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A declaração de guerra do capital contra a natureza
Alexandre Araújo Costa (*)
Parte I: A Grande Aceleração
"A característica fundamental da Grande Aceleração é colocar o Sistema Terra para além dos seus limites. É uma declaração de guerra à natureza."
O capitalismo é um sistema econômico eminentemente expansionista. O crescimento é uma condição necessária do seu funcionamento e existência, à medida em que a lógica, desvendada por Marx no século XIX, é usar o dinheiro para ganhar mais e mais dinheiro, às custas da exploração da força de trabalho e da espoliação da natureza.
Uma contradição inevitável desse sistema é a acumulação de riqueza nas mãos de um punhado cada vez menor de capitalistas ao lado da exclusão de amplas massas da riqueza produzida a partir de seu próprio trabalho. Mas o que não era evidente há um século e meio é que além dessa contradição interna, o sistema capitalista rapidamente faria emergir, com toda força, uma outra, ainda mais incontornável: o seu antagonismo com o próprio “Sistema Terra” (1).
Especialmente desde a década de 1950, as atividades humanas (e seus impactos correspondentes no meio-ambiente) cresceram exponencialmente e passaram a colocar sob pressão inédita o clima e a biosfera do planeta, configurando o que conhecemos hoje como “a grande aceleração”. A quantidade de bens de consumo, de automóveis a telefones celulares e computadores pessoais cresceu enormemente, ao ponto de hoje haver mais de um bilhão de veículos automotivos circulando mundialmente, sendo provável que o número de telefones celulares atinja a casa dos cinco bilhões em 2019 (2).
Para se ter uma ideia do impacto que somente esses dois processos ocasionam, vale lembrar que cada automóvel tem em média quase 1 tonelada de aço e cada celular de meros 150g possui mais de 50 elementos químicos, demandando a mineração de 70 kg de rocha para obter um único desses aparelhinhos (que rapidamente são descartados para a compra de um novo, por conta da baixa durabilidade, do desgaste prematuro e da imposição da substituição na chegada de novas tecnologias, ou seja, da chamada obsolescência programada). Para atender – de maneira lucrativa – ao aumento incessante da velocidade da roda de extração-produção-consumo-descarte, as corporações entram num verdadeiro regime de “Vale-tudo”. Da devastação ambiental e trabalho semi-escravo “normais” a crimes como os cometidos em Mariana e Brumadinho é um pulo.
Mantendo-se como exemplos somente esses dois símbolos da sociedade de consumo e do “american way of life” (o carro particular e o celular), acrescente-se a demanda energética envolvida na extração e transporte desses materiais, no processo industrial de fabricação e no transporte desses bens até o consumidor final, lembrando que a maior parte dessa demanda é suprida a partir da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás) em usinas termelétricas. Sem mencionar o efeito do descarte, com a poluição associada à liberação de substâncias tóxicas, metais pesados, plástico etc.. É tudo absolutamente insustentável!
O Agro é morte
Ao mesmo tempo, avançou sobremaneira a agricultura intensiva, marcada pela monocultura, utilização intensiva de agrotóxicos e fertilizantes. Vale ressaltar que boa parte da produção agrícola nesses moldes visa a produção de alimentos não para serem consumidos por seres humanos, mas a produção de grãos para servirem de ração para animais confinados: bovinos, suínos, aves etc. (mais de 2/3 da produção de soja é destinada a este fim) (3). Além desta, é importante lembrar as monoculturas associadas à produção industrial de papel (caso do eucalipto), produtos de higiene pessoal (como os que utilizam óleo de palma) e bioenergia (como cana-de-açúcar).
Além da contaminação de ecossistemas e sistemas hidrográficos por agrotóxicos, esse modelo agrícola está associado à utilização de enormes quantidades de água para irrigação e à liberação em larga escala de nitrogênio e fósforo reativos no ambiente, sendo esses nutrientes responsáveis por graves desequilíbrios em lagos, na zona costeira etc.. Claro, o avanço do agronegócio é também responsável por parcela significativa do desmatamento à medida em que ocupa as terras antes ocupadas por biomas como as florestas tropicais. No Brasil, o caso da Amazônia e especialmente do Cerrado são emblemáticos.
