Dez orientações para um ecossocialismo feminista e revolucionário

 

 

Daniel Tanuro (*)

 

Chamamos ecossocialismo à abordagem de ligar as lutas para proteger o meio ambiente com as lutas para satisfazer as necessidades sociais reais dos explorados e oprimidos. Esta abordagem prepara o caminho para uma sociedade socialista democrática, não produtivista, livre de dominação e exploração, respeitosa e prudente em relação ao resto da natureza.

 

Como um conceito aberto, o ecossocialismo é objeto de um certo número de interpretações diferentes. Os francófonos entre vocês, provavelmente estarão familiarizados com o ecossocialismo de Jean-Luc Mélenchon, que tem uma tendência bastante estatista e soberanista. Em alguns países, uma social-democracia gestionária ou partidos verdes muito comuns afirmam agir a partir de uma perspetiva ecossocialista. Portanto, não se pode falar em nome do ecossocialismo em geral. As dez diretrizes propostas abaixo resumem as conceções ecossocialistas da corrente marxista-revolucionária internacional à qual pertenço.

 

1. O nosso ecossocialismo deriva de uma quádrupla constatação:

 

- A necessidade de um programa de transição anticapitalista que leve em conta, agora mesmo, as constrições ecológicas existentes e dê respostas imediatas à destruição ecológica atual. Portanto, divergimos das correntes políticas que consignam a proteção e a restauração do meio ambiente aos "amanhã que cantam", à era pós-capitalista;

 

- A necessidade de uma estratégia baseada na ação direta, democrática e auto-organizada dos explorados e oprimidos, numa perspetiva internacionalista e com respeito à autonomia dos movimentos sociais e ao direito à auto-organização das mulheres e dos grupos oprimidos em geral;

 

- A crise muito profunda de significado e valores que mina a sociedade capitalista. O domínio do valor abstrato e do patriarcado capitalista estão na base de uma inversão entre necessidades e produção, entre trabalho vivo e trabalho morto, entre o planeta e o capital. Assim, o capital aliena os seres humanos da sua natureza de animais sociais pensantes, que produzem consciente e coletivamente a sua existência;

 

- O catastrófico balanço ecológico dos países do "socialismo real", simbolizado pelo desastre de Chernobyl, a secagem do Mar de Aral e a campanha maoísta pela destruição dos pardais na China, por exemplo.

 

O nosso ecossocialismo é, portanto, radicalmente anticapitalista, humanista, internacionalista, feminista e autogestionário. É ao mesmo tempo uma estratégia de luta, um programa de reivindicações e um projeto para a sociedade.

 

2. O nosso ecossocialismo tem uma forte dimensão ética que se inscreve na perspetiva de uma civilização humana digna desse nome. Estamos seguindo os passos de Marx que considerava que "a natureza é o corpo inorgânico da humanidade". A destruição da natureza, da qual somos parte, é a nossa própria destruição e a dos nossos filhos. O termo "crise ecológica" é, portanto, muito insuficiente. A situação que enfrentamos é muito mais do que uma crise no funcionamento dos ecossistemas devida à lógica do lucro: é uma crise sistémica da civilização humana marcada em particular por uma crise nas relações entre a humanidade e o resto da natureza. A substituição da produção de valor pela produção de valores de uso determinados democraticamente é uma condição necessária para pôr fim a ela. Mas não é uma condição suficiente. A destruição ecológica, como a opressão das mulheres, existia muito antes do capitalismo, embora sob outras formas e em escala local, e não global. Além disso, como já foi dito, o "socialismo real" burocrático foi tão destrutivo do meio ambiente quanto o produtivismo capitalista. Em conjunto, estas duas realidades sublinham a necessidade de um processo de revolução cultural para continuar muito além da abolição do capitalismo. Trata-se de romper com visões dominadoras e utilitárias para inventar uma relação com o meio ambiente baseada no cuidado, na prudência e no respeito.

 

3. O balanço ecologicamente destrutivo da U.R.S.S., dos países da Europa de Leste e da China Popular deve-se, sobretudo, à degeneração estalinista burocrática da revolução. Isto envolveu tanto a renúncia à revolução mundial como o abandono das mais avançadas experiências e conceções ecológicas que se desenvolveram durante os primeiros anos do domínio soviético. Mas o estalinismo não explica tudo: no final do século XIX e início do século XX, o movimento operário e sua ala revolucionária estavam em grande parte imbuídos de uma visão da natureza como um material a ser dominado, a ser moldado sem limites segundo a vontade humana. Esta visão estava presente e era dominante mesmo entre os adversários de esquerda do estalinismo.

