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Que Marx será lido no século XXI?
Manuel Sacristán (*)
No século XXI Marx continuará a ser lido. Nessa altura, será claro que o desprezo por Marx dos anos 1970 e 1980, nascido do hipermarxismo de 1968, era apenas, como este, mais um deslize da mesma labilidade pequeno-burguesa. Ficará claro, como o é já hoje, que Marx é um clássico. Continuará a ser lido, se algo for ainda lido: se não acontecer primeiro a catástrofe cuja pressentimento está a ser reprimida por tantas pessoas, com a ajuda do angélico Toller ou do sinistro e obeso Kahn. Em todo o caso, nem mesmo a catástrofe viria definitivamente obliterar Marx, pois que algum marxólogo extraterrestre que assistisse ao espetáculo poderia argumentar que o resultado estava previsto na "ruína comum das classes em luta" do Manifesto do Partido Comunista.
Todavia, não é nada fácil prever qual o Marx que será lido no século XXI. Hermann Grimm teve a tarefa muito mais simplificada quando se perguntou qual o Goethe que gostaríamos mais de ler no século XX; ele previu que não seria o de Werther, e menos ainda o da Teoria das Cores, que nem sequer considerou, mas sim o de Fausto. Acertou, claro. A questão não pode ser colocada desta forma para Marx, embora os dois casos tenham semelhanças. No trabalho de Marx há também ciência e outras coisas, como no de Goethe, mas as outras coisas são diferentes e, além disso, estão organizadas de forma diferente. A relação entre poesia e verdade não é a mesma para ambas os autores. As páginas de Marx que podem sobreviver como clássicos oferecem textos de vários tipos: ciência sistemática, história, análise sociológica e política, programa. Por outro lado, nenhum destes textos - talvez com exceção do Manifesto do Partido Comunista e de alguns troços de O Capital - é tão bom, literariamente, a ponto de resistir pela sua própria perfeição.
Dentro de vinte anos, não haverá dificuldade em reconhecer a dimensão e os limites do núcleo formalmente teórico (de "economia pura", como disse Marx, e também de sociologia e história) da obra marxiana; mas a ilusão de dellavolpianos e althusserianos, que fazia da obra de Marx pura teoria, sem qualquer mistura de especulação hegeliana, ter-se-á também dissipado. O período em que Marx se considerou e terá sido menos hegeliano foi entre 1845 e 1855, ou seja, no limiar da sua maturidade como autor, que começa com a recuperação de Hegel. Esta é, precisamente, a circunstância que torna tão complicada e obscura a questão do elemento científico do trabalho de Marx: por um lado, a inspiração hegeliana ignora a natureza da ciência moderna, apesar da magnitude das leituras científicas de Hegel (e apesar dos esforços entusiastas dos hegelianos para convencer e permanecer convencidos do contrário) com a mesma tenacidade com que o Vaticano manteve, até ao pontificado de Pio XII, a reivindicação da cientificidade do geocentrismo hoje (sob a forma de um prémio a quem quer que o justificasse); por outro lado, a inspiração hegeliana permitiu a Marx reconciliar-se com a ideia de teoria (através da de sistema), e ultrapassar o seu programa intelectual anterior de mera crítica da teoria.
Mas a herança especulativa de Marx, que nasceu intelectualmente como filósofo romântico e que levou cerca de vinte anos a desenvolver uma noção clara do que é o trabalho científico no sentido moderno do termo (e que, além disso, começou a praticar esse trabalho sem abandonar a especulação), não é a única razão pela qual o seu trabalho não é pura teoria, apesar de ter um núcleo que o é. Há outra causa mais interessante, que é o projeto intelectual de Marx, o seu ideal de conhecimento, por assim dizer, a ideia que ele faz do seu trabalho.