A sedução da “Grande Aceleração”
É evidente que há um aspecto sedutor em todo esse processo. A maioria trabalhadora, ainda que cada vez mais a precarização e o desemprego batam à porta, se sente convidada a participar do banquete. Adquirir os bens de consumo descartáveis do capitalismo se torna sonho, fetiche. Torna-se inclusive, “necessidade” (em geral, uma falsa necessidade, artificial e alimentada pela “indústria” da propaganda). Pior, enquanto as massas são seduzidas pelo império do consumo, o pensamento de esquerda se deixa levar pelas mesmas métricas do pensamento capitalista, louvando acriticamente o “crescimento econômico”, disputando o PIB, etc.. Mas somente é possível esse sequestro de consciência a partir de uma combinação de fatores objetivos relacionados à globalização.
Primeiro, o alongamento, até a escala planetária, das chamadas “cadeias produtivas”. A mineração para as matérias-primas e a extração de combustíveis fósseis para energia se dão de um lado do planeta, que pode ser a África ou a América Latina ou o Oriente Médio, enquanto a produção se dá do lado oposto, tendo se concentrado especificamente na China. Enquanto isso, centros consumidores como os países ricos ficam distantes da devastação da mineração e da poluição industrial. E essa lógica, de separar paraísos de consumo de um lado e zonas de sacrifício (4) de outro, é reproduzida na escala de países inteiros e até de cidades, configurando o chamado racismo ambiental (5).
Segundo, o advento de um capital “virtual”, aparentemente sem sede e sem face, que ajuda a colocar o dinheiro distante dos impactos socioambientais de tudo o que ele financiar. Na lógica míope, tacanha e suicida do mercado de ações, as atividades mais “rentáveis” nas bolsas, e onde os bancos investem sistematicamente são, comumente aquelas em que esses impactos são tão profundos quanto invisíveis (ou melhor, escondidos, invisibilizados).
Capitalismo de desastre
O resumo é que o capitalismo do século XXI é o capitalismo do desastre ambiental. Poluição, uso de água em excesso para o agronegócio e a indústria pesada, emissões de gases de efeito estufa que desestabilizam o clima, destruição de florestas e redução da biodiversidade, comprometimento da camada de ozônio da estratosfera e até uma mudança potencialmente catastrófica no nível de acidez dos oceanos... A característica fundamental da Grande Aceleração é colocar o Sistema Terra para além dos seus limites (6). É uma declaração de guerra à natureza.
Mas por isso mesmo, por ser uma declaração de guerra ao Sistema Terra, a crise singular do capitalismo, que se revela hoje é, dentre outras características, uma crise da impossibilidade de continuar “exportando” os impactos socioambientais destrutivos da produção capitalista para outros territórios. Mudou a escala (7). Não se trata mais apenas de ameaçar um ou outro habitat em separado (o que já seria no mínimo questionável) ou de (criminosamente) colocar indústrias com emissões tóxicas longe de onde moram os mais ricos. Os riscos agora são globais, planetários.
Por outro lado, declarar guerra à Terra, implica que ela, ao sofrer mudanças, deixa de ser um “palco”, para ser atriz, protagonista. Passa a impor suas condições e regras – físicas, químicas, geológicas – à existência humana e, portanto, à forma em que a humanidade se organiza territorial, econômica e politicamente. Naquilo que chamam de “Intrusão de Gaia” (8), coloca, de forma crua, a incompatibilidade entre um sistema econômico que almeja o crescimento e acumulação ilimitados (o capitalismo) e um sistema físico limitado (o planeta), que funciona à base de ciclos (da água, do carbono, do nitrogênio etc.) e fluxos (de matéria energia).
Nos demais artigos desta série, abordaremos as questões relacionadas especificamente às duas “fronteiras planetárias” consideradas estruturantes: o clima e a biosfera e mostraremos que a continuidade desse sistema de morte está colocando objetivamente em risco a existência não apenas de inúmeras formas de vida que compartilham conosco este planeta, mas também a própria civilização humana.
Parte II: Biosfera encurralada
O capitalismo requer cada vez mais território a fim de suprir a demanda crescente de matéria e energia necessária para sua reprodução ampliada. A ocupação de terras para atividades humanas, seja a mineração, a instalação de cidades, infraestruturas que incluem estradas, barragens etc. ou principalmente áreas para agropecuária, vem encurralando a biosfera terrestre contra a parede.
Globalmente, essa ocupação territorial tem sido responsável por um verdadeiro encolhimento da vida silvestre. Hoje, existem 51 milhões de quilômetros quadrados de terra “domesticada”, contra 39 milhões de quilômetros quadrados de florestas. Para citar o exemplo mais próximo, em menos de cinco décadas, o Brasil perdeu mais de 20% da Amazônia e impressionantes 50% do cerrado (9). Sim, o mesmo agro, que assassina indígenas e sem-terra, que financia esquemas de corrupção, que se apropria da água para irrigação, que envenena o alimento e ajuda a bancar a radicalização à direita da política do País, é a maior ameaça à biodiversidade, riqueza impossível de se traduzir em dinheiro.