 

4. A emancipação das mulheres requer um movimento autónomo e a construção dentro dele de uma tendência socialista. Da mesma forma, parar a destruição ecológica requer a construção dentro da esquerda de uma corrente ecossocialista que intervenha, por assim dizer, em nome do resto da natureza numa perspetiva anticapitalista, internacionalista e antiburocrática.

 

Rejeitamos a ideia de que esta corrente estaria condenada a pregar no deserto porque o Homo Sapiens seria destrutivo e insensível por natureza. A humanidade tem causado muita destruição ecológica, mas não há razão para pensar que a inteligência e a sensibilidade humanas serão insuficientes para reaprender o que esquecemos, para cuidar do meio ambiente, para reconstruir o que pode ser reconstruído, para inventar uma nova relação com os seres vivos em geral.

 

5. O nosso ecossocialismo é radicalmente anticapitalista e, portanto, marxista. Em Marx encontramos não só uma crítica insubstituível da lógica do capital, mas também ideias preciosas e muitas vezes pouco conhecidas que alimentam diretamente a nossa reflexão ecossocialista. As principais destas ideias são as seguintes:

 

- A natureza e o trabalho são as duas únicas fontes de toda a riqueza, a natureza sendo a principal fonte de valor de uso;

 

- A única agricultura racional é aquela baseada em agricultores independentes ou na propriedade comunitária dos solos (em oposição à propriedade estatal dos kolkhozes!). A única silvicultura racional é aquela que escapa à corrida de "curto prazo" pelo lucro;

 

- A corrida ao rendimento (superlucros) estimula continuamente a pilhagem de recursos naturais, minerais e orgânicos - especialmente a tendência para uma indústria agrícola cada vez mais intensiva, que esgota o solo, pratica a monocultura e privilegia a produção de carne;

 

- O capitalismo baseia-se na despossessão. Não há capitalismo sem crescimento e, portanto, sem uma reprodução constantemente alargada de um movimento com duas vertentes: apropriação/exploração da força de trabalho contra salários, por um lado, e apropriação/pilhagem dos recursos naturais, por outro.

 

- O capital não é uma coisa, mas uma relação social de exploração do trabalho que requer insumos de recursos naturais e está orientada para a produção de mais-valia. "O único limite do capital é o próprio capital", disse Marx: enigmática à primeira vista, esta frase significa simplesmente que o capital continuará o seu trabalho de destruição enquanto tiver força de trabalho e outros recursos naturais para explorar. Por si só, o capital só pode quebrar depois de ter ultrapassado estes limites absolutos. Nenhum mecanismo endógeno lhe permite ter em conta os limites relativos da sustentabilidade (“fronteiras”);

 

- Consequentemente, a produção de mais-valia implica necessariamente a rotura de equilíbrios na troca de matérias entre a humanidade e o resto da natureza ("fissura metabólica"). A acumulação capitalista esgota tanto a Terra como o/a trabalhador(a). O fim da pilhagem de recursos (a "gestão racional do intercâmbio de matérias" entre a sociedade e a natureza) exige a abolição da exploração da força de trabalho e a redução do tempo de trabalho.

 

6. No entanto, o trabalho de Marx e Engels está sob tensão. Em primeiro lugar, ainda é marcado, em certa medida, por ilusões de progresso e pela perspetiva de um "crescimento ilimitado das forças produtivas". (Kohei Saito, no seu livro Marx's Ecossocialism: Capital, Nature and the Unfinished Critique of Political Economy, Monthly Review Press, 2017, proporciona uma ampla elucidação dessa tensão ao mostrar como Marx, em 1865-68, passou de uma visão produtivista e "prometeica" para uma visão antiprodutivista, que infelizmente não explicou.) Em segundo lugar, o seu pensamento precisa de ser escrutinado por análises (eco)feministas sobre o patriarcado.

