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Introdução
Por estranho que isso possa parecer, uma boa parte do nosso futuro histórico imediato está na dependência das ainda muito mal conhecidas caraterísticas de transmissibilidade, taxa de letalidade, imunização de grupo e recidiva de um vírus. Nunca tantos dependeram tanto de algo tão minúsculo. Temos ainda as incógnitas científicas, geoestratégicas e logísticas sobre a vacinação. Depois temos de saber como vão atuar os governos a nível sanitário, para finalmente tentar prever como irão reagir, primeiro a economia “real”, depois as manadas enlouquecidas do dinheiro. Uma guerra mundial híbrida está em movimento, com a maioria dos lances a passar-se na sombra. Mas os conflitos armados reais podem estalar, a qualquer altura, em vários teatros possíveis. É muita incógnita junta. Mas a impressão geral que temos é que o gigante Titanic do imperialismo norte-americano (e suas adjacências ocidentais), mantendo embora, para já, todo o seu aprumo majestático, acaba de sofrer um extenso e profundo rombo no seu casco.
Talvez Donald J. Trump seja mesmo um homem ungido pelo destino, embora não certamente da forma que ele imagina. De todo o modo, o seu lugar na história está já assegurado e obedece a uma lógica irrepreensível. Ele é a personificação perfeita e fidelíssima do sistema capitalista ocidental. Quando este começou a chocar com alguns problemas estruturais insanáveis, resolveu despedir sem cerimónia os seus serventuários políticos habituais - de mais do que provada inutilidade - e tomar o freio nos dentes. O que é preciso é capitalismo puro, nada de composições e de maquilhagens. Ora, o certo é que, com isso, os problemas agravaram-se e acumularam-se catastroficamente. O Estado profundo norte-americano já teria encontrado maneiras de eliminar este desastroso “homem do leme”, se ele fosse vagamente esquerdista (“liberal” na sua linguagem), como Kennedy. Não o faz porque está paralisado pela hesitação, a luta e vigilância mútua entre fações e, no fundo, por uma boa dose de fascínio pelo personagem. E este lá vai conduzindo o império direito ao abismo, com uma fúria aparentemente irresistível.
Não podemos esperar traçar um rumo auspicioso para o futuro da humanidade sem saber muito bem quem somos e que caminho percorremos até aqui. Ora, esse esforço de conhecimento é, antes do mais, um esforço de combate contra os preconceitos e falsificações com que a ideologia dominante foi minando o terreno, ao serviço dos seus interesses e da sua visão do mundo. Do antropólogo Richard B. Lee publicamos um pequeno ensaio que nos resume o estado da arte do nosso conhecimento quanto ao que é e como se moldou a verdadeira natureza humana. Michael Hudson é um economista peculiar, com uma profundidade que não julgaríamos própria da “dismal science”, a avaliar pelo que nos oferece a maioria dos seus praticantes. No ensaio que dele aqui publicamos, faz uma viagem até à Velha Babilónia, para traçar os caminhos percorrido no mundo ocidental pela moeda e a dívida, na sua articulação com a terra e o trabalho. Com Neil Davidson, a viagem limita-se a trilhos bem mais recentes, contidos na memória viva de uma boa parte de nós. Trata-se do modelo de acumulação capitalista neoliberal, na sua ascensão, consolidação e atual fase de gestão arrastada de crise crónica.
Salvar ainda o planeta Terra como espaço habitável para a espécie humana vai requerer uma luta tremenda, vigorosa, paciente, incansável, sem quartel. Se Greta Thunberg puder e quiser ser a nossa Joana d’Arc, vai precisar de ser flanqueada por cabos de guerra como Andreas Malm e Aurélien Barrau. Damos aqui espaço para a sua voz, ambos em discurso direto e oral, percorrido pela urgência da sua cólera jovem, arguta, de uma serena firmeza. Cédric Durand e Razmig Keucheyan procuram colocar-se do ponto de vista de um gestor responsável pela transição a uma economia livre de combustíveis fósseis. A coisa simplesmente não pode fazer-se sem uma direção central férrea, suportada por um novo bloco social de poder emergente. Podem chamar-lhe Green New Deal, mas na verdade, para ser eficaz, não andará longe do “comunismo de guerra verde” proposto por Andreas Malm.
Walden Bello reflete sobre a atual crise sanitária mundial, como uma oportunidade para procurar fazer avançar o novo paradigma da “soberania alimentar”, para uma nutrição humana mais segura, mais sã, mais fiável, sem dilaceramentos sociais e agressões ao meio ambiente. É precisamente sobre a fratura metabólica na relação entre a humanidade e o seu meio ambiente, provocada pelo capital, que reflete Giovanni Alves, em diálogo com Lukács, Mészáros e Ruy Fausto. Dave Hill é um pedagogo militante e um militante social que gosta de ensinar. Lutar e aprender podem ser uma prática social integrada, que simultaneamente emancipa e desaliena. Por fim, Leonardo Boff traz-nos uma nova proposta de superação da miséria presente, que passa por conceder uma nova centralidade ao ser vivo, na unidade jubilosa e amorosa do cosmos.
Prossegue o penoso espetáculo da paixão de Julian Assange nas masmorras britânicas, em trânsito para as norte-americanas, depois de uma longa farsa por meio da qual até o mais distraído dos observadores ficou a perceber que a CIA e o State Department manipulam com perfeita desenvoltura as hieráticas autoridades judiciárias do magnífico Reino da Suécia. Muito mais penoso ainda é o espetáculo infame de demissionismo e autoaviltamento de toda imprensa ocidental, que demonizou a vítima (depois de se ter servido dela), ignorou o processo e suas ilegalidades e aceita agora, muito séria e responsável, a tutela e as nada ambíguas intimações securitárias do império. Depois disto, não há como não sorrir (ou, enfim, vomitar) quando se fala ainda da imprensa “livre” ocidental, contrapondo-a à das “ditaduras” ou dos “regimes” adversários.
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Os Editores
Ângelo Novo
Ronaldo Fonseca
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