Poluição, mudança climática e outros fatores se somam
Uma das maiores ameaças à vida no planeta, hoje, é a poluição em suas diversas formas. Solo, rios, oceanos e atmosfera têm sido contaminados por uma multiplicidade de substâncias que vão dos agrotóxicos e fertilizantes da agricultura a antibióticos e outros medicamentos usados em seres humanos e outros animais; de gases de enxofre de indústrias e compostos orgânicos voláteis cancerígenos das refinarias; de lixo radioativo a lixo hospitalar.
Nesse contexto, vale certamente mencionar o plástico, como poluente presente em praticamente todo lugar. Hoje, a cada cinco toneladas de peixe nos mares, já existe uma tonelada de plástico e as duas quantidades se igualarão já em 2050 se as tendências atuais persistirem (10).
Somam-se a esses fatores a mudança do clima, que atinge em especial certos habitats mais frágeis (como o Ártico), a introdução de espécies invasoras (como é o caso de espécies marinhas trazidas na água de lastro de navios) e outras transformações ambientais (como a acidificação oceânica, que abordaremos na terceira parte).
O cerco à biosfera e sua escravização
Em menos de cinco décadas, o mundo assistiu à terrível redução de 60% nas populações silvestres de vertebrados, levando incontáveis espécies à ameaça de extinção ou à sua extinção efetivamente (11).
O controle violento da biosfera pela humanidade assume colorações dramáticas quando dados científicos revelam que 96% da biomassa de mamíferos é “domesticada” (36% de humanos, 60% de gado e domésticos, restando somente 4% para animais silvestres) e que 70% da biomassa de aves está nos frangos enquanto os 30% que sobram ficam com todas as demais espécies de pássaros (12).
Parte significativa da biosfera foi escravizada. O que resta de vida silvestre está encurralado pela combinação mortífera de destruição e degradação de habitats, caça/pesca predatórias/insustentáveis, introdução de espécies invasoras, mudança climática antrópica, poluição, proliferação de doenças. Na guerra declarada pelo sistema econômico vigente, a biosfera sofre um verdadeiro cerco, tanto territorial quanto químico.
Sexta extinção
A publicação de um relatório científico recente trouxe dados alarmantes sobre o nível de degradação e destruição ambiental planetárias (13). Baseado na estimativa de que há aproximadamente 8,1 milhões de espécies de animais e plantas (14), o relatório conclui que pelo menos 1 milhão de espécies está ameaçada de desaparecer do planeta.
Essa estimativa pode inclusive ser conservadora, pois não há informação suficiente sobre o risco de extinção de espécies de insetos, grupo vivo mais numeroso. Mas mesmo em relação a estes, a situação não parece ser nada confortável. Concordando com relatos de que há menos insetos colidindo com os para-brisas dos carros nas estradas ou menos insetos procurando a luminosidade de lâmpadas, TVs e computadores, há observações científicas daquilo que se começa a chamar como o “apocalipse dos insetos”: a redução substancial (em alguns casos acima de 70%) em sua biomassa. Não chega a ser surpreendente quando se sabe que os agrotóxicos têm colocado em risco a existência das abelhas e outros polinizadores tão fundamentais. Não custa lembrar: no Brasil do desgoverno Bolsonaro, quase 200 agrotóxicos foram liberados, incluindo alguns banidos na Europa por estarem diretamente associados à mortandade de abelhas (15).
A redução da diversidade genética das populações colocou as taxas de desaparecimento de espécies num patamar centenas a milhares de vezes acima daquilo que seria considerado “natural”. Isso já configura aquilo que passou a ser conhecido como a 6a grande extinção, um evento com impacto, sobre a biosfera terrestre, de magnitude comparável ao choque da Terra com um asteroide há 66 milhões de anos, eliminando a maior parte dos dinossauros e outras formas de vida de então.
A vida acima do lucro: Lutar para seguir sonhando
Uma publicação recente em um conceituado periódico científico apontou semelhanças marcantes entre os padrões cerebrais, durante o sono, em determinados répteis, aves e mamíferos (16). Foram encontrados, em uma variedade de outras espécies, justamente os padrões que correspondem à fase do sono mais profunda, em que sonhamos. A inferência – inevitável – é que possivelmente vivemos em um planeta não apenas repleto de vida, mas também povoado de sonhos! Um planeta com talvez um trilhão de seres… que sonham!
