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Considerações político-ecológicas em Marx
Manuel Sacristán (*)
Pode-se ter hoje quase a certeza, ao contrário do que teria ocorrido há dois ou três anos, que uma conversa com este título não precisa de justificação. Não duvido que ainda existam círculos que considerem a nossa preocupação com o assunto um pouco frívola, mas há tantas pessoas, hoje em dia, que se informam bem sobre a importância dos problemas político-ecológicos, que podemos dispensar-nos de fazer uma longa justificação. A questão não é uma moda passageira; pelo contrário, intensifica-se diariamente. Nem é uma questão estética, como alguns críticos têm desdenhosa e condescendentemente sugerido. E também não é uma idílica afirmação de uma alegada harmonia que está a ser violada. Aqueles que lidam seriamente com questões político-ecológicas sabem que não é uma questão de cultivar a nostalgia por dias mais felizes e mais estáveis. A hipótese de que os animais a que antropocentricamente chamamos superiores, como nós próprios, devamos as nossas condições de existência à poluição é suficiente para eliminar todos os excessos estéticos ou nostálgicos. Nós respiramos porque atualmente existe oxigénio suficiente na atmosfera. Ora, o oxigénio era poluição do ponto de vista (se assim nos podemos exprimir) das algas e outros organismos que talvez as tenham produzido: esses organismos respiravam dióxido de carbono.
Portanto, não se pode identificar uma consciência político-ecológica com nostalgia, que representaria um falso e antropocêntrico estado puro inicial. O primeiro ambiente terrestre documentado ou hipotético não foi de todo benéfico para a espécie humana. Os problemas político-ecológicos não são ideológicos nem caracterizados por um anseio estético: são problemas pragmáticos. Quando se lamenta, por exemplo, que os petroleiros poluem os mares nas suas viagens de regresso (porque transportam água salgada como lastro e depois soltam-na, com todo o petróleo misturado, quando regressam ao porto), não o fazemos por razões estéticas (que seriam, de qualquer forma, plenamente justificadas), mas porque a poluição gradual do oceano ameaça a principal fonte produtora de oxigénio neste planeta. Pela mesma razão, e por muitas outras, pode-se protestar sem qualquer motivação estética contra os resíduos radioativos que ameaçam os seres humanos e outros animais com séculos de problemas para os quais não podemos hoje imaginar nenhuma solução. O mesmo vale para o desaparecimento gradual das florestas tropicais, que em alguns casos, como do sudeste do México, foram reduzidas a uma folhagem de apenas oito a dez metros ao longo das margens dos rios, como se fossem festões decorativos, enquanto todo o restante arvoredo original foi entregue à criação de gado, de modo a que a carne possa ser exportada para as nações industrializadas. As florestas tropicais são também importantes produtores de oxigénio, e uma vez destruídas serão provavelmente perdidas para sempre, porque o seu terreno fértil tende a ser relativamente fraco.
Os problemas político-ecológicos são práticos, não ideológicos. Eles são, além disso, globais, internacionais, em maior ou menor grau. É óbvio que os problemas dos oceanos ou da atmosfera são questões internacionais. A este respeito, menciona-se frequentemente o mal feito aos países escandinavos pela operação de "limpeza" de Londres, através da qual os poluentes foram simplesmente deslocados ou emitidos a níveis mais elevados. Tanto o facto de estes serem problemas práticos - que anteriormente não eram percebidos como tal - como o facto de terem de ser tratados num contexto global, servem para desafiar seriamente a conceção tradicional moderna da política, vinculada pela ideia do Estado nacional burguês. Não há forma de tratar estas questões com critérios nacionalistas. O antiquado senso comum político, e aquilo a que o General Franco chamou de "egoísmo sagrado das nações", torna-se por vezes absurdo, por vezes suicida, muitas vezes criminoso.