O conhecimento que Marx procura tem de ser muito abrangente, contendo aquilo a que na nossa academia chamamos economia, sociologia, política e história (a história é, para Marx, o conhecimento mais digno desse nome). Mas, além disso, o ideal do conhecimento marxiano inclui uma projeção não só tecnológica, mas também globalmente social, para a prática. Um produto intelectual com estas duas características não pode ser uma teoria científica positiva no sentido estrito, mas tem de se assemelhar ao conhecimento comum, ou mesmo ao conhecimento artístico, e ser integrado num discurso ético, mais precisamente político. É, sobretudo, conhecimento político. Deixem-me repetir - porque quando se fala de Marx corre-se sempre o risco de açodar colmeias - que isto não exclui a presença central de conteúdos estritamente científico-positivos no trabalho de Marx. Estes são essenciais na sua conceção e diferenciam-no das outras épocas da tradição revolucionária.
Uma palavra tão camp como "revolucionário", que pode ser vista como um respingo inesperado nesta página (especialmente nesta época de apoteose do xerez misturado com gasosa), é a que melhor descreve a personalidade de Marx, bem como o tema central do seu trabalho e da sua prática. Vamos cingir-nos ao seu trabalho, uma vez que nos perguntamos que Marx será mais lido no século XXI.
A coisa mais importante e mais problemática que o "Hegel endireitado" semeou na obra de Marx é o objetivismo das "leis da história", que aparece na sua ideia de revolução social. Sem dúvida é uma má leitura aquela que vê nessa ideia um determinismo fatalista; mas tem já mais justificação aquela que considera não resolvida a tensão, que está no centro da conceção marxista, entre a ação dos fatores objetivos ou objetivados e a do subjetivo, entre a eficiência transformadora que tem o "desenvolvimento das forças produtivas", no seu choque tendencial com as "relações de produção", e a necessidade afirmada do desenvolvimento subjetivamente revolucionário da classe explorada. Para apreciar quão complicada é esta conceção - ou "teoria" - de revolução social, temos de ter em conta que o fator subjetivo já está presente antes de ocorrer, de forma política, entre os fatores objetivos, nas forças produtivas que são a força de trabalho e o conhecimento científico.
É precisamente o desenvolvimento das forças produtivas, muito para além do que Marx poderia ter imaginado, que torna hoje possível colocar a questão de uma forma mais precisa do que nos velhos debates entre "economistas" e "dialéticos" marxistas. Não só o permite, mas infelizmente também o obriga. O desenvolvimento das forças produtivas, nomeadamente o de certas técnicas militares (armas atómicas, biológicas e químicas), mas também, e não menos profundamente, o das técnicas para a vida civil (desde a produção de energia em grande escala, com um forte efeito centralizador, até à engenharia genética), pode ser perfeitamente integrado numa perspetiva política que tende a eternizar a exploração e a opressão, dando mais uma volta à triste roda da história universal.
Tais perspetivas já existem, e algumas foram traduzidas para espanhol, por exemplo, Os próximos dez mil anos, por Adrian Berry. Se combinarmos a perspetiva de Adrian Berry da conquista do cosmos - baseada na energia nuclear, na unificação autoritária da humanidade (previsivelmente através de uma ou várias guerras atómicas para a destruição da U.R.S.S. e a subjugação dos povos não brancos) e na aceitação da devastação e abandono da Terra - com a que é aberta pela "força produtiva", agora já quase existente, que Aldous Huxley fabulou em Admirável Mundo Novo, obtém-se um quadro em que o triunfo do progresso consiste em milhares de milhões de escravos épsilon a trabalhar servilmente na Lua, em regiões de Júpiter e muito mais além, sem que os seus amos (que certamente falarão um inglês simplificado no Hudson Institute) tenham sequer de os chicotear. A "síntese dialética", a emancipadora "negação da negação", esperaria em vão, sentada na Lógica de Hegel, que o movimento da história (já que não o da ideia) realizasse todos os seus desastres prévios supostamente necessários.
Nem tudo o que é real é racional: pelo contrário, quase nada.
