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Outubro e nós (Parte IV)
Ângelo Novo (*)
O juramento de Estaline
”Ao deixar-nos, o camarada Lénine legou-nos o dever de manter alto e preservar na sua pureza o glorioso título de membro do partido. Juramos-te, camarada Lenine, que cumpriremos com honra este ensinamento! (...)
Ao deixar-nos, o camarada Lénine legou-nos o dever de preservar a unidade do partido como a menina dos nossos olhos. Juramos-te, camarada Lenine, que cumpriremos com honra este ensinamento! (...)”
Estes e mais uns quantos juramentos enfáticos, monocórdicos e rituais – de proteger e fortalecer a ditadura do proletariado, de reforçar a aliança operário-camponesa, de fortalecer e expandir a União Soviética, de ser fiel aos princípios da Internacional Comunista - foram proferidos, com um zelo litúrgico nada marxista, pelo ex-seminarista Estaline, perante o II Congresso dos Sovietes da União Soviética, na véspera do funeral do seu fundador. Foi também aí que se aprovou, sem discussão, o embalsamamento do corpo de Lenine e sua exposição permanente num mausoléu a construir na muralha do Kremlin. Petrogrado, a cidade da revolução, passaria a ser denominada Leninegrado. Criaram-se o Museu Lenine e o Instituto Lenine. Todo o tipo de instituições soviéticas passou a ter o seu “canto Lenine”. Retratos, bustos e estátuas do defunto disseminaram-se por todo o lado, em espaços públicos e privados.
A promoção do culto de Lenine foi uma operação politicamente motivada que encontrou no país um ambiente cultural extraordinariamente recetivo. Mesclou-se à vontade com a tradição bizantina e ortodoxa. Em certo sentido foi também algo de natural, no sentido em que Lenine - o que quer que o próprio pudesse pensar sobre o assunto (provavelmente, antes de pensar o que quer que fosse, soltaria uma das suas caraterísticas gargalhadas sonoras) - foi, indiscutivelmente, um profeta e um santo. O seu halo ainda hoje é bem visível em certas fotografias. Nota-se nele, claramente, o toque e a respiração encefálico-corpórea próprios do que em linguagem teológica se denomina graça. O que condiz, ademais, com o sentido unívoco e missionário que ele desde muito cedo atribuiu à sua própria vida. Entretanto, o seu único posto político oficial, a presidência do Sovnarkom, foi confiado a alguém de perfil bem mais prosaico, Aleksei Rykov, um administrador dedicado, pouco ambicioso e inclinado à moderação.
A primavera de 1924 foi notável sobretudo pela grande renovação operada nos quadros de militantes do Partido Comunista. Houve, por um lado, uma purga, que recaiu desproporcionadamente sobre elementos da oposição. Por outro lado, em cumprimento do que se deliberara na 13.ª conferência, abriu-se as portas do partido a uns 200.000 operários, no que se denominou como o “recrutamento Lenine”. Ostensivamente, o partido tentava assim retomar e aprofundar o seu enraizamento na classe operária. Estes operários, porém, não eram da mesma têmpera dos que aderiram ao partido nos tempos do czarismo ou da guerra civil. Muitos deles aderiram sobretudo pelas garantias acrescidas de segurança no emprego que advinham da qualidade de membro do partido, sendo assim pessoas particularmente dispostos ao conformismo e à obediência.
Enquanto se erguia um enorme aparato nacional de culto leninista, Estaline esforçava-se por se posicionar como um discípulo modesto, mas aplicado e confiável, do defunto dirigente da revolução bolchevique. Na sequência de uma série de conferências na Universidade Sverdlov, foram publicadas no Pravda as suas preleções aos novos recrutas do partido (1). Estaline desenvolvera, na sua juventude, um sincero e devotado culto heroico de Lenine. Este fora, sem dúvida, o seu mestre e o seu guia. Toda a sua vida foi moldada na imitação deste modelo de pensador e homem de ação (2). É mesmo razoável dizer-se que, entre os mais conhecidos “velhos bolcheviques”, Estaline foi o único que nunca verdadeiramente dissidiu intelectualmente do seu ídolo (talvez porque nunca tenha possuído uma mente verdadeiramente inquiridora, sendo antes um homem de ação que usa a teoria como instrumento ao serviço imediato dos seus objetivos práticos). Agora que se via livre das incómodas arestas da personagem viva, estava à vontade para erigir uma ortodoxia leninista à medida do que sentia serem as necessidades da revolução, o que numa grande parte coincidia (ou dependia) das necessidades da consolidação progressiva do seu próprio poder pessoal.
A situação económica do país dava sinais de estabilidade e de recuperação, o que enfraquecia o alcance dos argumentos da oposição. Uma complexa e morosa reforma monetária tinha sido levada a bom termo, a escalada de divergência entre preços agrícolas e industriais (as “tesouras”) tinha sido travada e revertida, a produção industrial conhecera alguma retoma e tinha-se posto um freio ao abuso nos atrasos do pagamento de salários aos operários (em parte porque o valor da moeda estabilizara).
Entretanto, aproximava-se a data da realização do 13.º congresso do partido e Nadezhda Krupskaya não podia mais permitir que se adiasse a revelação e discussão do “testamento” de Lenine. O documento foi lido no comité central perante um Estaline lívido, que logo ali recebeu a solidariedade e o apoio prestimoso de Zinoviev e Kamenev. Decidiu-se ignorar as recomendações do defunto dirigente quanto à não recondução de Estaline no cargo de secretário-geral do partido. Decidiu-se ainda que o documento não seria lido no plenário do congresso, mas apenas a um conjunto reduzido de delegados regionais. Sobre tudo isto, Trotsky manteve-se uma vez mais calado. No congresso continuaram os ataques à oposição, que foi convidada por Zinoviev a confessar publicamente os seus erros. Trotsky, reeleito à justa para o comité central, recusou retratar-se, mas reconheceu o princípio da infalibilidade histórica do partido. Sem aliados, manteve-se na defensiva.
A “bolchevização” da Internacional Comunista toma um grande impulso sob a direção de Zinoviev. São afastados vários militantes franceses, alemães e polacos, devido à sua lealdade duvidosa para com o novo cânone “leninista”, que era cada vez mais explicitamente antitrotskista. Trotsky entende reagir por meio da pena, a sua melhor arma. Para o volume III dos seus “escritos e discursos” escreve um longo prefácio com uma avaliação histórica da ação revolucionária de Petrogrado em 1917, por ocasião do seu sétimo aniversário (3). Zinoviev e Kamenev são duramente criticados pelo seu papel antirrevolucionário no outubro russo, que é confrontado com o seu alegado papel derrotista no outubro alemão de 1923. O ataque era muito pouco subtil e mereceu uma resposta devastadora. Trotsky foi submergido por uma imensa campanha de protestos orquestrados e de violentíssimas refutações, as quais não se esqueceram de desenterrar laboriosamente todas as polémicas antigas havidas entre ele e Lenine. A teoria da “revolução permanente” é assinalada como uma heresia antibolchevique, sendo igualmente reprovada a “subestimação do campesinato” por parte de Trotsky, assim como muitas das suas decisões militares.
Bukharine e Preobrazhensky, antigos comunistas de esquerda co-autores do ABC do Comunismo, estavam agora em campos absolutamente opostos na apreciação da NEP, tendo conduzido sobre ela uma polémica aprofundada (4). Preobrazhensky expõe a sua teoria da “acumulação primitiva socialista”, com base no exercício de uma constante punção neocolonial sobre o mundo rural (por meios fiscais e de política de preços) com vista a promover uma acelerada industrialização de iniciativa estatal, devidamente planificada (5). Bukharine defende o avanço para o socialismo a pequenos passos (ademais “passo de tartaruga”), arrastando gentilmente à retaguarda a grande carroça camponesa. A seu ver, só a acumulação e modernização nas explorações agrícolas permitiria, por meio da livre troca mercantil, que se reunissem os recursos para erigir uma indústria de equipamentos e de bens de consumo de grandes dimensões. Ao longo de algumas décadas, far-se-ia então a socialização da agricultura, de modo voluntário, por meio do cooperativismo, que abraçaria sucessivamente a armazenagem, a venda, o crédito e, por fim, a produção. Para este seu plano, buscava legitimação em alguns dos últimos escritos de Lenine (“Sobre a cooperação” e “É melhor menos, mas melhor”).
Bukharine considera “monstruosa” a ideia de uma industrialização acelerada com base numa extensa e forçada drenagem de valor a partir do labor campestre. Desse modo seria fatalmente posta em causa a aliança operário-camponesa, a paz civil e, por fim, a subsistência do regime soviético. Embora simpatizasse com as ideias da oposição quanto à necessária democratização da vida partidária, as suas opiniões económicas aferravam-no solidamente à maioria, da qual se começou a destacar como o principal teórico. A ideia de “socialismo num só país” começa assim a tomar forma, num contexto polémico. Estaline - que nunca fora um cosmopolita - lança-a expressamente como palavra de ordem política em dezembro de 1924 (6).
Socialismo num só país era um projeto político completamente diverso do que conduzira até à tomada do Palácio de Inverno, em outubro de 1917. Agora renunciava-se por completo à ideia de forçar uma viragem histórica a nível mundial, em direção ao comunismo, a partir das sociedades capitalistas mais desenvolvidas. Não iríamos mais servir de parteiros a um novo mundo cooperativo e não proprietário, com base na ciência e na organização laboral mais evoluídas. Agora, partindo de uma situação de grande atraso, desolação e isolamento, tentar-se-ia erguer em bases nacionais – com um doseamento adequado de planeamento e automatismos mercantis – uma civilização industrial capaz de ombrear com as demais, antes de as suplantar. Tudo isto sem qualquer alteração assinalável nas relações de produção dominantes. No máximo, com uma vaga tendência para o predomínio da propriedade estatal dos principais meios de produção. O único garante deste “socialismo” era a imposição de um monopólio do poder político por parte do Partido Comunista, que se julgava teoricamente equivalente à vigência da ditadura do proletariado. A própria NEP começou a deixar de ser considerada uma retirada temporária, passando a ser vista como uma estratégia válida de construção socialista.
Este projeto sucedâneo era, em parte, o fruto irrecusável das circunstâncias. Mas era impossível fazer com que fosse encarado de modo uniforme e com o mesmo ânimo por todos os revolucionários de outubro, mesmo que pudéssemos abstrair-nos da questão das suscetibilidades e do choque de personalidades. Lenine pereceu em luta pela revolução socialista mundial, sem ter conseguido deixar claramente delineada uma nova estratégia para o seu prosseguimento a partir da mísera cabeça-de-ponte conquistada em terras russas. Com a sua prolongada agonia física, e mais ainda após a sua morte, tornou-se completamente impossível continuar a manter a unidade quanto ao rumo a seguir entre a camada dirigente do partido bolchevique. O que se passaria de seguida, sob o pano de fundo da luta de classes - e de uma fissura cada vez mais exposta na aliança operário-camponesa - foi uma série de coalizões e choques cruzados entre diversas visões estratégicas (e os correspondentes egos portadores), sendo que, numa apreciação atual, nenhuma delas apresentava qualquer viabilidade plausível de conduzir ao comunismo. A batalha pela emancipação e empoderamento da classe trabalhadora já ficara para trás, completamente perdida, soterrada nas minutas partidárias de discussão e votação da “questão dos sindicatos”.
Em janeiro de 1925, chamuscado pela “questão literária” que lavrara furiosamente contra si ao longo de todo esse inverno, Trotsky sentiu-se forçado a apresentar a sua demissão de comissário do povo para o Exército e a Armada, bem como da presidência do Comité Militar Revolucionário. Unido no combate a Trotsky, o triunvirato começa, entretanto, a dar sinais de tensão a partir da primavera desse mesmo ano. Em abril, na sequência da colheita medíocre do ano anterior, a NEP dá um salto qualitativo com a política de “encarar os campos” decidida na 14ª conferência do partido. Os impostos são reduzidos, os preços fixos dos cereais relaxados, os arrendamentos rurais prolongados e o assalariamento de trabalhadores permitido em contingentes superiores e em maior número de circunstâncias. Os beneficiários principais são os grandes camponeses, que começam a partir daí a destacar-se de forma conspícua num panorama de crescente diferenciação social no mundo rural. Foi por esta altura que Bukharine, numa alocução pública, incitou os camponeses, de todas as dimensões, a “enriquecerem-se” sem receio de interferências por parte dos poderes públicos. Chegou a discutir-se seriamente a desnacionalização do solo.
Ascende então no partido bolchevique uma “nova oposição” centrada em Leninegrado, a capital da desolação na grande indústria de equipamentos. Zinoviev começa a usar uma retórica pró-operária e denuncia abertamente a predominância dos interesses mercantis da aliança entre kulaks e nepmani. Kamenev segue-o, como habitualmente. Nadzhejda Krupskaya e Grigori Sokolnikov dão também um apoio claro. No 14º congresso do partido, realizado em dezembro de 1925, os delegados leninegradenses apresentam-se isolados face à grande massa arregimentada pelo aparelho nacional. Kamenev levanta-se corajosamente para denunciar a acumulação de poder no secretário-geral. A nova oposição é rotundamente batida, perante o completo alheamento de Trotsky. Depois disso, a base de poder de Zinoviev em Leninegrado é ostensivamente desmantelada por uma arremetida administrativa. O seu lugar no Smolny é oferecido a Sergei Kirov (1886-1934), um dirigente por então pouco conhecido, com folha de serviços no Cáucaso.
Começa o período do duunvirato Estaline-Bukharine. O secretariado dirigido por Estaline domina cada vez mais apertadamente toda a vida partidária corrente. Bukharine domina a vida literária e ideológica a partir das suas tribunas no diário Pravda e no novo bissemanário do comité central Bolshevik. Para além disso, a sua ascendência intelectual fazia-se sentir no Instituto dos Professores Vermelhos em Moscovo e, a partir daí, na generalidade das academias soviéticas. A partir de outubro de 1926 passa também a dirigir o comité executivo da Internacional Comunista, substituindo Zinoviev. Rykov e Tomsky, destacados dirigentes da ala direita, eram então o suporte mais direto de Bukharine.