A devastação ambiental, que se acentuou marcadamente nas últimas décadas, é, não apenas um duro golpe contra a biosfera e a diversidade do viver, mas também contra essa “morfeosfera” e a diversidade do sonhar. A luta em defesa da biodiversidade é também uma luta para que o planeta continue sonhando e, em especial no século XXI, a luta pela libertação de mulheres e homens de toda a forma de exploração e opressão andará junto do combate para libertar a natureza à qual pertencemos do domínio aniquilador do capital. É uma luta entre classes e uma guerra entre mundos.
Parte III: Caos climático
A humanidade atual é filha de um clima particularmente estável, que emergiu há pouco mais de onze mil anos com o encerramento da última glaciação (ou “era do gelo”) (17). Foi a regularidade da chuva, das estações, o comportamento cíclico de plantas e animais, enfim, a previsibilidade do comportamento da natureza que permitiu a mulheres e homens de nossa espécie se estabelecessem em assentamentos fixos, que promovessem domesticação de espécies vegetais e animais e desenvolvessem a agricultura e a pecuária. Daí, vieram as cidades, as civilizações, as sucessivas revoluções industriais, até chegarmos no mundo capitalista globalizado de agora.
Esse caminho transformou os indivíduos da espécie Homo sapiens de caçadores-coletores que demandavam para viver tão somente as 2.000 kcal (quilocalorias) diárias provenientes dos alimentos em violentos predadores de energia, capazes de “devorar”, em países ricos como os E.U.A., uma média de quase 200.000 kcal por dia. Isso acontece porque, além de consumirmos alimentos, mantemos um gigantesco aparato de indústrias, máquinas, equipamentos, meios de transporte etc., todos demandando uma quantidade formidável de energia.
Capitalismo fóssil
A mudança na escala de produção de bens e, portanto, na demanda de energia especialmente a partir da Primeira Revolução Industrial e, mais acentuadamente, com a Grande Aceleração, só foi viabilizada graças à abundância e flexibilidade de um tipo particular de fonte de energia: os combustíveis fósseis.
Restos de organismos vivos, geologicamente processados, constituem o carvão, o petróleo e o gás. Mesmo tendo sido usadas em escala gigantesca, a quantidade desses materiais nas jazidas é impressionante. O fácil acesso e uso desses combustíveis parecia representar um milagre. O capitalismo dificilmente teria avançado até o estágio atual se não fosse montado sobre o gigantesco estoque de energia química dos combustíveis fósseis.
Planeta superaquecido e clima de extremos
É um fato estabelecido da ciência que o dióxido de carbono (CO2) principal subproduto da queima do carvão, petróleo e gás, é um gás de efeito estufa, isto é, um gás capaz de absorver o calor irradiado pela superfície da Terra, impedindo que ele vá para o espaço. Uma determinada concentração desse gás contribui para evitar que a Terra seja uma esfera gélida e possivelmente sem vida vagando no cosmos, mas uma quantidade maior pode aquecer perigosamente o planeta.
Hoje a queima de petróleo, carvão e gás, o desmatamento e a emissão de outros gases (como o metano da pecuária e o óxido nitroso) estão promovendo uma alteração extremamente perigosa do delicado equilíbrio energético do planeta. Atualmente, a cada ano, são lançadas quase 40 bilhões de toneladas, só de CO2, na atmosfera da Terra, transformada em lata de lixo do capitalismo fóssil. Esse gás tem se acumulado a uma taxa muito acelerada e sua concentração já é quase 50% maior do que no período pré-industrial. Nessas condições, o efeito não poderia ser outro senão o aquecimento em escala planetária: o mundo já está cerca de 1°C mais quente do que naquele período.
Mas a alteração no clima está longe de se limitar a um aumento da temperatura média planetária. Todas as evidências científicas apontam para um clima com mais eventos extremos: tempestades severas, ondas de calor mortíferas, secas excepcionais, incêndios florestais devastadores.
Além disso, há um consenso de que a perda das calotas polares, a elevação do nível dos mares, problemas para a produção agrícola e a disponibilidade de água já estão produzindo – e produzirão com bem mais severidade – impactos sobre a sociedade humana. Para não falarmos dos impactos sobre uma biosfera já encurralada pela expansão predatória do capitalismo sobre os habitats da vida silvestre.