Não me proponho discutir agora a bondade da conceção marxista do papel do desenvolvimento das forças produtivas. Em primeiro lugar, porque penso que é teoricamente consistente e empiricamente plausível. Além disso, porque me afastaria da questão colocada. O que interessa para saber como Marx será lido no século XXI é o que ele escreveu sobre a mudança social que mais lhe interessava: a passagem ao socialismo. Ao colocar a questão desta forma, pode parecer que estou a dividir a história em dois reinos - o passado e o presente - com fronteiras muito arbitrárias, como Croce em tempos fez, e precisamente na sua crítica ao marxismo. Mas não é este o caso.
Admitindo que o esquema dinâmico marxista não é determinista - nem para o presente nem para o passado - a novidade de hoje não afeta a questão teórica de qual é o modo de validade do esquema, mas sim a questão política de como se deve agir sobre os dados que satisfazem hoje o esquema, a fim de promover a realização dos valores socialistas. E para responder a essa pergunta temos de ter em conta a peculiaridade e novidade de uma força produtiva recém-nascida no tempo de Marx: a tecnociência contemporânea.
Encontram-se na obra de Marx, especialmente nos manuscritos de 1857-1858 - como salientou Ernest Mandel -, considerações bastante simétricas e completas sobre a influência da ciência da natureza na mudança social moderna. É possível catalogá-las em três grupos: há reflexões visivelmente animadas por uma mistura peculiar do infalibilismo da dialética hegeliana com o otimismo ilustrado do século XVIII, implantado em Marx por seu pai e por seu sogro: estas encontram-se sobretudo desde os já mencionados Grundrisse até ao final dos anos 1870.
Existem outras, em contraste com as anteriores, em que Marx estuda e expõe os efeitos opressores e destrutivos do progresso técnico, não só na classe trabalhadora, mas também na natureza; estas exposições estão dispersas por toda a obra de Marx, mas acham-se principalmente no livro I de O Capital e nos manuscritos do período em que leu mais química e agronomia (preparação do Livro llI de O Capital): podem ser acrescentadas a este grupo algumas reflexões melancólicas e dubitativas dos seus últimos anos, por exemplo, a propósito da dissolução da comunidade aldeã russa ou à penetração do caminho-de-ferro através dos vales dos afluentes do Reno.
Finalmente, há um terceiro registo, caracteristicamente "dialético", que desponta no Manifesto do Partido Comunista (1848) e está totalmente formulado no manuscrito de 1857-1858, numa passagem, bastante citada nestes últimos anos, que descreve a luta entre o progressismo mecanicista e a reação medievalista, afirmando que a luta entre estas duas conceções igualmente parciais só será resolvida com a superação do capitalismo. Também a repetida observação marxiana de que, no capitalismo, toda a força produtiva é, ao mesmo tempo, uma força destrutiva pertence a esta linha "dialética".
Sempre houve leituras de Marx - sobre esta questão crucial da relação entre revolução e progresso - que acentuam, com maior ou menor inconsistência e unilateralismo, o Marx do século XVIII dos momentos ou expressões mais confiantes e progressistas. Esta interpretação dominou na Segunda Internacional e domina na cultura política da sociedade soviética, na medida em que esta última vive com a aspiração de "alcançar e ultrapassar os E.U.A."', de acordo com a palavra de ordem de Khruschev. Se se continuar a avançar no caminho da devastação da Terra, que os futurologistas de direita contemplam com muito mais lucidez e coerência do que os soviéticos, pode-se pensar que os épsilons do século XXI ouvirão no refeitório, ao engolirem os seus comprimidos alimentares, versículos de Marx que exaltam a "produção para o bem da produção" ricardiana.
É pouco provável que as páginas de condenação profética do progresso capitalista alguma vez prevaleçam na leitura da obra de Marx - apesar de serem as melhores, literariamente falando -. Nenhum professor de economia ou sociologia que não seja um pouco estranho gostará de expor textos que se parecem mais com Isaías do que com Durkheim ou Walras. Puro moralismo, como costumam dizer.
