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Neoliberalismo de crise e regimes de exceção permanente
Neil Davidson (*)
Resumo
Desde que o sistema mundial surgiu, em meados do século XIX, os estádios do desenvolvimento capitalista foram todos iniciadas por crises económicas. Mas ao contrário das crises de 1873, 1929 ou 1973, a de 2007 não assinalou o fim do estádio neoliberal, mas sim a sua continuação em formas mais extremas. Esta quebra no padrão anterior obriga-nos a periodizar o próprio neoliberalismo e a compreender como o efeito cumulativo das políticas implementadas durante os seus períodos de "vanguarda" e "social" preparou o caminho para o atual período de "crise", restringindo as opções disponíveis pelos representantes políticos e gestores estatais do capital. Ao reorganizar a economia política de forma a que os Estados respondessem às exigências de curto prazo de sectores-chave do capital, em vez de às necessidades do sistema como um todo, o neoliberalismo minou inadvertidamente o processo de acumulação, produzindo "estados de exceção" permanentes como o único meio de conter as crises sociais daí resultantes.
Financiamentos
Esta investigação não recebeu qualquer subvenção específica de qualquer agência de financiamento, nos sectores público, comercial ou sem fins lucrativos.
Introdução
O capitalismo foi consolidado como um sistema global nas décadas de meados do século XIX (Hobsbawm, 1975: cap. 3). Deixando de lado as oscilações regulares entre expansão e queda, constitutivas do ciclo económico, a economia mundial passou por quatro crises sistémicas desde então, respetivamente, com início em 1873, 1929, 1973 e 2007. Escrevendo sobre as primeiras três, Gérard Duménil e Dominique Lévy observam corretamente: "Cada um destes sismos introduziu o estabelecimento de uma nova ordem social e alterou profundamente as relações internacionais". Mas será também o caso que "a crise contemporânea marca o início de um processo de transição semelhante"? (Duménil e Lévy, 2011: 2) Todas as fases anteriores do desenvolvimento capitalista tanto começaram com a crise da fase anterior - que normalmente continuou durante vários anos à medida que o sistema era reestruturado e as condições para uma nova ronda de acumulação eram preparadas - como terminaram com a sua própria crise, exigindo, por sua vez, um novo período de reestruturação. Mas embora as crises possam acabar todas por ter a mesma causa na tendência à queda da taxa de lucro, e tomarem a mesma forma, na sobreprodução de mercadorias, são também sempre crises da forma particular como o capitalismo está organizado nesse momento.
Se 2007 foi de facto a crise da forma atual, neoliberal, de organização capitalista, como afirmam Duménil e Lévy (2011: 33-42), então - na ausência de um movimento operário capaz de resolver a crise no seu próprio interesse - poderíamos ter esperado que seguisse o padrão de 1873, 1929 e 1973, e que iniciasse a transição para uma nova fase de desenvolvimento capitalista. Mas isto é precisamente aquilo que não aconteceu. “A crise é um processo”, escreve Alex Law, "não é uma condição fixa". Consequentemente, as crises têm limites cronológicos; mas, como observa Law, não é assim que elas são entendidas atualmente: “Em vez de um momento de exceção precipitar um ponto de viragem, a crise torna-se uma condição normalizada, semipermanente” (Law, 2015: 13 e 13-29 mais geralmente). Uma razão para isso, quase dez anos após a derrocada de 2007, pode ser que a presente crise se tenha realmente tornado uma "condição normalizada, semipermanente". Em vez de entrarmos numa nova fase de desenvolvimento capitalista, entrámos numa nova fase da existente, a neoliberal. Como escreve Richard Dienst, “o momento da verdade nunca aconteceu”: “Não houve nenhuma revelação transformadora, nenhuma consciencialização coletiva, nenhum realinhamento com a realidade, nenhum Vergangenheitsbewalitgung para a geração boomer”. Na melhor das hipóteses, tem havido “um ajustamento na retórica”: “Pode até haver um novo compromisso dentro da opinião estabelecida: os fundamentalistas do mercado livre já não precisam de reclamar infalibilidade para conseguirem o que querem, enquanto os idealistas e os céticos podem finalmente desistir da ideia de que existe uma qualquer alternativa ao sistema atual" (Dienst, 2011: 12.)
A razão daquilo que Colin Crouch denomina "a estranha não-morte do neoliberalismo" não é difícil de encontrar. Como ele observa, “é necessário partir da aceitação de que as elites políticas e económicas farão tudo o que estiver ao seu alcance para manter o neoliberalismo em geral e a sua forma financeira em particular. Beneficiaram tanto das desigualdades de riqueza e poder que o sistema produziu, em comparação com a experiência de uma forte redistribuição fiscal, sindicatos fortes e regulamentação governamental que constituiu o chamado período social-democrata” (Crouch, 2011: 118-19). Mas o relativo sucesso do neoliberalismo como estratégia de classe dominante ajudou a disfarçar que alguns aspetos deste modo de organização capitalista se têm revelado involuntariamente autodestrutivos. Ross McKibbin escreveu sobre George Osborne (ainda chanceler britânico do Tesouro na altura em que escreveu, em Março de 2016): “Ele deseja servir os interesses dos ricos, mas tem uma conceção muito estreita do que esses interesses podem ser, razão pela qual não existe um plano B” (McKibbin, 2013: 3). Ambos os pontos são certamente verdadeiros, mas "servir os interesses dos ricos" não é o mesmo – ou, pelo menos, nem sempre é o mesmo - que "servir os interesses do capital" e pode, em determinadas circunstâncias, estar em contradição com isso. Na elegia de David Boyle para o fim da vida tradicional da classe média, ele cita Paul Woolley, antigo corretor da bolsa, académico e crítico feroz da Hipótese do Mercado Eficiente:
“Esta é a morte da prosperidade... Penso que o capitalismo está a ser conduzido sobre um precipício, e o engraçado é que as pessoas que o estão a conduzir são supostas a ser os guardiães do capital, e têm o livro de instruções errado. ... Todas as ferramentas que estão a utilizar são baseadas numa teoria de contrafação. Estão a fazer o exato oposto do que deveriam estar a fazer” (Boyle, 2013: 144-5).
Se isso assim é, então fazer simplesmente o que os capitalistas querem muito improvavelmente produzirá resultados benéficos, embora possa ajudar a aumentar a riqueza dos membros individuais da sua classe. A questão então é: porque é que os Estados continuaram a agir tão diretamente em nome destas "elites", se as suas exigências são prejudiciais para o sistema como um todo?
A resposta que vou dar aqui é que o neoliberalismo tem sido, de certa forma, demasiado bem-sucedido para a classe dominante, na medida em que enfraqueceu a capacidade dos Estados capitalistas de agirem no interesse do seu capital nacional como um todo. Originalmente improvisado como meio de resolver a última grande crise capitalista, o neoliberalismo não tem outra resposta para o regresso da crise - ou pelo menos nenhuma resposta aceitável para os presidentes e acionistas que enriqueceu - a não ser continuar com as estratégias que nos trouxeram a este ponto em primeiro lugar. Se aquilo a que chamo neoliberalismo de vanguarda estabeleceu esta fase de desenvolvimento capitalista, e o neoliberalismo social consolidou-a de seguida, o atual período de neoliberalismo de crise é principalmente defensivo, uma tentativa de preservar a ordem agora decadente por meio de ataques cada vez mais generalizados às classes subalternas - não como incursões "ocasionais", para permitir cortes orçamentais aqui ou impedir a ação industrial acolá, mas como aspetos permanentes do regime político.
E devemos ser claros em como é com "regimes" que estamos aqui preocupados, em vez de "Estados". Estes últimos precisam de desempenhar certas funções centrais para o capital através de todas as fases do seu desenvolvimento: não existem "Estados neoliberais", mas existem "regimes neoliberais", como explicam Paul Du Gay e Alan Scott:
“Ao tomar o chamado Estado keynesiano como modelo de base, tanto a teoria do estado neomarxista como algumas abordagens essencialmente weberianas... incorporaram aspetos não essenciais das atividades do Estado na sua identidade ou definição. Assim, a transferência ou externalização dessas atividades é lida como prova de um declínio absoluto ou de uma mudança na natureza do próprio Estado. ... A distinção Estado/regime encoraja-nos a interpretar os desenvolvimentos recentes e contemporâneos de forma diferente. Em relação ao primeiro, em vez de lermos as mudanças políticas dos últimos trinta anos, aproximadamente, como uma transformação do "Estado", interpretamo-las como ajustamentos às mudanças no ambiente em que os Estados tiveram de operar, e em particular no regime dominante, no sentido de uma coligação de grupos sociais e confluência de ideias (mesmo o termo "ambiente" aqui é algo enganador, uma vez que estas mudanças têm sido frequentemente conduzidas pelo próprio Estado, ou subprodutos da ação estatal) (Du Gay e Scott, 2010).