 

Para Marx, como já vimos, "o capital esgota as duas únicas fontes de toda a riqueza, a terra e o trabalhador". Nesta citação, "o trabalhador" inclui a trabalhadora. Ora, o trabalho está imbuído de género. As mulheres assumem a maior parte do trabalho reprodutivo na família gratuitamente, e este trabalho é "invisível" na sociedade capitalista. Marx também diz que "a apropriação privada da Terra um dia vai parecer tão bárbara quanto a apropriação privada de um ser humano por outro". Pois bem, o capitalismo integrou o patriarcado, que existia já antes dele, e que constitui uma forma de apropriação de um ser humano por outro. Engels tinha observado: "na família, o homem é o burguês, a mulher é o proletariado". O nosso ecossocialismo desenvolve assim a frase de Marx para integrar explicitamente o trabalho de reprodução. A lógica capitalista que aumenta a exploração do trabalho assalariado e dos recursos naturais também tende a aumentar a opressão patriarcal das mulheres. A apropriação dos corpos das mulheres, o trabalho doméstico que elas realizam gratuitamente e a sua discriminação na esfera produtiva constituem uma forma específica de apropriação de riqueza pelo capitalismo. Esta forma deve ser posta em destaque para que a crítica deste modo de produção seja completa.

 

7. O nosso ecossocialismo tenta integrar todos estes aspetos. A opressão das mulheres é combinada com a exploração do trabalho assalariado e a pilhagem de recursos, a ruína dos camponeses independentes e a destruição das comunidades indígenas. As lutas das mulheres fazem parte da luta de classes - mas não se limitam a ela - porque a opressão patriarcal é um dos fundamentos do capitalismo. As lutas ambientais são parte integrante da luta de classes - mas não se limitam a ela - porque o apetite insaciável do capital pelo consumo de recursos é a contrapartida da sua dependência do trabalho vivo, que transforma esses recursos em valor, por um lado, e reproduz a força de trabalho no contexto doméstico, por outro. As lutas dos camponeses e dos povos indígenas fazem parte da luta de classes - embora não se limitem a ela - porque a bulimia capitalista implica a apropriação de todos os recursos e a mercantilização de todas as relações, portanto, também a proletarização generalizada.

 

O nosso ecossocialismo não é, portanto, apenas uma aliança antiprodutivista do social e do ambiental, ou seja, uma aliança social de trabalhadores, camponeses e povos indígenas: ele também leva em conta o feminismo no social e no ambiental, ou seja, o ecofeminismo socialista. Esta visão é a base da nossa estratégia ecossocialista de convergência das lutas.

 

John Bellamy Foster acredita que existe uma "Ecologia de Marx". O seu livro sobre este tema é notável e ajusta as contas com o chamado produtivismo marxista. Mas nós rejeitamos a apologética. "A ecologia de Marx", para nós, é um estaleiro inacabado, "uma crítica inacabada à economia política", como diz Saito. O nosso ecossocialismo pretende continuar a sua construção, ultrapassar os seus limites e, por vezes, as suas contradições. Esta visão sem antolhos é essencial para tomar em conta novas questões como os "direitos da mãe terra", o sofrimento dos animais, etc.;

 

8. É uma ilusão acreditar que um modo de produção baseado na apropriação do corpo das mulheres e na exploração da força de trabalho humana como recurso natural poderia gerar na maioria da população uma consciência social respeitadora dos recursos naturais e da natureza em geral. Num sistema de produção generalizada de mercadorias, ou seja, de "coisificação" generalizada, a ideologia dominante em relação à "natureza" é necessariamente a ideologia do mercado, que vê o ambiente como um reservatório de recursos gratuitos. As lutas ecológicas devem ligar e confrontar as lutas económicas e feministas para se tornarem uma força social de transformação da ordem existente. As questões do trabalho, da produção, da reprodução e do desenvolvimento são, portanto, centrais para o nosso ecossocialismo. A natureza do Homo Sapiens é produzir socialmente sua existência através do trabalho, a relação inescapável entre a humanidade e a natureza. Mas a natureza humana só existe concretamente através das suas formas históricas. A resposta à crise ecológica não consiste em "sair do trabalho", "sair do desenvolvimento", "sair do consumo", "sair do crescimento", etc., que são abstrações a-históricas. Consiste em sair do modo de desenvolvimento capitalista centrado no crescimento do lucro e do modo de distribuição/consumo/reprodução que dele resulta.

