Como fazer explodir o realismo capitalista fóssil

 

 

 

Franek Korbański (*)

 

 

Há esta pequena parábola didática do falecido David Foster Wallace: um peixe velho, encontrando dois jovens a nadar, saúda-os: "Bom dia rapazes, como está a água?" Passado pouco tempo, enquanto nadam, um dos peixes mais novos olha para o outro e diz: "Que raio é isso da água?" (1)

 

Embora seja possível ler isto como uma parábola sobre inexperiência e ignorância juvenil, impõe-se uma leitura alternativa: uma leitura que ilumina a dificuldade de ver os pressupostos implícitos que estruturam as nossas experiências quotidianas e, como tal, as contingências do nosso mundo. A sua omnipresente invisibilidade, não só os torna difíceis de compreender, como esconde, muitas vezes, o próprio facto de existirem em primeiro lugar. A parábola poderia, pois, ser lida como um comentário sobre a ideologia.

 

O aquecimento global antropogénico e a consequente mudança climática foram recentemente declarados um facto "inequívoco" pelos igualmente inequívocos, cautelosos e reservados investigadores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (2). Não que precisássemos realmente dessa confirmação: a lista de eventos climáticos extremos - um testemunho muito mais tangível desse facto - parece não ter fim.

 

Não há muito tempo atrás, o Relatório da ONU sobre Excesso de Emissões para 2021 declarou que estamos numa rota estável para um aumento de 2,7 graus Celsius no ano 2100 (3), enquanto o jornal The Guardian concluiu 2021 com a publicação de uma revisão sombria sobre "meteorologia devastadora e descobertas alarmantes" (4). Algures entre as linhas, podemos discernir a voz do falecido Mark Fisher: "A catástrofe não está à nossa espera no caminho, nem aconteceu já. Estamos a vivê-la de passagem".

 

O que torna a parábola de Foster Wallace pertinente para nós, vivendo no aqui e agora do aquecimento global antropogénico, é que podemos imputar a catástrofe climática a um culpado muito particular: o capitalismo. Esta convicção, partilhada por um leque de estudiosos extremamente diverso, mas, nesse ponto, unânime - poderíamos chamar-lhe pensamento marxista ambientalmente preocupado - não é, contudo, por si só, suficiente. A filósofa e cientista política Nancy Fraser captou bem este ponto num ensaio de 2014 para a New Left Review: "Estamos a viver uma crise capitalista de grande gravidade sem uma teoria crítica que a possa esclarecer adequadamente", faltando também "conceções do capitalismo e da crise capitalista que sejam adequadas ao nosso tempo" (5).

 

Tais conceções, levando a sério o desafio da nossa crise atual, podem ser encontradas no corpus de dois pensadores situados em dois rincões diferentes da esquerda: o filósofo e crítico cultural Mark Fisher, famoso por cunhar o conceito de realismo capitalista, e o ativista climático e ecologista humano Andreas Malm, talvez mais conhecido pela sua noção de capital fóssil. Há muito a ganhar, no campo das políticas ambientais emancipatórias, lendo estas duas obras em conjunto – para além do mais, ferramentas que poderiam clarificar as águas ideológicas muitas vezes lamacentas da nossa situação atual.

 

Tanto Malm como Fisher levam a peito o apelo de Fraser para fornecer uma análise adequada para o nosso tempo, cada um deles elaborando uma crítica diferente, ainda que convergentes, para a crise contemporânea. E a ambos se aplica o que o crítico cultural Macon Holt observou sobre Fisher, nomeadamente a convicção de que "o atual arranjo hegemónico do capitalismo neoliberal é insuficiente para a realização da emancipação humana".

 

Podemos ler Fisher como articulando em mais detalhe - através da noção de realismo capitalista - certos elementos da crítica ambiental implacável de Malm, de um momento histórico em que "o capitalismo ocupa sem problemas os horizontes do pensável". E podemos ler Malm como um complemento para o surpreendentemente escasso envolvimento de Fisher com os aspetos ambientais e climáticos da crise atual. Fisher reconhece "a urgência de lidar com o desastre ambiental", mas fá-lo de passagem, deixando-o, em grande parte, por discutir. Enquanto tais, o desastre climático e o aquecimento global antropogénico estão conspicuamente ausentes da sua obra.

