O insustentável irrealismo do presente

 

 

Paul Mason (*)

 

 

O que caracteriza o momento presente na história é um sentido generalizado de irrealismo entre as elites. Os discursos oficiais não são mais usados como guias para a ação, as leis não são aplicadas e os regulamentos são ignorados.

 

O símbolo definitivo do irrealismo que campeia no mundo está contido em dois gráficos. O primeiro é a projeção feita pelo Departamento Orçamental do Congresso dos Estados Unidos da América (Congress Budget Office - CBO) da relação entre a dívida e o produto interno bruto, até 2048.

 

Gráfico 1: Ratios de dívida para PIB nos E.U.A.

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Fonte: CBO

 

Ele projeta níveis de dívida próprios de tempos de guerra até 2030 - exceto que em tempo de paz - impulsionados principalmente pela determinação dos E.U.A. em continuar a gastar em defesa, segurança social e saúde (Medicare) sem aumentar os impostos em percentagem do PIB. Ao invés do que aconteceu na segunda guerra mundial, não há um plano realista - nem mesmo uma intenção declarada - para diminuir essa enorme montanha de dívida. Pela primeira vez na história do capitalismo industrial, uma grande economia está construindo uma montanha de dívidas em tempos de paz, não tendo um meio realista de a vir a reduzir.

 

Nas projeções do CBO, nos próximos 30 anos, o PIB dos E.U.A. crescerá de US$20 para US$65 triliões, enquanto sua dívida crescerá de US$16 para US$97 triliões (1). O défice estaria assim nos 8% ao ano - levando a apelos de economistas tradicionais a uma austeridade em escala insustentável na América de hoje. A suposição subjacente é de que a população dos E.U.A. aceitará um colapso nos seus padrões de vida, o mundo continuará comprando os papéis emitidos pelos E.U.A. ou que o Estado imprimirá sempre mais dinheiro como caminho para sair da insolvência.

 

Agora, demos uma olhadela numa segunda evidência - um gráfico do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (PIMC) mostrando quão dramaticamente precisamos de reduzir as emissões de CO2 nos próximos 20 a 35 anos, se quisermos evitar um colapso catastrófico e incontrolável.

 

Gráfico 2: Percursos possíveis para as emissões globais de CO2 (biliões de toneladas por ano)

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Fonte: IPCC

 

Para conseguir isso, diz o PIMC, "seriam indispensáveis transições rápidas e de longo alcance nas políticas de energia, terra, infra-estrutura urbana (incluindo transportes e edificações) e sistemas industriais” – exigindo "um aumento significativo dos investimentos nas melhores opções".

 

Questão estratégica confrontando a humanidade

 

A única questão estratégica que a humanidade enfrenta é a de saber se os países altamente endividados do mundo desenvolvido estão preparados para encontrar os recursos necessários para fazer essa transformação. A questão subsidiária é saber se estamos preparados para destruir a influência política das indústrias de combustíveis fósseis e das indústrias financeiras evasoras dos impostos. Até respondermos a essas perguntas, estaremos perpetuando a cultura do irrealismo.

 

Nos E.U.A. surgiu um poderoso novo movimento que quer alcançar isso. O Novo Acordo Verde (Green New Deal), publicado como projeto de lei no Congresso pela nova representante de Nova Iorque Alexandria Ocasio-Cortez, propugna compromissos de gastos em dez anos que os seus críticos calcularam em US$6 triliões por ano (1). Os proponentes deste Green New Deal recusam este número. Segundo a chamada teoria monetária moderna, argumentam eles, o preço é pagável, em todas as circunstâncias, emitindo dívida e imprimindo dinheiro, e, portanto, o valor é irrelevante.

 

Embora eu aplauda esta ousadia, ela baseia-se de certa forma nas mesmas suposições que a política fiscal do presidente Donald Trump - que a moeda fiduciária permite ao Estado superar as dinâmicas tradicionais da dívida para sempre. Por outras palavras, a dinâmica interna de um sistema de mercado capitalista - em que, nalgum momento, a elevada dívida gera instabilidade e desvalorização da moeda, enquanto o custo do endividamento do governo derrapa fora de controlo - pode ser evitada por decreto.