No que se segue, estou principalmente preocupado com a experiência da Grã-Bretanha e, em menor medida, dos E.U.A., por duas razões. Estes foram os primeiros Estados-nação em que o neoliberalismo foi imposto em condições democráticas (ou seja, ao contrário do Chile ou da China) e onde, em muitos aspetos, ele foi mais longe. Em particular, os componentes da ordem neoliberal foram reunidos, pela primeira vez, num pacote coerente na Grã-Bretanha, tanto na forma neoliberal de vanguarda, durante os governos de Margaret Thatcher, como na forma neoliberal social, durante os de Tony Blair. A decisão de Perry Anderson de omitir a Grã-Bretanha, "cuja história desde a queda de Thatcher tem sido de pouca importância", do seu estudo da União Europeia é, portanto, incompreensível, uma vez que a variante de Blair sobre o regime neoliberal tem sido muito mais insidiosamente influente do que a de Thatcher (Anderson, 2009: xii-xiii). A outra razão pela qual qualquer visão geral da experiência neoliberal tem de se centrar nas duas metrópoles gémeas que constituem o seu núcleo central é que a compreensão do neoliberalismo, tal como a compreensão de qualquer fenómeno social significativo, pode ser melhor alcançada concentrando-nos nas suas formas mais desenvolvidas: “A anatomia humana contém uma chave para a anatomia do símio”, como Marx afirmou (Marx, 1973: 105; ver também Marx, 1976: 90). Estas formas não são necessariamente as mais típicas do fenómeno, nem, no caso do neoliberalismo, revelam elas necessariamente o padrão futuro do seu desenvolvimento noutras partes do mundo, uma vez que reforçaram, em lugar de minar, a desigualdade inerente ao capitalismo; mas submetê-las a escrutínio pode talvez revelar a essência do que desejamos compreender para, assim, mais eficazmente nos lhe opormos.
Neoliberalismo, fases um e dois: da vanguarda ao neoliberalismo social
Em tempos de crise, o capital requer políticos que se decidam por uma estratégia particular e lutem por ela com absoluta convicção, se necessário contra membros individuais da própria classe capitalista. Durante a década de 1930, Gramsci discutiu este tipo de resposta da classe dominante à crise como "um fenómeno orgânico e normal": “Representa a fusão de toda uma classe social sob uma única liderança, que é apenas ela considerada capaz de resolver um problema primordial da sua existência e de fazer face a um perigo mortal" (Gramsci, 1971: 211). No Outono de 1976, figuras de destaque da direita e do centro do Partido Trabalhista tinham aceite essencialmente o argumento da redução da despesa pública e, na verdade, uma série de outras posições da Nova Direita, incluindo as relativas à imigração e à educação - nalguns casos por conversão intelectual, mas na maioria dos casos por simples expediente temporário, pelo menos nesta fase. Como recorda o jornalista financeiro e neoliberal precoce Samuel Britain:
“Sempre que falei em encontros internacionais ou britânicos sobre "thatcherismo", nos primeiros anos após 1979, o público estava preparado para um ataque ou uma defesa. Mas foram surpreendidos pela alegação de que, por muito que fossem denunciadas pelos trabalhistas na oposição, as características mais marcantes do thatcherismo financeiro foram também prosseguidas pelo último governo trabalhista, de 1976 a 1979, com apenas um modesto recuo no período de aproximação às eleições de 1979” (Brittan, 1983: 239-40).
O resultado, porém, foi tanto dar credibilidade aos argumentos daqueles que defenderam estas soluções por princípio, como expor a própria incapacidade dos trabalhistas para as promover, face à oposição de um movimento sindical ainda poderoso e da sua própria ala esquerda. O Partido Trabalhista Britânico não é, de modo algum, um exemplo típico da social-democracia global, mas as inibições que experimentou ainda durante este período foram típicas: apenas nos casos excecionais da Austrália, após 1983, e da Nova Zelândia, após 1984, é que partidos social-democratas no governo se transformaram em agentes do neoliberalismo antes de este se tornar a forma dominante da organização capitalista contemporânea. Ha-Joon Chang tem, portanto, razão ao referir-se ao período entre 1973 e 1979 como um interregno entre a Idade de Ouro e o neoliberalismo propriamente dito (Chang, 2014: 87-106).
O estabelecimento da hegemonia neoliberal, no final da década de 1970, exigia geralmente um regime político inteiramente novo, que não se conformasse relutantemente com políticas que preferiria ter evitado, mas que estivesse totalmente empenhado na sua implementação. Inicialmente, isto significava os partidos estabelecidos da direita. Num contexto britânico, o papel de Margaret Thatcher foi portanto crucial para o que se seguiu. Os seus governos representavam diretamente o capital, na medida em que se opunham ao movimento da classe trabalhadora ("verticalmente"), mas não podiam representar todas as componentes do capital ("horizontalmente"), porque não havia um acordo geral sobre a estratégia capitalista no final dos anos 1970, desde logo porque alguns capitais individuais podiam sofrer e sofreram efetivamente com aquela que acabou por ser adotada, a partir de 1979. Na transição do capitalismo para o socialismo, a classe trabalhadora requer dois tipos de organização: partidos revolucionários com os quais dirigir a luta para destruir o Estado existente e órgãos de responsabilidade democrática ("conselhos de trabalhadores") com os quais substituí-lo. Por contraste, a transição de uma forma de organização capitalista para uma outra, não exige que a burguesia desenvolva formas institucionais igualmente novas: o Estado já se dedica à defesa do capitalismo em sentido genérico, mas a atividade das várias instituições estatais precisa de ser decisivamente virada numa direção específica e diferente. No caso britânico, a dinâmica por detrás da viragem neoliberal veio de uma minoria dentro do recém-eleito Partido Conservador, que agiu como a vanguarda da classe capitalista britânica. Mesmo já após as eleições gerais seguintes, de 1983, Thatcher ainda podia constatar isso: "Havia ainda uma revolução a fazer, mas muito poucos revolucionários" (Thatcher, 1993: 306).
Regimes vanguardistas de reorientação, 1979-1992
A medida em que o neoliberalismo foi imposto com sucesso, em qualquer país, dependeu da extensão com que, previamente, o poder dos trabalhadores organizados foi reduzido. Onde não o foi, ou o foi insuficientemente, o projeto tendeu a estagnar, pelo menos temporariamente, como parece sugerir uma comparação da Grã-Bretanha com a França nesses anos iniciais. Na maioria dos casos, porém, o ataque ao poder sindical envolveu três estratégias que se sobrepunham cronologicamente.
A primeira consistia em permitir deliberadamente o crescimento do desemprego em massa, mantendo taxas de juro elevadas e recusando-se o fornecimento de ajuda estatal às indústrias sob a forma de subsídios, contratos ou controlo das importações. Entrevistado por Adam Curtis, em 1992, para o seu documentário da BBC Pandora's Box, Sir Adrian Budd, Conselheiro Económico Principal do Tesouro entre 1991 e 1997, disse que estava preocupado com o facto de alguns políticos "nunca acreditaram por um momento que esta fosse a forma correta de fazer baixar a inflação":
“Viram, contudo, que seria uma forma muito, muito boa de aumentar o desemprego, e aumentar o desemprego era uma forma extremamente desejável de reduzir a força das classes trabalhadoras - se quiserem, que o que ali foi engendrado, em termos marxistas, foi uma crise do capitalismo que recriou um exército industrial de reserva e permitiu que os capitalistas obtivessem lucros elevados desde então” (Curtis, 2010).
Os próprios desempregados eram tratados cada vez mais duramente, como beneficiários de prestações de valor cada vez menor e sujeitos de regimes burocráticos de complexidade cada vez maior. O efeito nos locais de trabalho do desemprego crescente foi o de forçar os sindicalistas a aceitarem o que anteriormente teria sido inaceitável, incluindo a renúncia a aumentos salariais ou mesmo concordar com reduções nos níveis salariais existentes ("devoluções") a fim de evitar encerramentos que, em muitos casos, apenas foram adiados. Para os trabalhadores preocupados com a possibilidade do despedimento, não é a "probabilidade" da perda de emprego que influencia o seu comportamento, mas as suas "consequências" - a possibilidade de uma queda catastrófica nos rendimentos. O que pode significar de imediato a incapacidade de pagar dívidas, insolvência e perda da habitação, tudo isto acompanhado pela interação forçada com instituições estatais cuja atitude padrão em relação aos desempregados é a suspeição ou a hostilidade direta (Doogan, 2009: 192).
A segunda estratégia, cujo sucesso garantiu a pouca resistência efetiva aos encerramentos, foi provocar confrontos decisivos entre empregadores apoiados pelo Estado e um ou dois grupos importantes de trabalhadores sindicalizados: trabalhadores dos correios no Canadá (1978), trabalhadores dos automóveis em Itália (1980), controladores de tráfego aéreo nos E.U.A. (1981), trabalhadores têxteis na Índia (1982) e mineiros no Reino Unido (1984-5). O movimento operário já tinha sido enfraquecido organizacional e ideologicamente, tanto por compromissos com a social-democracia no governo (o Contrato Social na Grã-Bretanha, o Pacto de Moncloa em Espanha) como pela incapacidade de conceber qualquer alternativa à mesma na oposição. A imposição de regimes neoliberais exigiu a imposição do tipo de derrota que ainda não tinha ocorrido, mas que o enfraquecimento dos sindicatos tornou possível. Estas derrotas funcionaram então como exemplos para outros sindicatos, num contexto de multiplicação de restrições legais e de crescente intransigência dos empregadores. Em nenhum destes casos foi garantida antecipadamente a vitória dos empregadores e dos governos; em cada uma deles, as vitórias foram alcançadas não só pelo poder evidenciado pelo Estado - por muito formidável que esse fosse - mas também pelo fracasso de outros sindicatos e dos seus órgãos federais, como a AFL-CIO e o TUC, em dar um apoio eficaz aos sindicatos atacados. As classes dirigentes apostaram, com razão, que a maioria dos setores da burocracia sindical daria prioridade à continuação da existência das suas organizações, por muito reduzidas que estas ficassem no seu poder, em vez de oferecer uma solidariedade efetiva aos que estavam a ser atacados. Os ataques frontais generalizados ao movimento operário e às condições de trabalho, característicos da primeira fase do neoliberalismo, cessaram, em grande parte, no final dos anos 1980, principalmente porque o ataque anterior tinha alcançado plenamente o objetivo básico de enfraquecer o movimento operário, instilando na burocracia sindical uma relutância estrutural generalizada por se envolver em ações oficiais de carácter confrontacional. A realização desta condição é talvez o maior serviço que o neoliberalismo conseguiu para o capital. Permitiu a reestruturação das empresas, o encerramento de unidades "improdutivas" e a imposição do "direito dos gestores a gerir" no local de trabalho, o que, por sua vez, assegurou que os custos salariais caíssem e se mantivessem baixos, de modo a que a parte dos lucros destinada ao capital fosse aumentada.