Após algumas difíceis conversações exploratórias, articula-se então uma oposição unificada Zinoviev-Kamenev-Trotsky. Membros dos “quarenta e seis” e das antigas oposições operária e do centralismo democrático aderem também. Contra as prevenções de Trotsky (que antevia uma luta prolongada, difícil e incerta) Zinoviev e Kamenev estavam fiados numa vitória pronta, com base numa medição estimativa da sonoridade dos nomes. Era realmente uma reunião impressionante de intelecto, experiência e prestígio militante, mas as portas para o poder ser-lhes-iam completamente barradas. A primeira evidência pública desta nova articulação ocorreu num plenário do comité central de julho de 1926. Foi erguida uma organização clandestina com ramificações profundas a nível regional. Realizaram-se reuniões secretas nos bosques, com senhas, piquetes, correios. Mas a atividade de esclarecimento e mobilização nas células do partido logo se revelou completamente impossível. O estado de espírito geral reinante entre a classe operária não era favorável a um levantamento inconformista, nem ao confronto com os sicários do aparelho partidário.
Perante a ameaça de exclusão do partido, a cúpula oposicionista opta em outubro por negociar um compromisso, renunciando expressamente ao recurso a “métodos fracionários” de luta política. Mas precisamente então Max Eastman resolve publicar no New York Times o “testamento” de Lenine. Furioso, Estaline acusa a oposição de duplicidade traiçoeira e dá o compromisso como sem efeito. A oposição é esmagada e dispersa na 15ª conferência do partido, em novembro-dezembro de 1926. Trotsky, Zinoviev e Kamenev foram afastados do Politburo ao longo desse ano. A partir daí a oposição passa a ter uma atividade escassa e esporádica, sempre na expetativa de um desenvolvimento internacional favorável.
As questões internacionais que tiveram mais impacto político na vida soviética em 1927 foram o massacre dos comunistas chineses em Xangai - pelos seus forçados aliados nacionalistas do Kuomintang - e o corte de relações diplomáticas com a Inglaterra, que fez pairar novamente o espectro da guerra. A primeira questão foi exaustivamente glosada pela oposição, para demonstrar a existência de uma linha de traição à revolução proletária mundial, no Kremlin e na Internacional Comunista. Por esta altura, uma inflexão nas posições de Bukharine poderia ter proporcionado um compromisso em matéria de política económica, mas o debate sobre questões internacionais atingia então uma grande intensidade e acrimónia, num ambiente de alguma ansiedade securitária. A acusação de ser thermidoriana era brandida obsessivamente contra a maioria. Numa reunião do comité central, face a face com Estaline, com uma violência inolvidável, Trotsky designou-o como candidato ao posto de coveiro da revolução.
Falhou, por então, uma tentativa de excluir em bloco os oposicionistas com assento no comité central. Publica-se depois a Plataforma da Oposição (7) e é conduzido em seu torno um último grande esforço de agitação clandestina. A 7 de novembro, nas comemorações do 10º aniversário da revolução, há manifestações separadas da oposição em várias cidades, sob as suas próprias palavras de ordem. Ocorrem cenas de violência. Trotsky e Zinoviev, excluídos do comité central no mês anterior, são então excluídos do próprio partido. Por fim, o 15.º congresso do partido, reunido em dezembro, destroça por completo a oposição unificada. Zinoviev e Kamenev capitulam totalmente, abdicando para sempre de ter uma opinião própria em troco da possibilidade de virem ainda, mais tarde, a ser reintegrados no partido. Os irredutíveis são, em definitivo, proscritos e deportados. Em janeiro de 1928 Trotsky segue para Alma-Ata, na Ásia Central, já perto da fronteira chinesa. Passaria aí um ano, até ser expulso para a Turquia, em fevereiro de 1929 (8).
Ao nível das relações de produção industriais, em todo o período da NEP travou-se batalha ao longo das linhas definidas pela resolução leninista da “questão dos sindicatos”, no X Congresso de 1921. Por vezes, os gestores profissionais ganhavam maior ascendente para impor o seu despotismo unilateral; por vezes os sindicatos e coletivos laborais ganhavam alguns espaços de participação na administração das unidades industriais estatizadas, por intermédio das designadas “conferências de produção”. 1928 foi um ano charneira, que começou com forte agitação operária de crítica ao autoritarismo, para terminar com uma derrota histórica dos trabalhadores. Os sindicatos deixaram em definitivo de ter qualquer participação na gestão industrial. Ao longo deste período, Estaline expressou, por várias vezes, a sua opinião a favor da participação dos trabalhadores, aderindo por fim, alguns anos depois, à sua conhecida tese de que “os quadros decidem tudo” (9). Por choques e ajustamentos sucessivos, concluiu para si mesmo que essa coisa de poder dos trabalhadores afinal não funciona. O que funciona mesmo é o poder sobre os trabalhadores. O velho Lenine era um ingénuo em certas coisas… E continuou a considerar-se um leninista indefetível, o mais rigoroso e fiável de todos eles.
O movimento de “emulação socialista”, atuante entre 1927 e 1929, chegou a equacionar a tomada do processo produtivo por uma grande onda de iniciativa de massas, com ação transformadora sobre as próprias forças produtivas. Na verdade, resultou apenas na orquestração de surtos de intensificação dos ritmos de trabalho, precursores do que seria mais tarde o stakhanovismo. A direção operária do processo produtivo deixou, por então, de ser considerado um objetivo político norteador da ação do partido comunista no poder, sendo substituído pela preocupação de “alcançar e ultrapassar” os níveis de desenvolvimento económico dos países capitalistas mais avançados. Este estribilho, da autoria de Bukharine, fizera a sua aparição na linguagem dos dirigentes soviéticos em novembro de 1926 e estaria votado a um grande e prolongado sucesso.
Alcançar e ultrapassar significa, inequivocamente, tentar conseguir mais do mesmo. Mais do mesmo desenvolvimento, mais da mesma acumulação socialmente polarizadora, com estrita divisão entre as tarefas de planificação e de execução. Em compensação, criaram-se efetivamente, de forma profusa, mecanismos de cooptação e escolas de formação que permitiram a ascenção a quadros dirigentes de muito pessoal de origem operária e camponesa. É inegável que as elites dirigentes da Rússia e suas nações periféricas sofreram, nas primeiras décadas da União Soviética, uma renovação sem paralelo, pela sua profundidade e extensão, sem deixarem, contudo, de permanecerem isso mesmo (10).
Em março de 1928 rebentou a questão da alegada conspiração dos engenheiros técnicos das minas de Chakhty (Donbass), o primeiro dos julgamentos-espetáculo orquestrados por Estaline. Entrou em cena o promotor público Andrei Vyshinsky. As acusações de sabotagem deliberada a soldo de potências estrangeiras foram inteiramente fabricadas. Confissões, lágrimas, raiva e amargura. Foi também o primeiro de uma extensa série de processos públicos por sabotagem contra gestores, especialistas industriais burgueses, planificadores, economistas, mesmo cientistas puros. Uma grande parte dos visados por estes processos não era inteiramente sacrificada. Era internada em condições mais ou menos amenas no “primeiro círculo” dos campos penais, onde continuava a laborar em prol da revolução, por vezes na companhia e em diálogo com técnicos e especialistas estrangeiros contratados.
À repressão e depuração veio juntar-se uma grande campanha de formação e promoção de técnicos de origem proletária que ficou conhecida (aproveitando de forma algo enviesada uma palavra de ordem de Lenine) como a “revolução cultural” (1928-1931). Os assim “promovidos” não se notabilizavam especialmente pela sua consciência de classe ou destreza no tratamento de conceitos marxistas. As suas marcas distintivas mais típicas eram antes o carreirismo e o conformismo com as orientações superiores. Estas novas elites absorveram, aliás, prontamente, uma grande parte dos preconceitos ideológicos da velha intelligentsia russa, como o nacionalismo e o culto fetichista do progresso. Entretanto, uma vez constituída e colocada nas vastas folhas de pessoal dirigente do serviço público, esta nomenklatura passou a reproduzir-se a si própria de forma essencialmente endogâmica. Não houve mais vagas de promoção operária.
A transformação das relações de produção deixou de ser considerada uma tarefa revolucionária prioritária. Ou melhor, face aos impasses persistentes nesta frente, o problema foi como que empurrado para a frente com a barriga. O entendimento agora era que, sob a ditadura do proletariado (devidamente representado este pelo seu partido de vanguarda), o desenvolvimento técnico traria, por si só, automaticamente, o desejado nivelamento igualitário na organização laboral e na participação na vida política. A crítica do “burocratismo” dentro do partido e dos organismos do Estado passa a ser um ritual inconsequente. Os trabalhadores deixam de ser considerados elementos ativos de transformação social, para serem encarados como recipientes passivos de uma educação que lhes seria ministrada pela evolução técnica, em espacial pela progressão dos instrumentos de produção. Como já foi justamente salientado, este materialismo mecanicista era, na verdade, a expressão ideológica de um determinado interesse de classe (11).
Mal acabara de ser desmantelada a oposição unificada e logo a situação social se altera radicalmente, baralhando por completo, para tornar a dar, as cartas no jogo político. No início de 1928 o regime soviético foi confrontado com uma redução crítica na coleta de cereais. Os organismos económicos estatais e as cooperativas oficialmente reconhecidas encontraram muito menos produto agrícola à venda, quando a colheita tinha sido mais do que razoável. Os kulaks levantavam a cabeça. Dotados já de grande poder económico e alguma organização, retinham produto à espera de uma melhoria nos temos de troca. O problema não era tanto o dos kulaks enquanto classe (a sua expressão social e até económica era diminuta), mas o da direção e arrastamento que eles exerciam sobre o conjunto do campesinato (12).
O abastecimento alimentar às cidades estava novamente em perigo e teve de ser assegurado com recurso a medidas extraordinárias reminiscentes do comunismo de guerra. Houve resistência localizada. Esporadicamente, até algumas emboscadas mortais. Requisições e confiscos imprevisíveis quebravam a confiança mínima que os camponeses tinham de ter para planificar as suas sementeiras. Havia o risco de um círculo vicioso entre repressão e redução dos cultivos. Manter as cidades, ano após ano, sob ameaça de fome, não era uma opção possível para o poder soviético. Algo tinha de ser feito, que iria necessariamente pôr em causa a estrutura fundiária que resultara da revolução agrária espontânea e do “decreto da terra” de 1917. A crise do abastecimento de cereais foi indubitavelmente real. As exportações cessaram. As carências levaram ao racionamento. Certos autores afirmam que ela foi, em grande parte, provocada. Em qualquer caso, foi hábil e exaustivamente explorada por Estaline, até ao limite.
Estava, assim, posta em causa a aliança operário-camponesa e também a unidade na cúpula dirigente do partido bolchevique. Era inescapável a bifurcação entre as duas linhas estratégicas que se definiram para a revolução soviética após a morte de Lenine: a de Trotsky-Preobrazhensky e a de Bukharine. Estaline navegou entre as duas, teorizando à medida das circunstâncias, com igual convicção, acotovelando toda a gente até se achar finalmente sozinho no palco do poder. No entanto, é certo que já desde 1925, pelo menos, ele vinha arquitetando, em semi-surdina, o seu próprio projeto político.
Contrariamente à generalidade dos direitistas, Estaline mantinha um projeto de revolução internacional. Contudo, não colocava as suas esperanças nas classes operárias dos países capitalistas mais desenvolvidos, como era a norma bolchevique, na tradição marxista. Estaline era um ávido leitor de história russa e, para ele, o socialismo era uma nova missão redentora mundial deste povo eleito. Lenine seria um profeta eminentemente russo. A expansão da boa nova far-se-ia, em princípio, em zonas sucessivas de contiguidade geográfica. Era uma autodefesa da nação socialista. Se ela não quisesse ver-se aniquilada pelos inimigos que a rodeavam por todos os lados, teria que os confundir, lançá-los uns contra os outros, aproveitando os ensejos assim criados para expandir as suas próprias fronteiras imperiais. Nesta matéria, não se lhe pode negar que foi presciente. Quanto à industrialização acelerada, a que acabou por aderir, e a coletivização/mecanização imediata dos campos, eram para ele ditadas, sobretudo, por considerações militares (13).
Estalaram, pois, à luz do dia, divergências inconciliáveis que vinham já a manifestar-se há alguns anos, de forma larvar, entre a clique estalinista (Molotov, Voroshilov, Kalinine, Ordzhonikidze, Kirov, Kosior, Rudzutak), dita “centrista”, e a ala direitista de Bukharine, Rykov e Tomsky. A luta pelo poder foi novamente encarniçada e, desta feita, o desfecho manteve-se em aberto durante vários meses. Em questão estava o planeamento económico, o ritmo em que se deveria prosseguir a industrialização do país, a prioridade a conceder à indústria pesada (de bens de produção), a dimensão e forma da punção económica a exercer para o efeito sobre o conjunto do campesinato, a extensão, rapidez e nível de coerção com que se promoveria a coletivização e mecanização dos campos.
A NEP estava definitivamente posta em causa. O naufrágio final dos seus últimos defensores deu-se no plenum do comité central e na conferência do partido bolchevique, realizados em abril de 1929. Estaline e Kuibyshev soavam agora estranhamente “trotskistas”, reciclando diretamente argumentos do arsenal teórico de Preobrazhensky. Abraçaram projetos de que escarneciam polemicamente, ainda há bem pouco tempo. O certo é que, contra os avisos de Trotsky, muitos antigos oposicionistas voltaram a alistar-se ao serviço do Estado soviético, mediante algumas abjurações de circunstância. Adiante se fariam novos e definitivos ajustes de contas. Para já, eram os “hiperindustrializantes” que tinham de pedir licença para reembarcar na sua própria nave. Planificação integral contra a anarquia do mercado, era agora a panaceia oficial desta “esquerda” bolchevique reencontrada, para superar paulatinamente as relações de produção capitalistas.
Em 1928, entrara já em vigor o primeiro plano quinquenal arquitetado pelo Gosplan segundo a nova ortodoxia económica. O partido entendia-se agora como uma entidade “monolítica”. Na verdade, trata-se já de uma gigantesca máquina burocrática rigorosamente hierarquizada, disposta por sucessivas coutadas de nomeação pessoal, tendo no seu vértice supremo o secretário-geral (gensek). Estaline reuniu em seu torno um formidável aparelho de poder pessoal num edifício de seis pisos na Praça Staraya, onde ainda hoje está sediada a presidência de Vladimir Putin. Estas acomodações nada tinham de comparável com o modesto escritório de que se servia Lenine no Kremlin, com biblioteca, telefones, o seu secretário Vladimir Bonch-Bruyevich e algumas estenógrafas.