Injustiça climática
Esses impactos não se distribuem por igual em nossa sociedade. Enquanto executivos-chefes das corporações petroquímicas contabilizam os bilhões de dólares movimentados por essas empresas, ondas de calor matam principalmente idosos e crianças, além de trabalhadores e trabalhadoras expostas ao calor em suas atividades, como agricultores(as), pescadores(as), etc..
A responsabilidade sobre o atual quadro de emergência climática também está longe de ser por igual. Historicamente, países ricos como E.U.A., Inglaterra, Alemanha, Japão etc., acumularam riqueza às custas de emissões gigantescas de CO2, enquanto países mais pobres, sem base industrial nem agricultura intensiva estão pagando o ônus da fúria do clima. Hoje em dia, o fosso permanece: um “estadunidense médio” emite 16,5 toneladas de CO2–equivalente (18) por ano, enquanto um “moçambicano médio” emite 0,3, ou 55 vezes menos!
A multiplicação de refugiados climáticos nos países mais pobres e comunidades mais vulneráveis é quase certa. Enfrentar as causas do aquecimento global e socorrer as pessoas impactadas é a urgência que se impõe, justamente o oposto da perigosa e repugnante mistura de xenofobia/racismo e negacionismo climático que a extrema-direita apregoa. E para mostrar que existe uma ligação intrínseca não somente entre a exploração capitalista do trabalho e da natureza e o colapso ecológico, mas também entre este e todas as formas de opressão, vale lembrar que existe desigualdade nos impactos não apenas por classe ou nacionalidade, mas também por grupo étnico-racial e gênero.
Um oceano morto e azedo
Além de alterar correntes marinhas e ter o potencial de gerar enormes desequilíbrios e extinções, o aquecimento dos oceanos, que ocorre a partir de cima, dificulta a oxigenação das águas mais profundas. Fora isso, um tema bem menos comentado do que o aquecimento global, mas também consequência do excedente de dióxido de carbono na atmosfera, é a mudança do nível de acidez dos mares. Essa acidificação ocorre justamente porque o CO2 em excesso é capturado pelos oceanos, gerando ácido carbônico. Como resultado os oceanos já estão quase 30% mais ácidos do que no período pré-industrial. A trajetória atual traz um prognóstico sombrio para os oceanos do planeta: contaminados por plásticos e um coquetel de substâncias tóxicas, acidificado e com menos oxigênio.
Ecossocialismo ou barbárie
Há fortes indícios de que a indústria petroquímica sabia de todo o estrago planetário que promovia há várias décadas. Especialmente nos E.U.A., o Instituto Americano de Petróleo e a Exxon optaram conscientemente pelo caos planetário para não sacrificar o lucro (19). Não chega a ser surpresa que os setores mais duros do capital (representados em figuras torpes como Trump e Bolsonaro) apostem no ataque violento à ciência, na sabotagem dos acordos climáticos e no negacionismo.
Mas também não há saída possível do tipo “capitalismo verde”. A economia capitalista e o modo de vida a ela associado são simplesmente viciados nos combustíveis fósseis e nas consequentes emissões de CO2. Não é à toa que, apesar da expansão das energias renováveis (20) o crescimento econômico capitalista levou as emissões a crescerem em nada menos que 2,7% no último ano (21). Além disso, mecanismos de mercado, como os “créditos de carbono” foram tragados pelas fraudes, pela especulação e pelo imediatismo do capital financeiro em busca de retorno a seus investimentos.
Contra a barbárie capitalista e o caos climático, outro paradigma de sociedade precisa emergir. Nós o chamamos de ECOSSOCIALISMO. Mas o termo em si é uma questão menor diante da essência: uma nova sociedade de mulheres e homens livres e em harmonia com a natureza seus fluxos e ciclos.
As mudanças no sistema produtivo-destrutivo capitalista precisam ser operadas com rapidez, preservando as massas trabalhadoras ligadas aos setores mais devastadores (mineração, petróleo, indústria do plástico, agrotóxicos, etc.) na mudança de atividade laboral. O ônus precisa recair sobre as corporações, mediante a cobrança da dívida climática (22) sobre as corporações e os países e indivíduos ricos. Dada o nível de degradação e destruição ambiental – legado já inevitável do império do capital – provavelmente não será um “reino da abundância”, mas derrotadas as forças da ganância, do lucro e da exploração, certamente ainda poderá ser um reino – partilhado de compartilhado – da “suficiência”.