A terceira estratégia consistia em estabelecer novas capacidades produtivas, e por vezes praticamente novas indústrias, em áreas geográficas com níveis de sindicalização baixos ou inexistentes, evitando, tanto quanto possível, que a cultura de filiação se estabelecesse; ultimamente, o processo repetiu-se precisamente em áreas, como Glasgow, onde a sindicalização tinha sido anteriormente mais forte. Uma das razões pelas quais o desemprego permaneceu elevado, embora estivessem a ser criados novos postos de trabalho, era que estes envolviam novas entradas no mercado de trabalho, como as mulheres casadas e os jovens, em lugar dos que tinham perdido os seus empregos. Este foi um processo mais prolongado e molecular do que as duas primeiras estratégias, e um em que os empregadores, e não o Estado, assumiram a liderança, embora este último tenha dado apoio através de empréstimos, subsídios e benefícios fiscais. Se o exemplo clássico desta estratégia foi o movimento do capital produtivo das antigas regiões industriais da cintura da ferrugem (“rustbelt”), no nordeste dos E.U.A., para a cintura do sol (“sunbelt”), no sul, versões semelhantes e menos extremas do mesmo processo tiveram lugar em Inglaterra (do nordeste e noroeste para o “corredor M4”) e na Escócia (de Glasgow para “Silicon Glen” e as Novas Cidades). Estas deslocações geográficas dentro dos mesmos Estados-nação foram mais comuns e mais prejudiciais para a organização sindical do que as ameaças de relocalizações geográficas para locais no sul global, que foram frequentemente proferidas pelos empregadores, mas muito menos frequentemente cumpridas, sobretudo devido às incertezas sobre a capacidade dos Estados em desenvolvimento para fornecerem infraestruturas tecnológicas e pelo custo envolvido no abandono do capital fixo que tais relocalizações implicariam; contudo, como Graham Turner observa, "é a ameaça da relocalização que se revela tão poderosa como a realidade de uma transferência para um local mais barato" (Turner, 2008: 10). Estas ameaças revelaram-se bem sucedidas, pelo menos em parte, devido à forma como setores da burocracia sindical e da esquerda exageraram a extensão da externalização e da deslocalização externa, cujo principal efeito tem sido reduzir ainda mais a confiança dos sindicalizados na resistência. Posteriormente, houve mesmo uma importante mudança da capacidade produtiva para o sul global, sobretudo para a China, mas é importante não datar retroativamente esses desenvolvimentos no período aqui em discussão (Smith, 2015: 101-4).
A investida bem-sucedida dos regimes de vanguarda sobre o movimento laboral permitiu que todos os outros componentes do repertório neoliberal a que Chris Harman chama "anti-reformas" fossem implementados (2008: 118). Algumas destas revelaram-se ou irrelevantes em termos práticos ou de significado puramente temporário e são agora vistas como curiosidades intelectuais. Por exemplo, o monetarismo, ou o controlo governamental da oferta monetária, nunca foi seriamente adotado por nenhum Estado, muito menos pelos E.U.A., que mantiveram um registo impressionante de financiamento deficitário a partir de meados da década de 1960, que na realidade atingiu o seu auge durante as presidências neoliberais de vanguarda de Reagan e Bush pai. E na Grã-Bretanha, como escreve Daniel Rodgers: “O monetarismo acabou por ser um bulldozer que podia arrasar um edifício mas não podia erguer nenhum” (2011: 55). Qualquer catálogo das políticas neoliberais que se revelaram mais duradouras teria de incluir o seguinte, embora a lista não seja de forma alguma exaustiva: privatização de indústrias e serviços públicos estatais, mercados de trabalho flexíveis, externalização de funções não essenciais, desregulamentação dos mercados financeiros e eliminação dos controlos cambiais, abolição de tarifas de proteção e dos subsídios sobre bens essenciais, mercantilização no ponto de utilização de serviços que eram prestados gratuitamente, passagem de uma tributação direta e progressiva para uma tributação indireta e regressiva, uma política monetária dedicada à manutenção de baixos níveis de inflação. Mas o neoliberalismo como um sistema, incorporando todos estes elementos, só surgiu de forma fragmentada, após muitos começos falsos, descobertas acidentais, manobras oportunistas e consequências involuntárias.
A ofensiva neoliberal abriu também a possibilidade de três desenvolvimentos a longo prazo, que foram mantidos ao longo dos períodos seguintes. O primeiro era aumentar a probabilidade de, à medida que o crescimento económico retomasse, tal como aconteceu cada vez mais a partir de 1982, a organização da classe trabalhadora não estaria em condições de tirar partido do aumento das taxas de lucro, pressionando por salários mais elevados e melhores condições: por outras palavras, que qualquer crescimento futuro beneficiaria principalmente o capital, não o trabalho. O segundo desenvolvimento foi que, embora forçar os níveis salariais a permanecer estagnados ou em declínio, em termos reais, fosse um resultado desejado, em certo plano, causava dificuldades noutro, nomeadamente níveis restritos ou decrescentes de despesas de consumo: a resposta, evidentemente, foi criar níveis até então desconhecidos de endividamento da classe trabalhadora. O terceiro desenvolvimento foi ajudar os partidos democráticos, sociais e liberais, a adaptarem-se ao neoliberalismo, assim enfraquecendo a principal fonte de pressão compensatória ao dispor do movimento laboral, assegurando deste modo que as mudanças fiscais e outras favoráveis ao capital não fossem jamais revertidas. “Os neoliberais tinham como objetivo desenvolver um programa de reeducação completo para que todos os partidos alterassem o teor e o sentido da vida política: nada mais, nada menos" (Mirowski, 2009: 431). A ascensão a funções executivas destes partidos do centro-esquerda transformados assinalou o advento do neoliberalismo social.
Regimes sociais de consolidação, 1992-2007
No preciso momento em que o neoliberalismo se consolidou num programa coerente, sofreu uma mutação crucial, tornado possível pela adesão de partidos e movimentos anteriormente reformistas. Num período de 10 anos, entre a queda do Muro de Berlim em 1989 e a Batalha de Seattle em 1999, todos os regimes de vanguarda da reorientação tinham sido substituídos por partidos, ou pelo menos por políticos individuais ostensivamente empenhados num caminho alternativo: Chile (1989), Nova Zelândia (1990), E.U.A. (1992), Grã-Bretanha (1997), e U.R.S.S. (1999). No entanto, como observa Alex Callinicos, "a hegemonia do neoliberalismo é demonstrada precisamente pelo facto de as suas políticas terem sobrevivido à derrota eleitoral dos partidos que o inauguraram" (2001: 7). Por que razão não poderia a ordem neoliberal ter sido simplesmente mantida pelos regimes de vanguarda originais?
A resposta é dada por um dos principais praticantes neoliberais, Alan Greenspan. Escreve ele, sem grande tato, numa das muitas e impressionantes explosões de honestidade que aparecem na sua autobiografia: "A economia global - que deve avançar para que os padrões de vida mundiais continuem a subir e a pobreza a recuar - requer a válvula de segurança do capitalismo: a democracia" (2008: 332). Mas enquanto os cidadãos tiverem democracia, e enquanto tiverem partidos políticos preparados para representar os seus interesses – mesmo que inadequadamente – nos quais se pode votar, há sempre a possibilidade de a ordem neoliberal poder ser minada. Como assegurar que a "democracia" permaneça sempre apenas uma "válvula de segurança"?
As soluções neoliberais para este dilema eram dúplices. A primeira era assegurar que apenas políticos simpatizantes tivessem controlo sobre o Estado, se necessário por meios não democráticos. Aquilo que poderíamos chamar a opção chilena não é, contudo, a preferida, principalmente devido aos muitos inconvenientes que as ditaduras militares - e ainda mais as ditaduras fascistas - tendem a acarretar para as próprias burguesias. A segunda solução foi sugerida precisamente pelo reconhecimento de que, embora a democracia formal fosse desejável, a democracia substantiva era problemática. Em 1939, Friedrich Hayek recomendou que a atividade económica fosse afastada, tanto quanto possível, da responsabilidade dos políticos, dos quais se poderia esperar que a utilizassem para fins eleitorais (ver também a discussão em Streeck, 2014: 97-103). E, pelo menos a este respeito, o neoliberalismo tentou implementar o programa dos seus percursores teóricos. Ellen Meiksins Wood identifica corretamente a atitude atual da classe dirigente dos E.U.A. para com a democracia como consistindo em duas estratégias: “Uma consiste em encontrar processos eleitorais e instituições que, de uma forma ou de outra, contrariem a maioria. A outra - em última análise, a mais importante - é esvaziar a democracia de tanto conteúdo social quanto possível" (2006: 21).
