O imperialismo e a transformação de valores em preços

 

 

Torkil Lauesen e Zak Cope (*)

 

 

Introdução

 

Neste artigo, pretendemos demonstrar que os baixos preços dos bens produzidos no Sul global e a consequente modesta contribuição das suas exportações para o Produto Interno Bruto do Norte escondem a real dependência das economias deste último em relação ao trabalho do Sul, remunerado com baixos salários. Argumentamos que a deslocalização da indústria para o Sul global nas últimas três décadas resultou num aumento maciço do valor transferido para o Norte. Os principais mecanismos para esta transferência são a repatriação de mais-valia através de investimento direto estrangeiro, a troca desigual de produtos que incorporam diferentes quantidades de valor e a extorsão através do serviço da dívida.

 

A incorporação de grandes economias do Sul num sistema mundial capitalista dominado por corporações transnacionais e instituições financeiras globais sediadas no Norte estabeleceu as primeiras como dependências exportadoras socialmente desarticuladas. Os níveis salariais miseravelmente baixos dentro destas economias baseiam-se (1) na pressão imposta pelas suas exportações, que têm de competir por quotas limitadas do mercado de consumo largamente metropolitano; (2) na sangria de valor e de recursos naturais que de outra forma poderiam ser utilizados para construir as forças produtivas da economia nacional; (3) na questão da terra não resolvida, criando um excesso de oferta de trabalho; (4) em governos compradores repressivos, que aceitam a ordem neoliberal, para si benéfica, e, por conseguinte, não podem e não querem conceder aumentos salariais por receio de estimular as reivindicações dos trabalhadores por maior poder político; e (5) fronteiras militarizadas que impedem a circulação de trabalhadores para o Norte global e, consequentemente, uma equalização nas retribuições do trabalho.

 

A globalização imperialista da produção

 

O debate sobre a transferência de valores e a troca desigual não é novo. Atualmente, no entanto, uma proporção cada vez maior dos bens que o mundo consome é produzida no Sul global. A produção não está, como nos anos 1970, limitada a bens industriais primários e simples como petróleo, minerais, café e brinquedos. Pelo contrário, apesar do relativamente baixo "valor acrescentado" de fabrico (sobre o qual falaremos mais abaixo), praticamente todos os tipos de entradas e saídas (“inputs and outputs”) industriais são produzidos no Sul global: aí se incluem produtos químicos, bens metálicos manufaturados, maquinaria e maquinaria elétrica, eletrónica, mobiliário e equipamento de transporte para têxteis, calçado, vestuário, tabaco e combustíveis (1). Mas porquê, e como, aconteceu esta mudança na localização da produção?

 

A mudança na divisão internacional do trabalho é um produto da perene busca do capital por maiores lucros e baseia-se, em primeiro lugar, no enorme crescimento do número de proletários integrados no sistema mundial capitalista e, em segundo lugar, na industrialização substantiva do Sul ao longo das últimas três décadas. Isto foi possível graças à dissolução das economias "socialistas" soviéticas e da Europa de Leste, à abertura da China ao capitalismo global, e à externalização da produção para a Índia, Indonésia, Vietname, Brasil, México e outros países recentemente industrializados. O resultado foi um aumento de, pelo menos, mil milhões de proletários de baixos salários dentro do capitalismo global. Atualmente, mais de 80% dos trabalhadores industriais do mundo estão localizados no Sul global, enquanto que a sua proporção cai constantemente no Norte (ver Gráfico 1). Podemos estar a viver em sociedades pós-industriais no Norte, mas o mundo como um todo é mais industrial do que nunca.

 

Gráfico 1. Força de trabalho industrial global, 1950-2010

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Fontes: John Smith, "Imperialism and the Law of Value", Global Discourse 2, n.º 1 (2011): 20. Os dados de 2010 acerca da força de trabalho industrial foram extrapolados da distribuição setorial de 2008 na 6ª edição dos Indicadores Chave do Mercado de Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (2010); a População Economicamente Ativa (PEA) da base de dados sobre trabalho da OIT, ILOSTAT; a projeção da força de trabalho industrial de "regiões mais desenvolvidas" inclui a estimativa da OIT de declínio induzido por recessão. As categorias da OIT para regiões "Mais" ou "Menos" desenvolvidas correspondem, basicamente, às categorias contemporâneas de economias "Desenvolvidas" e "Em Desenvolvimento," respetivamente.

 

A industrialização do Sul global não foi antecipada pela teoria da dependência dos anos 1960 e 1970. Esta argumentava que o centro do capitalismo deve bloquear qualquer desenvolvimento industrial avançado na assim chamada periferia, para que esta permaneça como fornecedora de matérias-primas, produtos agrícolas tropicais, e produção industrial simples, intensiva em trabalho, que deverá ser trocada por produtos industriais avançados do centro. Poucos analistas haviam previsto uma industrialização do Sul global induzida por comércio e investimento do capital metropolitano.