 

Fisher constrói a sua noção de realismo capitalista sobre os ombros do crítico literário marxista Frederic Jameson, nomeadamente a sua observação de que "é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo". Malm, também, regressa continuamente a esta linha nas suas obras. Para a presente investigação, esta frase de Jameson fornece um ponto de partida adequado para o pensamento de Fisher e Malm.

 

O que se segue é uma tentativa de esboçar um mapa daquilo que considero serem os principais pontos de intersecção entre estes dois investigadores, trazendo à tona os muitos momentos capital-realistas implícitos da crítica ecológica de Malm e argumentando que esta crítica, por sua vez, pode extrapolar e reforçar a análise de Fisher sobre o realismo capitalista.

 

O inimaginável fim do capitalismo

 

Ao tentarmos compreender o significado de um mundo 2,7 graus Celsius mais quente do que o seu nível pré-industrial, o comentário de Jameson assume um novo significado, mais urgente. Pelo que sabemos, isto significaria literalmente o fim do mundo tal como o conhecemos. E, no entanto, imaginar o fim do capitalismo - o principal motor sistémico do aquecimento global - para a maioria de nós parece ainda impossível.

 

Para Fisher, a citação de Jameson "capta precisamente" a ideia do realismo capitalista: "a sensação generalizada de que não só o capitalismo é o único sistema político e económico viável, mas também que, agora, é impossível até mesmo imaginar uma alternativa coerente a ele". Se a frase de Jameson se tornou quase um ponto de referência à esquerda, é porque capta sucintamente um conjunto de temas proeminentes na crítica anticapitalista - sendo o principal deles a noção de naturalização, um mecanismo ideológico que distorce o contingente para que este pareça necessário, transformando a história em natureza.

 

 O relato da historiadora e teórica política Ellen Meiksins Wood sobre a origem do capitalismo pode ajudar a iluminar este ponto. Na sua obra clássica The Origin of Capitalism: A Longer View (A Origem do Capitalismo: Uma Visão mais Longa), ela discute como os discursos dominantes e pró-mercado de explicação da emergência do capitalismo se baseiam na sua naturalização como uma teleologia universal - como uma tendência trans-histórica e inevitável, inerente à natureza humana. Em última análise, ela traça estas variações sobre aquilo a que chama "o modelo de comercialização", de volta à formulação original da teoria do mercado livre de Adam Smith.

 

De facto, poderíamos ser tentados a ler a própria abertura do seu livro como uma definição do realismo capitalista avant la lettre: "o 'colapso do comunismo' nos finais dos anos 1980 e 1990 parecia confirmar aquilo que muitas pessoas têm querido acreditar: que o capitalismo é a condição natural da humanidade, que está em conformidade com as leis da natureza e as inclinações humanas básicas, e que qualquer desvio a essas leis e inclinações só pode acabar em desgosto".

 

O epigrama de Jameson também encontrou o seu caminho em (pelo menos) três das obras de Malm: o seu relato do capital fóssil, precisamente sob o título Fossil Capital (2016), a sua obra polémica sobre a teoria climática The Progress of This Storm (A Progressão desta Tempestade) (2020) e o seu mais recente trabalho antipacifista sobre o ativismo ambiental How to Blow Up a Pipeline (Como Fazer Explodir um Oleoduto) (2021). Além disso, após uma inspeção mais atenta, parece que uma crítica ao que Fisher concebe como realismo capitalista é uma característica bastante proeminente, senão mesmo explícita, do pensamento de Malm. Ao longo do seu trabalho, ele preocupa-se com a crítica de "confundir capitalistas com humanos" - por outras palavras, com a tendência para naturalizar certos traços do capitalismo como sendo definidores do humano.

 

Antes de tentarmos compreender a presença latente do realismo capitalista no pensamento de Malm, no entanto, vamos primeiro examinar a própria noção de realismo capitalista em si.