Pode-se dizer que a tradição marxista não tem lidado com estes problemas, ou, pelo menos, tem tratado deles de forma suficiente. No entanto, há pontos interessantes levantados no trabalho de Marx e, em menor medida, no de Engels, que foram tidos em conta, de várias formas, ao longo de todo o século transcorrido desde que Marx escreveu. Por exemplo, a crítica de Marx e Engels às condições de vida da força de trabalho, em particular dos trabalhadores industriais, mas também dos camponeses e das classes mais baixas, em geral, tem sido sempre levada em consideração. Com o conhecimento posterior, como dizem os italianos, esta crítica pode ser vista como uma ecologia humana elementar, particularmente ecologia do trabalho, no capitalismo ascendente. Na medida em que tem importância político-ecológica, o tratamento dado por Marx a estas questões é bastante profundo, porque chega à raiz da questão. Marx tentou explicar aquilo que ele por vezes denominou, de uma forma ecológica, a depredação do trabalhador na sociedade capitalista. Não temos de procurar entre as suas obras mais obscuras; na sua obra mais frequentemente lida (diz-se), o Volume I de O Capital, Marx descreve como, durante a sua fase heroica, a produção capitalista de mais-valia, quando impulsionada pela necessidade de obter o nível máximo daquilo que Marx chamou de mais-valia absoluta, continuamente procura o prolongamento do dia de trabalho com o que, diz Marx, a força de trabalho humana atrofia, é esgotada, e eventualmente morre. Isto seria a causa última daquilo que é frequentemente chamado de depredação da força de trabalho, num paralelo interessante com a depredação da terra na agricultura capitalista. Este ponto é frequentemente expresso em O Capital com forte linguagem, como evidenciado por esta passagem do Capítulo Oito do Livro I, que diz respeito à jornada de trabalho:
“No seu impulso desmedidamente cego, na sua fome de trabalho excedente, apetite feroz, próprio de uma besta, o capital transpõe não apenas os limites morais extremos da jornada de trabalho [por "limites morais” Marx quer dizer os limites habituais] mas os limites puramente físicos também. Usurpa o tempo necessário para o crescimento, o desenvolvimento e a conservação saudável do corpo, confisca o tempo necessário para consumir ar fresco e a luz do sol, raspa malevolamente na hora própria de comer [a premonição de Chaplin em “Tempos Modernos”] e, se puder, incorpora-a no próprio processo de produção, de tal forma que as refeições serão administradas ao trabalhador como um mero meio de produção, tal como o carvão é alimentado a uma caldeira a vapor e a máquinas são untadas e oleadas.”
Este tom grave e mesmo ligeiramente patético é frequentemente encontrado ao longo do Livro I de O Capital, quando Marx examina as causas para a depredação da força de trabalho ou quando ele a descreve, muitas vezes colocando em paralelo o trabalhador e a terra. Por exemplo, também do Livro I:
“A mesma ganância cega que, num caso, esgota a terra, tinha no outro caso [Marx está a referir-se aos primeiros trinta anos do século XIX] afetado as raízes da força vital da nação; em Inglaterra, as epidemias periódicas falaram tão claramente como a diminuição na altura dos soldados na Alemanha e em França.”
Esta questão, à qual Marx atribuiu grande importância, mas que raramente é lembrada ao considerar o seu trabalho, indica uma avaliação precisa da importância social do que poderiam ser chamados indicadores biológicos; Marx tinha estudado cuidadosamente estatísticas militares da Europa Central (principalmente Alemanha) e Inglaterra. Com elas obteve uma curva significativa da diminuição da altura dos jovens recrutas e correlacionou-a com as fases iniciais do capitalismo nessas regiões. É verdade que todas as observações de Marx a este respeito exalam um tom moralista, porque as suas análises raramente eram puramente descritivas, estando carregadas de paixão política e ética. No primeiro livro de O Capital, mais uma vez no Capítulo Oito, encontra-se a famosa metáfora segundo a qual o tratamento aplicado à força de trabalho no capitalismo - a depredação da força de trabalho - pode ser comparada com o que é dado ao gado no Rio de la Plata, onde a abundância de bovinos levou frequentemente à prática do abate de vacas pelas suas peles, descartando a sua carne superabundante. Pesquisando através dos livros azuis do governo inglês e de outras fontes estatísticas ou descritivas, Marx encontrou documentação sobre a degradação e depredação da força de trabalho; por exemplo, o costume inglês, comum até aos anos 1850, de chamar aos trabalhadores "tempo-inteiro" ou "meio-tempo”, de acordo com a sua idade e as horas em que poderiam trabalhar, de acordo com as limitações postas ao trabalho infantil.
