Introdução

 

 

 

O mundo está em guerra. Com base na informação científica de que dispõe, a classe dirigente chinesa está aparentemente convicta de que foi alvo de um ataque biológico em Wuhan, de que resultou a atual pandemia mundial de covid-19. E não faz qualquer esforço para o ocultar. Não lançando abertamente a acusação (que seria, obviamente, um casus belli irreversível e inadiável) multiplica os sinais para evidenciar que tomou a devida nota e está alerta. Agora já nada mais será como dantes, mesmo que voltemos a ver cimeiras sorridentes sino-americanas. Prosseguirá a dissociação e a implacável disputa no terreno, palmo a palmo. Entretanto, seja por sua inépcia criminosa e irresponsável, ou pelo que quer que fosse, o fedor da peste lançada aos ventos virou de rumo espetacularmente, em perseguição dos senhores do mundo. As paisagens sociais devastadas pelo neoliberalismo são as mais vulneráveis. Wall Street está em queda livre, com algumas sacudidelas esporádicas. A recessão é certa, uma depressão possível. É preciso imprimir mais uns tantos biliões de dólares e euros para poder continuar manter a economia a flutuar sobre os abismos insondáveis da dívida. Lá se vai o Green New Deal! Muito mais urgente agora é, certamente, socorrer as companhias aéreas, os cruzeiros turísticos, os hotéis, as petrolíferas do “fracking”, a Boeing, a banca ultracorrupta. A integridade do planeta não consta entre os objetivos das forças políticas “sérias” em nenhuma parte do mundo ocidental. Assim vamos.

 

Avançando para além da controvérsia científica e geopolítica sobre as causas, é fascinante observar as posições que se manifestaram quanto à resposta a dar à pandemia. Do lado dos neofascistas e dos neoliberais (aliás, de forma cada vez mais patente, a mesmíssima gente), foi indisfarçável a tentação de sacrificar as pessoas aos lucros, imediatamente, de uma forma flagrantemente literal. Enquanto se faz a contabilidade mórbida diária e se projetam as competentes simulações matemáticas. Tanto mais que, na sua perspetiva, as pessoas em causa constituíam já um peso orçamental excessivo. O problema é mesmo esse estorvo absurdo da democracia. Até quando é que o “são” (malthusiano) funcionamento dos mercados vai continuar a ser obstruído por políticos demagogos? Assim se interrogam Bolsonaro, Trump, Johnson e muitos outros em surdina. Essa é, na verdade, a questão do dia para a política burguesa. Do outro lado, quem se pronuncia pelo cuidado estatal pela saúde pública, apegando-se à democracia, vai logicamente tender a afastar-se do consenso neoliberal imposto pelo meridiano de Washington. Um cisma em perspetiva? A seguir.

 

Não é muito frequente publicarmos nesta revista textos de autores não contemporâneos, mas desta vez vamos abrir este número com um famoso ensaio de Walter Benjamin (1892-1940), que é, precisamente, em muitos sentidos, um aviso precursor da nossa contemporaneidade. Fazemo-lo, não porque este texto precise de divulgação ou comentário suplementares (que os tem tido, de grande qualidade), mas porque queremos reclamá-lo para nós, militantes políticos anticapitalistas. Julgamos ser mais do que tempo de o resgatar do círculo restrito da cultura universitária, lançando-o ao debate entre aqueles que descem à rua em luta, lutando, no mesmo passo, por um sentido para essa luta. É ainda sob o signo de Walter Benjamin que publicamos, de Michael Löwy (um dos melhores intérpretes benjaminianos), uma enumeração de alguns os mais importantes tópicos abordados por este filósofo dos inícios do século XX, que hoje nos parecem tão assombrosamente atuais.

 

A crítica marxista do capitalismo é uma componente essencial de qualquer estratégia credível para nos resgatar da aceleração em curso rumo à catástrofe. Jaime Vindel retraça as origens e sumaria os contributos mais marcantes da corrente ecossocialista contemporânea, contrapondo esta com a perspetiva daqueles que dão já como certo o colapso civilizacional, tentando criar novos horizontes de sociabilidade a partir daí. Daniel Tanuro é um dos ecossocialistas que mais duramente tem combatido esta corrente colapsista, e propõe-nos dez orientação estruturantes para uma estratégia de luta revolucionária ecologista e feminista deste lado do Armagedão.

 

John Bellamy Foster e os seus companheiros da Monthly Review providenciam das orientações teóricas mais lúcidas e seguras que podemos encontrar nestes tempos difíceis e cruciais. A luta pela sobrevivência da humanidade passa pela identificação do sistema imperialista mundial – com o seu planeamento estratégico de dominação de largo espectro, incluindo o controlo sobre recursos energéticos e naturais - como sendo o seu inimigo mais nefasto e tenaz. A luta é mundial, passando também, naturalmente, pelo interior das metrópoles capitalistas centrais. Tendo em conta um contexto essencialmente europeu, Panagiotis Sotiris, na esteira do desafio legado por Daniel Bensaïd, propõe-se pensar uma estratégia emancipadora coerente para as classes trabalhadoras, tirando já a devida lição das suas mais recentes derrotas.

 

Marcos Barbosa de Oliveira traça alguns dos efeitos mais nefastos que o neoliberalismo tem trazido à investigação científica, degradada em serventuária da lucratividade imediata. Ângelo Novo, também ele em registo benjaminiano, resgata para a luta atual alguns temas da história antiga. Afinal, não é assim tão velha a luta de classes e alguns padrões têm tendência a reproduzir-se, ainda que de forma transfigurada. Os bárbaros estão aí novamente à porta. Os profetas também. Saiba a humanidade tirar disso o melhor proveito.

 

As lições dos nossos melhores mestres não podem ser perdidas, em particular as ainda bem recentes e sobre circunstâncias históricas que estão longe de superadas. Ivonaldo Leite recenseia e comenta teses de Theotonio dos Santos sobre o neoliberalismo, extraídas do seu último livro. A teoria da reprodução social é um dos grandes desenvolvimentos do marxismo nas últimas décadas e serve não apenas para proporcionar uma sólida base para a mais recente luta feminista. Thiti Bhattacharya explica-nos como pode ser um instrumento precioso para uma reconfiguração e recolocação da classe trabalhadora enquanto sujeito político, a complementar necessariamente com esforços organizativos inovadores e criativos.

 

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Os Editores

 

Ângelo Novo

 

Ronaldo Fonseca

 

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