 

Realismo capitalista: Um diagnóstico de impotência

 

O realismo capitalista pode ser compreendido através das lentes das suas respetivas partes - o capitalismo e o realismo. Embora possa ser definido de várias formas, o capitalismo, na tradição marxista, é geralmente definido como uma forma específica de relações de propriedade que é caracterizada pelos seguintes traços: os meios de produção são privados; o objetivo da produção é o lucro; as mercadorias produzidas são vendidas no mercado; e a produção é organizada através do trabalho assalariado.

 

Se, neste contexto, olharmos para as definições de capitalismo com que Fisher opera, rapidamente ficamos com a sensação de que o seu projeto é deveras pouco ortodoxo. Ele explica que o capitalismo "é muito semelhante à «Coisa» do filme de John Carpenter com o mesmo nome: uma entidade monstruosa, infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver qualquer coisa com que entre em contacto. Capital, dizem Gilles Deleuze e Félix Guattari, é uma ‘pintura miscelânea de tudo o que alguma vez já existiu’”.

 

Talvez uma forma de o dizer seja afirmar que, em vez de se concentrar no "o quê?" do capitalismo, Fisher prefere abordar o seu "como?". A análise do realismo capitalista não se debruça sobre os sistemas de relações de propriedade como tais, mas sim sobre as consequências culturais e sociopolíticas específicas que uma expressão histórica particular do capitalismo engendra.

 

O que Fisher parece estar a enfatizar através da sua escolha idiossincrática das definições do capitalismo é a finalidade ostensiva com a qual o capitalismo se quer camuflar. É aqui que tocamos na segunda parte constitutiva da sua ideia, o realismo. O realismo capitalista é um fenómeno histórico que toma Fukuyama, Reagan e Thatcher como pontos de partida. O “Fim da História", tanto como o "Não há alternativa" do momento neoliberal são, de forma reveladora, não tanto proposições como declarações.

 

Escusado será dizer que a atual crise climática mostra muito bem como tais proclamações foram prematuras. No entanto - e esse é o ponto central que Fisher parece estar a fazer - enquanto operarmos dentro do paradigma do realismo capitalista, as ligações entre diferentes facetas da crise permanecem obscuras, e quando estas se tornam explícitas, não atuamos em conformidade. O realismo capitalista é um diagnóstico desta impotência: Fisher compara-o a "uma atmosfera omnipresente, condicionando não só a produção da cultura mas também a regulação do trabalho e da educação, agindo como uma espécie de barreira invisível que restringe o pensamento e a ação". Vamos redescobrir muitas destas preocupações em Malm.

 

Há ainda um outro sentido em que uma definição mais formal do capitalismo é de menor urgência para Fisher. Esta abordagem ecoa, conscientemente ou não, a importância secundária que a definição do capitalismo tem para o próprio funcionamento do realismo capitalista e para a sua própria ideologia: "O papel da ideologia capitalista não é o de fazer um argumento explícito para algo da forma como a propaganda o faz. [...] É impossível conceber o fascismo ou estalinismo sem propaganda - mas o capitalismo pode proceder perfeitamente bem, de certa forma melhor, sem que ninguém o defenda". Não que tal caso não pudesse ser defendido: uma forma que Fisher o caracteriza é como "uma 'ontologia empresarial' na qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade, incluindo os cuidados de saúde e a educação, deve ser gerido como um negócio".

 

A questão é antes que, sob realismo capitalista, ninguém precisa de recitar a partir de um Pequeno Livro Vermelho do capitalismo. O realismo capitalista coloniza a forma como pensamos sobre o mundo, precisamente, disfarçando a própria noção de capitalismo - quanto menos conspícua, melhor. Assim, o capitalismo não funciona como algo explícito, mas sim precisamente como algo indefinido. Ou, dito de outra forma, a sua superação depende tanto de o expor como a coisa em ação (mostrando, desde logo que está em ação), como de compreender a forma precisa como funciona (mostrando como funciona). Estes dois momentos, embora relacionados, não são idênticos. A pista essencial parece ser que não estamos sequer conscientes da sua existência - é, recordemo-lo, a água em que obviamente nadamos.