Marx não estudou apenas esta faceta da ecologia humana, que poderemos designar como ecologia da força de trabalho no capitalismo primordial. Ele também considerou vários aspetos da vida quotidiana a partir da mesma perspetiva. Entre eles, destacam-se o alojamento e a alimentação. Engels realizou um estudo mais sistemático da habitação do que Marx, cujas observações neste campo são mais impressionistas e superficiais. Mas em relação à nutrição, Marx parece ter sido o primeiro cientista social a tratar a questão das adulterações não de uma perspetiva exclusivamente médica, mas também de uma perspetiva política, reunindo assim duas tradições distintas: a ação governamental e os últimos avanços em bromatologia. Marx baseou o seu trabalho em estudos sobre a adulteração de alimentos, principalmente em Inglaterra, França, e Alemanha, mas ele dá uma nova interpretação político-social aos dados. Por exemplo, ele estudou a adulteração do pão no início do século XIX em Inglaterra, quando existiam padeiros "de preço completo" e "de meio preço"; os primeiros vendiam pão feito de farinha pura enquanto os segundos misturavam a sua farinha com substâncias pesadas tais como areia e alúmen. (É interessante notar que a análise de Marx sobre a adulteração de alimentos para o mercado da classe trabalhadora em Inglaterra e na Europa Central, durante a época do capitalismo inicial, oferece alguns paralelos claros com a adulteração do óleo de colza em Espanha durante o início da década de 1980. Em ambos os casos, o motivo é o mesmo: obter produtos que embarateçam o custo da mão-de-obra, produtos que, sendo destinados ao orçamento da classe trabalhadora, permitam que o trabalhador subsista com o mais baixo salário possível. Esse era o objetivo do pão "de meio preço" em Inglaterra e da autorização de venda de azeite que não de oliva, em Espanha, durante os anos 1950, também um período de industrialização).
Todos estes pontos levantados por Marx constituem um crítica político-ecológica, e quando as suas observações foram apresentadas como uma tese, mais do que como meramente descritivas ou analíticas, eram ainda mais radicais. Por exemplo, tanto Marx como Engels consideraram óbvio que as grandes cidades teriam de ser abolidas numa sociedade socialista. Aqui começamos a deparar-nos com teses clássicas que a vulgata marxista, contaminada por progressismo burguês, consideraria não-marxistas. Os marxistas vulgares resistem à ideia de que os seus clássicos alguma vez disseram que as grandes cidades, residência do proletariado industrial, devem ser destruídas. Mas a tese está lá, e mais uma vez não está contida em nenhum texto obscuro ou abstruso, conhecido apenas pelos eruditos, mas antes num dos livros mais fáceis e amplamente lidos escritos por Marx e Engels, o Anti-Dühring: "É bastante verdade", escreveu Engels, sem dúvida com o acordo com Marx, que colaborou no livro, "que as grandes cidades que a civilização nos deixou como herança levarão muito tempo e muito esforço a eliminar; mas as grandes cidades devem ser eliminadas, e sê-lo-ão, mesmo que o processo seja lento".
Mas estas considerações, e muitas outras, algumas das quais iremos considerar mais tarde, não têm muita continuidade na tradição marxista, exceto em alguns casos, notáveis, dos quais dois se destacam. O primeiro é a preocupação de Kautsky com a demografia, que foi particularmente louvável, dado que ele escreveu durante os últimos 25 anos do século XIX, quando havia pouca consciência do problema. Como em tantas outras instâncias, as observações de Kautsky, que foram partilhadas pelo velho Engels, apesar de alguma hesitação, têm sido esquecidas na tradição marxista dominante, ao ponto de os governos supostamente marxistas da Europa de Leste votarem unanimemente, em encontros internacionais, juntamente com o Vaticano, para se oporem a qualquer medida de controlo da população.