Os bolcheviques da primeira hora eram agora uma minoria no partido, exceto no comité central da União. Os komitetchiki da luta clandestina cediam o lugar aos apparatchiki (14). No final de 1929, as extravagantes comemorações públicas do 50.º aniversário do “camarada Estaline” (mais tarde a sua data de nascimento seria retificada), assinalaram um flagrante declive na via para o poder cesarista e para o que mais tarde seria qualificado como o “culto da personalidade”.
A “terceira revolução”
1929 começou com grandes agitações camponesas contra as perquisições e confiscos. Nas cidades, o descontentamento era também grande, fazendo lembrar os tempos da revolta de Kronstadt. Ao longo do ano esteve em desenvolvimento um processo de coletivização dos campos, de uma forma cada vez mais forçada. As herdades cooperativas (kolkhozes), com diversos graus de integração coletivista (o toz, o artel e a kommuna), começaram por mobilizar de forma voluntária um grande número de camponeses pobres. Mas este movimento revelou-se claramente insuficiente para as necessidades de abastecimento nacional e de promoção industrial. Os incentivos previstos (tratores, máquinas, fertilizantes) raramente estavam disponíveis. A partir do verão desse ano, o movimento tornou-se cada vez mais abertamente forçado, mediante diversos mecanismos administrativos. Mesmo os primeiros cooperantes voluntários foram coagidos a integrar-se em unidades bem maiores, por vezes gigantes, onde perdiam por completo o controlo do processo produtivo sendo separados dos seus instrumentos de produção (15).
A 7 de novembro de 1929, com a publicação no Pravda de um artigo orientador de Estaline (16) dá-se uma tremenda aceleração no processo de coletivização dos campos. Era já a “grande viragem”. Povoações e regiões inteiras são arrastadas de forma implacável. Autoridades locais e delegados destacados passaram a ter de responder por determinados “objetivos”, sob pena de incorrerem em penalidades severas. Houve uma emulação precipitada em que já avultavam os efeitos devastadores do medo. A OGPU estava presente em grade parte das operações. Os camponeses resistem como podem. Acorrem gentes das cidades em defesa dos seus parentes. Incêndios são ateados. O gado é massacrado pelos seus donos, para assim se apropriarem, pelo menos, da carne e do couro. Procede-se a execuções sumárias de “sabotadores contrarrevolucionários”. Ouvem-se gritos, mugidos, tiros. Em março de 1930, já perto de 60% dos lares camponeses estavam caoticamente integrados em 240.000 kolkhozes. É então que um novo artigo de Estaline veio refrear esta debandada sangrenta (17). Houve um breve respiro de alívio e um movimento de reversão, mesmo a tempo das sementeiras. Evitou-se assim, à justa, uma quebra total no ciclo agrícola anual, com consequências impensáveis. Depois, a partir do verão, retomou-se a tenaz expropriadora com a mesma implacável brutalidade.
A reunião dos camponeses em kolkhozes é inseparável da política de “liquidação dos kulaks como classe”. Foram recenseados todos os camponeses abastados e classificados segundo o seu grau de hostilidade ao poder soviético. Aos mais irredutíveis foi destinado o exílio interno na Sibéria, para trabalhos forçados. Na verdade, esse foi o caminho que seguiriam todos os recalcitrantes e suas famílias. A deskulakização atingiu camponeses de todas as dimensões económicas. Foi uma imensa caravana ferroviária de lágrimas e desterro, em que se integraram perto de 10 milhões de pessoas.
Os resultados finais da coletivização agrária foram catastróficos, em termos de produtividade cerealífera e pecuária global. No entanto, a criação de uma cintura alargada de explorações agrícolas obediente à planificação centralizada do Estado soviético resolveu definitivamente o problema do abastecimento das cidades, permitindo ainda, mediante a sobreexploração extrema do muzhik “cooperante”, arrancar um vasto excedente que serviu para financiar um vigoroso processo de desenvolvimento industrial (18). Foi uma típica operação de acumulação primitiva capitalista, como Marx havia magistralmente descrito (19). O campesinato russo, de ator primordial na revolução, vencedor da guerra civil, membro da aliança dual dirigente do poder soviético, regrediu a um estatuto próximo da servidão de que se havia livrado em 1861.
Os kolkhozianos eram bestas de carga, sem qualquer poder de decisão e sem qualquer autonomia. Desde que se estabilizou o caos demográfico do início da “grande viragem”, ficaram para sempre vinculados à sua unidade de produção, que não podiam abandonar. Eram recenseados e controlados como as “almas” da ancestral propriedade senhorial. Não dispunham, sequer, do “passaporte interno” que permitia uma escassa mobilidade controlada aos outros trabalhadores soviéticos. Desempenhavam os trabalhos pesados no cultivo extensivo por uma remuneração pouco mais que simbólica. Podiam, para além disso, ser arregimentados sem cerimónia para fazer trabalhos não voluntários no exterior (orgnabor), para o Estado, pelos quais este, em grande parte, remunerava diretamente o Kholkhoze.
Os camponeses, a partir daí, vegetaram sempre no limiar da subsistência física. Frequentemente abaixo dela, como nas grandes fomes de 1932-33 (em que se incluiu o holodomor ucraniano), nas quais terão perecido diretamente entre 4 a 10 milhões de pessoas. Este tremendo surto de fome, não só não foi combatido, como, sempre terminantemente negado, parece ter sido mesmo, em grande parte, politicamente induzido. Foi uma prova de força final contra o campesinato relutante à coletizivação. A coleta forçada e a exportação de cereais prosseguiu sempre, impassível. Era a oportunidade para Estaline se mostrar mais “duro” do que fora Lenine perante o sofrimento extremo e o extermínio físico de grandes massas camponesas.
Na verdade, a subsistência física do kolkhoziano era assegurada, quase em exclusividade, pelo trabalho grandemente feminizado do cultivo de uma pequena leira, que lhes era permitido possuir a título pessoal. Foi do suor cativo amassado desta imensa mole humana que saíram os recursos que permitiram começar a erguer a gloriosa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A produtividade deste trabalho agrícola sempre foi medíocre. Mas muito mais importante do que isso era a sua dependência e submissão absolutas, que permitiu a sua exploração praticamente ilimitada. De dimensão total muito inferior aos kolkhozes, havia também as granjas estatais (sovkhozes), que eram servidas por operários agrícolas assalariados. As estações de máquinas e tratores eram a última peça do tríptico agrário soviético. Todas estas unidades produtivas eram servidas pelo seu próprio pessoal burocrático e de direção, que gozava dos seus privilégios, naturalmente, situando-se, porém, também ele, nos degraus inferiores da nomenklatura.
Durante a primeira metade dos anos 1930 a União Soviética foi um enorme estaleiro a céu aberto. Houve imigrações massivas, na ordem das dezenas de milhões. O caos era indescritível no alojamento, nos transportes, na vida quotidiana. Instalações industriais gigantescas estavam em construção, sem que ninguém parecesse compreendê-las, para além dos engenheiros estrangeiros contratados. Tudo parecia estar sempre a uma distância mínima do descalabro total.
Quando a poeira começou a assentar (e mesmo antes), era evidente que estava em curso uma violenta ofensiva antioperária. A contratação coletiva foi desativada. As direções de empresa passaram a ter poderes absolutos e incontestáveis de fixação unilateral dos salários e das condições de trabalho (muitas vezes também de alojamento). Deixaram de funcionar as comissões paritárias de resolução de conflitos laborais. Os sindicatos retiraram-se por completo da vida fabril quotidiana. A legislação laboral assumiu caraterísticas cada vez mais gravosas para os trabalhadores, aproximando-se progressivamente da legislação penal.
A diferenciação social cavou-se em profundidade. A própria classe operária é dividida, com a criação de uma aristocracia considerada exemplar, os “trabalhadores de choque” (udarniki). A identidade “operária” do regime, largamente simbólica, refere-se agora em exclusivo a esta camada, privilegiada, sim, mas sem qualquer poder decisório, a qualquer nível. A grande massa operária, essa, era considerada como estando infestada de instintos pequeno-burgueses, “preguiçosos” (quando se preocupava com os ritmos e condições de trabalho), “açambarcadores” (quando se preocupava com os salários). Contra o previsto nos 1º e 2º planos quinquenais, o salário real médio baixou acentuadamente, entre 1928 e 1937. Entretanto, a diferenciação salarial alargou-se imenso entre trabalhadores, o que passou a ter reflexos muito reais a partir da abolição do racionamento em 1935. Foram extensamente usados os prémios e o salário à peça.
Mikhail Tomsky (esse “menchevico-trotskysta”) havia sido afastado da direção do movimento sindical desde maio de 1929. Os sindicatos foram então progressivamente estatizados, passando a ocupar-se sobretudo de incentivar o cumprimento das metas de produção. Para esse efeito, chegaram a protestar vigorosamente contra aumentos salariais “injustificados” e a excessiva preocupação, demonstrada por alguns diretores fabris, com as condições de trabalho e de alojamento do seu pessoal. Tamanho foi o seu zelo nesse sentido que caíram em completo descrédito na classe operária, tornando-se um elemento de perturbação das relações industriais, com prejuízo para a produção. Foi então que, nos inícios de 1935, se decretou a existência de uma “crise sindical”, que só viria a ser oficialmente resolvida em 1949.
As inovações técnicas introduzidas pelo movimento stakhanovista (20), na sequência da profunda renovação do equipamento industrial ocorrida em meados dos anos 1930, não vieram facilitar um domínio coletivo do processo de produção, antes uma acrescida intensificação de ritmos, parcelização e desqualificação para a maioria. A classe trabalhadora foi emasculada, aterrorizada, desorganizada, atomizada e empobrecida. Os animadores e participantes em atos espontâneos de protesto foram, por regra, presos e deportados para campos de trabalhos forçados. O mesmo caminho seguiram, por vezes, simples infratores das normas de trabalho.
Não abordaremos em detalhe, neste escrito, a repressão de massas e o terror estalinianos (21), mas merece uma referência especial que eles desempenharam uma importantíssima função económica. As imensas colónias penais asseguraram todos os papéis clássicos de um exército industrial de reserva, para além de serem, simultaneamente, estrategicamente produtivas, na floresta, na mineração, nas infraestruturas de transportes, na construção de cidades e grandes unidades industriais. Obedeciam às diretivas do plano, sendo a sua própria guarnição permanente em nova mão-de-obra (fundamental, dadas as altas taxas de mortalidade) objeto de um planeamento próprio.
A derrota da classe operária é simultaneamente social e política. Ao afirmar-se estarmos perante uma ordem socialista, qualquer protesto ou contestação era qualificado como “contrarrevolucionário”. Eis como via as coisas Lazar Kaganovitch, uma das figuras mais representativas deste período, em declarações públicas proferidas em 1934:
“Na fábrica, o director é o único soberano. Toda a gente deve estar-lhe subordinada. Se o director não sente assim as coisas, se quer brincar ao liberal e ao «irmãozinho», se quer dedicar-se a persuadir, então não é um director e não deve dirigir uma fábrica. Tudo deveria estar subordinado ao director. A terra deveria tremer quando o director circula na fábrica” (22).
A autoridade absoluta de que qualquer burocrata soviético estava investido tinha, é claro, de ser conjugada com a extrema insegurança em que ele próprio se encontrava permanentemente colocado. A qualquer momento podia ser arbitrariamente destituído e cair em desgraça pelos motivos mais fúteis e desconcertantes. Um uso inconveniente dos seus poderes despóticos causador de descontentamento operário podia, ele próprio, servir de pretexto para uma acusação de “sabotagem”. Tudo se passava sempre no fio da navalha. O castigo exemplar de quadros superiores fazia-se essencialmente por motivos políticos, mas não deixava de desempenhar também uma função de apaziguamento populista.
Tudo isto é, evidentemente, puro capitalismo, com a única especial particularidade de ser excecionalmente despótico e… excecionalmente eficaz. (Só o Japão e a China conheceram surtos de acumulação capitalista sustentada comparáveis, em ritmo e extensão, ao que a União Soviética conseguiu produzir entre 1929 e 1940.) Não era, certamente, o capitalismo a que estávamos habituados, de propriedade privada dos meios de produção e livre troca mercantil. Com a “grande viragem”, foram cortados os caminhos que poderiam ainda conduzir a União Soviética nessa direção. Além dos camponeses e artesãos, foram também expropriados a indústria e o comércio privados (os nepmani). A atividade económica passou a ser exercida em exclusivo por técnicos e burocratas estatais, dispostos em cadeia hierárquica. Entrámos em território novo, não cartografado (23).
Estávamos em face de uma “terceira revolução”, depois da revolução democrática de fevereiro de 1917 e da instauração da ditadura do proletariado no outubro seguinte. Ao contrário das primeiras, porém, esta agora era uma revolução totalmente imposta a partir de cima, bem na tradição despótica de Ivan Grozny (“o terrível”) ou Pedro “o grande”. Os responsáveis por esta avançada chamaram-lhe construção do “socialismo”. Estaríamos perante a alvorada de um novo e superior modo de produção histórico: o modo de produção socialista, baseado na propriedade socialista e na planificação estatal (24). Os seus dirigentes iriam conduzir, ao seu leme, um despique, ombro a ombro, com as potências capitalistas mais clássicas, que perduraria ainda por várias décadas. Entretanto, a formação ideológica bolchevique foi sofrendo transformações profundas, de cariz profundamente anti-leninista, em que se salientam uma crescente idolatria pelo Estado, o anti-igualitarismo e o culto nacionalista grão-russo.
A ditadura pessoal de Estaline começou a solidificar-se no campo ideológico e cultural, com um punhado de novas “questões literárias”. Uma das primeiras foi a marginalização do mais destacada filósofo marxista russo de então, Abram Deborin, denunciado como “idealista menchevizante”. Depois foi a tenebrosa questão Slutsky sobre a história do partido bolchevique, que fez tremer como varas verdes a quase toda a intelligentsia marxista russa, com a perspetiva de se ver acusada de introduzir um nefando “contrabando trotskysta” nas fileiras bolcheviques. Começava o hábito da grosseira falsificação histórica. O cânone oficial da história do partido seria publicado alguns anos mais tarde (25). Leitor compulsivo e espectador atento, Estaline era tão tolo e megalómano que pretendeu impor a sua direção pessoal sobre a criação artística e o desenvolvimento das próprias ciências naturais (26). Entretanto, ia introduzindo o seu próprio contrabando doutrinal no marxismo, de que é exemplo a teoria da intensificação da luta de classes na construção do socialismo, com a consequente necessidade de reforço do aparelho estatal (em lugar do seu deperecimento). Incongruentemente, a constituição da U.R.S.S. de 1936 viria proclamar a abolição das classes sociais e a consolidação de um “Estado de todo o povo”.