 

No entanto, a industrialização do Sul veio a fornecer uma solução (temporária) para o mal-estar económico e político do capitalismo na década de 1970, manifestado, por um lado, por uma taxa de lucro decrescente, pela crise do petróleo e pela pressão do movimento laboral do Norte por salários cada vez mais elevados e, por outro lado, pelas lutas de libertação nacional do Sul. No entanto, a industrialização do Sul não foi uma concessão às suas exigências; bem pelo contrário. Em vez de um passo em direção a um mundo mais igualitário, resultou num aprofundamento das relações imperialistas à escala global.

 

Esta nova economia política imperialista assenta em dois alicerces. Primeiro, o desenvolvimento de novas forças produtivas em eletrónica, comunicações, transportes, logística e gestão: computadores, Internet, telemóveis, transporte de contentores, e o desenvolvimento de cadeias de produção globalizadas com regimes de gestão recentemente criados. Segundo, o desenvolvimento do neoliberalismo, com a remoção das barreiras nacionais à circulação de capitais e bens, a privatização das esferas pública e dos bens comuns, o estabelecimento de novas instituições globais tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), as reuniões G (7, 20, etc.), e outras formas de gestão política global, e novas estratégias militares destinadas a conter e fazer recuar a propagação do desenvolvimentismo nacional e socialista.

 

Neste novo regime de acumulação, não são apenas o capital e o comércio de bens acabados que se tornaram transnacionais; a própria produção tornou-se globalizada em cadeias de valor. Os subprocessos da cadeia de produção estão localizados nos locais onde o custo de produção, as infraestruturas e as leis fiscais são ideais para o capital. Um carro ou um computador é produzido utilizando insumos e componentes de centenas de empresas, localizadas em muitos países, e o produto pode ser montado em diferentes partes do mundo.

 

O neoliberalismo trouxe uma nova divisão global do trabalho, na qual o Sul global se tornou "a oficina do mundo". O capitalismo global polariza cada vez mais o mundo em "economias de produção" do Sul e "economias de consumo" do Norte. O principal motor por detrás deste processo é, inquestionavelmente, o baixo nível salarial no Sul. Como tal, a estrutura da economia global atual foi profundamente moldada pela afetação de mão-de-obra aos sectores industriais de acordo com taxas de exploração diferenciadas a nível internacional.

 

A atração das grandes empresas por externalizar a produção ou por investir em projetos Greenfield no Sul é considerável. A diferença nos níveis salariais não é apenas no fator de um para dois, mas muitas vezes de um para dez ou quinze (2). De facto, em 2010, dos três mil milhões de trabalhadores do mundo, aproximadamente 942 milhões foram classificados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como "trabalhadores pobres" (quase um em cada três trabalhadores em todo o mundo vive com menos de 2$US dólares por dia) (3).

 

Segundo o economista do Banco Mundial Branko Milanović (ver Gráfico 2), em 1870 a desigualdade global entre os cidadãos do mundo era consideravelmente menor do que é hoje. Mais espantosamente ainda, por ser predominantemente impulsionada pela classe (ou seja, na conceção não-marxista de Milanović, a quota no rendimento nacional), a desigualdade é hoje em dia gerada quase inteiramente pela localização, contribuindo esta última com 80 por cento da desigualdade global. Assim, escreve ele, "é muito mais importante, globalmente falando, se se tem a sorte de nascer num país rico do que se a classe de rendimento a que se pertence num país rico é alta, média ou baixa" (4). O que não se diz é que a geografia da desigualdade é o produto das estruturas económicas, legais, militares e políticas do colonialismo do passado e do neocolonialismo mais recente. Estes fatores históricos formam a base para a luta de classes que determina aquilo a que Marx chamou o aspeto "histórico e moral" dos níveis salariais.

 

Gráfico 2. Nível e composição da desigualdade global em 1870 e 2000 (Decomposição Gini)

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Fontes: Branko Milanović, The Haves and Have-Nots: A Brief and Idiosyncratic History of Global Inequality (New York: Basic Books, 2011), 112; Francois Bourguignon e Christian Morrison, "The Size Distribution of Income Among World Citizens, 1820–1990", American Economic Review 92, n.º 4 (set. 2002): 724–44; Branko Milanović, Worlds Apart: Measuring International and Global Inequality (Princeton: Princeton University Press, 2005), fig. II.3.