O que era necessário eram "regimes de consolidação", formalmente caracterizados por retórica democrática, social ou liberal, que fossem capazes de incorporar a retórica da solidariedade social, mantendo e mesmo alargando as componentes essenciais do neoliberalismo (Anderson, 2001: 7). Os partidos sociais e liberais democráticos trouxeram um elemento adicional, mais ameliorativo, para o repertório do neoliberalismo, de resto proibitivamente sombrio. Este aparente complemento das leis nuas do mercado foi originalmente comercializado como uma "terceira via" entre a social-democracia tradicional e o neoliberalismo (Giddens, 1998: cap. 1). É descrito com mais precisão por Alex Law e Gerry Mooney como "neoliberalismo social", uma vez que envolve não uma síntese dos dois, mas uma adaptação da primeira ao segundo (2007: 264-5). Como salienta Owen Hatherley, o neoliberalismo social (ele chama-lhe "thatcherism social") não começou com o New Labour, mas sim com o governo conservador pós-Thatcher: "Da intenção declarada de John Major de criar uma «sociedade sem classes» à dedicação do New Labour à luta pela "inclusão social", a retórica dominante tem sido o neoliberalismo com um rosto humano" (2010: xiii-xiv). Isto é verdade, mas também é importante notar que Major não era mais capaz de realizar a mudança para o neoliberalismo social do que Callaghan tinha sido capaz de realizar a mudança anterior para o neoliberalismo de vanguarda: em nenhum dos casos o seu coração estava empenhado na tarefa. A transição do regime de reorientação para o regime de consolidação envolveu, portanto, uma transição daquilo que, nos termos de Gramsci, era uma guerra de manobras para uma guerra de posições: a primeira envolveu um ataque frontal ao movimento operário e o desmantelamento de instituições social-democratas anteriormente incorporadas ("roll-back"); a segunda envolveu um processo mais molecular, envolvendo a progressiva mercantilização de enormes novas áreas da vida social e a criação de novas instituições especificamente construídas sobre princípios neoliberais ("roll-out") (Peck e Tickell, 2002: 40-45; Law, 2009: parágrafos 2.2, 2.4-2.6; Gramsci, 1971: 229-39).
No centro desta mudança estiveram os partidos social-democratas que tradicionalmente tinham visto o seu papel como sendo o de reformar ou mesmo transcender do capitalismo. Como é que eles passaram a desempenhar o papel de apoiantes abertos, sem desculpas, do sistema capitalista, e da forma mais desinibida? No centro deste processo esteve a crise do keynesianismo. Em termos ideológicos, o colapso dos regimes estalinistas não tanto "provou" como confirmou a já amplamente defendida crença de que qualquer forma de economia alternativa ao capitalismo neoliberal era impossível. Em 1989, praticamente ninguém já considerava os regimes estalinistas como um modelo para o socialismo. O verdadeiro choque ideológico, embora de ação mais lenta, tinha sido a anterior revelação de que o Estado de bem-estar, na sua forma pós-1945, era incompatível com o capitalismo, pelo menos quando pretendesse ser algo mais do que um expediente de curto prazo. A sua capitulação representava a fase final da normalização do neoliberalismo: o ponto em que este se tornou aceite não como uma aberração temporária associada ao programa de um determinado partido político, mas o quadro no qual a política seria doravante conduzida. Na Grã-Bretanha, os vanguardistas do Partido Conservador consideraram certamente a transformação do Partido Trabalhista como uma das suas maiores realizações, precisamente porque ela garantiria que as outras não seriam revertidas (Harris, 2009).
É importante compreender quão profunda foi agora a aceitação da ordem neoliberal pelo centro esquerda. Eis, por exemplo, o deputado trabalhista David Lammy, escrevendo em 2011 que os motins que varreram a Inglaterra no Verão desse ano tinham de ser vistos no contexto de "duas revoluções": “A primeira foi social e cultural: o liberalismo social dos anos 1960. A segunda foi económica: o mercado livre, a revolução liberal dos anos 1980. Juntas, fizeram da Grã-Bretanha uma nação mais rica e mais tolerante. Mas vieram com um custo, criando uma cultura híper-individualista em que não nos tratamos bem uns aos outros”. Prevenções à parte, Lammy está evidentemente preocupado em salientar a sua admiração tanto pelo "liberalismo" como pelo "génio criativo de uma economia de mercado": "Mas estas duas revoluções, construídas em torno de noções de liberdade de mercado, vendem a curto à Grã-Bretanha, a menos que sejam moderadas por outras forças" (2011: 17-19). Numa linha semelhante, Ed Howker e Shiv Malik preferem falar de duas “mudanças de paradigma”. A primeira, de acordo com a sua tendência geral para retrodatar os desenvolvimentos ao período pós-guerra, foi "a era do bem-estar pós-1945" e a segunda "a era neoliberal pós-1979":
“Ambas as reformas foram impressionantes no seu alcance e sucesso. Atlee transformou uma nação devastada pela guerra, rasgada por diferenças aparentemente intransponíveis, em educação, classe e esperança de vida, dando até aos mais pobres dentro dela perspetivas genuínas. Depois, a Grã-Bretanha foi novamente salva, desta vez por Thatcher, de um tumulto económico em espiral de indústria improdutiva. Liderou uma renascença do empreendedorismo. Além disso, sucessivas gerações na sociedade britânica lutaram para proteger os direitos das pessoas, independentemente do seu género, raça ou sexualidade” (Howker e Malik, 2010: 220).
Não surpreende então que estes autores declarem a sua crença no capitalismo e afirmem que "a criação de riqueza não é apenas desejável mas vital - é a base de qualquer decisão que tomemos como indivíduos ou como sociedade" (Howker e Malik, 2010: 21).
Estas citações ilustram como o neoliberalismo social foi capaz de seduzir alguns setores de secções até então hostis da classe média, não apelando apenas aos seus interesses económicos, mas afirmando que encarnava formas de preocupação social e de tolerância, de uma forma que o neoliberalismo de vanguarda, associado como estava ao neoconservadorismo doméstico, não podia. Deram, por assim dizer, permissão para participar no banquete sem sentimentos de culpa. Os primeiros portadores de bandeira do neoliberalismo tendiam para o conservadorismo social; os seus sucessores - muitos dos quais participaram nos movimentos contraculturais dos anos 1960 - não estavam para aí direcionados, como qualquer comparação entre Clinton e Thatcher desde logo sugere. A promoção destas políticas culturais pelos regimes de consolidação tornou o neoliberalismo aceitável para aqueles que anteriormente o tinham rejeitado de duas maneiras.
A primeira foi a dissociação do cultural da crítica política do capitalismo. Os movimentos de 1968 viram, não pela primeira vez, a convergência de duas críticas ao capitalismo: a artística e a social, preocupadas, respetivamente, com a alienação e com a exploração. Mas estas críticas estavam associadas a dois grupos sociais diferentes: a primeira com estudantes ou trabalhadores recém-formados em empregos de colarinho branco, a segunda com a classe trabalhadora nas indústrias tradicionais. As suas preocupações eram também diferentes: os responsáveis pela crítica artística queriam, sobretudo, autonomia, liberdade pessoal; os responsáveis pela crítica social queriam, sobretudo, segurança contra as vicissitudes da economia capitalista e os riscos inerentes à anarquia da concorrência. As duas puderam coexistir e sobrepor-se num período em que o capitalismo estava a ser desafiado, mas num período de derrota da classe trabalhadora e de retração da esquerda, a crítica artística era facilmente assimilada em proclamações neoliberais sobre o abandono da hierarquia, a liberdade do consumidor e assim por diante. Naturalmente, será sempre verdade que, na ausência de uma vitória global, o capital encontrará formas de tornar conquistas parciais de libertação social compatíveis com, ou mesmo em exemplos de, relações mercantilizadas.
A segunda maneira foi o endosso de uma política de identidade pessoal. Embora a homogeneização seja, sem dúvida, um aspeto da globalização neoliberal, ela é sempre acompanhada pelo seu anverso inelutável, a diversificação. O capital não tem qualquer problema com a "diferença", exceto, talvez, como uma questão de nichos de marketing. De facto, as políticas de identidade dos anos 1980 e 1990 praticamente convidaram a esta resposta, uma vez que o neoliberalismo se opõe à desigualdade resultante de preconceitos irracionais. O que isto significa é que os conteúdos de certos tipos de políticas de identidade foram profundamente alterados pelo contexto do neoliberalismo. As memórias dos anos 1960 por aqueles que participaram na experimentação sexual e na consciencialização da época contêm autocríticas da sua incapacidade de distinguir entre libertação e libertarianismo, distinção que só se tornou evidente quando lemas contraculturais sobre a liberdade coletiva foram reciclados em defesa da ganância individual e da gratificação imediata (ver, por exemplo, Diski, 2009: 8-9, 88-89, 114-115, 135-139 ou Green, 1989: 341). Em alguns casos, isto não foi uma distorção, mas apenas uma extrapolação do que já estava presente em certos aspetos da contracultura.