O segundo caso, excecional e brilhante, que eu gostaria de mencionar, é o de um marxista polaco, que escreveu no final do século XIX, que é de longe menos conhecido que Kautsky. O seu nome era Sergei Podolinsky e ele publicou um fascinante ensaio, em duas partes, na revista dos social-democratas alemães, sobre o conceito marxista de valor e a segunda lei da termodinâmica, o princípio da entropia. A lei da entropia diz que, num sistema fechado, a quantidade de energia utilizável, ou as diferenças de potencial, por outras palavras, diminuem constantemente. A lei refere-se a um sistema fechado, que é claro que a Terra não é, dado que recebe constantemente a energia do Sol. Por conseguinte, há sempre um debate sobre se a lei da entropia é ou não útil para compreender os processos humanos, particularmente os processos produtivos. Mas a questão não é simples, porque se pode contrariar a objeção de que a Terra é um sistema aberto, respondendo que as fontes de vida para a espécie humana talvez não sejam tão abertas. A discussão é semelhante à que recentemente foi levada a cabo pelo que chamaríamos de "prigoginismo vulgar", avançando a ideia de que não há necessidade de nos preocuparmos com o desequilíbrio de um determinado ambiente, uma vez que existem muitas outras dinâmicas possíveis de equilíbrio na natureza. Mas a questão pragmática para a espécie humana é saber em quais destes estados poderemos sobreviver e em quais não poderemos; os dinossauros podem recolher muito pouco consolo de saberem que morreram, mas que, na sequência, a espécie humana surgiu.
Podolinsky foi meritório na recuperação do ponto de vista naturalista, que Marx abandonou expressamente (a fim de se dedicar à Economia Política) nas primeiras páginas de A Ideologia Alemã. Podolinsky recuperou-o e tentou reconstruir a ideia de valor-trabalho no âmbito da termodinâmica. É justo, então, que honremos a memória de Kautsky e de Podolinsky, mas, ao mesmo tempo, devemos repetir que os esforços dos pensadores clássicos no sentido de uma perspetiva político-ecológica não tiveram praticamente nenhuma continuidade na tradição marxista. Qualquer coisa no âmbito do que hoje poderíamos chamar questões político-ecológicas era colocada sob o título de "Os Males do Capitalismo" no marxismo tradicional, sem se prestar atenção às especificidades dos riscos envolvidos no tratamento da Natureza por parte da civilização. Assim, constituiu-se uma tradição progressista a-problemática, que continha mais elementos tradicionalmente burgueses do que novidades socialistas.
Antes de nos perguntarmos porque é que isto acontece, devemos voltar-nos agora para as ideias político-ecológicas menos conhecidas de Marx. Estas observações não dizem respeito à ecologia da força de trabalho industrial, mas sim à agricultura. A fonte clássica de ideias sobre o tema é a 10.ª secção do Capítulo 13 do Livro I de O Capital. É um texto conhecido e maduro que, no entanto, demonstra uma forma de pensamento que não se enquadra necessariamente bem com a imagem habitual da doutrina marxista. Marx pensou, devido à sua educação filosófica, que a história avança "pelo seu lado mau". Mas na passagem referida, o modelo dialético de Marx, este avanço através do lado mau, parece estar suspenso. Marx acreditou e disse que o avanço através do lado mau pode não caracterizar a dinâmica do progresso no caso da agricultura, porque a exploração capitalista "dificulta o intercâmbio entre o ser humano e a Natureza, ela perturba a condição eterna de uma fecundidade duradoura da Terra". Isto foi escrito um século antes dos fanáticos da "revolução verde" terem lançados as suas façanhas.