 

Contudo - e esta é uma das contribuições mais valiosas de Fisher para a teorização da política emancipatória - o funcionamento da situação ideológica em que nos encontramos é mais profundo ainda do que isso: o realismo capitalista, segundo Fisher, abraça também um certo tipo de anticapitalismo. Por outras palavras, simplesmente atingir a consciência não é suficiente - embora isso, em si, não seja nada fácil, dados os mecanismos incorporados no capitalismo concebidos para prevenir que aconteça. É precisamente este ponto que se reveste de particular interesse na perspetiva da luta climática: problematizar não só a indiferença - uma atitude demasiado fácil - mas também certas formas de militância intelectual.

 

Baseando-se em Zizek, Fisher observa que a ideologia capitalista "consiste precisamente na sobrevalorização da crença - no sentido de uma atitude subjetiva interior - à custa das crenças que exibimos e exteriorizamos no nosso comportamento". Enquanto acreditarmos (no nosso íntimo) que o capitalismo é mau, somos livres de continuar a participar no intercâmbio capitalista". Fisher partilha a convicção de Zizek de que este mecanismo de repúdio é uma estrutura da qual o capitalismo depende fortemente. Este ponto é tão simples como impressionante - voltaremos a encontra-lo no livro de Malm How to Blow Up a Pipeline.

 

A crítica ambiental de Malm

 

Comecemos, no entanto, por outro livro de Malm, Fossil Capital. Aqui, a sua tomada de posição sobre a citação de Jameson é exposta assim: "A maioria dos debates no terreno tomam-no [ao capitalismo] como um dado adquirido, menos aberto a questionamento do que o ar que respiramos. Tornou-se 'o elefante na sala', em confirmação do epigrama de Fredric Jameson: "É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo".

 

Que Malm cite Jameson não aponta, em si mesmo, para o realismo capitalista, mas a passagem continua: "Já não é fácil imaginar o capitalismo como objeto de investigação histórica, precisamente porque ele é visto como uma condição de vida, mais intemporal do que os próprios fundamentos ecológicos da existência humana, os quais, frágeis e cambaleantes, parecem a pontos de ceder a qualquer momento". Isto não só poderia servir como uma excelente definição do realismo capitalista, como também o liga diretamente à dimensão ecológica, que está em grande parte ausente em Fisher.

 

Aqui, numa construção mental que desafia a razão, o capitalismo torna-se "mais intemporal" do que as próprias "condições ecológicas de existência". Compare-se isto com Meiksins Wood. Embora, como ela assinala, saibamos que o capitalismo "existe há muito pouco tempo, apenas uma minúscula fração da existência da humanidade na Terra", ainda assim tendemos a vê-lo precisamente como uma entidade a-histórica - se é que o vemos de todo. Este é um ponto onde Malm e Fisher convergem - embora seja uma convergência sobre um ponto de puro absurdo. Isto torna-se um argumento para a insustentabilidade da narrativa do realismo capitalista, de acordo com as táticas emancipatórias propostas por Fisher: "O realismo capitalista só pode ser ameaçado se se mostrar de alguma forma incoerente ou insustentável; ou seja, se o ostensivo 'realismo' do capitalismo se revelar ser nada desse género". É aqui que a crítica ambiental caraterística de Malm serve como um poderoso suplemento ao argumento de Fisher.

 

Um outro ponto digno de nota aqui é que, para Meiksins Wood, a tendência naturalizante que ela descreve deriva da ideia de que o capitalismo é a conclusão lógica para o desenvolvimento de certas tendências inerentes à "natureza humana" - de uma suposição de que o capitalismo "existiu, pelo menos em embrião, desde o alvorecer da história, se não no próprio cerne da natureza humana e da racionalidade humana". O que acontece aqui é que estamos a confundir capitalistas com humanos, homo sapiens com homo economicus, ou como Fisher – baseando-se em Alenka Zupančič - o teria dito: o Real por "realidade". As formas de conceptualizar esta operação ideológica são muitas.