 

A única maneira de injetar realismo neste debate é fazer uma pergunta que nem os membros da elite económica de Davos, nem os democratas progressistas - nem mesmo a maioria no movimento ambientalista - estão dispostos a considerar: as soluções são compatíveis com o capitalismo?

 

Tecnologia em revolta

 

No meu livro Pós-capitalismo: um guia para o nosso futuro (2015), argumentei que não são. O maior problema para a sustentabilidade da dívida dos E.U.A. (ou, para o caso, do Japão e da zona do euro) não é se o sistema financeiro pode ser mantido vivo por meio de moeda fiduciária. É que a tecnologia da informação está em revolta contra as instituições sociais e económicas que a rodeiam.

 

Há muito pouco valor gerado numa economia informacional-capitalista para justificar o tamanho da montanha atual da dívida, os contínuos défices ou as projeções fiscais dos principais Estados. A Infotech cria quedas exponenciais nos custos de produção de informação, de bens informáticos e de alguns bens e serviços físicos. Produz vastas quantidades de utilidades gratuitas, através de efeitos de rede, tendendo a democratizar e baratear a inovação. Suprime o mecanismo normal de adaptação, segundo o qual a inovação produz novos bens, com mais elevados custos de insumos (incluindo o trabalho), permitindo assim emprego com salários mais altos. Além disso, a automação tem o potencial de erradicar 47% dos empregos ou 45% das atividades.

 

Nos últimos quinze anos, construímos um sistema altamente disfuncional, que é insustentável em todas as suposições tradicionais. É um sistema de monopólios singulares permanentes, com uma massiva busca de rendimento e de exploração financeira, a criação de empregos de baixa remuneração e baixa qualificação - destinados a manter as pessoas dentro dos sistemas de crédito e de extração de dados - além de enormes assimetrias de poder e de informação entre as empresas. e os consumidores.

 

Como resultado, a longamente esperada descolagem da quarta revolução industrial não está acontecendo. Os economistas schumpeterianos prevêm insistentemente a sua chegada iminente, se ao menos os Estados assumissem um papel mais ativo na coordenação industrial. Mas isso não poderá acontecer dentro de uma economia de mercado global altamente endividada e monopolizada.

 

Redesenho rápido do sistema

 

Assim, paralelamente à transição para uma economia de carbono zero, precisamos de um rápido redesenho do sistema - em que o setor de mercado encolha em relação ao setor público, surja um setor colaborativo não mercantil, o dinheiro deixe de funcionar como reserva de valor e haja uma rápida redução de horas trabalhadas dentro do sistema de salários.

 

Se olharmos tempo suficiente para a projeção da dívida dos E.U.A. e para uma carta como a do Gráfico 3 - mostrando quão rapidamente a humanidade arruinou o mundo, usando-o como um cano de esgoto para processos pesados em carbono – torna-se óbvio que o capitalismo atingiu um ponto de rotura. Está demasiado endividado para continuar como o normal e demasiado viciado estruturalmente em carbono. Aqueles a quem são devidas as dívidas, mais aqueles que possuem direitos para queimar o carbono, irão todos para a falência ou o clima mundial entrará em colapso.

 

Gráfico 3: Emissões anuais de CO2 (biliões de toneladas por ano (2)) por regiões mundiais

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Source: Carbon Dioxide Information Analysis Center

 

No médio prazo, precisamos de uma forma diferente de capitalismo, que não será nem estável nem permanente. Até mesmo isso terá que ser criado através de algo que se parecerá com uma revolução. Será preciso desincentivar o uso de carbono, enquanto se redistribui maciçamente a riqueza e se permite que o sul global continue a se desenvolver - superando as enormes distorções estruturais criadas pelos monopólios tecnológicos, pelos que buscam rendas, pelos especuladores financeiros e pelos Estados e empresas acumuladores de dados.