A instalação de um novo poder absoluto, soberbo e arbitrário não podia deixar de despertar a extrema suscetibilidade moral da intelligentsia russa. Entre a juventude, inclusive a comunista, grassava por então uma grande onda revivalista do terrorismo narodniki. Nadezhda Alliluyeva, esposa do czar vermelho, tinha alguns conhecimentos nesses meios, enquanto estudante de Química na Academia Industrial. Isso pode ou não ter tido alguma ligação com a sua morte a tiro, aparentemente auto-inflingida, após uma violenta discussão pública com o marido, em novembro de 1932.
Estaline podia ser paranoico, mas era essencialmente correta a sua perceção de que, por esta altura, havia imensa gente com vontade, planos e até alguns preparativos já executados para lhe vazar o corpo de balas. A ele ou a algum colaborador seu dos mais próximos. Para além disso, grassava uma grande perplexidade e desorientação entre os gestores e dirigentes administrativos, confrontados com a necessidade de dar resposta a objetivos do plano completamente irrealistas e arbitrários. Havia ainda um grande descontentamento na classe operária.
O direitista Martemyan Ryutin criou e divulgou uma nova plataforma oposicionista, sendo detido com escândalo no verão de 1932. Estaline exigiu a pena de morte, mas foi travado no Politburo. Um outro movimento oposicionista, reunindo os centristas Sergei Syrtsov, Lazar Shatskin e Vissarion Lominadze, chegou mesmo a fazer planos para substituir o secretário-geral do partido. O veterano esquerdista Ivan Smirnov também estava ativo com os mesmos propósitos. Foi pouco depois que surgiu e circulou avidamente o famoso “epigrama de Estaline” do poeta Osip Mandelstam (27). Foi por essa altura instalada no partido uma comissão encarregada de organizar uma purga, na qual apareceu, pela primeira vez, um jovem gnomo protegido de Estaline, de nome Nikolai Yezhov.
Estaline era por então considerado como o grande dirigente da revolução. Era o Vozhd, uma expressão russa que denotava autoridade esmagadora, no duplo sentido de chefe e guia. Mas não tinha ainda, nesta altura, o poder absoluto e autocrático por que tanto ansiava. Formava-se ocasionalmente no Politburo uma maioria que o contrariou, em diversas e decisivas ocasiões, animada por Serguei Kirov e Sergo Ordzhonikidze, dois “estalinistas” ferrenhos que não abdicavam por isso de ser bolcheviques (28). E, porque a coragem é contagiosa, conseguiam arrastar outros consigo. Ora, isto era absolutamente intolerável para “Koba”. Fazia-o tremer e arder numa raiva avassaladora. Estaline tinha de si próprio uma imagem idealizada como um herói omnisciente sem mácula, investido de uma missão redentora, exigindo dos seus fiéis nada menos que obediência cega e devoção sem limites. Era um idealista, à sua maneira, o que talvez fosse o pior de tudo nele. Ademais, Kirov, como o seu antecessor Zinoviev, tinha constituído em Leninegrado um núcleo de poder pessoal, o que era abominado em extremo por Estaline. Fazia-lhe lembrar os boiardos! Pior ainda do que isso, a popularidade deste homem espalhava-se um pouco por todo o país, a ponto de se tornar vagamente ameaçadora.
As peças da “grande viragem” começaram a mostrar sinais de começar a encaixar umas nas outras, lá para os finais do ano de 1933. A fome começou a aliviar e era esperada uma boa colheita nesse outono. Entre muito desperdício e confusão, alguns grandes projetos industriais começavam enfim a tomar forma. A própria produção começou a surgir impetuosamente. Subitamente, já não se falava mais em surdina no partido de apear e substituir o secretário-geral. A conversa agora era outra. Estaline ganhou. Estaline ganhou. Ganhou, o grande cabrão. O Gengis Khan. Onde é que já se tinha visto na história algo assim? Ganhou. Era ocioso negar que se estava perante um sucesso portentoso, de dimensões bíblicas. Estaline era um extraordinário organizador e executor de tarefas com alguma complexidade. Fora isso, aliás, que sempre lhe valera o crédito que teve, durante muitos anos, da parte de Lenine. A luta já não era mais contra ou a favor de Estaline. Agora era uma luta pelas boas graças de Estaline. O objetivo dos descontentes e duvidosos de ontem era tentar uma reconciliação no partido dirigente e alguma moderação no regime, em torno da glorificação do seu visionário e temerário chefe.
Entre janeiro e fevereiro de 1934 reuniu-se o 17º congresso do partido comunista (bolchevique) de toda a União Soviética. Foi denominado o “congresso dos vencedores”, porque nele se recolheram os louros do triunfo no formidável desafio que fora a “grande viragem”. Sim, foi possível. O caos foi vencido, a obra está bem definida e em consolidação. Chamou-se-lhe também o “congresso da unidade” porque toda a gente pareceu reunir-se nesta hora. Numa celebração apoteoticamente centrada em Estaline, subiram à tribuna Zinoviev, Kamenev, Bukharine, Rykov, Tomsky, Piatakov, Radek, Preobrazhensky, mesmo Lominadze. Rakovsky render-se-ia pouco depois. Os vencidos estavam convencidos. Só faltou mesmo Trotsky, que por essa altura se viu expulso de França, sem que nenhum outro país aceitasse recebê-lo. Mas também ele, a seu modo, participou no coro triunfal. Pouco tempo depois, como se não tivera ele feito de forma essencialmente diferente, escreveu:
“Os imensos resultados obtidos pela indústria, o início cheio de promessas de um surto da agricultura, o extraordinário crescimento das velhas cidades industriais, a criação de novas, o rápido aumento do número de operários, a elevação do nível cultural e das necessidades, são os resultados incontestáveis da Revolução de Outubro, na qual os profetas do velho mundo pretenderam ver o túmulo da civilização. Já não há necessidade de discutir com os senhores economistas burgueses: o socialismo demonstrou o seu direito à vitória, não só nas páginas de O Capital, mas numa arena económica a cobrir a sexta parte da superfície do globo; não na linguagem da dialéctica, mas na do ferro, do cimento e da electricidade. Mesmo que a U.R.S.S. sucumbisse sob os golpes do exterior e pelos erros dos seus dirigentes – o que, firmemente esperamos, ser-nos-á poupado – continuaria, como prova para o futuro, o facto indestrutível de que só a revolução proletária permitiu a um país atrasado obter em menos de vinte anos resultados sem precedentes na História” (29).
Foi também neste 17º congresso que foi decidida a reinstituição do comissariado do povo para os assuntos internos (Narodniy komissariat vnutrennikh diel - NKVD), que acabaria por assimilar e assumir as funções do OGPU. Parecia ir tudo de vento em popa. O “recuo” da NEP parecia estar a ser finalmente corrigido com um novo avanço para o socialismo, conforme Lenine previra e instara. Uma vez mais se confirmava que, enquanto ator histórico, o partido bolchevique tinha sempre razão (30). Bukharine e Radek integraram-se afanosamente nos trabalhos de redação do que viria a ser a Constituição da União Soviética, aprovada finalmente em dezembro de 1936. Tudo está bem quando acaba em bem. Todavia, muito em breve se iriam rasgar tremendos abismos de ódio, perseguição implacável e morte.
Depois de muito instado, Maxim Gorky regressara enfim à sua pátria soviética (vindo da Itália fascista), sendo recebido com extravagantes honras e mordomias. Também ele fazia intensa pressão por uma reconciliação no partido bolchevique, a que aliás nunca pertenceu. Entre as fileiras estalinistas da primeira hora, estavam recetivos a essa ideia Kirov, Ordzhonikidze e Kuibyshev, entre muitos outros.
É claro que Estaline nunca contemplou, sequer, seriamente, a hipótese de uma reconciliação no partido, embora tenha gozado até às alturas com a bajulação oferecida pelos seus adversários. Em particular com os ditirâmbicos artigos de Radek no Pravda. O seu objetivo sempre foi uma purga, que marginalizasse o grosso da geração que fizera a revolução e a guerra civil. Todavia, após o 17º congresso, os seus planos nesse sentido começaram a ganhar contornos muito mais sinistros. Ele isolava-se mais do que o costume no seu gabinete, dando passadas nervosas em volta, chupando incessantemente do seu cachimbo. Como leitura de cabeceira tinha O Príncipe de Maquiavel.
Este congresso, na verdade, tivera uma face aparente e uma outra, completamente diversa, navegando entre o oculto, o cifrado, o implícito e o atrevidamente desafiador. Na face aparente, multiplicaram-se até ao exagero os símbolos da consagração do poder pessoal supremo de Estaline. O relatório deste passou diretamente a resolução política do congresso, sem tirar uma vírgula. A sua fotografia, nos boletins, era maior do que a dos outros dirigentes constantes das listas de candidatos. O comité central e os órgãos dirigentes dele emanados reforçaram-se com mais alguns dos seus devotos incondicionais, como Nikolai Yezhov, Lavrenti Beria, Nikita Khrushtchev, Nikolai Shvernik e Andrei Zhdanov.
A segunda face do congresso, porém, provocou em Estaline uma ira tremenda. Kirov recolheu as grandes ovações, revelando-se como o filho querido do partido. Um rapaz alegre, simples, de pura cepa proletária russa, bem parecido, trabalhador, frontal, genuíno, eloquente. Houve movimentações de bastidores para que ele assumisse o cargo de secretário-geral, cumprindo-se finalmente os votos “testamentários” formulados por Lenine. Kirov declinou e foi ele mesmo quem, lealmente, informou o gensek do que se estava a passar. Sempre audacioso, Tukhachevsky, na sua intervenção, omitiu por completo a saudação ritual ao chefe. Todas as outras intervenções no congresso a incluíram, nem que fosse com desconforto ou alguma dose de ironia. Mas esta também não escapava a ninguém. Qualquer inflexão de voz nesta ocasião era devidamente registada. Na votação secreta para o comité central, embora sem efeitos práticos, a candidatura de Estaline foi rejeitada por centenas de delegados (no mínimo, cento e sessenta). Kirov teve apenas três votos contra. Falsificaram-se as atas, obviamente. A disposição do congresso mostrou-se sempre abertamente antifascista, contrariando os desígnios de Estaline de manter as mãos livres para o apaziguamento com Mussolini e Hitler, a quem no fundo admirava. O seu objetivo sempre foi fazer a guerra quando e com quem, na altura, melhor conviesse aos seus propósitos expansionistas.
Estaline foi triunfalmente entronizado num conclave de velhos revolucionários marxistas onde não era estimado, nem sequer respeitado. Perante aquela assembleia nunca passaria de um usurpador caucasiano imperiosamente imperial. Um mitómano anacrónico, cavaleiro ajuramentado da ordem comunista do látego e do garrote sagrados, chauvinista grão-russo assimilado, antissemita, desajeitado, taciturno, invejoso, rancoroso e de instintos brutais (que diz ter aprendido com o nosso Lenine). Havia ali uma revulsão mútua insanável. Este foi o último congresso do partido de Lenine. A grande maioria daquelas caras não mais seria vista naquelas circunstâncias. 1.108 dos 1.966 delegados presentes seriam mais tarde presos e acusados de “crimes contrarrevolucionários”.
A primavera, verão e outono desse ano foram gastos no revigoramento institucional e no apetrechamento legislativo de exceção do aparato repressivo do Estado. Entretanto, a purga pacífica do partido prosseguia com grande brandura, nos níveis inferiores. O ambiente político e social, em geral, foi mesmo de uma grande distensão. O ritmo de trabalho amenizou-se. Gozavam-se amenamente os confortos recém-adquiridos da modernidade. Bukharine, Kamenev, Zinoviev e Radek escreviam (ou até editavam) na grande imprensa, sobre tudo o que muito bem lhes apetecia. A linha oficial em política internacional, de momento, era antifascista. Gorky era o grande papa das letras. Após uma intercedência de Bukharine, o autor do “Epigrama de Estaline” foi solto da cadeia e colocado em exílio interno. Estaline fez questão de receber um pedido pessoal nesse sentido de Boris Pasternak. Acedeu, com bonomia. Mandelstam, afinal, é um génio, disse ele com um suspiro. A vida cultural reanimou-se por esses tempos, com um certo toque cosmopolita.
No dia 1 de dezembro de 1934, Kirov foi assassinado, nos corredores do Smolny, com um tiro de pistola na nuca. Este homicídio não foi, até hoje, completamente esclarecido, mas provas circunstanciais foram-se acumulando, de forma esmagadora, apontando para que tenha sido manipulado pelo NKVD. Ou seja, estávamos há muito perante uma conspiração do alto para lançar uma purga terrorista em grande escala. Certo é que, com uma incrível prontidão, este homicídio foi de imediato instrumentalizado para desencadear uma enorme e complexa operação repressiva à escala nacional. Em paralelo com a pesada orquestração da comoção fúnebre, trabalhava já incansavelmente todo o vasto aparato de vigilância e repressão.
Ao longo do ano de 1935 e até ao verão de 1936 decorreu o que depois ficaria conhecido como o “terror tranquilo”, que visou membros do partido de segundo plano acusados de duplicidade (os dvurushnik). Os principais alvos tiveram de ser secreta e pacientemente “trabalhados” para serem exibidos mais tarde como portadores de espetaculares confissões. Seguiram-se, então, em crescendo paroxístico, nos dois anos seguintes, várias ondas de repressão e terror de massas sem paralelo. Ficaram para a história os sucessivos “processos de Moscovo”. Primeiro, o julgamento dos dezasseis do “centro terrorista trotskysto-zinovievista” (1936), encabeçado por Zinoviev e Kamenev; depois, o caso da “organização militar trotskysta anti-soviética” (julgamento secreto, em instância militar, 1937) supostamente dirigida por Tukhachevsky; de seguida, o julgamento dos dezassete do “centro paralelo trotskysta anti-soviético” de Piatakov, Radek, Sokolnikov e Serebriakov (1937); por fim o julgamento dos vinte e um do “bloco dos direitistas e trotskystas”, em que se destacavam Bukharine, Rykov, Krestinky, Rakovsky e Yagoda (1938). Este último foi o primeiro dirigente da repressão estalinista a ser engolido pelo seu próprio vórtice, em “queima de arquivos”. Entretanto, Ordzhonikidze, assediado pelo NKVD, suicidou-se com um tiro de pistola após uma altercação violenta com Estaline. A sua morte foi atribuída a falha cardíaca. Foi sepultado, com todas as honras, em fevereiro de 1937.