 

Visitemos um último elemento do pensamento de Malm, talvez o mais revelador, a favor da tese de que as preocupações do realismo capitalista não estão apenas perifericamente presentes, mas estão, de facto, no centro das preocupações da sua obra: "Mesmo que a análise aqui esboçada esteja globalmente correta, deixaria ainda uma - talvez a - questão fundamental por resolver: porque é que as pessoas não se rebelam? Porque é que o capital fóssil persiste, se não incontestado, pelo menos seguramente acomodado no lugar de condutor?” Neste enigma, acabamos por chegar ao tema em grande parte conspícuo nesta análise até agora: a noção de ideologia. Para Malm, a ideologia é "uma estrutura tão profundamente enraizada na própria materialidade da sociedade burguesa que se torna invisível, inaudível, esmagadoramente eficiente porque não é declarada, sendo antes tomada como certa e evidente".

 

Os paralelos com Fisher são aqui claros. Em "Lecture Three: From Class Consciousness to Group Consciousness" (Lição Três: Da Consciência de Classe à Consciência de Grupo), publicado postumamente como parte do seu livro Postcapitalist Desire (Desejo Pós-Capitalista) (2021), Fisher argumenta que: "O próprio objetivo da ideologia é fechar a possibilidade de que qualquer coisa possa ser diferente. [...] O segundo passo da ideologia é fazer-se desaparecer a si própria. A ideologia não chega e diz: ‘Eu sou ideologia’. A ideologia diz: 'Eu sou natureza, e é assim que as coisas são'. Provavelmente ela não fala, mas mesmo na minha metáfora não tem realmente de dizer nada. Somos nós que temos de pensar em resposta a isso. É assim que as coisas são. Elas não podem ser diferentes".

 

Vejo uma tentação de argumentar que a noção de realismo capitalista é supérflua e poderia ser substituída simplesmente pela noção de ideologia, uma objeção para a qual Fisher se parece inclinar, quando se discute o pós-modernismo, logo nas páginas iniciais do seu livro Capitalist Realism (2013). No entanto, descartar a noção de realismo capitalista com tais fundamentos seria um erro. Em primeiro lugar, o realismo capitalista é uma forma particular de ideologia - é historicamente específico. O realismo capitalista assenta na estrutura ideológica, camuflando-a com as expressões particulares que assume na sua forma neoliberal. A impotência da imaginação, a renegação (“disavowal”), a paralisia apolítica da impossibilidade de algo novo: embora, em última análise, possam ser todas rastreadas até à noção de ideologia, permanecem, antes de mais, características de um regime ideológico historicamente específico - razão pela qual o realismo capitalista não é simplesmente redutível a, ou substituível, pela ideologia enquanto tal.

 

Em segundo lugar, se concordarmos com Althusser em como "o homem [sic] é um animal ideológico por natureza", então segue-se que a ideologia no sentido mais forte é algo que, em última análise, não pode ser transcendido - só podemos mudar a forma específica que ela adota. Deste modo, embora não possamos esperar por um mundo pós-ideológico, um mundo pós-capitalista é certamente concebível. Neste sentido, a crítica da ideologia é uma condição necessária - mas insuficiente - de qualquer projeto emancipatório, e é por isso que Fisher, embora silencioso sobre as questões ambientais, é um aliado importante na luta por elas.

 

O derrotismo do realismo capitalista

 

Se a crítica em Fossil Capital é de natureza mais ampla e sistémica, How to Blow Up A Pipeline assume um carácter mais pessoal. Ao longo do livro, Malm desenvolve uma análise histórica e crítica e uma exposição positiva da sabotagem como uma forma válida de tática ambientalista, de caráter não-pacifista e talvez inevitável. O capítulo mais relevante para a presente discussão, no entanto, é o capítulo conclusivo, intitulado de forma eloquente "Fighting Despair" (“Combatendo o Desespero”). Nesta secção, Malm aborda a posição que transcende todas estas preocupações, à medida que se desloca para o reino da resignação. E, subjacente às vozes dos defensores da aceitação resignada está, mais uma vez, o próprio realismo capitalista.