 

9. Rejeitamos a ideia de que a "natureza" sofre da humanidade como de uma doença. A humanidade é parte da natureza e transforma-a. Outras espécies transformaram profundamente a natureza. Mas a transformação pelo Homo Sapiens é diferente: longe de ser "natural", ela é historicamente determinada pelas relações sociais de produção. Assim, não existe uma "capacidade de carga" específica da espécie humana. Dependendo da produtividade laboral, a "capacidade de carga" humana variou, por exemplo, de 8 humanos/km2 para a agricultura de queimadas, 25 humanos/km2 para a agricultura sedentária precoce, 100 humanos/km2 na agricultura irrigada no antigo Egipto, etc.. A história também mostra vários casos em que o progresso na produtividade laboral foi ecologicamente positivo (na Europa Ocidental, por exemplo, a descoberta do papel das leguminosas como "estrume verde" abrandou o desflorestamento). Hoje, as tecnologias de energia renovável representam um avanço de produtividade cuja implementação generalizada é urgentemente necessária para evitar a mudança climática para um "planeta forno". No entanto, no quadro capitalista, produtivista e "crescimentista", estas tecnologias são um acréscimo aos combustíveis fósseis e não um substituto para eles. Elas são implementadas ao serviço do lucro, no âmbito da acumulação de capital. É por isso que elas não param a destruição ambiental. Assim, é claro que o problema não é o progresso em geral, mas aquilo que Michael Löwy chama de "progresso destrutivo" do modo de produção capitalista. Este "progresso" está produzindo, diante dos nossos olhos e a um ritmo cada vez maior, uma natureza transformada e empobrecida. Está destruindo milhares de formas de vida, ameaça a existência de centenas de milhões de pessoas pobres, faz pairar o risco de a humanidade resvalar para a barbárie, podendo até mesmo, eventualmente e em última instância, ameaçar a espécie humana como um todo.

 

10. Não existe em lugar algum uma "verdadeira natureza" intocada. Aqueles que pensam que "a verdadeira natureza é a natureza sem o Homo Sapiens" não têm solução para a crise sistémica. A sua única alternativa lógica seria desejar o desaparecimento dos humanos (neste caso, que dêem eles o exemplo!)... Diante dessas conceções misantrópicas, a cosmogonia dos povos indígenas (Mãe Terra) é uma fonte de inspiração. Mas não nos enganemos: esta cosmogonia não implica "defender os bens comuns", que o seriam por natureza. De facto, esta noção de bens comuns implica, por sua vez, que alguns bens não seriam comuns por natureza. Pelo contrário, trata-se de afirmar a legitimidade de um processo de construção social DO COMUM. Este processo de definir democraticamente o que queremos estabelecer como comum não está limitado a priori por qualquer natureza das coisas. Uma sociedade eco-comunista, sem classes, assemelhar-se-á em alguns aspetos às chamadas sociedades "primitivas". Irá instituir O comum. Mas será, no entanto, bastante diferente, dado o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Esta sociedade desenvolverá uma conceção das relações homem-natureza que provavelmente se assemelhará em alguns aspetos às dos povos indígenas, mas também será diferente. Uma conceção em que as noções éticas de precaução, respeito e responsabilidade, assim como o maravilhamento com a beleza do mundo, serão constantemente alimentadas por uma compreensão científica cada vez mais refinada e cada vez mais claramente incompleta. Pois quanto mais as ciências progridem, mais estão conscientes do que não explicam...

 

28 de outubro de 2018

 

 

 

 

(*) Daniel Tanuro é um engenheiro agrónomo e ambientalista belga, membro da ONG Climat et justice sociale, militante na LCR-La Gauche e colaborador habitual dos sítios Europe Solidaire sans Frontières e Climate and Capitalism. É autor de L’impossible capitalisme vert, La Découverte, Paris, 2010 (publicado em Portugal como O impossível capitalismo verde, Edições Combate, Lisboa, 2012), Le moment Trump. Une nouvelle phase du capitalisme mondial, Demopolis, Paris, 2018 e co-autor de Pistes pour un anticapitalisme vert, Syllèpse, Paris, 2010. Foi também autor do longo ‘Relatório sobre mudanças climáticas adotado para servir de base à resolução que seria tomada sobre o assunto no 16.º Congresso Mundial da IV Internacional (Secretariado Unificado) em março de 2010. O presente texto resulta de uma apresentação feita na Escola de Ecologia do Centro de Pesquisas e Estudos Alternativos (CARES) de Senlis-sur-mer, Ilhas Maurícias, revista pelo autor para publicação em O Comuneiro. A tradução é de Ângelo Novo.