Segundo as mais apuradas estimativas, entre 4,5 e 5,5 milhões de pessoas foram detidas para interrogatório como “agentes inimigos”, só nos anos de 1937 e 1938. Quase todos assinaram a confissão de extraordinárias vilanias e traições, em documentos que se mantiveram, na sua maior parte, secretos, arquivados com a indicação “a conservar para a eternidade” (como monumentos à crueldade e estupidez, sem dúvida). De entre eles, uns 800.000 a 900.000 foram sentenciados à morte. Os outros seguiram quase todos por comboio, em carruagens marcadas com um sinal exterior de “equipamento especial”. Entre 3 a 4 milhões de pessoas estiveram, por esses tempos, nas prisões e nos campos penais. Nestes últimos, a mortalidade era terrível. Foi uma razia quase completa entre todos os “velhos bolcheviques” com experiência da luta clandestina e da revolução. Finalmente, o próprio “anão sanguinário” Yezhov seria tragado pela yezhovschina.
Nas suas dimensões, condicionamento externo e dinâmica política própria, nada disto teve qualquer analogia possível com o terror jacobino de 1793-94 (31). A sua motivação também foi completamente diferente. Havia uma completa viragem de curso, para a qual a velha guarda revolucionária marxista, de instintos democráticos e igualitários, seria sempre uma presença incómoda. Não estava preparada para participar nestes trabalhos, sob esta direção. E mesmo como espectadora passiva e marginalizada não era bem-vinda. Devia dar o seu lugar às novas gerações, já educadas no conformismo, na subserviência, na delação obsequiosa e na vulgata falsificada do “breve curso”. Entretanto, Estaline, de objeto de escárnio e comiseração intelectual entre companheiros, passou a génio universal, semideus providencial e omnisciente, adorado até à loucura pelo seu povo prostrado e reconhecido. Era a sua hora.
Dirigentes revolucionários da primeira hora foram não apenas aniquilados fisicamente como destruídos moralmente, com variáveis graus de degradação pessoal. O Exército Vermelho foi decapitado, sob acusações de traição ao serviço da Alemanha forjadas com a colaboração dos próprios nazis. Na verdade, enquanto antigos oposicionistas e suas relações eram desacreditados publicamente sob a acusação de conspiração traiçoeira com Berlim e Tóquio, o Kremlin estava secretamente empenhadíssimo em insistentes manobras de aproximação diplomática com, pelo menos, a primeira dessas capitais. Tudo isto enquanto decorria a guerra civil em Espanha, que Estaline procurava apenas perder da forma mais arrastada possível.
Gorky acabou também por se desentender seriamente com o poder soviético, por razões que tinham sobretudo a ver com a república das letras. Morreu em junho de 1936, em circunstâncias algo suspeitas, na sua dacha nos arredores de Moscovo, onde estava já há algum tempo em detenção domiciliária não declarada. Os seus médicos, aliás, “confessariam” mais tarde ter deliberadamente praticado prescrições exageradas no seu paciente, às ordens de Yagoda e ao serviço da conspiração “direitista-trotskysta”. O seu secretário pessoal era informante pago do NKVD. Estre os últimos manuscritos do escritor estava uma estória de uma mosca ampliada milhares de vezes, até se tornar uma besta incontrolável e uma maldição para toda a humanidade. Estes papéis foram suprimidos e o escritor enterrado com todas as honras, tornando-se lendária a sua amizade pessoal inquebrantável para com o “pai dos povos”.
Foi já a um comité central completamente aterrorizado e submisso que Estaline impôs as suas novas condições, no plenum de finais de fevereiro de 1937. No entanto, devia haver ali ainda muita gente “dúplice”. Dos seus 139 membros efetivos e candidatos, 89 seriam ainda presos e fuzilados, quase todos nesse mesmo ano e no seguinte. Depois dos grandes processos, o partido bolchevique deixou, em definitivo, de ser uma organização portadora de um projeto político em confronto com uma determinada circunstância histórica. Deixou de haver debate a argumentação política no seu seio, com vista à definição de objetivos de intervenção e à escolha dos meios para os alcançar. O partido passou a ser uma simples parte integrante do aparelho de Estado, a trave mestra por meio da qual se transmitia, para toda a administração e a sociedade em geral, a direção despótica originada a partir do Vozhd. Estaline nunca mais votou vencido.
Bolcheviques de antes da revolução que se adaptaram ao serviço de Estaline foram apenas um punhado. Podem nomear-se: Molotov, Voroshilov, Kalinine, Kaganovich, Andreyev, Shvernik, Zhdanov, Mikoyan, Manuilsky. Só o primeiro (esse extraordinário sobrevivente) poderia ter tido alguma dimensão própria como estadista, se tal lhe tivesse sido permitido. Os colocados à margem, com vida preservada, foram também muito escassos, designadamente, de forma bastante conspícua, todo o círculo mais íntimo de Lenine: os seus irmãos Anna, Maria e Dmitri, Nadezhda Krupskaia (a quem Estaline mandou repetidamente estar calada porque, se não, arranjava com facilidade outra “viúva” para Lenine), Gleb Krzhizhanovsky, Vladimir Bonch-Bruevich, Nikolai Semashko, Matvei Muranov e a secretária Yelena Stasova. Maxim Litvinov serviu nos negócios estrangeiros enquanto foi útil, calou-se depois e, enfim, teve sorte. Outro caso foi Alexandra Kollontai, que envelheceu placidamente como embaixadora em Estocolmo.
Em março de 1939 reuniram-se, no Kremlin, os 1.900 delegados ao 18º congresso do Partido Comunista (Bolchevique) da União Soviética, agora sim, já inteiramente moldado às medidas requeridas pelo seu dirigente máximo. Era uma assistência bem mais jovem, sem hábitos de camaradagem e aceso debate ideológico. Desapareceu, por completo, a fraterna alegria combativa de outrora. Um incidente caricato dá bem a medida do clima prevalecente. Estaline falava um russo impecável, com algum sotaque. Ao dirigir-se ao congresso, pronunciou mal a palavra correspondente a comissariado da agricultura (saiu-lhe narkomzyon em vez de narkomzem). Todos os restantes oradores, a começar por Molotov, imitaram este mesmo erro. Comentando o sucedido, quarenta anos depois, Molotov disse: “Se eu o tivesse dito bem, Estaline sentiria que eu estava a corrigi-lo. Sendo suscetível e orgulhoso, teria tomado ofensa” (32). Mais vale não correr riscos desnecessários. De resto, não se passou ali mais nada de relevante ou que não estivesse totalmente pré-definido. O próximo congresso reuniria apenas doze anos depois.
Durante toda a primeira metade dos anos trinta, e um pouco mais além, foi Benito Mussolini, em particular, quem refulgiu como um astro brilhantíssimo em todo o mundo burguês ocidental (33). Winston Churchill era um dos que não lhe poupava os elogios ditirâmbicos mais extravagantes. Hitler, por então, começava apenas a evidenciar-se como uma cópia tosca, um tanto desajeitada, do verdadeiro “grande homem”. Porém, em 1934, com a fusão dos cargos de presidente da república (declarado vago após a morte de Hindenburg) e de chanceler, o bigodudo foi proclamado führer, que é no fundo algo de semanticamente equiparável ao russo vozhd. Com a consolidação e endurecimento da ditadura nazi, também a Alemanha deu um grandíssimo salto industrial. Tudo na devida ordem: os comunistas na cadeia (ou campos de extermínio), os trabalhadores de espinha bem vergada. Não fossem as suas intenções bélicas cada vez mais pronunciadas, Hitler nunca teria perdido a boa imprensa que também ele teve.
Após a celebração do duplo pacto germano-soviético (de “não-agressão” e de “fronteiras e amizade”), por diversas vezes se colocou a hipótese de os reforçar, nada menos que com a adesão formal da União Soviética ao eixo Roma-Berlim-Tóquio, ou seja, ao pacto oficialmente crismado como “Anti-Comintern”. Se isso acabou por não suceder, foi, por um lado, porque Hitler nunca, por um momento, perdeu de vista a sua ideia de conquistar e escravizar a Rússia, que já figurava proeminentemente entre as suas obsessões pelo menos desde Mein Kampf (1925). Por outro lado, embora Estaline tivesse as suas afinidades eletivas claramente situadas no campo do fascismo, não podia renegar oficialmente o bolchevismo e o leninismo, que figuravam com tamanho destaque e elaboração na sua desmesurada liturgia de poder absoluto. Em agosto de 1940, o gume acerado do ódio de Estaline conseguiu finalmente atingir mortalmente a Leon Trotsky, em Coyoacán, nos arredores da cidade do México (34).
Antes da invasão nazi, que a arrastaria para a guerra total, foram executados na União Soviética dois planos quinquenais e meio (1928-32, 1933-37, 1938-41). A experiência de planificação económica não foi propriamente um sucesso de rigor. Entre papel e realidade, mediou sempre um abismo. Houve crises em 1933 e 1937, como que a confirmar que a economia continuava sujeita ao jogo subterrâneo de contradições que ditam o caráter cíclico da acumulação capitalista. As taxas de crescimento anuais experimentaram um suave declive descendente. A verdade, porém, é que todo este período conheceu uma vigorosíssima acumulação de capital, em especial no setor I (meios de produção). A realidade geográfica russa foi transformada em profundidade. De tal forma que o país conseguiria sustentar com sucesso uma guerra brutal contra um adversário que o havia esmagado, ainda muito recentemente.
A grande gesta heroica antifascista que foi a participação da União Soviética na II Grande Guerra pertence inteiramente aos seus povos. No que respeita a Estaline, cabe-lhe, sem dúvida, o mérito de ter dirigido um processo bem sucedido de industrialização acelerada, que acabou por pesar decisivamente no esforço de guerra. De resto, a sua imersão nesta luta foi produto das circunstâncias e do despeito por um amor não correspondido. O que podia, ainda assim, mover uma quantidade terrível de energia nesta personalidade essencialmente ressentida. Para apaziguar os não escolhidos aliados na guerra, a Internacional Comunista foi dissolvida, em maio de 1943. Também entre as “democracias” o Comintern era anátema, mesmo após ter declarado o seu total apoio ao esforço de guerra aliado.
Apesar de ter falhado por completo a abordagem político-diplomática preliminar e o embate militar inicial, Estaline saía como um dos grandes vencedores da pugna. Agora era “generalíssimo”. E como sempre fora o seu objetivo norteador central, via expandido o império russo até limites nunca atingidos por qualquer soberano seu antecessor. Até ao coração de Berlim e para além. Realizara, por excesso, todas as suas mais extravagantes ambições. Estava no zénite do poder e da glória. Tudo em nome do socialismo. Mas de um socialismo à sua medida, para o que havia que marginalizar ou destruir todos os marxistas dotados de empenho militante, honestidade intelectual e liberdade de espírito. Para isso foram encenados novos processos espetaculares (Slansky, Rajk, Patrascanu, Kostov, etc.). Mas o incómodo maior é que a vaga revolucionária do pós-guerra trouxe revoluções socialistas totalmente independentes - na Jugoslávia (35) e na China (36) - aonde não chegava o poder da batuta ditatorial do Kremlin. Pelo menos a revolução grega pôde ser evitada e afogada em sangue, mediante um oportuno entendimento com Churchill.
O penoso esforço de reconstrução no pós-guerra estava essencialmente concluído quando Estaline entrou num rápido processo de declínio físico que o levou à morte, em março de 1953 (37). O conservadorismo cultural e político do regime acentuou-se então de uma forma muito marcada, num sentido quase neo-eslavófilo. Era a zhdanovschina. Como sempre, os episódios mais desagradáveis da ditadura eram crismados em honra de algum acólito. Estaline ordenou a produção de um filme a glorificar Ivan, o “terrível”, como um grande e sábio estadista, seu longínquo precursor (38). Em 1952 expurgou por completo a denominação “bolchevique” do partido e do vocabulário do regime. Os órgãos superiores do partido (comité central, Politburo) já haviam deixado de reunir de todo. Em resposta à conferência inaugural do Plano Marshall, foi criado em 1947 o Bureau de Informação Comunista (Cominform), reunindo alguns partidos comunistas europeus especialmente relevantes, incluindo o francês e o italiano.
Após a criação do Estado de Israel (que a União Soviética aliás apoiou e reconheceu), sobreveio um clima de suspeição e impiedosa perseguição antissemita, que se expressou, nomeadamente, na campanha contra o “cosmopolitismo” e na denúncia de uma alegada “conspiração dos médicos” entre as altas esferas do poder. Cavou-se por esses anos um abismo intransponível entre a vida oficial e a vida comum popular. A Rússia retomou a vida dual que já fora a sua no império czarista, com o Estado a impor-se por direito senhorial de conquista a uma sociedade apática e alheada, exprimindo-se por meio de um discurso ritualizado (na verdade, uma língua de pau) sem qualquer relação com a vivência quotidiana (39).
O socialismo “real”
Havia uma classe dominante na sociedade soviética - constituída pelas camadas superiores da extensa burocracia pública - que conduzia e beneficiava do processo quotidiano de extração de mais-valia. Uma das mais elementares e essenciais experiências da vida social na União Soviética era a de que havia um “nós” e um “eles”, de uma forma bem vincada e definitiva. Não existiam, é certo, “grandes fortunas” privadas. Mas os membros da classe privilegiada e suas famílias dispunham de apartamentos confortáveis, carros e, muitas vezes, casas de campo. Eram servidos por redes exclusivas de distribuição de bens, inclusive importados, a preços subsidiados. Tinham bons serviços de saúde e lazer, bem como oportunidades para viajar. Mais decisivo ainda, podiam transmitir todos esses privilégios aos seus filhos, através de redes informais de influência que lhes garantiam oportunidades especiais de educação e integração na “nomenklatura”. Dentro da classe privilegiada, havia depois toda uma panóplia de subtis gradações qualitativas desse mesmo privilégio.