(*) Alexandre Araújo Costa é bacharel em Física pela Universidade Federal do Ceará (1992), mestre em Física pela Universidade Federal do Ceará (1995), doutor em Ciências Atmosféricas pela Colorado State University (E.U.A., 2000), com pós-doutorado pela Universidade de Yale (2004-2005). Foi gerente do Departamento de Meteorologia e Oceanografia da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (2005-2008), sendo atualmente professor titular de Ciências Atmosféricas na Universidade Estadual do Ceará. É colaborador do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, assessor (voluntário) do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social, autor do blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei” e militante do Subverta/PSOL. Este ensaio foi publicado originalmente, em três partes, em Esquerda Online.
______________ NOTAS:
(1) Termo usado para denominarmos o planeta com os subsistemas que o compõem (atmosfera, criosfera e em particular a biosfera, dentre outros) e as complexas relações entre estes.
(2) Vide Estatista, Number of mobile phone users worldwide from 2015 to 2020 (in billions).
(3) Vide Global Forest Atlas, Soy Agriculture.
(4) Segundo Viégas, “a expressão ‘zonas de sacrifício’ é utilizada pelos movimentos de justiça ambiental para designar localidades em que observa-se uma superposição de empreendimentos e instalações responsáveis por danos e riscos ambientais. Ela tende a ser aplicada a áreas de moradia de populações de baixa renda, onde o valor da terra relativamente mais baixo e o menor acesso dos moradores aos processo decisórios favorece escolhas de localização que concentram, nestas áreas, instalações perigosas”. Cf. Rodrigo Nuñez Viegas, Desigualdade ambiental e "zonas de sacrifício".
(5) Como racismo, colonialismo e capitalismo caminham juntos, é em geral sobre comunidades pobres, negras e/ou indígenas que recaem os impactos da implantação de grandes empreendimentos capitalistas.
(6) Do ponto de vista científico, é a ultrapassagem das chamadas “fronteiras planetárias”, um conjunto de 9 parâmetros enumerados por um grupo de cientistas liderado por Joham Rockström em publicação na revista Nature em 2009: A safe operating space for humanity.
(7) Cientistas da natureza já chegam a um consenso de que ingressamos em outra subdivisão geológica (denominada Antropoceno), em que as ações humanas competem ou até suplantam, em escala, os processos naturais.
(8) Termo usado por Isabelle Stengers. Vide, por exemplo, Considerações de uma filósofa da ciência sobre o fim do mundo. No tempo das catástrofes.
(9) Vide Edison Veiga, Desmatamento: Amazônia perdeu 20% e Cerrado, 50%, desde 1970, aponta relatório do WWF.
(10) Vide Ellen MacArthur Foundation, 2016 Report, Rethinking the Future of Plastics.
(11) Vide o “Índice do Planeta Vivo” ou “Living Planet Index”.
(12) Vide Yinon M. Bar-On, Rob Phillips, e Ron Milo, The biomass distribution on Earth.
(13) Publicado pelo Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services, ou (“Plataforma Internacional de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos”), ligada ao PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente). O relatório, composto de vários documentos específicos, está disponível em Assessment Reports.
(14) Vide MORA et al. (2011): How Many Species Are There on Earth and in the Ocean?
(15) Vide Fernanda Wenzel, Governo registra mais três agrotóxicos associados à mortandade de abelhas.
(16) LIBOUREL et al. (2018): Partial homologies between sleep states in lizards, mammals, and birds suggest a complex evolution of sleep states in amniotes.
(17) Essa época geológica, iniciada há 11.700 anos, denomina-se Holoceno. Os cientistas indicam que, em virtude das profundas alterações promovidas pela humanidade no ambiente especialmente a partir de meados do século XX, o Holoceno deu lugar a uma nova época geológica denominada Antropoceno.
(18) Trata-se do termo usado, por vezes abreviado para CO2eq ou CO2e, quando é feita a equivalência do impacto de outros gases para o aquecimento global, tomando o CO2 como referência. (19) Como denunciei em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Vide, A fábrica de ilusões que leva ao colapso civilizacional. Entrevista especial com Alexandre Costa.
(20) A capacidade eólica instalada triplicou de 2009 a 2016. A solar cresce ainda mais rápido: triplicou num período ainda mais curto (de 2012 a 2016).
(21) Vide Damian Carrington, 'Brutal news': global carbon emissions jump to all-time high in 2018.
(22) O conceito de dívida climática aparece em Alexandre Costa, O nome não é “Ajuda Humanitária”. É Dívida Climática!
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