Introdução

 

 

A guerra em curso entre a Rússia e a Ucrânia deu início simultâneo a dois processos históricos aparentemente irreversíveis. Por um lado, dar-se-á uma transformação completa da arquitetura de segurança europeia (e não só), com uma inversão de sentido na perceção pública da projeção de força militar, com base numa nova avaliação das suas magnitude e prontidão relativas. Por outro lado, começou a insularização económica, política e cultural do mundo ocidental. Terminou a globalização liberal e ocidentalocêntrica, vítima do medo, da arrogância cega e da cultura do “cancelamento”. O dólar norte-americano vai provavelmente perder o seu estatuto privilegiado de moeda de curso mundial. As metrópoles ocidentais vão deixar de funcionar como abrigo para os capitais oligárquicos de todo o mundo, mesmo os das suas clientelas aparentemente mais fiéis. Como subproduto menor, teremos que a própria Federação Russa se verá obrigada a fazer um corte radical e definitivo com o modelo de desenvolvimento neoliberal e oligárquico com que esteve comprometida nas últimas décadas, aproximando-se mais do figurino estatizante que se tornará padrão no bloco euro-asiático.

 

Nesta hora de grandes perigos, O Comuneiro não esconde, nem por um segundo, que os seus anseios mais profundos são por um triunfo claro das armas da Velha (que nem sempre Santa) Rússia. Por um lado, porque esta está investida de um indiscutível e mesmo tríplice casus belli (ameaças imediatas de agressão irredentista e de guerra biológica, com a nuclear ainda na forja, mas já muito claramente definida). Por outro, porque somos pela tradição contra a “modernidade”, seguindo a lição do nosso amado Pier Paolo Pasolini. Abominamos a dissipação cultural, a depredação ecológica e a destruição antropológica em curso, pela via da chamada “sociedade aberta” (Popper, Soros), à qual se acede, sob mediação mercantil, por uma espécie de euforia da “libertação” libidinal individualista. Aí reside, precisamente, o inimigo número um da humanidade, nesta hora da mais extrema gravidade. Visto de uma forma mais focada e imediatista, degradar o poder imperial dos E. U. A., o grande gestor e garante do sistema de capital fóssil, é uma questão de sobrevivência.

 

É certo que Vladimir Putin começou por errar o alvo clamorosamente, negando o direito à autodeterminação dos ucranianos. Quase deitou tudo a perder com isso. Lenine esteve aqui bem melhor que este seu crítico contemporâneo. Feitas as devidas correções, os acertos da iniciativa bélica russo podem, ainda assim, vir a revelar-se muitíssimo mais importantes. Resumindo: 1) Seria bom que se desiludissem aqueles que, um dia, por cobiça ou presunção, aspiraram ardentemente a aderir ao mundo ocidental (o do privilégio fundado na exploração), com exclusão desdenhosa e agressiva dos outros; 2) Muito melhor ainda do que isso, seria ver o próprio mundo ocidental desmoronar-se por completo, esmagado pela sua pomposa mediocridade e pelo abjeto espetáculo da sua afetação humanitarista. Neste capítulo, tudo se faz ao compasso das habituais manobras da contrainformação anti-russa dos serviços secretos britânicos. Fundadas, embora, em consabidas (nas mais altas esferas) falsidades e manipulações, estas manobras fixam o "cânone" sagrado e indiscutível para o homem de respeito e civilizado. Mesmo desconfiando, é prudente genufletir com expressão grave, sob pena de excomunhão. António Guterres não deixará de ser dos primeiros, muito compungido. A manada branca bem nutrida está agora toda bem encerrada, para sempre, no redil anglo-saxónico. Ainda se toma a si própria por o único mundo que conta, a "comunidade internacional". Que despertar ingrato lhe está reservado!

 

Abrimos este número 34 de O Comuneiro com um relatório sucinto e aterrador, de John Bellamy Foster, sobre quais são as soluções alternativas (no campo da chamada geoengenharia) ao já bem previsível falhanço no cumprimento das metas estabelecidas sobre limitação das emissões de gases com efeito de estufa. De Franek Korbański, publicamos um pequeno e despretensioso ensaio, que se debruça sobre o intrigante facto de nos ser tão mais fácil conceber (e até mesmo aceitar) o fim do mundo do que um ocaso para o capitalismo. Revisitamos novamente Manuel Sacristán, publicando um texto seminal, no seu tempo, para o que viria a ser o resgate ecossocialista do velho Marx.

 

Uma correta avaliação da experiência histórica soviética continua a ser um dos mais prementes e exigentes desafios, para quem não se resigna aos “amanhãs que cantam” da sociedade mercantil. Publicamos um texto de Enzo Traverso que pode lançar algumas pistas de debate interessantes e desassombradas neste campo. As Veias Abertas da América Latina, do saudoso Eduardo Galeano (que ele, infelizmente, viria a renegar parcialmente), é um monumento político-literário perene. Claudio Katz apoia-se nele para fazer um balanço histórico da Teoria da Dependência. Tão importante com esverdear Marx é feminizá-lo. Ambas estas tarefas têm alicerces sólidos na obra dos fundadores do marxismo, mas esses resultados não são de leitura óbvia e inequívoca. Necessitam de um certo trabalho de reconstituição ou até, também, de extrapolação. Giovanna Marcelino faz um ponto da situação, no que respeita ao feminismo.

 

Samora Machel colocou uma vez uma questão que, sob uma aparente ingenuidade, encerra um problema epistemológico profundo. Lorenzo Macagno transporta-nos para esses tempos da construção nacional moçambicana sob o signo socialista. Nancy Lindisfarne e Jonathan Neale, em resenha crítica a um livro recente, muito celebrado, fazem um importante ponto da situação dos saberes antropológicos atuais em apoio da causa socialista. Prabhat Patnaik, doce mestre de uma árida ciência, explica-nos porque os capitalistas minam a própria estabilidade a longo prazo do seu sistema, opondo-se tenazmente à estatização do setor bancário.

 

Agradecemos toda a divulgação possível do conteúdo deste número de O Comuneiro, nomeadamente em listas de correio, portais, blogues ou redes sociais de língua portuguesa. Comentários, críticas, sugestões e propostas de colaboração serão bem-vindos. Agradeceríamos em particular a ajuda voluntária e graciosa de tradutores.

 

 

Os Editores

 

Ângelo Novo

 

Ronaldo Fonseca

 

www.ocomuneiro.com