Walter Benn Michaels estava portanto correto ao escrever, na sequência da vitória de Obama sobre Hilary Clinton, para se tornar o candidato presidencial do Partido Democrata:
“...as verdadeiras (embora muito parciais) vitórias sobre o racismo e o sexismo representadas pelas campanhas de Clinton e Obama não são vitórias sobre o neoliberalismo mas sim vitórias para o neoliberalismo: vitórias para um compromisso com a justiça que não tem qualquer questão contra a desigualdade, desde que os seus beneficiários sejam tão diversos racial e sexualmente quanto as suas vítimas. ... Na utopia neoliberal que a campanha de Obama encarna, os negros seriam 13,2% dos (numerosos) pobres e 13,3% dos (muito menos) ricos; as mulheres seriam 50,3% de ambos. Para os neoliberais, o que faz disto uma utopia é que a discriminação não desempenharia qualquer papel na administração da desigualdade; o que torna a utopia neoliberal é que a desigualdade permaneceria intacta” (Michaels, 2008: 34).
Para todos os efeitos práticos, os membros da classe dominante no Ocidente estão unidos na aceitação do neoliberalismo como a única forma viável de organizar o capitalismo como um sistema económico; mas a mesma classe está dividida em relação à forma como o capitalismo deve ser organizado como um sistema social. Todos eles podem agora ser neoliberais, mas nem todos são neoconservadores. Nos E.U.A., tanto os Democratas como os Republicanos estão abertamente empenhados no capitalismo, mas existem também verdadeiras divisões de opinião entre eles no que diz respeito, por exemplo, aos direitos dos homossexuais ou à proteção ambiental. De facto, como escreve James Davis, embora “a esquerda social-democrata e liberal tenha abraçado o neoliberalismo... o centro-esquerda deve também prestar homenagem a ideias de justiça e igualdade, na maioria das vezes diretamente contrárias às suas políticas económicas concretas, ou temer uma perda de apoio para os concorrentes mais à esquerda” (2012: 101). Com esta ressalva, podemos no entanto concordar com Alex Niven em como "Em muitos aspetos, a política moderna tem vindo a assemelhar-se à divisão Whig / Tory dos séculos XVIII e XIX, anterior ao advento do movimento operário, com dois partidos representando divisões diferentes de uma relativamente ampla classe rica" (2012: 11).
O falecido Peter Mair escreveu sobre a forma como os partidos políticos mudaram o seu locus da "sociedade para o Estado", tornando-se no processo "agências que governam" e não mais que "representam" (2006: 48). À medida que os políticos se tornam uma casta profissional cujo mundo vital está cada vez mais afastado de qualquer outra forma de atividade, económica ou não, e portanto mais "autónomo", tornam-se simultaneamente mais comprometidos com as conceções capitalistas do interesse nacional, tendo os negócios como exemplo. A observação de Peter Oborne sobre a convergência partidária na Grã-Bretanha assume incorretamente que o processo está completo, e não simplesmente bem avançado, mas o seu ponto essencial é válido: "Na prática, as diferenças entre os principais partidos são menores e, na sua maioria, técnicas. A contradição entre a competição partidária aparentemente amarga, no palco político, e a colaboração nos bastidores, define a situação política contemporânea" (2007: 93). Os debates têm, portanto, a qualidade de um jogo de sombras, um ritual vazio em que as diferenças triviais ou superficiais são enfatizadas a fim de dar uma impressão de alternativas reais e assim justificar a continuação da competição partidária.
O potencial para um desenvolvimento deste tipo tem estado sempre presente na democracia capitalista. Durante a década de 1930, Gramsci distinguiu entre o que ele chamou fenómenos “conjunturais” e “orgânicos”. Os primeiros "não têm qualquer significado histórico de grande alcance; dão origem a críticas políticas de carácter menor, do dia-a-dia, que têm como tema dirigentes políticos de topo e personalidades com responsabilidades governamentais diretas". Os últimos, por outro lado, "dão origem a críticas socio-históricas, cujo alvo são agrupamentos sociais mais vastos - para além das figuras de topo e dos dirigentes cimeiros" (1971: 177-8). O que mudou é que a conjuntura já não é apenas um aspeto da política; ela tornou-se a sua essência. Consequentemente, a maior parte da discussão sobre política - pelo menos no mundo desenvolvido - é dedicada a elaborar comentários mais ou menos informados e especulações sobre despiques essencialmente sem sentido, no seio dos Parlamentos e outras instituições supostamente representativas.
O neoliberalismo de vanguarda e o social emergiram sequencialmente, mas uma vez que este último modificou a natureza global do regime, tornou-se possível aos governos que enfatizaram as doutrinas associadas a um ou a outro, alternarem-se, como quando o republicano George W. Bush substituiu o democrata Bill Clinton em 2001. O regresso dos Conservadores ao poder no Reino Unido, primeiro em coligação com os Democratas Liberais (2010) e depois como governo maioritário (2015), poderia sugerir que o neoliberalismo de crise é simplesmente um regresso à política de vanguarda, mas isto seria simplista. O vanguardismo não pode ser reavivado na sua forma original, em parte porque a divisão entre neoliberalismo de vanguarda e neoliberalismo social foi, até certo ponto, quebrada - é difícil imaginar uma Lei de Igualdade (2010) ou a Lei do Casamento (também para pessoas do mesmo sexo) (2013) a ser aprovada sob um dos governos de Thatcher - mas principalmente porque a maioria dos objetivos originais do neoliberalismo de vanguarda foram alcançados, pelo menos na medida em que alguma vez o puderam ser. E no entanto, contrariando as fantasias sobre a abolição da expansão e recessão, a crise voltou em 2007.
Regimes de crise de exceção permanente, 2007-
"Soberano é aquele que decide sobre a exceção", escreveu o teórico jurista alemão e futuro nazi Carl Schmitt em 1920 (2006: 5). Com isto Schmitt queria dizer que os soberanos, que podiam ser órgãos coletivos, eram definidos pela capacidade de suspender normas legais estabelecidas, durante os momentos que eles considerassem ser crises ou emergências. Com efeito, a decisão a que Schmitt se refere envolve a identificação dos grupos que devem ser tratados como fora da lei. Os quadros do neoliberalismo no Reino Unido não têm - contrariamente às afirmações de George Osborne - nenhum "plano económico a longo prazo", nenhuma solução para a crise que o capitalismo está a atravessar. Na aurora do neoliberalismo, os comentadores de esquerda previram que estava a surgir uma nova forma de "Estado excecional", em resposta à crise (Hall et al., 1978: cap. 9; Ratner e McMullan, 1983). O seu erro foi, em parte, de timing e, em parte, em relação a onde se situava a exceção. Porque o que está a ser construído não é um "Estado de exceção" mas sim - tendo em conta a distinção feita anteriormente neste artigo - um regime de exceção, envolvendo tanto a repressão preventiva como a diversionária consagração como bodes expiatórios de grupos que vão desde as pessoas portadoras de deficiências a toda a população muçulmana - nativa, migrante ou refugiada.
O dilema do neoliberalismo de crise é, portanto, que ele não tem estratégia para restaurar os níveis gerais de rentabilidade. Tendo assumido as dívidas contraídas pelos bancos responsáveis pela crise, transformando-as assim em dívida estatal ou "soberana", os regimes anunciaram então a necessidade de "austeridade" para compensar o suposto fracasso do Estado em "viver dentro dos seus meios" (Blyth, 2013: 5-7; Peck, 2014: 19-20). Ideologicamente, esta pode ter sido uma manobra brilhante, mas nem atacar os rendimentos dos pais solteiros desempregados, nem demonizar os requerentes de asilo vai salvar o capitalismo britânico ou norte-americano, embora tenha ajudado a desviar a hostilidade da classe dominante para estes grupos, legitimando o ódio e fornecendo "compensação psíquica" para aqueles que se encontram em posições marginalmente mais seguras. Qualquer estratégia a longo prazo - no interesse geral do capital, não da justiça social - teria de abordar a disfuncionalidade do sistema financeiro, a recusa das empresas em investirem na capacidade produtiva e os baixos níveis de entrada de impostos que acompanham um sistema fiscal massivamente enviesado a favor dos ricos. A razão pela qual os políticos e os gestores do Estado não estão preparados para o fazer resulta do impacto cumulativo dos dois períodos anteriores do neoliberalismo.
Não deve surpreender que os capitalistas sejam geralmente desinteressados pelo interesse social mais amplo; o que é talvez surpreendente é que são também geralmente incapazes de avaliar corretamente os seus próprios interesses coletivos globais de classe, embora esse seja um fenómeno de longa data, observado por muitos dos grandes teóricos sociais dos finais do século XVIII em diante (ver, por exemplo, Smith, 1976: Livro I, cap. XI, 278; Marx, 1976: 606-10; Schumpeter, 1994: 138-9). Como resultado, os Estados capitalistas - ou, mais precisamente, os seus gestores - agiram tradicionalmente para fazer tal avaliação; mas, pelo menos no Ocidente desenvolvido, os regimes neoliberais estão cada vez mais a demonstrar uma adesão acrítica aos desejos de curto prazo de interesses empresariais particulares. Nem é este o único problema emergente: os parâmetros cada vez mais estreitos da política neoliberal, em que a escolha se restringe a questões "sociais" em vez de "económicas", têm encorajado a emergência de partidos de extrema-direita, geralmente fixados em questões de migração, que se têm revelado extremamente divisórias nas comunidades da classe trabalhadora, mas cujas políticas, a outros respeitos, não são de forma alguma nos interesses do capital.