 

O nível baixo dos salários no Sul cria não apenas uma taxa global de lucro maior do que a que se poderia obter doutro modo, como também afeta o preço de bens produzidos no Sul. Na disciplina económica dominante, a formação de preços de mercado para um computador pessoal através da cadeia de produção poderia ser descrita como uma "curva sorridente" para "valor" (sic) adicionado (ver Gráfico 3) (5). O "valor adicionado" – que na teoria dominante é simplesmente o equivalente à nova receita adicionada, medida em termos convencionais de preço – é elevado na primeira parte da cadeia, em pesquisa e desenvolvimento, design e gestão financeira, situados no Norte e pagos generosamente, enquanto que a curva desce, no meio, com a baixa remuneração durante a construção do produto físico. O valor adicionado/preço cresce novamente no fim da curva, com a gestão de marca, marketing e vendas, que ocorrem novamente no Norte global, apesar de os salários para trabalhadores de retalho estarem entre os mais baixos nesses países.

 

Gráfico 3. Salários, valor e formação de preço ao longo da cadeia de produção global

 

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Na lógica da "curva sorridente," a maior parte do valor do produto é adicionada no Norte, enquanto o trabalho no Sul, que fabrica os bens, contribui apenas com uma porção mínima dele. Seguindo esse raciocínio, corporações multinacionais realizam um serviço público ao reduzir o preço dos bens de consumo. Na verdade, contudo, os preços de mercado baixos desses bens ocultam o facto de que trabalhadores têm de viver em condições miseráveis devido à baixa remuneração e condições de trabalho extenuantes na parte Sul das cadeias de produção.

 

Em termos marxistas, por contraste, o valor é a soma do trabalho socialmente necessário, direto e indireto, que foi gasto na produção de uma mercadoria (na forma de trabalho atualmente realizado, ou "trabalho vivo", e capital, ou "trabalho morto", respetivamente). Embora, como veremos, o preço de uma mercadoria divirja regularmente de seu valor, ele é, em última análise, determinado pelo valor. Assim, se alguém desenhasse a curva para o conceito marxista de valor adicionado, numa cadeia de produção de computadores, ela assumiria uma forma aproximadamente oposta à curva sorridente – um certo "sorrisinho amargo" (ver Gráfico 3). Mas se há uma correlação entre valor no sentido marxista e o preço de mercado, como acontece essa transformação de um sorrisinho amargo de valor numa feliz curva sorridente do preço de mercado?

 

A transformação valor-preço

 

Independentemente de outras diferenças entre as várias teorias económicas, elas tendem a concordar que o preço de produção de uma mercadoria é igual ao preço dos seus insumos materiais mais a remuneração daqueles a quem é concedido um direito sobre uma parte do valor da referida produção. Esta segunda parte é subdividida entre a parte que se refere aos salários e a parte que se refere a todos os outros direitos: lucro, renda, juros, etc.

 

Mas qual é a variável independente da economia que determina os preços? Na economia neoclássica, o determinante final é "o mercado", ou seja, as necessidades e preferências subjetivas do consumidor. Estas necessidades e preferências determinam os preços dos bens finais e estes, por sua vez, determinam os custos salariais e os níveis de lucro. Consequentemente, os preços servem o propósito de medir a procura no mercado e surgem através do intercâmbio entre comerciantes competitivos.

 

Por contraste, a teoria do valor marxista situa a determinação dos preços no lado da produção da economia. O custo de produção, ou preço de custo, é o trampolim na transição do valor para o preço de mercado. O preço de custo de um produto consiste nos custos do capital "constante" (matérias-primas, máquinas, edifícios, fábrica fixa, etc.) e do capital "variável" (isto é, salários). Para além do preço de custo, o preço de mercado deve cobrir pelo menos a taxa média de lucro. Isto porque as mercadorias precisam de ser produzidas e reproduzidas continuamente, e se os capitalistas não recuperarem o custo de produção mais um lucro, quando vendem, a (re)produção para. Portanto, na economia marxista, o preço de mercado reflete o custo de (re)produção.

 

Como medimos o custo de produção, ou seja, os insumos necessários para produzir uma mercadoria? Não podemos utilizar os preços em geral para medir os fatores de produção, uma vez que os preços são o que estamos a tentar explicar em primeiro lugar. Uma coisa, porém, é comum a todos os fatores de produção de uma mercadoria: o trabalho humano. Todos os preços de mercado numa economia capitalista estão, em última instância, ligados à extensão do consumo de trabalho. Aquilo a que Marx chamou "trabalho vivo", ou força de trabalho, não é um produto comum. O seu preço - o salário - é determinado, não só pelos custos de reprodução (o seu próprio custo de produção: alimentação, habitação, educação, etc.), mas também pelas relações de poder entre classes e grupos da sociedade, que refletem as lutas políticas. Assim, embora a oferta e a procura possam dar o toque final, o fator básico subjacente ao preço de mercado é o custo da (re)produção, e com ele o preço da força de trabalho.

