londres, durante muitos anos. Aposentou-se antecipadamente para se dedicar à pintura e à gravura. Fez trabalho de campo no Irão, Afeganistão, Turquia e Síria. Devotou-se também ao estudo de questões de género, sexualidade, etnicidade e imperialismo. É autora, nomeadamente, de Bartered Brides: Politics, Gender and Marriage in an Afghan Tribal Society (1991); Languages of Dress in the Middle East (1997); Thank God We’re Secular: Gender, Islam and Turkish Republicanism (2001); Dislocating Masculinity: Comparative Ethnographies (2016) e (com Richard Tapper) Afghan Village Voices (2020), bem como da coleção de contos Dancing in Damascus (2000).

Jonathan Neale trabalhou durante dez anos, na administração pública, como conselheiro para o aborto e seis anos como conselheiro para a SIDA. Ambos são colaboradores frequentes da revista International Socialism e no portal rs21 – revolutionary socialism for the 21st century.

Esta extensa recensão do muito celebrado livro póstumo de David Graeber (em colaboração com David Wengrow) foi originalmente publicada na revista The Ecologist. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

____________

NOTAS:

 

(1) Friedrich Engels, The Origin of the Family, Private Property and the State, 1884. O livro foi reavivado como um texto chave por feministas socialistas e marxistas em debates sobre a libertação das mulheres. Pese embora o darwinismo social, que aí tomou claramente o lugar do Antigo Testamento, é agora bastante claro que tanto o pastoreio como a agricultura de corte e queimada apareceram depois, e não antes, do advento da agricultura estabelecida.

 

(2) Franz Boas, The Mind of Primitive Man, 1911; Claudia Ruth Pierpoint, The Measure of America, 2004; Ned Blackhawk e Isaiah Lorado Wilner, Indigenous Visions: Rediscovering the World of Franz Boas, 2018; Rosemary Lévy, Franz Boas: The Emergence of the Anthropologist, 2019.

 

(3) Excelentes exemplos destes trabalhos incluem Sara Hdry, Mothers and Others: The Evolutionary Origins of Mutual Understanding, 2005; Elizabeth Marshall Thomas, The Old Way, 2001; dois artigos de Steven Kuhn e Mary Stiner: ‘What’s a Mother To Do’, 2006 e ‘How Hearth and Home Made us Human’, 2019; Loretta Cormier e Sharon Jones, The Domesticated Penis: How Womanhood has Shaped Manhood, 2015; um ensaio seminal de Joanna Overing, ‘Men Control Women? The “Catch-22” in the Analysis of Gender’, 1987; dois livros de Christopher Boehm: Hierarchy in the Forest and the Evolution of Egalitarian Behavior, 1999, e Moral Origins, 2012; todos os livros do primatologista Frans de Waal; os dois capítulos de Brian Ferguson em Douglas Fry, ed., War, Peace and Human Nature, 2013; Richard Wrangham, Catching Fire: How Cooking Made Us Human, 2010; e dois livros da bióloga trans Joan Roughgarden: Evolution’s Rainbow: Diversity, Gender and Sexuality in Nature and People, 2004, e The Genial Gene: Deconstructing Darwinian Selfishness, 2009.

 

(4) Os nossos favoritos, entre as etnografias dos nossos caçadores-recoletores contemporâneos são Marjorie Shostack, Nisa: The Life and Words of a !Kung Woman, 1981; Jean Briggs, Inuit Morality Play: The Emotional Education of a Three-Year-Old, 1998; Phyllis Kaberry, Aboriginal Women: Sacred and Profane, 1938, Karen Endicott e Kirk Endicott: The Headman was a Woman: The Gender Egalitarian Batek of Malaysia, 2008;  Richard Lee, The !Kung San: Men, Women and Work in a Foraging Society, 1978; e Colin Turnbull, Wayward Servants: The Two Worlds of the African Pygmies, 1978.

 

(5) Kent Flannery e Joyce Marcus, The Creation of Inequality: How Our Prehistorical Ancestors Set the Stage for Monarchy, Slavery and Empire, 2012; e James C. Scott, The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland South-East Asia, 2009; Scott, Against the Grain: A Deep History of the Earliest States, 2017. Martin Jones, Feast: Why Humans Share Food, 2007, é também muito esclarecedor.

 

(6) Edmund Leach produziu um argumento semelhante em 1954 no seu Political Systems of Highland Burma, mudando radicalmente a antropologia. Para uma brilhante etnografia de um grupo de rebeldes montanheses anti-classes no final do século XX, leia-se Shanshan Du, Chopsticks Only Work in Pairs: Gender Unity and Gender Equality Among the Lahu of Southeastern China, 2003. Para a recente extensão do argumento de Scott à antiga Mesopotâmia, leia-se o seu Against the Grain.

 

(7) Tudo isto é sucintamente descrito em Brian Hayden, ‘Transegalitarian Societies on the American Northwest Plateau: Social Dynamics and Cultural/Technological Changes,’ in Orlando Cerasuolo, ed., The Archaeology of Inequality, 2021.

 

(8) Comece-se por Philip Drucker e Robert Heizer, To Make My Name Good: A Reexamination of the Southern Kwakiutl Potlatch, 1967; e Eric Wolf, Envisioning Power: Ideologies of Dominance and Crisis, 1999, pp. 69-132.

 

(9) Jeanne Arnold, ‘Credit where Credit is Due: The History of the Chumash Oceangoing Plank Canoe’, 2007; e Lynn Gamble, The Chumash World at European Contact: Power, Trade and Fighting among Complex Hunter-Gatherers, 2011.

 

(10) Sobre os Calusa, leia-se The Dawn…, pp. 150-2; Fernando Santos-Cranero, Vital Enemies: Slavery, Predation and the Amerindian Political Economy of Life, 2010; e John Hann, Missions to the Calusa, 1991.

 

(11) Rita Wright, The Ancient Indus: Urbanism, Economy and Society, 2010; e Andrew Robinson, The Indus: Lost Civilizations, 2015.

 

(12) Robbie Ethridge e Sheri M. Shuck-Hall, Mapping the Mississippian Shatter Zone, 2009; e George Edward Milne, Natchez Country: Indians, Colonists and the Landscape of Race in French Louisiana, 2015.