Contudo, esta classe dominante não dirigia, não participava de nenhum modo na definição das finalidades últimas dessa mesma vida social. Era, isso sim, conduzida com mão firme e nada tolerante por uma muito diminuta clique agrupada (tiritante de medo) em volta do gensek. O regime soviético erigido por Estaline, oficialmente qualificado como socialista, foi classificado por um observador interno como um “supermonopólio capitalista” (40). A plenitude do poder económico e político estava concentrada num vértice único ao nível do Politburo, que a partir dele dirigia toda a cadeia hierarquizada da burocracia administrativa, no partido e no Estado. O interesse social dominante era o da acumulação capitalista por meio da manutenção, reforço, alargamento e articulação coerente do seu supermonopólio.
A mão visível do autocrata extinguiu-se, sem que erguesse da sombra uma qualquer mão invisível para a substituir. Enquanto Estaline foi vivo, uma instável emulsão de terror extremo e de arrebatamento ideológico foi capaz de fazer com que a União Soviética galgasse metas impensáveis de acumulação capitalista e vencesse inimigos poderosos num combate sem limites. A reconstrução do pós-guerra foi também um momento de grande emoção coletiva congregadora. Após a morte de Estaline, algum processo de desestalinização seria sempre inevitável. Não havia nenhuma personalidade capaz de o substituir, nem era possível que ela tivesse medrado na sombra opressiva projetada pelo velho ditador. Era impossível manter o mesmo funcionamento absolutamente autocrático do aparelho do poder, desde logo porque as elites dirigentes ansiavam por alguma tranquilidade contra os excessos de arbitrariedade. Os órgãos coletivos de poder no partido foram revitalizados. Os confrontos de frações regressaram em força, tornando-se crónicos. Assomando por detrás deles, as contradições e impasses do sistema económico. Em pano de fundo, a permanente luta de classes. Tudo isto enquanto para os observadores ocidentais o que avultava era o monolitismo baço e ritualizado do regime.
Logo após a morte de Estaline, deu-se uma vaga de agitação operária, que teve mesmo contornos insurrecionais em Berlim Leste. Na União Soviética, rapidamente os trabalhadores, na cidade e no campo, ganharam remunerações acrescidas, novos direitos, personalidade social reconhecida. Após sérias escaramuças na direção do partido, com alguns episódios de grande violência (a eliminação de Beria), o XX Congresso, em fevereiro de 1956, dá início oficial ao processo de desestalinização. O Cominform foi dissolvido. Houve tumultos operários em Poznan, na Polónia. Em novembro é esmagada pelo Exército Vermelho uma revolução conselhista na Hungria, com algumas tonalidades liberais. Havia que pôr cobro, a todo o custo, ao perigo de uma desestalinização revolucionária. O aparelho burocrático reafirma a sua autoridade. Molotov, Malenkov e Kaganovitch são excluídos do comité central como elementos “anti-partido”. Nikita Krushtchev acumula a chefia do partido com a do executivo.
Nas administrações de Krushtchev e Brejnev, o nível de repressão baixou drasticamente, deixando de ter caráter de massas. Em 1954 foi criado um novo aparelho de segurança, o Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti (KGB). O Gulag foi esvaziado e, em grande parte, despolitizado, em poucos anos. Praticamente, só era perseguido agora quem praticava atos abertos de desafio e dissidência. Essas atitudes “antissociais” passaram, aliás, na sua maioria, a ser catalogadas como patologia psiquiátrica (41). Largas dezenas de milhares de pessoas foram a esse pretexto objeto de variadas medidas “profiláticas”. No resto, a perseguição política propriamente dita passou a ser jurisdicionalizada, com devido processo e garantias de defesa. Segundo dados do KGB, foram movidos, ao todo, entre 1957 e 1985, 8.124 processos por “manifestações antissoviéticas”, que incluem a agitação e propaganda e a “calúnia contra o Estado” (42). Quando Aleksandr Soljenitsine fez publicar no ocidente o seu livro Arquipélago de Gulag, em 1973, dando a entender que ele retratava uma realidade que perdurava, isso foi recebido no seu país com incredulidade e viva indignação.
A insegurança deixou de fazer parte da vida de todos os dias, o que foi especialmente sensível para os apparatchiks e os upravlentsy (burocratas do partido e da administração, respetivamente). Houve como que uma emancipação da burocracia, que ganhou consciência de constituir uma verdadeira classe patronal e dirigente, com os seus interesses próprios. Não se tratava mais de obedecer apenas a ordens vindas de cima. Havia um complexo processo de negociação-coordenação (soglasovyvanie) entre dirigentes políticos, administração e gestores empresariais. Os burocratas agora esperavam ser escutados, queriam ver a sua posição social defendida e promovida, ostentavam o conservadorismo e o instinto de dominação social próprios dos possidentes. Esbatida a autocracia, ressaltou com maior nitidez a natureza de classe do regime. Ora, a mobilidade social ascendente esteve sempre em declínio na União Soviética, desde o tempo da “revolução cultural” estaliniana. A percentagem de filhos de operários e camponeses entre os estudantes do ensino superior declinou constantemente. Os dois mundos sociais ficaram separados de forma cada vez mais estanque. Nos escalões superiores da nomenklatura, podia agora haver limousines com motorista, múltiplos guarda-costas, grandes mansões equipadas com todos os luxos, equipamentos desportivos, jardins e bosques exclusivos, tudo mantido por dezenas de serviçais.
Todo o país foi tomado pela ânsia de viver melhor. A prioridade dada no plano à indústria dos bens de produção foi amenizada, para dar satisfação às exigências dos consumidores. Já ninguém se movia um milímetro em função de exortações teleológicas. Krushtchev tentou revigorar ideologicamente o partido (em despique com Mao Zedong, cuja voz começava a fazer-se ouvir internacionalmente), mas não teve qualquer sucesso. Da tribuna do XXI congresso do partido, em janeiro de 1959, proclamou que, no início da década de setenta, a União Soviética ultrapassaria infalivelmente os E.U.A. em produção per capita e, entrando na era da abundância, começaria a supressão progressiva do seu Estado (mas não do partido) rumo ao comunismo (43). Tentou também uma reforma administrativa descentralizadora, mas esta acabaria por ser revertida pelos seus sucessores.
Desprovido agora da direção pessoal despótica que o criara, era a altura de este novo sistema económico capitalista mostrar o que valia em velocidade de cruzeiro, espontaneamente, por mera ação das suas leis internas objetivas (44). O teste foi cruel. A unidade de vontade que mantinha a coerência no funcionamento do supermonopólio foi completamente estilhaçada. Entre os dirigentes de empresa, a necessidade de realizar (e o interesse em suplantar) as metas do plano levava à prática corrente de subestimar a sua capacidade de produção e constituir grandes reservas de matérias primas, com frequente recurso ao mercado negro, que proliferou. Tudo somado, isto levava a um desperdício colossal de recursos. Os gestores eram por instinto inimigos da inovação. O seu auto-interesse avaliado de acordo com a experiência ditava-lhes que fabricassem sempre o mesmo do mesmo modo. Como os objetivos fixados eram quantitativos, a qualidade da produção degradava-se até níveis extremos. Entre os agentes com algum poder de decisão económica, agora a regra era cada um por si e todos a tentar enganar todos, a todo o tempo. Por último, os próprios trabalhadores viram-se obrigados a entrar nesse jogo.
O crescimento desacelerou notoriamente, sobretudo a partir de meados da década de 1970. Esgotados os fornecimentos de novas massas laborais, era preciso passar do crescimento extensivo para o intensivo. Mas não foi possível entrar na via do acréscimo da mais-valia relativa. A produtividade do trabalho estagnou. No setor agrícola, a produtividade das unidades coletivizadas era mesmo pavorosamente baixa. Em consequência, o país entrou em défice alimentar, tendo de importar alimentos, designadamente cereais. Uma campanha de colonização de “terras virgens”, promovida por Krushtchev, não conseguiu resolver este problema. Transferiu-se a maior parte da área semeada das unidades cooperativas (kolkhozes) para as herdades estatais (sovkozes), integrando nestas as unidades de maquinaria. Mas os resultados nunca apareceram de forma convincente. Os recursos disponíveis para prosseguir a acumulação vinham agora da exportação de combustíveis fósseis, sobretudo petróleo. Mas não tardaria muito o recurso ao endividamento, o que criou um círculo vicioso de dependência e drenagem de recursos para o exterior. Eram as ciladas da “coexistência pacífica”.
Os bens de consumo disponíveis começaram a escassear e a degradar-se notoriamente, sendo a sua distribuição deficiente e irregular. Os trabalhadores estavam desmotivados e descrentes, não sentindo que participassem na construção de algo de seu. Estávamos, claramente, no campo do trabalho alienado. Aí postos, era evidente que os estímulos recebidos pelos trabalhadores eram insuficientes, sobretudo a partir de 1975, quando se começaram a cavar desigualdades salariais muito marcadas, criadoras de grande ressentimento. Por outro lado, a sua sobrevivência estava por princípio assegurada. Era o pior dos mundos capitalistas possíveis, em que não funcionava o pau nem a cenoura. Face a uma envolvência hostil do imperialismo ocidental, o fim não podia estar longe. As próprias classes trabalhadoras começaram a ser conquistadas pelo fascínio do apelo consumista que lhe chegava do estrangeiro por inúmeras vias.
O vazio ideológico e a impreparação teórica dos seus dirigentes – um resultado evidente do extermínio da intelectualidade marxista levado a cabo por Estaline – levou a que as soluções para os problemas económicos na União Soviética se buscassem sempre e apenas por aproximações ao modelo económico ocidental (45). As primeiras reformas económicas filomercantis foram concebidas pelo economista de Kharkov Evsei Liberman, em artigo publicado no Pravda em 1962. Foi já após o derrube de Khrushchev que estas propostas, ratificadas pelo comité central em setembro de 1965, foram implementadas, sob a responsabilidade do presidente do conselho de ministros Aleksei Kosyguine. As empresas passaram a ter uma certa margem de autonomia financeira e na alocação de recursos. A planificação central foi otimizada mediante o emprego de computadores. A economia soviética cresceu mais em 1966-70 do que em 1961-65. Mas sobrevieram denúncias de que os salários haviam crescido mais do que a produtividade. Após a invasão da Checoslováquia em 1968 (para esmagar uma experiência similar, embora mais radical) houve uma reação, que acabou por reverter a maioria das reformas. O interesse de classe da classe burocrática impôs-se novamente. O medo ao reformismo fez adensar o clima de estagnação.
Depois de uma última tentativa de reforma pró-mercantil (46), a União Soviética implodiu, já no começo dos anos 1990. Confirmou-se que reformar era perigoso. As privatizações começaram na União Soviética sob a direção de Mikhail Gorbatchev, mas aceleraram de forma caótica na Federação Russa sob a direção de Boris Yeltsin, com um famigerado programa de distribuição de vouchers (1992-94). A burocracia, que sempre atuara como uma força conservadora, acabou por se cindir. Uma parte substancial dela (incluindo a grande maioria dos gestores), aliada aos mercadores clandestinos com que se entendia há décadas, serviu-se então a si própria de toda a riqueza coletiva e de todos os meios de produção instalados, num banquete pantagruélico de privatizações. Economistas neoliberais do mundo ocidental como Jeffrey Sachs deram a indispensável orientação teórica e doutrinal ao regabofe. Em súmula final, o que aconteceu foi que os capitalistas privados se substituíram aos funcionários do Estado, dentro das mesmas estruturas de classe. O Partido Comunista (albergando todos os recalcitrantes) foi também privatizado e integrado num sistema político multipartidário. Era preciso que algo mudasse para que tudo pudesse ficar essencialmente na mesma.
A velha Rússia libertou, por então, espetacularmente, os seus sucessivos anéis de satélites e conquistas. Ainda assim, inerme e exangue como estava, revelou-se grande demais para ser deglutida pelos seus inimigos. O jogo continuou a ser de cerco e de contenção. Até que, sob a batuta de um novo Vozhd, a Rússia conseguiu enfim reerguer-se, mantendo essencialmente a mesma estrutura de dirigismo económico estatal, árbitro supremo entre um conjunto de grandes famílias oligárquicas. De 2004 a 2006, o governo russo reassumiu o controle de empresas formalmente privatizadas em determinados setores estratégicos: petróleo, aviação, equipamentos de geração de energia, construção de máquinas e finanças. As indústrias da defesa nunca chegaram a ser privatizadas. Os oligarcas que não quiseram entrar na linha, de obediência a uma estratégia nacional definida pelo poder político, foram implacavelmente laminados.
Consequência e sequência
O longo, tumultuoso e despótico consulado de Estaline na União Soviética não referenciou qualquer senda nova na caminhada da humanidade para o comunismo. Confirmou, isso sim, uma vez mais (se necessário fosse) que uma extrema opressão do trabalho permite produzir grandes obras. O crime é coroado com a glória. Teve, no entanto, a inestimável virtude histórica de ter permitido que se mantivesse artificiosamente em suspenso, durante várias décadas, um horizonte comunista para a luta dos trabalhadores e povos oprimidos em todo o mundo. Foi esta ilusão potemkiniana que permitiu à revolução soviética projetar-se muito para lá da sua real janela temporal de esperança viva (de 1917 até 1923, no máximo), permitindo-lhe plantar a sua mensagem libertadora ao longo de todo o miolo do século XX. Até, pelo menos, à revolução sandinista nicaraguense de 1979-90, porventura a última que revela ainda uma assinalável influência leninista direta, entre outras. A revolução socialista deixou de ser uma questão europeia, para passar a ser uma questão mundial. A “grande mentira” foi, nesse sentido, providencial. Sonhando com igualdade e fraternidade, os oprimidos de todo o mundo puderam igualmente sonhar com grandezas imperiais e emulação com as potências capitalistas, sem mesmo se aperceberem da contradição insanável em que, deste modo, incorriam.