 

Para Marx, os preços das mercadorias padrão são determinados pelos seus valores. Ao competir com rivais por participações nos lucros, as empresas devem reduzir o tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias, introduzindo as tecnologias mais recentes. A concorrência dentro de um setor leva à formação de preços padrão para mercadorias padrão, enquanto a concorrência entre sectores industriais diferentes resulta na apropriação de uma taxa média de lucro pelos produtores padrão dentro de cada um deles. Acrescentada ao custo de produção, esta taxa média de lucro gera os preços de produção como valores de mercado "modificados" (6).

 

O preço de produção de uma mercadoria específica, contudo, não é o mesmo que o seu valor, embora o preço agregado de todas as mercadorias seja o mesmo que o seu valor agregado. Trabalhadores de diferentes empresas, pagos com os mesmos níveis salariais e trabalhando as mesmas horas todos os dias, criam as mesmas somas de mais-valia, ou seja, a diferença entre o tempo que o trabalhador passa a reproduzir a sua própria força de trabalho e o tempo total em que está empregado. Como tal, poderíamos esperar que empresas mais intensivas em mão-de-obra criassem maior quantidade de mais-valia e, portanto, reclamassem para si as mais altas taxas de lucro. Os movimentos de capital entre empresas e sectores industriais, e as consequentes mudanças na oferta e procura, contudo, asseguram que os níveis de preços acabam por se estabelecer em torno do ponto em que a taxa de lucro é a mesma em todas as indústrias.

 

Como o capital é retirado das indústrias com baixas taxas de lucro e investido naquelas com taxas mais elevadas, a produção (oferta) nas primeiras diminui e os seus preços sobem acima das somas reais de valor e de mais-valia que a indústria específica produz, e inversamente. Assim, capitais com diferentes composições orgânicas (o rácio entre capital constante e variável) acabam por vender mercadorias a preços médios e a mais-valia é distribuída de forma mais ou menos uniforme pelos ramos de produção, de acordo com o capital total - constante e variável - avançado (7). Uma taxa média de lucro é formada pela procura contínua de lucros mais elevados por parte de capitais concorrentes e pela fuga de capitais de e para os sectores industriais que produzem mercadorias com procura baixa ou elevada, respetivamente. Globalmente, quando uma mercadoria se vende por menos do que o seu valor, há uma venda correspondente de outra mercadoria por mais do que o seu valor.

 

É através da sua transformação em preços de mercado que o valor e a mais-valia são distribuídos entre capitalistas, dentro de cada um e entre os diversos setores. A distribuição desigual do valor ocorre devido a composições orgânicas e de valor do capital elevadas ou baixas, às rendas extraídas através de monopólio e monopsónio, à produtividade relativa, e à tendência final para a equalização das taxas de lucro. Entre o capital e o trabalho, ocorre através das respetivas participações - lucros e salários - recebidas em resultado das relações de classe prevalecentes. Crucialmente, essa distribuição desigual ocorre também entre nações, devido às diferenças entre o preço de mercado nacional da capacidade laboral (o salário) e o preço de mercado dos bens que a força de trabalho consome (o pacote salarial).

 

O quadro global

 

Atualmente, os preços de produção são determinados à escala global, na medida em que o capital tem a capacidade de circular transnacionalmente para assegurar o maior lucro no seu investimento. A mobilidade do capital através das fronteiras nacionais e a tendência para uma equalização da taxa de lucro, apesar das taxas de exploração maciçamente divergentes (a relação entre o tempo de trabalho necessário para produzir capacidade laboral e o trabalho concreto despendido), são as condições prévias para a formação de preços globais de produção. Como observou o economista marxista Henryk Grossman:

 

“Com efeito, a formação de preços no mercado mundial é regida pelos mesmos princípios que se aplicam sob um capitalismo conceptualmente isolado. De qualquer modo, este último é apenas um modelo teórico; o mercado mundial, como unidade de economias nacionais específicas, é algo de real e concreto. Hoje em dia, os preços das mais importantes matérias-primas e produtos finais são determinados internacionalmente, no mercado mundial. Já não somos confrontados com um nível nacional de preços, mas sim com um nível determinado no mercado mundial” (8).

 

A acumulação de capital ocorre à escala mundial, na medida em que não existem impedimentos legais ou políticos ao comércio e ao investimento livres. À medida que as relações capitalistas de produção avançam, o valor criado pelo trabalho a nível mundial está ligado ao nível "médio" mundial de desenvolvimento das forças produtivas. De acordo com Nicholas:

 

“Para Marx, assim que um bem se torna parte integrante da reprodução de um sistema económico baseado na troca, o trabalho gasto na sua produção torna-se parte do trabalho necessário para a reprodução de todo o sistema e qualitativamente equivalente a todo o outro trabalho gasto na produção de todos os outros bens que são igualmente parte integrante da reprodução do sistema económico” (9).

