Introdução

 

 

 

O mundo ocidental está em declive acentuado, que se afigura já irreversível. É uma mutação histórica de alcance extraordinário, que muitos de nós não esperavam ver acontecer em suas vidas. E no entanto, está aí perante nós. Uma era de seiscentos anos de agressão e genocídio, de predação implacável, de infrene exploração, vai enfim chegar ao fim, por entre hipócritas lamúrias, trafulhices gargantuescas, ameaças impotentes, dissídios surdos, arremedos neofascistas e juramentos compungidos de fidelidade eterna aos sagrados princípios demoliberais. O império vai estar estregue a cuidados rotineiros e senescentes, enquanto que Donald J. Trump, impune e impante, espreita um regresso em força, ou, alternativamente, a oportunidade para atear fogo à América profunda, irremissivelmente racista. No velho continente, acentua-se a estagnação e a desorientação estratégica entre as tradicionais potências imperialistas. A pérfida Albion evadiu-se do lar comum, sem tomar rumo certo. O eixo franco-germânico vive entre o medo e a ilusão, o ocasional rasgo visionário e a sórdida mesquinhez de sempre.

 

O naufrágio do mundo ocidental – enquanto projeto e prática de senhorio universal de uma raça eleita - pode ser uma imensa oportunidade para a humanidade, na vigésima quinta hora para a salvaguarda da integridade do seu habitat terrestre. Será o fim da monstruosa teia mundial de coação, extorsão e rentismo parasitário institucionalmente sediada na costa leste norte-americana (o sistema Casa Branca-Pentágono-US$dólar-Wall Street-FMI). Uma tremenda sacudidela no domínio globalizado da oligarquia financeira, das cadeias mercantis de subcontratação, da traficância laboral, da vigilância e controlo total. Povos da Ásia, de África e da América Latina poderão retomar margens acrescidas de soberania política e económica, rasgando vias autónomas de organização e valorização dos seus recursos. E, sim, será possível pensar em superar historicamente o modo de produção capitalista. Em cem flores que desabrochem, cem escolas que rivalizem, no desenvolvimento humano e no enriquecimento da vida coletiva, uma delas poderá achar a combinação ótima, triunfantemente reproduzida, entre os meios produtivos disponíveis e novas relações de produção, paritárias e livres, em equilíbrio metabólico estável com o nosso ambiente natural.

 

O Comuneiro associa-se à reconstrução do pensamento ecológico dos fundadores do marxismo feita pelo ecossocialismo contemporâneo, fazendo questão em divulgar insistentemente ensaios originais nessa linha de pensamento. É o caso do artigo de John Bellamy Foster com que abrimos este número, que relembra um clássico inconcluso e longamente vilificado de Friedrich Engels, que hoje se revela muito mais relevante naquilo em que acertou seminalmente do que naquilo em que seguiu pistas secundárias equivocadas. É o caso, também, do artigo de Kohei Saito, um investigador que tem trabalhado longamente em manuscritos inéditos tardios de Marx, que retraça a origem do seu conceito de rotura metabólica e enfatiza a sua relevância transcendental nos dias de hoje. Curiosamente, Saito adere à opinião, muito corrente no marxismo ocidental, da existência de uma marcada divergência filosófica entre Marx e Engels.

 

Christian Fuchs tem dedicado grandes esforços a mapear detalhadamente a relevância dos conceitos fundamentais de Marx na era contemporânea de hipertrofia da informação. O seu esforço começa por uma teoria materialista da cultura, para o que se apoia em Raymond Williams e prossegue com análises bastante instigantes da economia política da internet. Não está sozinho nesta aventura, mas queixa-se da existência de uma grande incompreensão por parte dos teóricos marxistas mais respeitados e influentes. Neste número de O Comuneiro, Ângelo Novo prossegue a sua viagem pelos caminhos abertos pela revolução de outubro de 1917. Nesta quinta parte da série outubro e nós, são abordados o impulso e a influência que tiveram o pensamento leninista e a organização internacional comunista na luta anticolonial, antirracista e anti-imperialista no século XX, até à viragem contrarrevolucionária dos anos 1980.

 

Da vizinha Espanha se diz que não provém bom vento nem bom casamento. E assim vamos vivendo geminados com ela pelas costas, ignorando-nos mutuamente, atitude que felizmente não se reproduz do outro lado do Atlântico, na América Latina. Existe, no país vizinho, uma rica tradição de pensamento ecossocialista, de que foi pioneiro e impulsionador Manuel Sacristán Luzón (1925-1985). Que não fosse senão para sacudir um pouco a nossa espessa ignorância, vale a pena recordar esta figura, nas palavras de um seu discípulo e por meio de uma das suas últimas intervenções, antes da morte sobrevinda precocemente.

 

O ativismo ambiental enfrenta uma batalha tremenda, na qual as armas não abundam e todas as opções têm que ser consideradas. Andreas Malm tem-se debruçado sobre este problema e, numa entrevista recente, dá-nos conta do estado das suas reflexões. Muitos de nós interrogamo-nos frequentemente pela razão de penarmos em empregos degradados e desvalorizados, ou então, pelo contrário, em empregos completamente inúteis e idiotas, por vezes bem remunerados. David Graeber dedicou o seu último livro (Bullshit Jobs) a esta questão. Michel Husson percorre algumas pistas de dilucidação do problema, com recurso à revisitação de alguns clássicos do pensamento burguês.

 

O imperialismo é o facto mais saliente e definidor de toda a vida política e económica contemporânea, sendo, talvez por isso mesmo, o primeiro a ser obliterado por quem promove ou se conforma com a ordem existente. Luís Eduardo Fernandes dá-nos conta de alguns debates contemporâneos sobre esta questão. Por sua vez, Zhun Xu, recenseando também algumas das mais destacadas reflexões sobre o tema, detém-se particularmente a desvelar um pouco as razões desse jogo de negação e ocultamento a que o conceito tem sido sujeito. Pode a humanidade extinguir-se? Certamente que sim. Leonardo Boff reflete em voz alta sobre algumas implicações ontológicas de um evento catastrófico dessa natureza.

 

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Os Editores

 

Ângelo Novo

 

Ronaldo Fonseca

 

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