A natureza autodestrutiva do capitalismo neoliberal nada tem necessariamente a ver com a eliminação de restrições aos mercados. A ascensão do neoliberalismo tornou moda citar uma passagem de A Grande Transformação, de Karl Polanyi, cuja frase mais famosa é: "Permitir que os mecanismos do mercado fossem o único diretor do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, na verdade, até mesmo da quantidade e utilização do poder de compra, resultaria na demolição da sociedade" (1957: 73). O pressuposto é invariavelmente que o neoliberalismo estará em vias de concretizar o pesadelo de Polanyi: reverter a segunda parte do seu "duplo movimento" - a reação social contra os mercados - e desencadear os mecanismos que ele via como sendo tão destrutivos da sociedade e da natureza. Deixando de lado o facto de que o capitalismo sempre foi capaz de produzir atomização social, violência coletiva e destruição ambiental, mesmo em períodos em que o Estado estava muito mais diretamente envolvido nos mecanismos de produção e troca do que está agora, há dois problemas com esta posição. Primeiro, retórica à parte, os capitalistas não favorecem hoje mais a concorrência desenfreada do que o faziam quando os monopólios e cartéis apareceram pela primeira vez como aspetos centrais do sistema emergente, no século XVI. Em segundo lugar, seria preciso ser extraordinariamente ingénuo para acreditar, desde logo, que o projeto neoliberal tem tido como objetivo o estabelecimento de mercados "livres", embora esse mito tenha sido assiduamente perpetrado por partidos social-democratas que, ansiosos por disfarçar a sua própria capitulação ao neoliberalismo, enfatizam a sua oposição à mercantilização de todas as relações sociais, embora ninguém - exceto talvez os seguidores de Ayn Rand - imagine seriamente que isso seja possível ou desejável (Dardot e Laval, 2013: 182-91). Todos os analistas sérios do neoliberalismo identificaram o papel dos Estados na criação e gestão de mercados para o capital.
No entanto, sempre houve tensões entre capitalistas e gestores estatais. Como escreve Fred Block:
“Existe a possibilidade de os gestores estatais, para melhorar a sua própria posição, procurarem expropriar, ou, no mínimo, colocar restrições severas à propriedade das classes dominantes. Esta ameaça é a raiz da ênfase posta pela ideologia burguesa sobre a necessidade de impedir a emergência de um Estado Leviatã que engole a sociedade civil. No entanto, uma vez que a burguesia ou outras classes proprietárias não podem sobreviver sem um Estado, estas classes têm pouca escolha a não ser procurar um modus vivendi com os gestores do Estado. Nas formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista, o padrão histórico dominante tem sido o desenvolvimento de um modus vivendi que é altamente favorável aos proprietários do capital” (1987: 84).
No entanto, este modus vivendi está permanentemente ameaçado, uma vez que os gestores estatais têm por tarefa não só facilitar o processo de acumulação de capital mas também melhorar os seus efeitos na população e no ambiente: “A consequência é que muitas das ações estatais que serviram para fortalecer o capitalismo foram opostas por grandes setores da classe capitalista porque eram vistas como ameaças ao privilégio de classe e como passos em direção a um estado Leviatã” (Block, 1987: 86-7). A atitude que Block descreve remete-nos para os Factory Acts e as respostas capitalistas a eles descritas por Marx em 1867. Será que a classe capitalista conseguiu finalmente "atar o Leviatã", para citar o título de um precoce texto neoliberal britânico? (Waldegrave, 1978)
A relação existente entre os regimes neoliberais e o capital tem impedido, desde os anos 1970, os Estados de agirem eficazmente no interesse coletivo e a longo prazo do capitalismo e levou, em vez disso, a uma situação em que, segundo Robert Skidelsky, "a ideologia destrói a economia sã" (Skidelsky, 2014: 29). É verdade que os regimes neoliberais têm, cada vez mais, abandonado qualquer tentativa de chegar a um entendimento global do que poderiam ser as condições para o crescimento, para além da suposta necessidade de baixar impostos e regulamentações ou de aumentar a flexibilidade laboral. Para além destes, os interesses do capital nacional total são vistos como um agregado aritmético dos interesses de empresas individuais, algumas das quais, sem dúvida, têm bastante mais influência junto dos governos do que outras. Estes desenvolvimentos levaram a uma incompreensão entre os remanescentes keynesianos da esquerda socialmente progressiva. "É a decadência do poder", escreve Will Hutton:
“O centro fragmenta-se e o poder é devolvido a miríades de novas forças que muitas vezes exercem o seu poder com obsessões estreitas em mente. Quem fala agora em nome do todo? Quem mantém uma visão macro, mediando interesses e conflitos concorrentes e tendo a coragem de tomar decisões com base numa visão estratégica de todos os nossos interesses, e não apenas os seccionais?” (Hutton, 2013)
Na medida em que exista uma "visão estratégica", ela implica evitar quaisquer políticas que possam causar desagrado às empresas, por menores que sejam os inconvenientes que lhes possam implicar, o que naturalmente inclui a regulamentação:
“Apesar da importância do sector empresarial, permitir às empresas o máximo grau de liberdade pode nem sequer ser bom para as próprias empresas, quanto mais para a economia nacional. De facto, nem todos os regulamentos são maus para os negócios. Por vezes, é do interesse a longo prazo do sector empresarial restringir a liberdade das empresas individuais para que estas não destruam o conjunto comum de recursos de que todas elas necessitam, tais como os recursos naturais ou a força de trabalho. Os regulamentos também podem ajudar as empresas, obrigando-as a fazer coisas que podem ser onerosas para elas individualmente, a curto prazo, mas aumentam a sua produtividade coletiva a longo prazo - tais como prover à formação dos trabalhadores” (Chang, 2011: 190-1).
Num contexto norte-americano, Doug Henwood escreve que "a política é agora concebida por intermédio de uma lente de Wall Street, visando maximizar os lucros nos próximos trimestres, e o longo prazo que cuide de si próprio", o que por sua vez sugere que "a distinção entre a classe dominante norte-americana e a sua comunidade empresarial - com a classe dominante presumivelmente operando a uma escala de tempo de décadas e não de trimestres - entrou em grande parte em colapso" (2005: 71, 73). O argumento de Henwood sobre a adoção pelo regime de prazos associados especificamente ao capital financeiro é importante, pois indica o curtoprazismo (“short-termism”) envolvido, que está embutido a todos os níveis. Refletindo sobre a "cultura brutal de contratar e despedir" do sector bancário, Joris Luyendijk (2015) pergunta:
“Porque é que as pessoas numa plataforma comercial se preocupariam com os riscos ou a ética dos complexos produtos financeiros que estavam a vender, quanto mais com a saúde financeira a longo prazo do seu próprio banco? Porque pensariam sequer nele como o «seu» banco, sabendo que poderiam estar fora de portas em cinco minutos - seja despedidos sem aviso prévio ou aliciados por um concorrente? Porque é que um gestor de risco ou um responsável pela conformidade num ambiente destes soaria o alarme? Porque não lixar o seu próprio cliente, dado que tudo é perfeitamente legal e se está sob uma imensa pressão para o «desempenho»?”
Ele conclui: “Isto começava a parecer um plano para o curtoprazismo" (2015: 153-4). E este comportamento estende-se desde a atitude de comerciantes individuais e gestores de fundos de cobertura (“hedge-fund”) até à tomada de decisões empresariais. “O curtoprazismo não é novidade na vida das empresas”, escreve Phillip Inman (2015): “Há décadas que os analistas lamentam como os executivos estão obcecados em atingir metas trimestrais para agradar aos acionistas e garantir os seus bónus. Isto é agravado pelo representante do acionista - o gestor do fundo - que procura ele próprio atingir também os seus objetivos trimestrais". Citando os argumentos da OCDE, ele sugere: “Um governo precisa de intervir... porque nenhum conselho de administração pode agir sozinho, especialmente quando a medição do sucesso pelo curto prazo está tão enraizada no sistema financeiro. Todas as empresas públicas se submetem a ele, e pouco fazem para apoiar a reforma enquanto as recompensas pessoais continuam a ser abundantes".