 

Isto é válido tanto para as economias nacionais como internacionais. No entanto, o preço da força de trabalho - o salário - difere enormemente a nível global, entre o Norte e o Sul.

 

Num mundo onde o preço de mercado dos bens tende a ser global, enquanto o preço de mercado da capacidade laboral varia devido à luta de classes - tanto histórica como contemporânea - o resultado é uma redistribuição de valor de países com um preço de mercado baixo para a capacidade laboral para países com um preço de mercado elevado para ela. Assim, o imperialismo deve ser explicado no contexto da transformação do valor em preço. Afirmar que isto desloca o conceito de exploração da esfera de produção para a de circulação é, no entanto, desonesto.

 

É o trabalho humano que cria o valor e o trabalho excedente que cria a mais-valia. Contudo, o valor (mais-valia) não é uma propriedade física que o trabalho acrescenta aos bens, como uma espécie de molécula incorporada e armazenada no produto. Pelo contrário, o valor e a transformação do valor em preço de mercado é o resultado das relações sociais entre trabalho e capital e entre capitais diferentes. É a transformação do valor em preço de mercado que assegura que o processo de acumulação continua numa escala alargada. Este circuito expandido de capital envolve a transformação de valor e mais-valia em lucro, e a transferência de valor do Sul para o Norte, em correspondência com os baixos preços pagos por bens produzidos no primeiro pelo segundo. A exploração não ocorre, portanto, num determinado sector de produção ou economia nacional; é o resultado do processo de acumulação de capital global total.

 

Podemos agora passar destas considerações teóricas para um exemplo específico desta dinâmica, nomeadamente, a produção globalizada do omnipresente iPad da Apple.

 

O miolo da maçã

 

Com base na pesquisa detalhada realizada por Kraemer, Linden e Dedrich (10) nas cadeias de produção da Apple, Donald A. Clelland analisou o tamanho e a transferência de valor dentro do sistema mundial através do mecanismo do preço de mercado (11).

 

O iPad é produzido pela Apple, uma empresa sediada nos Estados Unidos da América. Entre meados de 2010 e meados de 2011, a Apple vendeu um pouco mais de 100 milhões de iPads. A Apple é o caso exemplar de uma empresa "fabless" - sem fabricação. A Apple desenvolve, desenha, patenteia e vende computadores e equipamento de comunicações enquanto exterioriza o processo real de fabrico dos bens que vende. Todos os iPads são montados na China. A Apple integrou 748 fornecedores de materiais e componentes na sua cadeia de produção, 82% dos quais baseados na Ásia - 351 dos quais se encontram na China (12).

 

Em cada nó da cadeia de produção, há insumos de materiais aos quais se somam salários, gestão, custos gerais e lucros. O preço total monetizado destes fatores, em todos os nós da cadeia, é igual ao preço de venda. Isto é o que Clelland chama o "valor cintilante" numa cadeia de mercadorias (13).

 

O preço de mercado de um iPad em 2010-2011 foi de US$499 dólares, com o preço de fábrica a ser de US$275 dólares. Do preço de fábrica, apenas US$33 dólares foram para os salários de produção no Sul, enquanto que ao todo US$150 dólares da margem de lucro bruta da Apple foram para os salários elevados de conceção, marketing e administração, bem como para os custos de investigação e desenvolvimento e outras operações sustentados principalmente no Norte global (14). A distribuição deste "valor" em salários e lucros é bem representada pela "curva do sorriso".

 

Contudo, a economia mundial capitalista assume a forma de um icebergue. A parte mais estudada - o "valor cintilante" que aparece acima da superfície - é suportada por uma enorme estrutura subjacente que está fora de vista. Ao contrário do icebergue, a economia-mundo é um sistema dinâmico baseado em fluxos de valor desde a parte inferior até ao topo - do Sul até ao Norte. Estes fluxos incluem drenagens que assumem duas formas: fluxos monetizados visíveis de valor cintilante e fluxos ocultos que carregam "valor escuro" gerado pelo valor não registado da força de trabalho barata, da reprodução da força de trabalho pelo setor informal - não assalariado - e de externalidades ecológicas não compensadas. O termo "valor negro" é inspirado pelo reconhecimento pelos físicos de que a matéria e energia comuns representam apenas 5% do universo conhecido, "matéria negra" e "energia negra" representando o resto. Tal como a energia negra não reconhecida impulsiona a expansão do universo, o "valor negro" é trabalho oculto, não compensado, que impulsiona a expansão do sistema-mundo capitalista (15).