O pensamento de Marx aqui é interessante, na medida em que não se enquadra bem com a sua habitual linha de pensamento. Todo o progresso na agricultura capitalista, escreve Marx, "é um progresso não só na arte de degradar o trabalhador, mas também, e ao mesmo tempo, na arte de depredar o solo; todos os progressos alcançados no aumento da sua fecundidade, durante um determinado período de tempo, é simultaneamente um progresso na ruína das fontes duradouras dessa fecundidade". Ele termina com uma afirmação geral: "A produção capitalista desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção crucial, apenas para minar, ao mesmo tempo, as fontes que são a origem de toda a riqueza, a terra e o trabalhador".
Assim, os escritos de Marx contêm considerações (mais do que meras indicações) que vão para além da ecologia do trabalho sob o capitalismo. Mas, além disso, Marx tentou usar estas ideias para compreender como seria uma sociedade socialista. A tentativa é breve e não muito precisa, mas é, no entanto, interessante. Ele começa com a convicção, muito pessimista, de que o capitalismo terá destruído completamente a relação correta entre a espécie humana e o resto da Natureza, no tempo em que o socialismo terá de ser construído. A palavra "correta" é aqui entendida de uma forma pragmática, para designar a relação apropriada para o sustento da espécie. Ele, depois, atribui à sociedade a tarefa de "produzir sistematicamente" este intercâmbio entre a espécie humana e o resto da Natureza, que é entendido como uma lei reguladora básica da produção, de uma forma que está em conformidade com o que ele chama (numa veia ideológica típica da época e que ainda está presente em termos tais como "psicologia evolutiva", etc.,) "desenvolvimento humano integral". A sociedade socialista é assim caracterizada como aquela que estabelece a viabilidade ecológica da espécie. Este desenvolvimento é muito breve; toda a 10.ª secção do Capítulo 13 do Livro I de O Capital é curta; dependendo da edição, ocupa entre três e cinco páginas. Mas é muito interessante. Porque é que um texto tão categórico e estimulante não foi seguido, uma vez que expressava a hipótese de que o capitalismo não se extinguiria a si próprio até destruir completamente o metabolismo duradouro entre a espécie humana e a Natureza? A sensibilidade em relação a qualquer problema é uma questão histórica. Gerações sobre gerações de marxistas e marxólogos leram estas páginas e prestaram atenção às outras coisas que Marx disse sobre, por exemplo, o facto de o capitalismo tecnologizar a agricultura, de reduzir a população agrícola, etc.. Mas nunca pararam para estudar o que ele disse sobre a relação entre a espécie humana e a Natureza.
Uma das razões para esta falta de interesse encontra-se, provavelmente, na base filosófica hegeliana subjacente ao pensamento de Marx. De Hegel, Marx herdou um modo de pensar peculiarmente determinista, baseado na ideia de que os eventos são produzidos com lógica interna e com absoluta necessidade, a ideia de que não há distinção entre o lógico e o empírico, que os factos são, por si só, logicamente necessários. Isto é o que ele afirma na famosa e frequentemente repetida frase: "Tudo o que é real é racional". Além disso, a lógica ou necessidade que a filosofia hegeliana atribui aos acontecimentos, à história, opera através da negatividade: constrói uma dinâmica em que o motor da mudança, o motor do processo histórico é o que os hegelianos chamam de negação. Esta negação não coincide com o que nós, no discurso quotidiano, chamamos negação. É antes o que alguns marxistas chamaram uma negação determinada ou mesmo, para elaborar ainda mais, sobredeterminada. É uma negação que não se pode construir através daquilo a que costumamos chamar lógica. Quando nos pedem, no discurso do dia-a-dia, para negar a afirmação, "Esta mesa é cinzenta", nós respondemos: "Esta mesa não é cinzenta". Todos nós sabemos como negar uma afirmação que nos é dada no discurso comum que todos partilhamos. Mas negar uma afirmação no sistema hegeliano, ou em qualquer sistema hegelianizado, é algo que apenas os hegelianos sabem como fazer. Só eles sabem que a negação de "burguesia" é "proletariado", ou algo do género, enquanto o resto de nós acredita que a negação da "burguesia" (o seu complemento) é "não-burguesa".