Estaline não era um santo homem, longe disso. Que algum dia tivesse sido comunista foi puro fruto das circunstâncias e dos encontros que teve na vida. No entanto, foi sem dúvida tocado pelo encantamento de Lenine de uma forma indelével. Procurou dar prossecução à sua missão, conforme a entendeu, sem qualquer limitação nos meios, até ao limite das suas forças. Não é de excluir que, no final da vida, considerasse para si próprio ter sido fiel ao juramento prestado por ocasião da morte do mestre. Essa foi a tragédia. A ironia foi que, onde Lenine - o santo homem nesta história (47) - falhou de forma calamitosa, Estaline teve um sucesso extraordinário. Mas este é o mundo que temos, de momento: completamente virado do avesso no que diz respeito às nossas intuições gerais sobre equidade e boa ordem social. A moral da história é uma batata. Pelo menos a moral que se extrai daquele limitado troço que vemos correr, vindo de trás e passando por nós. Este é um mundo que vitimiza os bons e em que pululam, tantas vezes fazendo boa fortuna, vermes agressivos como Berlusconi, Trump ou Bolsonaro.
Lenine quis assistir no raiar da aurora da liberdade e da igualdade, instaurar relações de produção num plano de rigorosa paridade, içar os trabalhadores à direção consciente de todos os processos sociais. Chocou de frente – tentando em vão sustê-la com as mãos nuas - com uma corrente de desenvolvimento social multimilenar que vai no sentido da dispersão, da anomia, da captura e sujeição de grupos humanos por outros mais fortes. É aquilo a que, com grande acerto, já foi denominado como “a fase predatória do desenvolvimento humano” (48). Estaline, em sentido inverso, aproveitou o sentido dessa mesma corrente, para montar uma forte base para o seu poder pessoal. Intensificou a opressão, cavou ainda mais a diferenciação social, pelo menos no que toca ao poder de direção e controlo sobre a vida social. E como sucede, amiudadas vezes, a intentos históricos conduzidos inescrupulosamente com inflexível brutalidade, a revolução a partir de cima conduzida por Estaline foi coroada, no imediato, por um espetacular êxito. Um êxito totalmente antileninista, por assim dizer (49). Vale referir que a Itália fascista e a Alemanha nazi, por essa altura, registavam sucessos económicos não menos impressionantes.
Para Lenine era evidente, apodítico, que relações de produção paritárias seriam mais avançadas, trazendo consigo mais produtividade, complexidade e poder civilizacional. Para Estaline, o que era evidente é que “o mundo só anda tendo à frente um capataz”. E, já agora, havia que prosseguir, até ao extremo mesmo do autoritarismo terrorista. Lenine, fiado na projeção profética de Marx, pensou navegar uma corrente que desaguaria a breve trecho numa sociedade sem classes. A hipótese não se confirmou. Por agora, para parafrasear a famosa alocução de Hugo Chávez de 4 de fevereiro de 1992, na sequência de um falhado golpe militar bolivariano (50). Mas há algo que conduziu Lenine nesse intento que está muito para além do poder persuasivo da dialética histórica marxista. Que conduziu aliás ao próprio Marx, antes dele. E a muitos outros. Isso é a injunção moral da busca de uma vida social harmoniosa, sem opressão, com máximo aproveitamento das capacidades livremente desenvolvidas de cada um. Essa injunção está e estará sempre presente entre nós, provavelmente carreada pelo acervo genético comum moldado nos primórdios da história da humanidade. Qualquer consciência jovem, intrépida e descomprometida é capaz de ouvir esse apelo. Pode segui-lo até ao fim. Ou pode descartá-lo, a qualquer altura, desviado pelas solicitações normais (quando não as compulsões) da vida social. Há quem o descarte sofregamente, antes que se faça tarde, olhando ansiosamente à esquerda e à direita. Há quem o faça com ódio e ressentimento. Há quem o faça com doçura melancólica. E há quem não o chegue a fazer nunca. De todo o modo, ele persiste, está aí e vai reacender-se sempre, geração após geração. Não se pode exterminá-lo.
É claro que o fracasso de Lenine tem potencialidade para ser um milhão de vezes mais fecundo que o êxito de Estaline. Um êxito que se diria imerecido. Mas o certo é que, como já referimos, o prestígio político-económico (e depois militar) granjeado pela União Soviética estaliniana veio proporcionar um alargamento, em várias décadas adicionais, da oportunidade histórica para o lançamento, em todo o mundo, de projetos anticapitalistas de emancipação popular na senda da revolução de outubro. Foi um fôlego extra providencial para a batuta profética de Lenine. E também de Marx. Foi em períodos em que se fazia sentir no mundo a presença da União Soviética que a divulgação do marxismo se expandiu de forma mais profunda e decisiva (em Portugal nos anos 1930). A história é feita por anjos e demónios. Por uma estranha ironia histórica, Estaline, traindo-o, serviu efetivamente o seu mestre. Sem a audácia insensível e a obtusa inflexibilidade do georgiano (que não estava, de forma alguma, tolhido na sua ação por princípios democráticos e igualitários), o facho revolucionário aceso contra a criminosa guerra imperialista de 1914-18 não teria passado, de mão em mão, saltando gerações e latitudes, até um “sans-coulotte du bout du monde” como Samora Machel. Não se teria operado a globalização da luta emancipatória dos trabalhadores e dos povos.
Foi tudo isso que permitiu universalizar a aspiração à liberdade, à igualdade, ao desenvolvimento humano. O colonialismo é hoje impossível, como o descobriu George W. Bush depois de conquistar militarmente o Iraque. O direito dos povos à autodeterminação, por que se bateu Lenine, tornou-se uma aquisição inflexível do senso comum. Revestiu-se com a rígida tenacidade de um preconceito imemorial. No entanto, foi o produto recente de algumas décadas de luta tenaz, em todo o mundo, tendo por pano de fundo a presença ameaçadora da grande União Soviética. Foi este vulto intimidante – ajuramentado vingador dos humildes, sob as consignas de profetas barbudos, eles próprios, intelectual e moralmente esmagadores - que fez hesitar os arrogantes senhores do mundo durante décadas sucessivas, inclinando-os ao compromisso social, em casa, e, no exterior, à negociação pactuante com a rebeldia afirmativa nas nações subalternas. Assim foram construídos os consensos ideológicos hoje vigentes, até nova ordem.
Um outro legado histórico da União Soviética é o planeamento económico público, que está longe de se poder considerar morto. Persiste, de variadas formas, na Rússia e na China, as quais, neste momento, alinhadamente, lançam um desafio conjugado à hegemonia mundial das potências imperialistas liberais, com a sua anarquia mercantil. Algo que seria impensável sem a revolução de outubro e sem Estaline. Assim, a experiência estalinista, com tudo o que teve de abominável, está longe de poder ser considerada um parêntese histórico totalmente encerrado e inconsequente. Deixou um lastro que ainda está disponível para reavaliação, quanto a alguns dos seus aspetos. Em especial o planeamento económico, que deve agora ser revisto, com as possibilidades técnicas atuais, em intersecção com a mobilização da participação democrática das grandes massas trabalhadoras.
Por outro lado (e isto é o que sobremaneira nos interessa e nos diz respeito), não existe só uma corrente na história. Não existe só a corrente que, desde a revolução neolítica, como num big bang, leva à disjunção, à apropriação privada, ao salve-se quem puder, à opressão e exploração dos outros. Existe também uma contracorrente reintegradora, que sempre atuou a partir da solidariedade entre os oprimidos, pressionando à inclusão, ao desenvolvimento humano integral, à liberdade. Há como que um “duplo movimento” (Karl Polanyi), de face e verso, acionado pelas lutas de classes. Primeiro a agressão, o esbulho e o domínio; depois o cerrar de fileiras e o avanço dos subjugados para a liberdade. E assim de seguida. As lutas de classes conhecem grandes ciclos históricos, nos quais opressores e oprimidos se revezam na iniciativa do combate. É esta contracorrente, a nossa, que vai criando civilização, em novos patamares sucessivos, cada vez mais complexos e abrangentes (51). O objetivo é agora reconciliar finalmente todo esse processo civilizacional cumulativo com o ambiente natural que nos abriga, enlaça, protege e abrange. Do mesmo passo, essa humanidade reconciliada com o seu próprio devir humano natural encerrará o ciclo da exploração e das lutas sociais, abrindo um horizonte muito mais amplo de possibilidades, com liberdade comunista e autodeterminação democrática. Agressão, submissão e exploração da natureza ou do próprio ser humano são, afinal, um e o mesmíssimo processo.
Foi no âmbito próprio desta contracorrente histórica emancipadora que a colisão do cometa Lenine com o planeta Terra produziu os seus mais firmes resultados. Quando se fizerem os registos completos de estratigrafia social resultantes desta intervenção, notar-se-á, sem dúvida, que as camadas inferiores se elevaram generalizadamente, por todo o mundo, ao longo de todo o miolo do século XX. Isto aplica-se generalizadamente a povos indígenas, colonizados, castas submetidas, minorias oprimidas, camponeses, trabalhadores, mulheres, etc.. Ganharam em bem-estar físico, dignidade e voz própria. Ficaram mais próximos da linha ideal de um horizonte histórico comunista. O contragolpe dos subalternos superou o golpe inicial dos opressores. O mundo é hoje mais nivelado e participado do que era há cem anos, nas primeiras décadas do século XX. No mundo de antes, era impensável a China, a Índia ou até o Irão afrontarem as grandes potências, disputando espaços geopolíticos, senão a hegemonia mundial. Mas para começar a traçar o percurso que tornou isso possível, é preciso prosseguir com a nossa história, carreada agora pelo vento leste.
(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente ‘Vértice’, ‘Última Geração’ e ‘Política Operária’. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000 e Outro Mundo, Estratégias Criativas, Porto, 2019, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.
_______________ NOTAS:
(1) Cf. J. V. Stálin, Sobre os Fundamentos do Leninismo.
(2) Cf. Robert C. Tucker, Stalin as revolutionary. A study in history and personality 1879-1929, W. W. Norton & Co., New York – London, 1974, em especial pp. 115-143.
(3) Cf. Leon Trotsky, As lições de outubro, Antídoto, Lisboa, 1979.
(4) Cf. Pierre Broué, Le Parti Bolchevique. Histoire du P.C. de l’U.R.S.S., Les Éditions de Minuit, Paris, 1977, pp. 210-216.
(5) Cf. E. Preobrazhensky, The New Economics.
(6) Cf. J. V. Stálin, "A Revolução de Outubro e a Tática dos Comunistas Russos". É claro que Estaline se esforçou por procurar uma caução leninista para a sua ideia original de que era possível concluir inteiramente a construção de uma sociedade socialista num só país (Como já tinha dito precisamente o contrário em Sobre os fundamentos do leninismo, teve que suprimir a passagem correspondente nesta sua obra anterior.) A sua posição era a de que só a vitória final (no sentido de total consolidação e segurança) do socialismo assim construído dependeria ainda da ocorrência de revoluções proletárias noutros países. A posição de Trotsky, seguida depois por toda a oposição unificada, era ser possível e necessário dar início à construção do socialismo num só país, mas que essa construção não se poderia concluir sem a disseminação internacional do poder proletário.
(7) Cf. Leon Trotsky, Platform of the Joint Opposition.
(8) Cf. Isaac Deutscher, O Profeta Desarmado, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1984, pp. 291-494.
(9) “Cadres Decide Everything”, Iosif Stalin, Address Delivered in the Kremlin Palace to the Graduates of the Red Army Academies. May 4, 1935.
(10) Sobre estratificação social na União Soviética há toda uma literatura, da qual destacaremos, pelo seu pioneirismo, Milovan Djilas, A nova classe, Livraria Agir, Rio de Janeiro, 1958 (3ª edição) e, pela sua exaustividade e detalhe íntimo, Mikhail Voslensky, Nomenklatura, Livros do Brasil, Lisboa, s/d (198…).
(11) Cf. Charles Bettelheim, As lutas de classes na U. R. S. S., 2º período 1923-1930, Publicações Europa-América, Lisboa, 1978, pp. 389-455. O autor confere grande realce à influência das ideias de Bogdanov no tecnocracismo estaliniano.
(12) A ideia muito generalizada de que a crise da colecta de 1928 se deva essencialmente a uma “greve dos kulaks” é vigorosamente combatida por Charles Bettelheim, que a atribuiu antes a um quadro de circunstâncias muito mais complexo, no seio do qual avultam deficiências no fornecimento ao campo de bens e instrumentos de trabalho, em consequência de deficiente organização e erradas opções de política industrial. Tivessem os pequenos e médios camponeses sido melhor abastecidos, não só em bens de consumo como em instrumentos de trabalho, poderiam ter-se tornado mais produtivos e permanecido fiéis ao poder soviético, escapando à hegemonia dos kulaks. Cf. Charles Bettelheim, As lutas de classes na U. R. S. S., 2º período 1923-1930, ob. cit., pp. 63-144.
(13) Cf. Robert C. Tucker, Stalin in power. The revolution from above 1928-1941, W. W. Norton & Co., New York – London, 1990, pp. 44-65. Este magnífico livro é, tanto quanto sei, com margem confortável, a melhor abordagem existente a este tema. Só os seus apontamentos de análise psicanalítica serão, porventura, discutíveis.
(14) Pierre Broué, Le parti bolchevique. Histoire du P.C. de l’U.R.S.S., 2.ª edição aumentada, Les Éditions de Minuit, Paris, 1977, pp. 301-305.
(15) Cf. Charles Bettelheim, As lutas de classes na U. R. S. S., 3º período 1930-1941, Os dominados (tradução de Henrique de Barros), Publicações Europa-América, Lisboa, S/d, p. 39.
(16) Cf. J. V. Stalin, “A Year of Great Change. On the Occasion of the Twelfth Anniversary of the October Revolution”.
(17) Cf. J. V. Stalin, “Dizzy with Success. Concerning Questions of the Collective-Farm Movement”. Estaline foi forçado a decretar este recuo momentâneo, perante uma situação absolutamente crítica. No entanto, atribuiu todas as responsabilidades por esta aos dirigentes locais, que não deixaram de ficar perplexos… e calados.
(18) Cf. Moshe Lewin, The making of the soviet system, The New Press, New York, 1994, em especial pp. 91-188.
(19) Karl Marx, O Capital, Vol. 1, Parte VIII, Capítulo 24, A Chamada Acumulação Original.