Os governos, no entanto, não mostram sinais de querer "intervir". O autor escocês de ficção científica Ken McLeod imaginou uma situação, num futuro próximo, em que as classes dirigentes do mundo tomariam medidas legais e militares coordenadas numa revolução passiva ("o Big Deal") para esmagar o domínio do capital financeiro, restaurar o do capital industrial e, essencialmente, pôr fim à era neoliberal (2014: 129-42). Esta faceta do romance é muito mais incrível do que os encontros alienígenas que ocorrem noutras partes das suas páginas. Claramente, em situações de crise absoluta e imediata, seriam introduzidas medidas de emergência a curto prazo, da mesma forma que a nacionalização efetiva dos bancos e outras instituições financeiras teve lugar, tanto nos E.U.A. como no Reino Unido, durante o ano de 2008. Mas estas foram intervenções mínimas para evitar o colapso total e salvar as instituições (e as práticas que as levaram ao ponto de crise em primeiro lugar) sem as utilizar para qualquer fim estratégico coerente, quanto mais para qualquer objetivo social mais amplo; e, claro, no pressuposto de que seriam reprivatizadas o mais rapidamente possível; mas e para além disto? (Cahill, 2012: 123-4)
Nancy Fraser compara a denúncia feita por Franklin Roosevelt "dos malfeitores da riqueza", numa emissão radiofónica de 1936, com a fraca contribuição de Barack Obama para um debate presidencial televisivo, em 2012, quando se recusou essencialmente a fazer qualquer distinção substancial de política económica entre ele próprio e Mitt Romney. Como Fraser argumenta, isto não é simplesmente uma questão de personalidade individual, pois "a fraqueza de Obama está longe de ser única":
“É o padrão mais amplo - o colapso generalizado do keynesianismo político que deve ser explicado. Perante o fracasso de todo um estrato político em fazer qualquer tentativa séria para deter um iminente naufrágio, não nos podemos limitar a hipóteses centradas na psicologia individual” (2013: 122–3).
Em vez disso, como a própria Fraser observa, temos de nos concentrar no enfraquecimento do movimento laboral, uma vez que um dos papéis inadvertidos que historicamente desempenhou foi o de salvar o capitalismo de si mesmo, nomeadamente através de reformas em relação à educação, saúde e bem-estar. Estas beneficiaram os trabalhadores, é claro, mas também asseguraram que a reprodução da força de trabalho e as condições de acumulação do capital se realizassem de forma mais geral. A este respeito, a social-democracia ocupava um lugar semelhante ao das elites pré-capitalistas identificadas por Schumpeter como necessárias para governar em nome de uma classe capitalista congenitamente incapaz. Mas com o enfraquecimento do poder sindical e a capitulação da social-democracia ao neoliberalismo, não existe atualmente nenhuma força social capaz de desempenhar diretamente este papel "reformista" ou de pressionar gestores estatais não social-democratas a desempenhá-lo. Isso deixa o próprio aparelho estatal entregue a si próprio, mas a necessária distância entre o Estado e o capital (ou entre gestores estatais e capitalistas) que Smith, Marx e Schumpeter, das suas diferentes perspetivas políticas, todos consideravam como sendo essencial para a saúde do sistema, foi minimizada. Ironicamente, a China pode ser uma das poucas áreas em que tal não acontece. Slavoj Zìzek escreve que, "pode alegar-se que a razão pela qual os (ex-)comunistas estão a ressurgir como os gestores mais eficientes do capitalismo é que a sua inimizade histórica para com a burguesia, como classe, encaixa perfeitamente na progressão do capitalismo contemporâneo para um sistema de gestão sem a burguesia" (2012: 11).
Porque é que isto está a acontecer? A razão não se deve simplesmente ao sucesso do lobbying e das relações públicas conduzidos em nome de empresas ou indústrias individuais, perniciosos e omnipresentes que são, sem dúvida, estas atividades, cada vez mais sofisticadas (Cave e Rowell, 2014). As empresas sempre fizeram isso: porque é que os gestores estatais estão agora tão predispostos a responder positivamente aos seus esforços? A resposta está na forma como o neoliberalismo reconfigurou a política, de quatro maneiras.
A primeira envolve os constrangimentos colocados à política, em particular à política económica, que se tornaram cada vez mais estreitos ao longo da era neoliberal; e estes não são meros constrangimentos ideológicos, mas cada vez mais, e cumulativamente, práticos. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o deputado John Redwood observou, sobre o seu tempo de serviço no Departamento de Investigação do Partido Conservador, durante o início dos anos 80: "Nas nossas discussões sobre políticas incluíamos sempre a questão de saber se as mudanças que propúnhamos poderiam ser tornadas irreversíveis" (2004: 63). Cada fase sucessiva da experiência neoliberal assistiu ao abandono progressivo do repertório de medidas através das quais os governos tinham tradicionalmente influenciado a atividade económica, começando com o abandono dos controlos cambiais, por Geoffrey Howe em 1979, e terminando (até à data) com a transferência, por Gordon Brown, do poder de fixar as taxas de juro do Tesouro para um comité não eleito do Banco de Inglaterra. Perry Anderson descreveu o primeiro como o "primeiro e mais fundamental ato do regime Thatcher ao chegar ao poder", mas o mesmo pode ser dito do segundo, em relação ao sucessor de Thatcher (1992: 181). A consequência tem sido uma “despolitização” da economia. Magnus Marsdal, por exemplo, nota o declínio, na Dinamarca, da cólera pública, entre a introdução de cortes nas pensões pelos sociais-democratas, em 1998, e as eleições gerais em 2001, devido ao acordo quase total entre diferentes partidos e comentadores sobre a necessidade destas medidas: "Esta despolitização da economia leva à politização de tudo o resto" (2013: 51). Como escreve Peter Burnham, “a despolitização é uma estratégia de governo e nesse sentido permanece altamente política”; é uma estratégia que funciona por meio da “retirada do carácter político da tomada de decisões”. Para Burnham, ela assume três formas:
“Primeiro, houve uma reafectação de tarefas retiradas do partido em funções governativas para uma série de organismos ostensivamente «não políticos», como forma de realçar o compromisso do governo em alcançar objetivos. ... A segunda forma... consiste na adoção de medidas ostensivamente destinadas a aumentar a responsabilidade, transparência e validação externa da política. ... Finalmente, as estratégias de despolitização têm sido prosseguidas num contexto global que favorece a adoção de «regras» vinculativas que limitam a margem de manobra dos governos” (1999: 47–50).
O último é talvez o mais importante e tem sido absolutamente consistente ao longo de toda a era neoliberal. O romancista irlandês Colm Toibin recordou como, em 1985, durante o período de vanguarda, conheceu dois norte-americanos em Buenos Aires, enquanto cobria o julgamento dos generais argentinos, acusados de crimes contra a humanidade. Estes revelaram-se representantes no país, respetivamente, do Banco Mundial e do FMI, para ditar os termos da resolução da crise económica em curso. Tinham pouca paciência para com estas tentativas de levar à justiça os criminosos fardados do antigo regime - "os meus amigos norte-americanos disseram que isso era um desperdício de dinheiro e de tempo. A Argentina, economicamente, diziam eles, era uma lástima, com necessidade desesperada de uma reforma da raiz ao topo. O julgamento foi, na melhor das hipóteses, uma distração". Foi, contudo, um encontro com manifestantes que protestavam contra a perda de postos de trabalho e os cortes salariais que revelou ainda mais claramente a sua atitude para com os argentinos comuns:
“Um dos tipos com quem eu estava ficou realmente zangado, mal se conseguindo conter no táxi. Esta era a última coisa de que a Argentina precisava, disse ele. Protestos como este não eram apenas uma perda de tempo, eram irresponsáveis. O país ia ter de passar por anos de dificuldades, disse ele, para chegar a uma posição em que pudesse recomeçar. Não havia escolhas. A Argentina não estava apenas falida, devia uma fortuna e os custos do serviço público eram estratosféricos. Protestos não fariam a mínima diferença” (Toibin, 2010).
Ainda na Argentina, John Lanchester relata uma conversa do período neoliberal social:
“«O que acontece com organizações como o FMI é que elas simplesmente não se importam com as vossas circunstâncias», foi-me dito por um ministro das finanças argentino que lidou diretamente com a essa organização durante as negociações do início dos anos 1990. «Pode haver razões históricas particulares para a existência de um programa que visa a pobreza infantil, ou o saneamento nos bairros de lata, ou seja o que for, mas deixaram claro que não tinham qualquer interesse nisso. Estavam apenas à espera que parássemos de falar para poderem dizer-nos o que tínhamos a fazer. Era o mesmo pacote de soluções para todos, independentemente da história, condições locais ou problemas sociais. É só pegar ou largar e calar a boca»" (Lanchester, 2014: 5).
Estes são, naturalmente, exemplos da disciplina imposta pelo FMI a uma das regiões mais desenvolvidas do Sul global, mas a Eurozona tem agora as suas próprias instituições nativas, dedicadas a fazer isto mesmo nas terras do centro do capitalismo global. Como argumenta Wolfgang Streeck:
“Uma vez que na Europa ainda não é possível, em nome da racionalidade económica, eliminar os resquícios da democracia nacional, em especial a responsabilidade dos governos perante os seus eleitores, o método preferido tem sido integrar os governos nacionais num regime supranacional não democrático - uma espécie de super-Estado internacional sem democracia - e ter as suas atividades reguladas por ele. Desde os anos 1990, a União Europeia tem sido convertida num tal regime” (2014: 114).
Nas revelações de Yanis Varoufakis sobre os seus encontros com a Troika, foram precisamente as instituições da UE - o Banco Central Europeu e a Comissão - e não o Fundo Monetário Internacional, quem tomou a posição mais inflexível. Como ele mais tarde recordou:
“...houve uma recusa visceral (“point blank”) em se deixar envolver em argumentações económicas. Visceral... Apresentavas um argumento em que tinhas realmente trabalhado - para te certificares de que ele era logicamente coerente - e apenas te vias confrontado com olhares em branco. Era como se não tivesses falado. O que tu dizes é completamente independente do que eles dizem. Mais valia teres cantado o hino nacional sueco - terias tido a mesma resposta” (Varoufakis em Lambert, 2015: 33).