 

Se o iPad fosse montado nos Estados Unidos da América, o custo salarial da produção não seria de US$45 dólares, mas sim de US$442 dólares. E se formos um passo mais a fundo na estrutura de produção do iPad, aos insumos de subcomponentes e de matérias-primas, ficamos a saber que a maioria destas entradas de materiais são também realizadas no Sul, com um custo salarial aproximado de US$35 dólares por iPad. Se esta produção também se realizasse nos Estados Unidos da América, o seu custo salarial seria de aproximadamente US$210 dólares.

 

Os trabalhadores da cadeia de produção do iPad da Apple não recebem menos porque a sua produtividade seja menor do que a dos trabalhadores do Norte. Na realidade, são provavelmente mais produtivos. Os fornecedores da Apple são líderes mundiais que empregam tecnologia de ponta. O seu pessoal de gestão dirige os trabalhadores utilizando métodos tayloristas e semanas de trabalho mais longas, não toleradas legalmente no Norte. Os fornecedores organizam horários para intensificar a produtividade dos trabalhadores, sendo rotineiros os turnos diários de doze horas e a supervisão apertada da velocidade de trabalho. As semanas de trabalho ultrapassam as sessenta horas, porque os trabalhadores são obrigados a fazer horas extraordinárias que excedem as regulamentações legais (16). Assim, não é surpreendente que, em 2011, quando Steve Jobs, então CEO da Apple, foi questionado, num jantar da Casa Branca, pelo Presidente Obama sobre "O que seria necessário para que a Apple trouxesse o seu fabrico para casa?”, tivesse respondido: "Esses empregos não vão voltar" (17).

 

Quando uma mercadoria passou por numerosos nós de uma cadeia global para chegar à porta do consumidor, incorporou não só os insumos de força de trabalho mal remunerada, mas também enormes quantidades de trabalho subremunerado e não remunerado, bem como custos ecológicos. Os capitalistas drenam as mais-valias escondidas das atividades domésticas e do sector informal. É necessária uma longa cadeia de valor negro, em produtores de alimentos e atividades do sector informal, para gerar a capacidade produtiva e a manutenção da sobrevivência de todos os trabalhadores assalariados. Este fluxo de valor negro reduz os custos de reprodução da força de trabalho periférica e, consequentemente, o nível salarial que os capitalistas pagam. Estes setores domésticos e informais não estão fora do capitalismo, mas são componentes intrínsecos das suas cadeias globais de mercadorias.

 

A degradação ecológica, a poluição e o esgotamento, compreendem uma série de externalidades através das quais os fornecedores da Apple extraem valor negro. Cada iPad utiliza quinze quilos de minerais (alguns dos quais são raros e de fornecimento limitado), trezentos litros de água, e suficiente eletricidade baseada em combustíveis fósseis para gerar trinta quilos de dióxido de carbono. Além disso, a produção de um iPad gera 105 quilos de emissões de gases com efeito de estufa (18). Todas estas cargas ecológicas são colocadas sobre os ombros da China e de outros países asiáticos, enquanto que o produto é consumido no Norte. A degradação ecológica é uma externalidade que está embutida no iPad como valor negro. Olhando apenas para os custos da poluição, Clelland estima que a Apple escapa a custos de US$190 dólares por unidade, que teria de pagar nos Estados Unidos da América por externalidades ecológicas (19). O capitalismo está dependente de todas estas formas de valor negro, sendo mesmo impulsionado por elas. Estes fatores nunca aparecem na contabilidade dos custos de produção; eles são "presentes" invisíveis para os capitalistas e para os compradores.

 

Marx pensou que o valor da força de trabalho deve diminuir com o aumento da produtividade do trabalho, e que onde isso não ocorra, a queda tendencial da taxa geral de lucro assim ocasionada deve intensificar-se. Sob o imperialismo e o sistema global de opressão nacional assim estabelecido, porém, o capital monopolista é capaz de garantir preços baixos para os bens de consumo dos seus trabalhadores, produzidos pelo trabalho superexplorado no Sul. A par do barateamento paralelo do capital constante, através da importação de bens intermédios e de matérias-primas de baixo custo, a venda de bens de consumo baratos importados aos trabalhadores (bem pagos) dos países imperialistas barateia o valor da força de trabalho aí existente, aumentando assim o nível da suposta "mais-valia" produzida localmente. Como tal, os trabalhadores do Norte parecem ser mais produtivos, em termos dos lucros que geram. Em termos de "produtividade", contudo, a principal medida de "produtividade" não é "valor acrescentado" por hora de trabalho - isto depende dos preços de venda inflacionados pelo monopólio, de preços de transferência, de trocas desiguais, da intervenção estatal, militar e policial para contrair os custos laborais no estrangeiro - mas os custos laborais por hora em relação aos lucros gerados a nível global.