(20) Aleksei Stakhanov (1906-1977) foi um mineiro russo do Donbass, recordista absoluto de produtividade. Com patrocínio oficial, o seu nome crismou, a partir de 1935, uma segunda fase do movimento udarniki, que incluiu vários outros “heróis do trabalho”, nas mais diversas indústrias. Os stakhanovistas, além do seu desempenho pessoal excecional, ofereciam também sugestões técnicas de otimização do processo produtivo, de uma forma similar aos “círculos de qualidade” do toyotismo.
(21) O primeiro tratamento sistemático foi o realizado por Robert Conquest, The Great Terror. Stalin’s purges in the thirties, Penguin Books, London, 1971 [1968]. Sem negar os seus méritos pioneiros, trata-se de uma típica obra de “guerra fria” e as suas estimativas numéricas de vítimas não são confiáveis. Seriam, aliás, revistas em baixa – para 13 a 15 milhões - pelo próprio autor, numa segunda edição, em 1990. Para recriações literárias (com variáveis doses de testemunho autobiográfico), leia-se Evguenia S. Ginzburg, A vertigem na política das depurações, Moraes, Lisboa, 1969, Alexandre Soljenitsine, Arquipélago de Gulag, Bertrand, Lisboa, 1975, Victor Serge, O caso do camarada Tulaev, E-Primatur, 2016 e Arthur Koestler, O zero e o infinito, Publicações Europa-América, 1979. Esta última obra, a que não falta arrojo e talento literário, passa completamente ao lado no que toca ao real processo mental que levou às confissões extraídas a muitos condenados.
(22) Cf. Charles Bettelheim, As lutas de classes na U. R. S. S., 3º período 1930-1941, Os dominados, ob. cit., pp.139 e 149.
(23) A catalogação teórica da economia e da sociedade soviéticas no período estalinista e pós-estalinista deu lugar a uma extensa bibliografia. Para um breve resumo, um tanto esquemático, desses debates, leia-se Kamran Nayeri, “Critical theories of the class nature of the Soviet Union: A marxian survey”.
(24) Esta teorização foi sendo avançada de forma avulsa por Estaline e acabaria por ser consagrada no Manual de Economia Política da Academia de Ciências da U.R.S.S. (1954). Sobre as traves essenciais do sistema ideológico estalinista, leia-se Charles Bettelheim, As lutas de classes na U. R. S. S., 3º período 1930-1941, Os dominantes (tradução de Henrique de Barros), Publicações Europa-América, Lisboa, S/d, pp. 26-80.
(25) Cf. Comissão do Comitê Central do PC(b) da URSS, História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS (1938). Este é o infame “breve curso”, catecismo formador das próximas gerações de dirigentes e intelectuais soviéticos. Inclui, como capítulo IV, ponto 2, o célebre ensaio de Estaline Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico, previamente publicado no Pravda, onde se expõe, para edificação e esclarecimento final do leitor, a verdadeira e única ontologia bolchevique-leninista, cunhada e aprovada pelo dirigente máximo da revolução. Uma outra versão pode ser encontrada aqui.
(26) Cf. Simon Ings, Estaline e os cientistas, Temas e Debates, Lisboa, 2017.
(27) Tomando por base a cuidadosa tradução para a língua espanhola de José Manuel Prieto, teríamos qualquer coisa como:
Vivemos sem sentir o país sob os nossos pés, As nossas palavras são inaudíveis a dez passos de distância. A mais simples das conversas Gravita, num queixume, em torno do montanhês do Kremlin. Seus dedos grossos como vermes, gordurosos e suas palavras como pesados martelos, certeiras. Os seus bigodes de barata parecem rir e resplandecem os canos das suas botas.
Entre um magote de chefões de finíssimos pescoços ele goza com os favores destes homúnculos. Um assobia, outro mia, aquele geme, o outro chora; só ele ronda categórico entre eles, o indicador espetado. Forja decreto sobre decreto, como ferraduras: a um ao baixo ventre, a outro à testa, ao terceiro ao cenho, ao quarto no olho. Toda a execução é para ele uma festa enchendo de alegria o seu largo peito de osseta.
Infelizmente, grande parte da riqueza poética do original fica irremediavelmente perdida. Uma versão romanceada da história deste célebre poema (que naturalmente custou a vida ao seu autor, e não só a ele) pode ser lida em Robert Littel, O Epigrama de Estaline, Livraria Civilização Editora, Porto, 2011. O chefe do NKVD, Genrikh Yagoda, sabia-o de cor. Foi capaz de o recitar a Bukharine, com um sorriso nos lábios que se adivinha entre o irónico e o malicioso. Também ele pereceria nas purgas, pouco depois.
(28) Seja dito, aliás, que Kirov e Ordzhonikidze eram, tanto quanto se podia sê-lo, amigos íntimos de Estaline, de há muitos anos. A sua cumplicidade solidificara-se, sempre contra Trotsky, por vezes contra Lenine, no tempo da guerra civil na frente sul e a propósito da questão georgiana. Cf. Jean-Jacques Marie, Estaline, Editorial Verbo, Lisboa, 2004, pp. 168-170, 197-205. Era também a título de amigos que gozavam de liberdades que noutros seriam impensáveis. Tais liberdades ser-lhes-iam fatais, sem que a amizade metesse prego nem estopa no assunto.
(29) Cf. Leon Trotsky, A revolução traída, Edições Delfos, Lisboa, 1973 [1936], p. 57 (tradução de Rogélio de Moura Brázio a partir de uma edição francesa prefaciada por Pierre Frank). Há outras versões disponíveis em rede, por exemplo aqui. As posições teóricas expostas por Trotsky nesta sua obra clássica são patentemente absurdas. A saber: houve um thermidor na revolução soviética, levado a cabo por uma casta burocrática, que não é ainda uma nova classe social dominante; esta pérfida casta burocrática erigiu, ainda assim, as traves mestras da infraestrutura económica socialista; falta agora apenas uma revolução política para resgatar esta magnífica obra e recolocá-la na rota da edificação de uma sociedade comunista, expandindo mundialmente a revolução. Fica-se com a impressão que Trotsky teoriza à medida das suas deslocadas esperanças de regressar ao poder. Nessa eventualidade, sob uma correta direção, a mesma casta burocrática (com algumas remexidas no topo) transformar-se-ia, sem dúvida, num escol revolucionário honestíssimo e abnegado... Aliás, todos os escritos e (mais do que isso) a atuação política anterior de Trotsky aponta para esta mesma linha de intervenção despoticamente “esclarecida”, dirigista, substitucionista, modernizadora à outrance, de menoscabo histórico e humano para com os camponeses.
(30) Como é sabido, e mais acima se mencionou de passagem, foi Trotsky quem dissera, conciliatoriamente, no 13º congresso, em maio de 1924, ser impossível ter razão contra o partido: “Nenhum de nós deseja ou é capaz de contestar a vontade do partido. Claramente, o partido está sempre certo... Nós só podemos ter razão com e pelo partido, porque a história não forneceu nenhuma outra maneira de estar certo. Os ingleses têm um ditado, "Meu país, certo ou errado" (…). Nós temos uma justificação histórica muito melhor para dizer que, esteja ele certo ou errado em certos casos individuais concretos, é o meu partido.... E se o partido adotar uma decisão que um ou outro de nós achar injusta, ele dirá: justo ou injusto, é meu partido, e eu apoiarei as consequências da sua decisão até o fim”. In Leon Trotsky, The Challenge of the Left Opposition: 1923–1925, Pathfinder Press, New York, 1975, p. 161.
(31) Cf. David Andress, O Terror. A guerra civil na Revolução Francesa, Livraria Civilização Editora, Porto, 2007.
(32) Cf. Robert C. Tucker, Stalin in power, ob. cit., p. 586.
(33) Para ilustrá-lo, ficou uma canção da Broadway, da autoria de Cole Porter, a qual, na sua versão inglesa, aludia ao ditador italiano como uma referência para superlativo elogio galante. Ouvem-se aí estas linhas: “You’re the top / You’re Mussolini”. Era muito dansável nos salões. Se não acreditar, confira aqui.
(34) Sobre este crime e a sua situação privilegiada no coração da aventura comunista no século XX, é indispensável ler a extraordinária recriação (não-)ficcional feita por Leonardo Padura em O homem que gostava de cães, Porto Editora, Porto, 2011.
(35) Leia-se o magnífico relato de Milovan Djilas, Conversações com Estaline, Ulisseia, Lisboa, S/d.
(36) As relações da China Popular com a União Soviética começaram bem, com a assinatura de um tratado de amizade, aliança e entreajuda, mas logo se toldaram irremediavelmente a partir do deflagrar da guerra da Coreia (1950-53). Cf. François Fetjö, Chine/URSS. De l’alliance au conflit 1950-1972, Seuil, Paris, 1973, pp. 15-55.
(37) Sobre esses tempos ler-se-á com proveito Joshua Rubenstein, Os últimos dias de Estaline, Objectiva, Lisboa, 2017. Mesmo historiadores extraordinariamente benevolentes não puderam deixar de notar o total esgotamento do sistema estalinista no final da vida do ditador. Cf. Isaac Deutscher, Stalin, Penguin Books, London, 1986, p. 556 e ss..
(38) O resultado deste projeto foi uma tardia obra-prima simbolista de Sergei Eisenstein. A primeira parte estreou em 1944, com a plena aprovação de Estaline. A segunda parte, porém, foi interdita como “a-histórica”, só sendo estreada em 1958, dez anos após a morte do autor e em plena desestalinização. Da terceira parte subsistem apenas alguns troços de filmagens.
(39) Cf. Robert C. Tucker, The soviet political mind, W. W. Norton & Co., New York – London, 1972, p. 121-142.
(40) Cf. Robert C. Tucker, Political culture and leadership in Soviet Russia, W. W. Norton & Co., New York – London, 1987, p. 109. Esse observador assinava Fedor Zniakov, quase seguramente um pseudónimo.
(41) Seja dito de passagem que a utilização da Psiquiatria para controlo social e político (que tem a sua própria distinta história no mundo ocidental) na União Soviética é também um legado estalinista. Entronca diretamente na revolução epistemológica que Estaline tentou promover em 1950-51 com a promoção a dogma oficial da reflexologia pavloviana em Psicologia, combinada com a sua própria intervenção direta na Linguística. Sobre esta, leia-se J. Stálin, “Sobre o Marxismo na Linguística”.
(42) Cf. Moshe Lewin, O século soviético, Campo da Comunicação, Lisboa, 2004, p. 218.
(43) Cf. George Paloczi-Horvath, Khrushchev, Ulisseia, Lisboa, 1964, p. 273-287.
(44) Estaline estava bem consciente da necessidade de passar de uma fase voluntarista na construção do socialismo, em que valiam todos os expedientes da audácia militar (“nenhuma fortaleza é inexpugnável para os bolcheviques”), para uma outra fase em que regeriam já as leis objetivas do novo sistema. Cf. J. V. Stálin, Problemas Econômicos do Socialismo na URSS. É claro que, para Estaline, as leis objetivas do desenvolvimento socialista coincidiam absolutamente com a sua própria vontade pessoal. Não fosse ele o seu “descobridor”. Houvesse sempre disponibilidade de outros guias igualmente geniais após a sua morte e o processo seria seguramente conduzido a bom porto.
(45) Cf. Stephen Resnick e Richard Wolff, Teoria de Classe e História. Capitalismo e comunismo na URSS, Campo da Comunicação, Lisboa, 2004, pp. 345-406. Estes autores apontam, corretamente, para o problema da cegueira política e teórica existente para com as relações de classe existentes na União Soviética. Mas não podemos partilhar da sua apreciação favorável sobre o estado do projeto socialista ao tempo de Krushtchev e inícios do consulado de Brejnev. E não compreendemos como se não alcança que a referida cegueira é, ela própria, o sintoma de uma posição de classe.
(46) Cf. Mikhail Gorbatchov, Perestroïka, Publicações Europa-América, Lisboa, 1987.
(47) Por santidade entendo a qualidade do homem ou mulher que encarna as suas convicções sociais, políticas ou metafísicas de uma forma tão radical que se torna vitalmente incapaz da mínima transigência ou composição sobre elas. Cf., numa perspetiva um tanto distinta, Manuel Laranjeira, A doença da santidade, Editorial Labirinto, Lisboa, 1986 [1907] (prefácio de Maria Bello).
(48) Cf. Thorstein Veblen, The theory of the leisure class. A expressão é citada por Albert Einstein no seu famoso ensaio “Porquê o socialismo?”.
(49) Comentando o último “julgamento de Moscovo”, então em curso, o astuto observador Benito Mussolini, escreveu, no jornal fascista Il Popoplo d’Italia de 5 de março de 1938, que “face à catástrofe do sistema de Lenine, Estaline poderá secretamente ter-se tornado fascista”. Em todo o caso, prosseguiu, “Estaline está a prestar um notável serviço ao fascismo, ceifando em grandes molhadas os seus inimigos, reduzidos à impotência”. Cf. Robert C. Tucker, Stalin in power, ob. cit., p. 503. Na verdade, também os comunistas estrangeiros residentes na União Soviética, supostamente como refúgio, foram por então dizimados de uma forma que certamente não teriam conhecido nos seus países de origem, mesmo fascistas. À exceção, talvez, da Alemanha nazi, para onde, aliás, o remanescente dos comunistas alemães foi repatriado após o pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939. Agentes do NKVD entregaram-nos aos seus congéneres da Gestapo, na fronteira que os dois países agora partilhavam sobre a Polónia ocupada.
(50) 4 de Febrero de 1992: Ayer un "Por Ahora", Hoy un "Para Siempre".
(51) “A história do Espírito é o seu ato, pois que ele é somente aquilo que faz, e o seu ato é o de se fazer, na história, enquanto Espírito, objeto da sua consciência, - de se capturar explicitando-se para si mesmo. Esta captura é o seu ser e o seu princípio; e a sua realização é ao mesmo tempo a sua alienação e a sua transição. O Espírito que, em termos formais, captura de novo esta captura ou, o que é a mesma coisa, regressa a si mesmo da alienação, é o espírito do degrau superior em relação ao que ele era na captura anterior”. Cf. G. W. F. Hegel, Morceaux Choisis, organização e tradução para o francês de Henri Lefèbvre e Norbert Guterman, Gallimard, Paris, 1969, vol. 2, p. 113. Traduzi a tradução, respeitando o sublinhado original.
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