Em qualquer caso, a ideia hegeliana de que o processo histórico depende desta dinâmica interna e necessária de negação, que é (vista antropocentricamente) o lado mau do processo e também o motor do processo, leva-nos decididamente a preocuparmo-nos pouco com os problemas de desenvolvimento e a nos ocuparmos quase exclusivamente com o que é visto como a direção fundamental do desenvolvimento. Marx propôs uma versão de senso comum desta especulação hegeliana, tal como na sua exposição clássica da função da negação, do "lado mau" do progresso histórico, em A Miséria da Filosofia. Mas os resultados são frequentemente tão arbitrários como os de Hegel. Assim, por exemplo, o comunismo seria a negação da negação do comunismo primitivo ou, a um nível ainda mais estéril e ridículo, o grão de cevada que cresce num talo, seria, de acordo com o exemplo de Engels, a negação da negação do grão de cevada semeado. Este tipo de pensamento imaginativo, muito tradicional em filosofia, é bastante semelhante a outras especulações triviais da tradição, tais como a explicação através das ideias de ação e potencial, ou de substância e forma. São codificações mais ou menos poéticos da experiência quotidiana comum, mas tomadas como explicações da realidade, eles paralisam o espírito inquisitivo com uma aparência de compreensão que nada mais é do que uma paráfrase do que é já conhecido. No caso da "negação da negação", a inibição do espírito investigativo conduz a um certo fatalismo que aguarda o desenvolvimento necessário dos acontecimentos através, precisamente, do "lado mau": é a negatividade de uma determinada etapa social, o seu lado mau, que permite o progresso. A ideia é apresentada de forma muito clara na seguinte passagem de A Miséria da Filosofia:
“É o lado mau que dá à luz o movimento, que faz história provocando a luta. Se durante a era feudal, os economistas, entusiasmados pela virtude cavalheiresca, pela bela harmonia entre direitos e deveres, pela vida patriarcal das cidades, pela floração de indústrias domésticas no campo, pelo desenvolvimento da indústria organizada em corporações, grémios e irmandades, em suma, por tudo o que constituía o lado belo do feudalismo, se tivessem considerado o problema de erradicar tudo aquilo que lança sombras sobre este quadro - a servidão, os privilégios, a anarquia - o que teriam eles conseguido? Teriam destruído todos os elementos que provocavam luta, teriam matado o desenvolvimento incipiente da burguesia, teriam tido o problema absurdo de eliminar a história.”
Esta ideia de progresso incontornável através do "lado mau" é a base filosófica para a tipicamente adolescente e falsamente revolucionária afirmação de que quanto pior forem as coisas hoje, melhor serão para o futuro. E no que diz respeito ao assunto que temos perante nós, paradoxalmente, favorece a aceitação incondicional do que é dado, sendo que é precisamente a manutenção do que existe, particularmente o lado mau, que nos permitirá ultrapassar este estádio. Há muita documentação indicando que o velho Marx não acreditava que fosse esse o caso, mas é certo que o Marx maduro (o Marx ortodoxo, se nos é permitida a piada) pensou de facto assim, pelo menos até escrever o Volume I de O Capital. Pensou assim de uma forma radical, por vezes aproximando-se do que é hoje uma das piores tendências das direitas, a sociobiologia política. Num manuscrito de 1863, escreveu:
“O que é o desenvolvimento da capacidade humana? Embora em primeiro lugar este desenvolvimento seja realizado em detrimento da maioria dos indivíduos humanos e de classes humanas inteiras, o antagonismo quebra-se finalmente e coincide com o desenvolvimento do indivíduo singular; ou seja, o superior desenvolvimento da individualidade é inevitavelmente trazido através de um processo histórico em que os indivíduos são sacrificados. Isto não leva em conta a esterilidade de tais considerações edificantes, sendo que as vantagens para as espécies ganham sempre, no reino humano, tal como nos domínios animal e vegetal, sobre os benefícios para o indivíduo. Os benefícios para a espécie coincidem com os de certos indivíduos e constituem o poder dos privilegiados.”