 

Mudar para o pós-capitalismo não implica erradicar as forças de mercado da noite para o dia, nem aceitar os métodos de planeamento de comando da economia soviética. O objetivo é projetar uma transição controlada em que as forças de mercado deixem de operar como o principal alocador de bens e serviços no planeta, na qual o Estado encolhe e as montanhas de dívida são desmanteladas.

 

A tecnologia da informação facilitará um movimento para além da escassez em largos setores da economia. A mudança climática exige que erradiquemos certas formas de uso do carbono. A dinâmica da dívida no mundo, combinada com o problema do envelhecimento, significa que precisamos de algo mais radical e sustentável do que a moeda fiduciária e uma montanha de dívidas que nunca serão pagas.

 

Muito estridente?

 

Quando avisei, em Pós-capitalismo, que, se não abandonássemos o neoliberalismo, ele acabaria com a globalização, o Financial Times qualificou isso de "desnecessariamente estridente". Não foi estridente o suficiente, como se viu.

 

Com Trump retirando os E.U.A. do acordo climático de Paris, o seu colega brasileiro Jair Bolsonaro preparando-se para incendiar a Amazónia e movimentos poderosos em ascensão por toda a Europa para proteger os estilos de vida baseados no carro movido a diesel, apenas uma ideia nova, grande e global poderá virar a situação.

 

Vou tentar descrever o que isso significa para as novas alianças políticas progressistas que precisam de se formar, como elas precisam de combater de forma inteligente as guerras culturais que aí vêm e por que razão o Estado - tão negligenciado pelos movimentos ambientalistas e de justiça social - permanece no centro da solução.

 

Os pressupostos tecnocráticos gémeos do nosso tempo - de que o sistema social atual pode oferecer zero carbono e que o dinheiro fiduciário pode compensar para sempre as dívidas crescentes - são o que faz com que tantas políticas presentes sejam tão incrivelmente irreais. Precisamos de cair no real.

 

 

 

 

 

 

(*) Paul Mason (n. 1960) é um conhecido jornalista, escritor e apresentador radiofónico britânico. Foi editor no Channel 4 e na BBC Two. É professor visitante na Universidade de Wolverhampton. Militou em algumas organizações de esquerda revolucionária marxista. Atualmente considera-se um social-democrata radical, sendo apoiante da liderança trabalhista de Jeremy Corbyn. É autor de alguns livros de grande sucesso, de história social e, sobretudo, de análise prospetiva, como Live Working or Die Fighting: How the Working Class Went Global (2007), Meltdown: The End of the Age of Greed (2009), Why It's Kicking Off Everywhere: The New Global Revolutions (2012), PostCapitalism: A Guide to our Future (2015) e Clear Bright Future: A Radical Defence of the Human Being (2019). Escreveu também uma peça teatral sobre os dias de exílio de Louise Michel na Nova Caledónia. O original deste artigo foi publicado simultaneamente em Social Europe e no IPS-Journal. A tradução é de Ângelo Novo. O Comuneiro tem fortes divergências com o otimismo reformista deste autor, que vai de par com o seu determinismo tecnológico. Oxalá ele tivesse razão. A sua visão do futuro é bem cativante, mais do que o permitido pela nossa escassa fé numa generalizada boa vontade humana.

 

 

 

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NOTAS DO TRADUTOR

 

(1) Estes números obedecem à chamada escala curta, em uso no Brasil, em que um trilião (ou trilhão) é igual a 1.000.000.000.000. Em Portugal, onde se usa a chamada escala longa, um trilião equivale a 1.000.000.000.000.000.000. Para exprimir os números que se expõem no texto nesta norma, deveria antes usar-se a expressão biliões (milhões de milhões).

 

(2) O bilião, aqui (escala curta), equivale a um milhar de milhões (1.000.000.000).