 

Uma das distinções mais importantes que penetra o pensamento de Malm neste texto é a que separa aqueles que acreditam que a nossa ação coletiva ainda pode evitar a catástrofe climática daqueles que vêm essa convicção como mera "ingenuidade" e "pensamento desejoso" (“wishfull thinking”). O seu foco volta-se para os escritores americanos Roy Scranton, autor de Learning to Die in the Anthropocene (Aprendendo a Morrer no Antropoceno) (2015), e Jonathan Franzen, autor de The End of The End of the Earth (O Fim do Fim da Terra) (2018) e do artigo em The New Yorker intitulado "What if we stop pretending?” (“E se Parássemos de Fingir?”) (6). Malm faz deles os seus alvos, vendo os seus textos como sintomáticos do fatalismo climático a que tanto se opõe.

 

Lendo a crítica de Malm, ficamos com uma forte sensação de que, para ele, Scranton e Franzen não são particularmente importantes por direito próprio - parecem ter pouco a dizer sobre o desastre climático que seja especialmente original ou intelectualmente estimulante. Em vez disso, tornam-se representantes, explicitamente ou não, do sentimento de dúvida e resignação que turva muito da psique coletiva contemporânea. Nesse sentido, quanto mais mundanos forem, melhor. A sua mensagem é bastante clara: "o sobreaquecimento planetário é um facto assente (“done deal”)".

 

"Facto assente". Em proclamações resignadas como esta, ressalta uma noção de falta de alternativas que, como vimos, é uma característica chave do realismo capitalista. Scranton rejeita qualquer ação, um sentimento que é profundamente antipolítico. A demissão, porém, torna-se adicionalmente camuflada numa forma de cinismo muito particular, já que tanto Scranton como Franzen praticamente se gabam dos seus maus hábitos ambientais. Não há melhor ilustração de uma específica "disposição de ironia em relação a si próprio", como Nietzsche lhe chamou - e que foi captada por Fisher no seu Capitalist Realism - que subsequentemente conduz "à disposição ainda mais perigosa do cinismo, na qual o ‘dedilhado cosmopolita’, um espectadorismo distanciado, substitui o envolvimento e o ativismo".

 

Esta estranha discrepância entre a consciência de um problema e a ausência de qualquer ação significativa é, como vimos, um sintoma do realismo capitalista por excelência. No seu ensaio “Gothic Oedipus” ("Édipo Gótico") (7), Fisher diz, em relação à renegação, que é "a convicção de que o que 'realmente importa' é o que somos, e não o que fazemos, e que 'o que somos' é definido por uma 'essência interior'. Em termos da cultura americana contemporânea, isto resulta na ideia 'terapêutica' de que podemos continuar a ser uma 'boa pessoa' independentemente daquilo que fazemos". Na leitura de Fisher, a renegação - que de outra forma poderia ser entendida como uma idiossincrasia puramente pessoal - faz-se assim elevar ao estatuto de uma tendência geral que é ideológica no seu cerne.

 

Por outras palavras - e nisto ele confirma a leitura de Malm sobre a persona Scranton-Franzen como um tipo ideal - tais narrativas são particularmente expressivas das condições paradoxais da vida sob o capitalismo tardio: "A renegação de crenças permite-nos realizar as ações". Só que não são as ações que poderiam desfazer o sistema ou a situação disfuncional. Como tal, esta forma específica de niilismo torna-se sintomática de uma condição mais geral que estamos aqui a tentar detetar e criticar.

 

A discussão de Malm culmina em considerações que demonstram os mecanismos de incapacidade intelectual que caracterizam estruturalmente o impasse de realismo capitalista. Algumas das suas passagens podem ser lidas como um capítulo perdido de Capitalist Realism sobre o desastre climático:

 

"Scranton a certa altura reconhece que [cortar as emissões a zero] poderia ser realizado, se conseguíssemos 'reorientar radicalmente toda a produção económica e social humana, uma tarefa dificilmente imaginável, muito menos exequível'. [...] O desespero sobre o clima está aqui baseado num juízo de extrema improbabilidade, hipostatizado em impossibilidade. O procedimento é antipolítico com todas as letras".