 

Ao contrário do que afirmam muitos militantes trabalhistas metropolitanos, não são, pois, apenas os capitalistas do Norte que beneficiam materialmente da superexploração da mão-de-obra do Sul, de baixos salários. "No caso do iPad, a maior parte do valor negro expropriado é realizada, não como lucro empresarial, mas como excedente do consumidor sob a forma de bens mais baratos. Consequentemente, o cidadão médio torna-se um beneficiário involuntário deste sistema de exploração, quando utiliza a remuneração de uma hora do seu trabalho para comprar um produto que encarna muito mais horas de trabalho mal remunerado e não remunerado e muitos insumos materiais e ecológicos subavaliados" (20).

 

A perspetiva política

 

A perspetiva política estabelecida pela presente análise é a de que o potencial de mudança revolucionária no século XXI surge a partir do Sul. Ali, centenas de milhões de novos proletários industriais concentrados em fábricas em condições severas estão a receber um salário incrivelmente baixo, a privatização por grosso de terras está a privar milhões de agricultores pobres de terra e rendimento (são então forçados a procurar empregos extenuantes com salários miseráveis), e a diferença entre as condições de vida do Norte e do Sul é evidente para todos, graças à globalização da informação e à exposição mediática (21).

 

Esta contradição deve eventualmente manifestar-se em movimentos anticapitalistas em direção ao socialismo (e para além dele). No Sul global residem as classes com interesse objetivo e capacidade de resistir ao neoliberalismo global. À semelhança da onda de movimentos de libertação nacional anticolonial que irrompeu no Terceiro Mundo, de 1945 a 1975, prevemos a possibilidade de uma nova onda de movimentos anticapitalistas nos próximos anos.

 

Devido à posição central do novo proletariado no Sul, a sua força na economia global é muito maior do que era na onda de libertação nacional que varreu o mundo nos anos 1960 e 1970. No entanto, a realização política dessa força não é, de todo, um dado seguro. As forças subjetivas não estão no seu lugar, nem no Sul nem no Norte. Como tal, a tarefa da esquerda global é enorme. Na década de 1970, milhões de pessoas lutaram e morreram pelo socialismo. Hoje, os que lutam pelo socialismo são comparativamente poucos. O socialismo não é uma "marca" forte. A divisão do globo em Sul e Norte reflete-se numa divisão da classe trabalhadora global, de modo que uma parte desta é dotada de enormes benefícios económicos e políticos, que ajudaram a assegurar a sua lealdade ao status quo imperialista. Esta lealdade é, evidentemente, reforçada pela aceitação, por parte dos consumidores, da propaganda dos monopólios da comunicação social, estatais e empresariais. É um dos problemas mais profundos que as forças socialistas de hoje enfrentam a nível global.

 

Para enfrentar estes problemas, devemos primeiro adotar uma perspetiva global da luta, de modo a corresponder à globalização do capital. Só a partir desta perspetiva global podemos elaborar uma estratégia e táticas locais eficazes. Tentar encontrar soluções lucrativas para a presente crise por meio do protecionismo nacional (seja isso feito na variedade social-democrata, "verde" ou fascista) não é apenas anti-solidariedade, é também uma estratégia perdedora - uma inevitável corrida para o fundo.

 

 

1 de Julho de 2015

 

 

 

 

 

(*) Torkil Lauesen é um escritor e militante revolucionário anti-imperialista dinamarquês. Nos anos 1970-80 foi membro de uma célula comunista clandestina (o Blekingegade Group) que perpetrou uma longa série de assaltos a bancos, arrecadando somas avultadas (milhões de dólares), enviadas depois a vários movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo. Cumpriu seis anos de prisão por isso. A história é contada em Gabriel Kuhn Turning Money into Rebellion: The Unlikely Story of Denmark's Revolutionary Bank Robbers (2014). A justificação teórica dos principais envolvidos pode ler lida no ensaio It is All About Politics. As publicações mais recentes de Torkil em inglês incluem The Global Perspective: Reflections on Imperialism and Resistance, Kersplebedeb, Montreal, 2018 e The Principal Contradiction, Kersplebedeb, Montreal, 2020.

Zak Cope é um pesquisador, ensaísta e editor britânico, autor de Dimensions of Prejudice: Towards a Political Economy of Bigotry, Verlag Peter Lang, 2008; The Wealth of (Some) Nations, Pluto Press, London, 2019 e Divided World Divided Class: Global Political Economy and the Stratification of Labor under Capitalism (Montreal, Kersplebedeb, 2012 e 2015). É ainda co-editor, juntamente com Immanuel Ness, do Journal of Labor and Society e da Palgrave Encyclopedia of Imperialism and Anti-Imperialism.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Monthly Review, Vol. 67, N.º 3 (julho-agosto de 2015). Todos os direitos reservados. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Organização de Desenvolvimento Industrial das Nações Unidas (UNIDO), "Table 8.4. Developing and Developed Countries' Share of Global Manufacturing Value Added by Industry Sector, Selected Years, 1995–2009 (percent)", Industrial Development Report 2011 (New York: ONU, 2011), 146; ver também "Table 8.7. Share of Manufacturing Employment for Developing and Developed Countries, by Industry Sector, Selected Periods Over 1993–2008 (percent)," 151.