O segundo fator, em sentido contrário à “despolitização” da política económica, é a “politização” dos gestores do Estado. À medida que os partidos políticos se foram tornando menos distinguíveis uns dos outros, os funcionários necessários para implementar as suas políticas, cada vez mais semelhantes, são obrigados a transformarem-se mais completamente em extensões dos próprios partidos. Nos E.U.A., a politização da função pública sempre foi um fator mais significativo do que no Reino Unido, mas mesmo aí a era neoliberal assistiu a um agravamento da tendência existente. Aquilo que Monica Prasad denomina de "permeabilidade e falta de tecnocracia" da burocracia estatal norte-americana, em comparação com as suas congéneres francesa ou britânica, pode ter algumas vantagens para o capital, mas geralmente "dificulta a separação entre a formulação de políticas e as considerações políticas", conduzindo à "escolha politicamente motivada das projeções orçamentais". Estas tendências foram exacerbadas pela Lei de Reforma da Função Pública de 1978, que "enfraqueceu ainda mais a base autónoma da burocracia governamental" (2006: 93). No Reino Unido, seguindo como sempre o exemplo dos Estados Unidos da América, tem havido, desde 1979, e especialmente desde 1997, um afluxo mais generalizado à função pública de pessoas nomeadas pelo setor privado. Oborne descreve o serviço público como estando cada vez mais "castrado", ao ponto de se poder dizer ter sido efetivamente sujeito a uma "aquisição empresarial" (2007: 113-53). Mas mesmo em relação à função pública permanente, a expectativa é que os funcionários públicos superiores, em particular, não tentem apontar as dificuldades envolvidas nas políticas governamentais, nem sequer considerem formas alternativas de executar essas mesmas políticas, mas simplesmente apresentem argumentos para as justificar, independentemente dos dados empíricos, exceto quando essas políticas forem contrárias à ordem neoliberal. Colin Leys argumenta que no Reino Unido existem quatro "condições favoráveis" para este abandono do espírito experimental: "a substituição da cultura das Comissões Reais pela cultura da literatura «cinzenta»; a perda da independência crítica por parte da comunidade de investigação académica; a despolitização do eleitorado; e o regresso à respeitabilidade das crenças irracionais" (2008: 130). Estes dois últimos são fatores por direito próprio na produção do curtoprazismo crónico, em regimes neoliberais.
A terceira, a "despolitização do eleitorado", é talvez melhor percebida como abstenção por secções do eleitorado que já não têm nenhum partido em quem votar. A existência destas estratégias tem sido abertamente admitida pelos ideólogos do neoliberalismo. Phillip Bobbit, conselheiro da Casa Branca sob Bill Clinton, argumentou que estamos a entrar num período em que o Estado-nação está a ser substituído pelo que ele chama de "estado de mercado", uma formação caracterizada por "paradoxos", um dos quais é que "haverá mais participação pública no governo, mas contará para menos, e o papel do cidadão enquanto cidadão diminuirá grandemente, aumentando o seu papel como espectador" (2002: 234). Muitos dos eleitores ainda envolvidos no exercício do seu voto fazem-no – de forma bem apropriada - segundo um modelo de escolha política na lógica do consumidor, em que a participação é informada por perceções veiculadas pelos meios de comunicação social sobre qual o resultado que será melhor para o seu benefício pessoal imediato. Sem surpresas, o número das pessoas preparadas para prosseguir mesmo este nível mínimo de atividade está a diminuir (Mair, 2006: 32-45). O ponto-chave, contudo, é que aqueles que continuam a votar, ainda assim, são mais propensos a pertencer às classes médias - as verdadeiras classes médias, ou seja, não as classes médias imaginárias cujas infinitas provações de tal modo exercitam os editorialistas do Daily Mail - que tendem a ter uma visão mais focalizada nos seus interesses materiais e a empregar estratégias mais intervencionistas para os manter do que aqueles que suportam de forma direta o peso brutal da austeridade.
O quarto fator é o regresso de "crenças irracionais": o renascimento da extrema-direita como uma força eleitoral séria. O apoio eleitoral à extrema-direita baseia-se nas aparentes soluções que oferece ao que são agora duas ondas sucessivas de crise, que deixaram a classe trabalhadora no Ocidente cada vez mais fragmentada e desorganizada, sensível a apelos ao sangue e à nação como a única forma viável de coletivismo ainda disponível, particularmente num contexto em que qualquer alternativa sistémica ao capitalismo - por mais falsa que tenha sido - tinha aparentemente entrado em colapso em 1989-91. As implicações políticas são sinistras. A intercambialidade crescente dos partidos políticos, acima referida, dá à extrema-direita uma abertura para apelar aos eleitores, posicionando-se como exterior ao consenso, de formas que vão de encontro aos seus justificáveis sentimentos de cólera (Cole, 2005: 222-3). O problema potencial para a estabilidade do sistema capitalista é, no entanto, menos a possibilidade dos próprios partidos de extrema-direita chegarem ao poder, com um programa destrutivo para as necessidades capitalistas, do que a sua influência sobre os principais partidos de direita, onde as crenças dos seus apoiantes podem inadvertidamente causar dificuldades ao processo de acumulação - como na retirada da U.E. por parte do Reino Unido, ou uma paragem na migração do México e da América Central, no caso dos E.U.A.. Aqui vemos emergir uma relação simbiótica entre uma resposta cada vez mais inadequada do regime aos problemas da acumulação de capital e uma outra resposta cada vez mais extrema aos desejos e preconceitos mais irracionais produzidos pela acumulação de capital.
Conclusão
Não estou a sugerir que os desenvolvimentos aqui discutidos signifiquem que o capitalismo irá simplesmente cair sob o peso das suas próprias contradições internas. Cenários deste tipo, a partir dos de Rosa Luxemburgo, provaram ser falsos no passado e não há razão para supor que serão mais precisos no futuro. Nem sequer estou a sugerir que tenhamos entrado numa fase de crise permanente. Como disse na Introdução, nenhuma crise é permanente e as afirmações em contrário têm uma tendência infeliz para serem refutadas mesmo enquanto estão ainda a ser feitas (ver, por exemplo, Harman, 1984: 121). Seria mais credível argumentar que, à medida que o sistema envelhece, as tendências compensatórias para a tendência à baixa da taxa de lucro tornam-se cada vez menos eficazes. Expansões continuarão a verificar-se, como aconteceu entre 1982 e 2007, mas serão mais fracas e o leque de beneficiários será menor.
Mais duradouros do que as crises, que os estão a trazer à existência, serão os regimes de exceção permanente, cujos poderes políticos e trapaças ideológicos são demasiado convenientes para que as classes dirigentes os abandonem, dada a sua incapacidade de moldar os acontecimentos económicos; estes regimes terão de ser derrubados conscientemente. E aqui as múltiplas contradições do capitalismo podem apontar nessa direção. Uma vez que, até agora, o neoliberalismo deslocou a política “oficial” para a direita, muitas questões que na era da Grande Expansão teriam sido consideradas exigências “reformistas”, ou mesmo questões elementares de decência humana, são agora resistidas pelas instituições dominantes da sociedade capitalista. A atitude da Troika em relação aos argumentos gregos a favor do fim da austeridade proporcionou uma manifestação marcante disso mesmo. As próprias reformas têm o potencial de constituir exigências revolucionárias num contexto em que os regimes são incapazes de as permitir. Mas os partidos e movimentos que poderiam levar a cabo esta tarefa, alguns dos quais se declararam desde 2011, devem ser objeto de uma discussão separada.
(*) Neil Davidson (1957-2020) foi um intelectual marxista e militante socialista escocês. Nascido numa família da classe trabalhadora, não teve educação universitária na sua juventude, empregando-se como administrativo na função pública. Ainda em meados dos anos 1970 aderiu aos International Socialists, a tendência trotskista fundado por Tony Cliff que viria a dar depois origem ao Socialist Workers Party (SWP). Entrou em contato com aquela organização enquanto frequentador punk dos festivais Rock Against Racism. A partir daí o estudo e a militância política e social acompanharam-no em permanência. Veio a fazer também uma carreira universitária tardia, sendo ultimamente professor de Sociologia na Universidade de Glasgow. Acabaria por abandonar o SWP na sua crise de 2012-13, na sequência de divergências anteriores, reagrupando-se no grupo Revolutionary Socialism in the 21st Century (rs21). Teórico revolucionário sempre ousado e inconformista, as suas investigações distribuíram-se pelos campos do nacionalismo escocês, a teoria da história, o racismo, o imperialismo, cultura popular, os regimes de acumulação capitalista, etc.. Tem colaboração dispersa por vários periódicos como International Socialism, New Left Review, Jacobin, Red Wedge e Historical Materialism. Entre as suas obras em volume podem citar-se The Origins of Scottish Nationhood (2000), Discovering the Scottish Revolution (2003), How Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions? (2012), Holding Fast to an Image of the Past (2014). O presente ensaio foi primeiro publicado em linha a 4 de agosto de 2016 e reproduzido no Volume 43, n.os 4-5, pp. 615-634, da revista Critical Sociology. A tradução é de Ângelo Novo.
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