Resta-nos a leitura mais fiel ao sistema de Marx e ao seu estilo intelectual, aquela que é guiada pela perspetiva dialética articulada pela primeira vez no manuscrito de 1857-1858, embora antecipada no Manifesto do Partido Comunista: a tensão entre criação e destruição, ambas causadas pelo desenvolvimento capitalista das forças produtivas-destrutivas, bem como a tensão entre as ideologias correspondentes, só podem ser resolvidas com o socialismo. No que diz respeito às sociedades conhecidas, ou na medida em que nega, a tese soa realista e os factos parecem concordar com ela. Mas não dá nem uma única pista sobre o porquê e como estas tensões devem ser ultrapassadas sob o socialismo. Pode-se suspeitar que a lógica hegeliana "endireitada" e transformada em confiança nas "leis da história" e na "racionalidade do real", é a causa desta lacuna. (Só depois da morte de Marx é que EngeIs começou a suspeitar, quando respondeu às preocupações de Kautsky, que talvez Malthus tivesse um pouco de razão: e só então deixou de confiar na dialética das leis históricas e começou a investigar e a argumentar porque é que o problema demográfico, "se surgir", será mais fácil de resolver no socialismo do que no capitalismo).
Que este Marx mais completo - mesmo com a sua importante lacuna - é o que se lerá no século XXI pressupõe que os seus leitores tenham abandonado a sua fé progressista na bondade supostamente necessária de toda a reprodução prolongada, e mesmo da própria passagem do tempo. E o facto de os marxistas do século XXI estarem conscientes da lacuna que apresenta mesmo esta melhor das leituras pressupõe que também hajam abandonado a fé hegeliana na racionalidade do real (vá lá saber-se o que isso significa, seja aqui dito de passagem).
A verdadeiro assunto que está por detrás de tanta leitura é a questão política de saber se a natureza do socialismo é fazer o mesmo que o capitalismo, embora melhor, ou consiste antes em viver outra coisa.
Cidade do México, 6 de fevereiro de 1983
(*) Manuel Sacristán Luzón (1925-1985) foi o mais destacado filósofo marxista do estado espanhol, criador de uma escola de pensamento que perdura ainda com grande vitalidade. Nascido em Madrid, mudou-se com a sua família para Barcelona ainda na adolescência. O ambiente familiar em que cresceu era franquista. Depois de se licenciar em Direito e Filosofia na Universidade de Barcelona, estudou Lógica Matemática e Filosofia da Ciência na Universidade de Münster. Foi por ocasião desta estadia na República Federal da Alemanha (1954-56) que se aproximou do marxismo e do comunismo. Militou no Partido Comunista de Espanha (PCE) e na sua ala catalã, o Partido Socialista Unificado da Catalunha (PSUC), até finais da década de 1970. Ensinou na Universidade de Barcelona, Fundamentos de Filosofia, na sua Facultade de Filosofia e Letras, e Metodologia das Ciências, na sua Facultade de Económicas. Em 1965 foi expulso do ensino universitário por motivos político, só aí regressando após a morte Franco e a “transição”. Foi fundador das revistas Materiales e mientras tanto. Entre as suas obras publicadas em volume destacam-se: Introducción a la lógica y al análisis formal (1964); La formación del marxismo en Gramsci (1967); Sobre el lugar de la filosofía en los estudios superiores (1968); La tarea de Engels en el Anti-Dühring (1968); Lenin y la filosofia (1970); Sobre Marx y marxismo (1983), Papeles de filosofia (1984) e Intervenciones Políticas (1985). Publica-se aqui a versão completa, publicada no n.º 16-17 da revista marxista catalã mientras tanto, em outubro de 1983, de um texto que o jornal El País se permitiu publicar com recortes não autorizados, em 14 de março de 1983. Foi também incluído, postumamente, no volume Manuel Sacristán Pacifismo, ecología y política alternativa, Ed. Icaria, Barcelona, 1987 e está disponível em linha no sítio da revista El Viejo Topo. A tradução é de Ângelo Novo.
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