 

(2) Zak Cope, Divided World Divided Class: Global Political Economy and the Stratification of Labor under Capitalism, segunda edição (Montréal, Quebec: Kersplebedeb, 2015), 378–82.

 

(3) Benjamin Selwyn, "Twenty-First-Century International Political Economy: A Class-Relational Perspective", European Journal of International Relations (December 3, 2014): 1–25.

 

(4) Branko Milanović, The Haves and Have-Nots: A Brief and Idiosyncratic History of Global Inequality (New York: Basic Books, 2011), 113.

 

(5) A curva sorridente foi proposta inicialmente por Stan Shih, fundador da multinacional taiwanesa Acer, por volta de 1992. De acordo com a observação de Shih, na indústria de computadores pessoais, os dois extremos da cadeia de valor reclamam uma maior quantidade de valor adicionado ao produto do que o meio dela. Se esse fenómeno for apresentado num gráfico com um eixo-Y para valor adicionado e um eixo-X para cadeia de valor (estádio da produção), a curva resultante esboça um sorriso.

 

(6) Howard Nicholas, Marx's Theory of Price and Its Modern Rivals (New York: Palgrave Macmillan, 2011), 30, 39-40.

 

(7) Marx refere-se de várias maneiras à composição técnica do capital, o valor, ou preço, composição do capital, e à composição orgânica do capital. Ele escreve: "Chamo à composição do valor do capital, na medida em que [ênfase acrescentada] é determinada pela sua composição técnica e reflete as mudanças desta última, a composição orgânica do capital". No entanto, como escreveu Paul Zarembka, o qualificador é significativo, uma vez que o valor da força de trabalho (capital variável) "pode mudar sem qualquer mudança na composição técnica, em circunstâncias em que os próprios trabalhadores podem receber mais ou menos, enquanto produzem com a mesma tecnologia". Ver Paul Zarembka, "Materialized Composition of Capital and its Stability in the United States: Findings Stimulated by Paitaridis and Tsoulfidis (2012)", Review of Radical Political Economics 47, n.º 1 (2015): 106-11. Para Marx, à medida que o capital (trabalho morto) se acumula e é cada vez mais empregue, em relação ao trabalho vivo, a composição orgânica do capital aumenta e a taxa de lucro tende a diminuir.

 

(8) Henryk Grossman, The Law of Accumulation and Breakdown of the Capitalist System (London: Pluto Press, 1992; originalmente 1929), 170.

 

(9) Howard Nicholas, "Marx's Theory of International Price and Money; An Interpretation", em Immanuel Ness e Zak Cope, eds., Palgrave Encyclopaedia of Imperialism and Anti-Imperialism (New York: Palgrave Macmillan, 2015).

 

(10) Kenneth L. Kraemer, Greg Linden, e Jason Dedrick, "Capturing Value in the Global Networks: Apple´s iPad and Phone", University of California, july 2011.

 

(11) Donald A. Clelland, "The Core of the Apple: Dark Value and Degrees of Monopoly in the Commodity Chains", Journal of World-Systems Research 20, n.º 1 (2014): 82–111.

 

(12) Ibid, 83.

 

(13) Ibid, 86.

 

(14) Ibid, 88, com números extraídos da análise de dados feita por Kenneth Kraemer, Greg Linden, e Jason Dedrick, em "Capturing Value in Global Networks...", Personal Computing Industry Center, University of California–Irvine, 2011.

 

(15) Clelland, "The Core of the Apple", 85.

 

(16) Ibid., 97.

 

(17) Ibid., 98.

 

(18) Ibid., 102.

 

(19) Ibid., 103.

 

(20) Ibid., 105.

 

(21) Discutindo as conclusões o “Relatório Global sobre Salários” de 2014 da Organização Internacional do Trabalho, Patrick Belser observa: "o crescimento salarial nas economias desenvolvidas é quase nulo, e os salários globais estão a crescer 2 por cento. Se retirarmos a China da equação, o crescimento global dos salários é simplesmente reduzido para metade". Ver Patrick Belser, "Fiscal Redistribution: Yes, but Inequality Starts in the Labor Market: Findings from the ILO Global Wage Report 2014/2015", Global Labor Column, 2014. A este ritmo de crescimento, podemos assumir generosamente que os níveis salariais no Sul global alcançarão os do Norte global, onde são pelo menos dez vezes mais elevados, em média, dentro de cerca de 500 anos.