Existe, no entanto, uma diferença importante entre os darwinistas sociais do passado (os direitistas) ou os sociobiologistas reacionários de hoje, por um lado, e o pensamento de Marx, por outro. A diferença é que Marx acreditava que os seres humanos deviam "abandonar o reino animal", uma proposta absurda de um ponto de vista zoológico, obviamente, mas que tem um significado político. Contudo, a aceitação do modelo de avanço do lado mau é, em todo o caso, pouco coerente com um programa de ecologia política. Se as coisas têm de avançar pelo lado mau, poder-se-ia dizer, deveríamos apenas deixá-las ficar pior. Esta estirpe de pensamento está mais difundida do que se poderia pensar-se, e não apenas entre os marxistas. Mais do que um ecologista académico de autoridade acredita em mais ou menos estas mesmas consequências práticas, embora partindo de diferentes premissas: que se a natureza humana nos levar a destruir o nosso habitat, tanto pior para os humanos, mas tanto melhor para as leis da Natureza. Se um desenvolvimento técnico autodestrutivo se enraíza na natureza da espécie, devemos deixá-lo continuar com o seu fumo, o seu ruído e os seus desperdícios radioativos, porque todos eles são frutos do potencial da espécie. Além disso, os insetos, muitos dos quais podem resistir a doses de radiação demasiado elevadas para os seres humanos, continuarão a viver e a multiplicar-se no planeta. O tom franciscano do raciocínio é estranho, e devemos perguntar-nos se São Francisco de Assis teria estado mesmo disposto a favorecer os insetos em detrimento da sobrevivência da espécie humana.
Estou certo de que esta não é uma explicação completa, mas penso que é provável que a razão da pouca atenção dada às observações de Marx sobre ecologia política tenha muito a ver com o elemento hegeliano da sua filosofia. Qualquer continuação útil da tradição marxista deve começar por abandonar o esquema dialético hegeliano da filosofia da história. O próprio Marx parece ter percebido isto, mais ou menos claramente, depois de meados da década de 1870. Em 1877, por exemplo, escreveu uma carta, agora famosa, a um jornal russo, solicitando que as pessoas deixassem de considerar o seu pensamento como uma filosofia da história. A mesma necessidade estava presente em vários contextos diferentes. Cada um deles precisa de ser estudado.
(*) Manuel Sacristán Luzon nasceu em Madrid em 1925, e morreu em Barcelona (onde vivia desde 1939) em 1985. Foi um professor de filosofia que nunca ocupou um lugar universitário permanente. Nos últimos anos do regime franquista foi expulso da universidade, devido à sua militância no Partido Comunista de Espanha, ao qual se tinha juntado em meados da década de 1950. Em 1954-56, como um jovem filósofo promissor, passou dois anos em Münster, na Alemanha, tornando-se marxista e também o lógico matemático mais conhecido em Espanha. A sua combinação de marxismo com uma filosofia da ciência derivada do Círculo de Viena é melhor ilustrada pela sua famosa introdução à edição espanhola de 1964 do Anti-Dühring, de Engels. Ajudado pela sua visão do marxismo, não como uma ciência, mas como um quadro para articular os resultados de diferentes ciências (para além de ser também uma visão particular da sociedade), Sacristán foi capaz de introduzir considerações ecológicas no seu pensamento desde muito cedo. Em 1977, deixou o Partido Comunista, que se tinha acomodado à Direita, durante a transição política “democrática”. Em 1978 ingressou no Comité Antinuclear de Catalunha e tomou parte no movimento eco-pacifista e contra a NATO. Foi criador e animador de muitas publicações, com destaque para a revista marxista Mientras Tanto. O presente ensaio, intitulado “Algunos atisbos politico-ecológicos en Marx” foi originalmente uma palestra dada em L'Hositalet de Llobregat, no outono de 1983. Seria depois publicada como artigo no n.º 21 na revista Mientras Tanto (Barcelona, dezembro de 1984). A tradução é de Ângelo Novo, a partir de uma versão em língua inglesa de Ruth MacKay, publicada na revista norte-americana Capitalism Nature Socialism, Volume 3, N.º 1 (1992).
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