 

No cerne da questão estão os conceitos de imaginação, improbabilidade e impossibilidade - é o bloqueio da primeira que traduz o segundo para o terceiro. O bloqueio em si é o resultado, ao que parece, de uma certa forma de realismo que delineia a esfera das possibilidades que se está pronto a ter em conta. As consequências políticas desta impotência são o que torna uma tal postura extremamente relevante para as questões da política emancipatória. O derrotismo do realismo capitalista, encarnado nos tipos ideais de Scranton e Franzen, perfaz um círculo completo, com Malm a concluir que:

 

“A imaginação é aqui uma faculdade essencial. A crise climática desenrola-se através de uma série de absurdos interligados nela enraizados: não só é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, ou uma intervenção deliberada e em larga escala no sistema climático - aquilo a que chamamos geoengenharia - do que no sistema económico; também é mais fácil, pelo menos para alguns, imaginar a aprendizagem da morte do que a aprendizagem da luta, reconciliarmo-nos com o fim de tudo o que nos é caro do que considerar alguma resistência militante. [...] É mais fácil imaginar o fim do mundo do que eu perder um filet mignon.”

 

Atingir o impossível

 

Para onde podemos ir a partir daqui? Como é que ler Malm e Fisher em conjunto nos ajuda a ultrapassar o impasse tedioso do realismo capitalista? Um tédio que, em grande parte, perpetua a catástrofe atual, empurrando a nossa realidade para cada vez mais próximo da observação de Jameson.

 

O conceito de realismo capitalista de Fisher é um instrumento importante que pode melhorar o repertório teórico do pensamento marxiano preocupado com o ambiente. Através dele, podemos envolver-nos com as noções de naturalização, falta de imaginação, ideologia e renegação, ajudando-nos a vê-las não como contingências involuntárias, mas sim como blocos estruturais interligados de uma construção opressiva. Refratados pelo trabalho ambiental de Malm, estes temas infundem-se com o significado que parecem exigir no nosso mundo em aquecimento - permitindo-lhes revelar um potencial do pensamento de Fisher que vai para além da sua habitual crítica cultural.

 

Há um motivo acrescido para ler Fisher e Malm hoje. Sinto que qualquer que seja a forma particular que assuma, o seu pensamento é sempre um lembrete muito necessário de que, como disse Fisher, "a política emancipatória deve sempre destruir a aparência de uma 'ordem natural', deve revelar como sendo uma mera contingência aquilo que é apresentado como necessário e inevitável, tal como deve fazer com que o que anteriormente era considerado impossível pareça alcançável". Isto, parece-me, será a sua água, e vale bem a pena dar um mergulho nela.

 

 

 

 

 

 

(*) Franek Korbański vive em Copenhaga, onde desde 2016 faz parte de uma livraria independente, gerida por voluntários, a ark books. É também um cofundador da plataforma de discussão de literatura Book Club Adriatic. Estuda Ecologia Humana na Universidade de Lund. Este artigo foi originalmente publicado na revista Reflections on a Revolution - ROAR. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS:

 

(1) David Foster Wallace, ‘This is water’.

 

(2) The Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), “Climate Change 2021: The Physical Science Basis.

 

(3) U. N. Environment Programme, “Emissions Gap Report 2021.

 

(4) Bibi van der Zee, “2021: a year of climate crisis in review”, The Guardian, 31 Dec 2021.

 

(5) Nancy Fraser, “Behind Marx’s hidden abode, New Left Review, N.º 86, Mar/Apr 2014.

 

(6) Jonathan Franzen, “What if We Stopped Pretending?, The New Yorker, september 8, 2019.

 

(7) Mark Fisher, “Gothic Oedipus: Subjectivity and Capitalism in Christopher Nolan’s Batman Begins , Image TXT, N.º 2.2.